Não é preciso crer em Deus para ser contra o aborto!
A Gazeta do Povo publica em primeira mão um trecho do novo livro
do filósofo Francisco Razzo: “Contra do Aborto”, lançado pela editora Record
Por Da Redação - Gazeta do Povo
Argumentarei em defesa da realidade pessoal da vida humana desde os primeiros estágios de sua existência!
O recém-concebido não é uma pessoa ou uma vida em potencial, como
alegam alguns, ele já é
integralmente uma pessoa que não pode ser marginalizada porque a força taxativa
da militância simplesmente deseja converter o aborto em direito reprodutivo da
mulher. Que se defenda, então, a
licitude do aborto sem correr o risco de perder a própria alma.
Quando uma mulher decide abortar, independentemente das crenças subjetivas que a motivaram e dos direitos que amparam sua escolha, além de ela matar uma pessoa, esse ato é objetivamente imoral. Como perguntaram os filósofos Robert P. George e Patrick Lee: o que é morto em um aborto? Trata-se do status pessoal e moral dessa entidade morta o tema central que não se deve colocar de lado, inclusive e sobretudo pelos defensores do aborto, como denunciou Naomi Wolf duas décadas atrás.
Defender o aborto é, acima de tudo, defender o direito de uma
mulher matar uma pessoa objetivamente determinada e moralmente relevante desde
o momento da concepção e não apenas, como articulam os retóricos, eliminar uma
vida humana em potencial — ou como dizem: um “amontoado de células”.
Os seres humanos não são pessoas em virtude
apenas de possuir certas qualidades e funções psicológicas, pelo contrário, são
pessoas em virtude de sua própria realidade objetiva — e, no caso dos embriões,
estão concretamente presentes como corpo e em um corpo. Ser pessoa é uma
condição ontológica radical e não resultado de certo desenvolvimento
neurobiológico. O conceito “ontológico” refere-se à sua realidade enquanto tal,
em sim mesma, e que não depende de nossas percepções psicológicas para ser o
que se é. Aspectos físicos, biológicos, psicológicos, econômicos e sociais só
fazem sentido quando pensados à luz da ontologia: o terreno de todas as nossas
reflexões é filosófico.
Pessoa? Ser humano?
Negarei, com isso, o artifício retórico que distingue “pessoa” de “ser humano” adotado pela estratégia dos defensores do direito de uma mulher decidir o que fazer com o próprio corpo, como se o corpo do embrião fosse só uma parte do organismo materno ou só uma entidade biológica sem qualquer valor ontológico próprio.
Assumo, e me comprometo filosoficamente por isso, uma visão
conhecida como personalismo ontológico a qual se distingue de um personalismo
do tipo funcionalista. Como definiu o filósofo Juan Manuel Burgos, personalismo
ontológico defende a tese segundo a qual uma pessoa é considerada um ser
integrado e unitário configurado conforme estruturas que atuam de maneira
harmônica e cujo corpo não deve ser reduzido aos fenômenos físico e biológico.
Em decorrência disso, o contraste conceitual para “pessoa
em potencial”, “vida em potencial” do embrião seria “pessoa em ato” desde a
concepção, mas prefiro adotar o termo pessoa objetivamente determinada que se
autodesenvolve para a vida adulta. Ser pessoa é o ponto de partida, e não um
ponto qualquer, fruto de arbítrio e artificialismos no desenvolvimento de um
indivíduo.
Foi o filósofo John Locke (de forma ainda não plenamente desenvolvida), um dos principais responsáveis por
introduzir as categorias que dissociam o homem entre “pessoa” e “ser humano”,
atribuindo caráter psicológico na medida em que esvazia o ontológico. Locke
alegava que nem todos os seres humanos são pessoas. Ele define pessoa como “um
ser pensante inteligente, que possui razão e reflexão e pode se considerar a
mesma coisa pensante em diferentes momentos e lugares”. Para ele, ser humano só
pode ser considerado pessoa quando desenvolver certas funções psicológicas.
Portanto, utiliza o termo pessoa para designar indivíduos que dispõem das
capacidades psicológicas de percepção, racionalidade, autointeresse e
consciência de si. São apenas seres humanos os que ainda não desenvolveram tais
capacidades. Ou seja, subordina ontologia a psicologia, o valor da pessoa a
funções psíquicas.
Hoje, com o avanço da neurociência, essas capacidades psicológicas — processos mentais — são concebidos como resultados de processos cerebrais. Segue-se que o embrião só será considerado pessoa quando desenvolver sistema nervoso central, que são processos biológicos complexos. Nesse sentido, a psicologia está subordinada à neurobiologia.
Portanto, pessoa passa a ser um valor secundário cada vez mais marginalizado para a esfera da opinião sem relevância científica, mas algo dado na esfera dos interesses sociais. (...) seres humanos [considerados] não pessoas podem servir de cobaias em experimentos científicos ou serem comercializados — não à toa entre os serviços prestados pela Planned Parenthood está o de comercialização de tecido de feto abortado.
No final do século XX, antes de se converter ao cristianismo ortoxo e mudar completamente sua visão de mundo, o autor responsável por difundir e enfatizar essa diferença entre “pessoa” e “ser humano” foi o filósofo H. Tristram Engelhardt Jr. Em seu livro Os fundamentos da bioética, publicado em 1998, ele escreveu:
“As pessoas se destacam como possuidoras de importância especial
para discussões morais. São essas entidades que têm direitos morais seculares
de tolerância, porque elas podem negar permissão. Agentes morais competentes
são aqueles que participam de controvérsias morais e podem resolvê-las por meio
de acordo. Mas também podem discordar. Como a textura da cooperação impositiva
entre estranhos morais depende de acordo, os agentes morais não podem ser
usados sem sua permissão. Essa preocupação moral, deve- se observar, tem seu
foco não nos humanos, mas nas pessoas. O fato de uma entidade pertencer a uma
espécie particular não é importante em termos morais seculares gerais, a menos
que essa pertença resulte no fato de essa entidade ser realmente um agente
moral competente.”
Segundo essa linha de pensamento, pessoas são seres humanos possuidores
de preocupação e competência moral, autonomia e liberdade!
Nenhum recém-concebido, embrião, feto ou até recém-nascido possui
tais capacidades por causa do desenvolvimento precoce de suas funções. Por isso
devem ser vistos apenas como seres humanos e não como pessoas. Seres humanos
protegidos por terceiros.
Os valores atribuídos aos embriões não decorrem de uma
propriedade intrínseca deles, mas de serem propriedades particulares de outras
pessoas; uma coisa que pode, inclusive, servir de “moeda de troca” para outras.
Sem valor de dignidade subjacente à própria realidade, que é o valor acima de
qualquer outro valor, seres humanos não pessoas podem servir de cobaias em
experimentos científicos ou serem comercializados — não à toa entre os serviços
prestados pela Planned Parenthood está o de comercialização de tecido de feto
abortado. Só possui dignidade quem dispõe de competência psicológica para
evocá-la, e esse valor será garantido por consensos e acordos em uma comunidade
política. H. Tristram Engelhardt Jr. chega a dizer que “os fetos, os
recém-nascidos, os retardados mentais graves e os que estão em coma sem esperança
constituem exemplos de não pessoas humanas. Essas entidades são membros da
espécie humana. Não têm status, em si e per si, na comunidade moral”.
Há duas
dificuldades racionais com esse tipo de distinção:
-A primeira, e mais importante, está em limitar o status pessoal a certas qualidades psicológicas derivadas de funções neurológicas — sensação de dor, autoconsciência, autointeresse e racionalidade como subprodutos do cérebro.
-A segunda é que, nesse sentido, os seres humanos só serão considerados pessoas quando, durante o seu desenvolvimento biológico, alcançarem tais funções — assim como deixam de ser pessoas se acidentalmente perderem —, e a partir desse quadro não se pode garantir a relevância moral, pois não há relevância moral intrínseca, só extrínseca.
Funções psicológicas são fatos
empiricamente constatados pelo método adotado pelas ciências naturais dedicas
ao estudo do cérebro. Ademais, segundo a “lei de Hume”, como mostrei aqui, dos
fatos empíricos não se pode extrair um dever. Pois não há valores morais nos
fatos empíricos, dos quais fazem parte os fatos cerebrais e os psicológicos. Em
síntese, não haveria fatos morais objetivamente relevantes, uma vez que todos
os valores são subprodutos de percepções, desejos e interesses psicológicos.
Mesmo assim Peter Singer convida a “rejeitar a teoria segundo a
qual a vida dos membros de nossa espécie tem mais valor do que a dos membros de
outras espécies”, já que por terem desenvolvido sensação, percepção, capacidade
de comunicação, curiosidade, consciência “alguns seres pertencentes a espécies
diferentes da nossa são pessoas; alguns seres humanos não o são”. E conclui:
“Nenhuma avaliação objetiva pode atribuir à vida de seres humanos que não são
pessoas maior valor à vida de outras espécies que o são. Ao contrário, temos
razões muito fortes para dar mais valor à vida das pessoas que às das não
pessoas. E, assim, parece-nos ser mais grave matar, por exemplo, um chimpanzé
do que um ser humano gravemente deficiente, que não é uma pessoa.”
Segundo essa perspectiva, sem as funções
psicológicas ou cerebrais, os seres humanos são apenas membros da “espécie Homo
sapiens”, entidades biológicas incapazes de autodominar suas relevâncias
morais. Ao dispor de suas funções psicológicas, os seres humanos passam a ser
considerados pessoas, porém não há garantias objetivas de serem moralmente
relevantes em virtude do fato de essas funções serem apenas resultados de
desenvolvimento biológico e não a própria realidade objetiva de valor
intrínseco dado pela sua condição antropológica. A relevância moral estaria
sempre associada ao conjunto de interesses compartilhados entre indivíduos. Por
isso, autores defensores do aborto como Peter Singer, David Boonin, Mary Anne
Warren, Jeff McMahan e Michael Tooley, Roderick T. Long, Judith J. Thomson e
tantos outros afirmam ser o embrião biologicamente humano, mas não uma pessoa —
que mereça atenção moral maior do que mereceriam os adultos biologicamente
desenvolvidos. A questão é que mesmo adultos biologicamente desenvolvidos não
têm garantias objetivas de seu reconhecimento moral.
A pergunta a se fazer é: por que, de repente, sentir, pensar e
conceber a si mesmo são capacidades responsáveis por forçar os outros a
considerá-lo uma pessoa se o status pessoal e moral, em sua origem, já depende
do reconhecimento social de terceiros cuja fonte original é o reconhecimento
psicológico?
O ensaísta e filósofo brasileiro Antonio Cicero, ao defender o aborto em um artigo de 2010 para a Folha de S.Paulo, sintetiza bem a mentalidade de que o embrião é um ser humano não pessoa.
“Lembramos de que, pelo menos nos
três primeiros meses, quando ainda não tem sequer atividade cerebral, o embrião
constitui uma unidade apenas para os outros, mas não para si. Na verdade, nem
sequer possui um ‘si’. Sem sentir, pensar ou ter um ‘si’, o embrião não chega a
ser uma pessoa, não poderia ter projeto, desejo ou ambição: sem falar de um
futuro que lhe pudesse ser ‘roubado’. Ora, que sentido teria falar de
‘direitos’ ou de ‘proteção jurídica’ de um ser que nem sequer pensa, sente ou
tem um ‘si’? As possibilidades que o embrião encarna, portanto, não são
possibilidades que ele mesmo contemple. Elas são, em primeiro lugar,
possibilidades objetivas: no caso em questão, a possibilidade trivial de que o
mundo adquira mais um habitante.”
Ou para
ficar com a precisão do filósofo libertário Roderick T. Long, que afirma:
“Eu creio que é claramente verdade [que fetos não são pessoas] nos
estágios iniciais da gravidez, pois a posse de capacidades psicológicas de
algum tipo é essencial para pessoalidade. Nada conta como uma pessoa se carece
de capacidades psicológicas; um feto em estágio inicial carece de estruturas
neurofisiológicas sofisticadas o suficiente para embasar capacidades
psicológicas; portanto, um feto em estágio inicial não é uma pessoa, e assim
pode ser morto sem a violação de quaisquer direitos.”
Há
algumas dificuldades implícitas que precisam ser analisadas:
-A primeira, mais explícita, é tomar as “estruturas neurológicas
sofisticadas” como fundamento para uma subjetividade e autointeresse.
-A segunda, que segue da primeira, é a ideia de que só a partir do
“reconhecimento psicológico de si”, o autointeresse, se dá o reconhecimento
público de direito e proteção jurídica. Para essa visão funcionalista, esses
seriam critérios determinantes do status pessoal e a relevância moral.
A
primeira dificuldade baseia-se na ideia de que a condição antropológica do embrião
ser reconhecido como alguém depende de um conjunto sofisticado de funções
cerebrais e não o contrário. Segundo esse ponto de vista, as atividades
cerebrais fornecem critérios necessários para fundamentar o status pessoal. A
dificuldade aqui está em presumir que só pode ser considerado pessoa depois da
emergência da consciência. E só pode ter relevância moral quem é pessoa.
Consciência, neste contexto teórico, é um subproduto do cérebro. Com efeito, a
relevância moral não é atribuída a uma pessoa pelo fato de ser objetivamente
pessoa, mas atribuída ao fato de ter desenvolvido consciência, que por sua vez
só “existe” como resultado de sofisticados processos neurofisiológicos.
Conforme a “lei de Hume”, fatos empíricos e suas relações não contêm valores morais.
A consciência é resultado do desenvolvimento de processos neurobiológicos. O
processo neurobiológico é um fato empírico. Portanto, mesmo depois de três
meses não faz sentido chamar seres humanos de pessoas. Se antes eles não eram
pessoas, em virtude do que seriam pessoas depois? Em virtude do
autorreconhecimento de si como pessoa — que é a segunda dificuldade.
A segunda traz como fundamento a noção de
que “unidade” e “identidade”, que capacitam alguém a ser reconhecido por si
mesmo como pessoa, dependem, nesse contexto teórico, não da própria realidade
pessoal objetiva, mas de expectativas de terceiros. Como o embrião não sente,
pensa ou concebe a si mesmo, ele não pode ser incluído como pessoa membro da
comunidade moral, pois não possui os requisitos psicológicos necessários para
lutar por esse reconhecimento em sociedade. O reconhecimento psicológico de si
é só uma condição suficiente, mas necessária para alguém ser pessoa. A pergunta
a se fazer é: por que, de repente, sentir, pensar e conceber a si mesmo são
capacidades responsáveis por forçar os outros a considerá-lo uma pessoa se o
status pessoal e moral, em sua origem, já depende do reconhecimento social de
terceiros cuja fonte original é o reconhecimento psicológico?
Nesse
caso, uma pessoa só será mesmo pessoa quando for reconhecida pelos outros, que
já são capazes de reconhecerem psicologicamente a si mesmos enquanto tais. O
valor necessário de uma vida humana continua sendo extrínseco e artificial, ou
um mero adicional provisório pelo fato de alguém ter conseguido evocar a si
diante dos outros.
Para a manutenção da vida humana em
sociedade, só o autorreconhecimento psicológico de si torna-se irrelevante e
impotente para fundamento da comunidade moral. Porque de qualquer maneira o que
importa é a capacidade de alguém, psicologicamente disposto, forçar os outros a
reconhecê-lo como pessoa moralmente relevante. Se a relevância moral já não é
uma propriedade objetiva intrínseca dada pelo status pessoal, ela poderá nunca
vir a ser. O “poderá” aqui demonstra a fragilidade da situação, já que não há
nada que dê garantias desse reconhecimento. Se por razões sociais, materiais,
raciais, sexuais ou políticas um grupo for impotente diante de outro grupo mais
forte para autodeterminar sua relevância, provavelmente serão relevantes. Mas
podem não ser — quem garante?
Se a questão em causa é a humanização do homem através de um ato
psicológico de terceiros, o ato psicológico se justifica em virtude do quê? O
que confere ao ato psicológico poder para decidir o que os outros são ou deixam
de ser? Nada mais do que a imposição do forte sobre o fraco.
Uma comparação do SER OU NÃO SER, com os autistas
Por exemplo, os autistas. Autistas são
seres humanos que sofrem de um tipo delicado de deficiência neuropsíquica. Eles
são impotentes para certo nível de autoimposição social. Segundo essa linha de
raciocínio que estou analisando, um autista pode não ter qualquer relevância
moral caso as pessoas deixem de considerá-lo como moralmente relevante. Por que
desperdiçar tempo e energia com autistas? Eles que se virem para conseguir
impor sua relevância que só eles, fechados em si, reconhecem. Por que alguém
teria dever e obrigação de reconhecê-los socialmente? Uma mãe poderia ter a
vida inteira desejado um filho comunicativo, saudável, com estima elevada
diante dos colegas, proativo, determinado a alcançar seus próprios objetivos,
que sabe priorizar o mais importante, equilibrado, sensato, competitivo, que
sabe conviver em harmonia com os outros, enfim, um filho autônomo, saudável e
responsável. Aí ela descobre, contra todos os seus sonhos, que o filho tem...
um grau de autismo que dificulta o desenvolvimento dessas características. A
severa disfunção neurológica afeta justamente sua capacidade de interação
social. Sendo assim, por que tratá-lo como membro da comunidade moral se ele
mesmo não tem capacidade para impor tal reconhecimento? E por que obrigar uma
mulher a cuidar dele? Simplesmente porque é mais fácil abortar uma pessoa de 11
semanas do que matar uma de 2 anos. No entanto, os problemas são os mesmos: um
ser humano de 11 semanas não desenvolveu funções neurobiológicas, um de 2 anos
não as desenvolveu adequadamente. Ambos não têm condições de impor relevância
moral porque essa depende de certas disposições psíquicas.
Humanização ou desumanização?
Esse foi o mesmo contexto teórico responsável por introduzir, a
partir dessa categoria psicológica e social de “reconhecimento”, a distinção
muito em voga em debates atuais do aborto entre “ser humano” e “ser humanizado”
— visto que o termo “pessoa” pode apresentar ambiguidades, como alguns
defensores do aborto alegam, a opção é falar em humanização (a expressão “parto
humanizado” é um exemplo, e no fundo legalizar o aborto é uma forma de
“humanizá-lo”). Outra ideia importante é de que o direito à vida estaria ligado
à “qualidade de vida”.
A respeito do uso de alguns termos com o objetivo de amenizar o impacto da ideia de aborto a fim de “humanizá-lo” e propor “qualidade de vida” às mulheres, recorro à resposta que a ativista Obianuju Ekeocha deu a Mette Gjerskov, parlamentar dinamarquesa e ativista pelos “direitos reprodutivos das mulheres”, na ocasião de um painel de discussões de um evento chamado “Melhores Práticas para a Saúde Maternal na África”, que foi realizado pela ONU, em Nova York, no dia 17 de março de 2016. Gjerskov questionou a ativista pró-vida sobre como a possibilidade de “privar as mulheres africanas do direito sobre os seus próprios corpos” pode ser uma nova forma de colonialismo: “Senti-me um pouco provocada pela ideia de neocolonialismo. Sendo da Europa, claro, isso me afeta. Então, eu gostaria de compartilhar, porque já estive na África e sei que lá existem países diferentes. Falei para muitas mulheres africanas e aquilo que aprendi por ter vindo de uma sociedade colonialista é: ‘Não cause danos. Permita às pessoas tomarem suas próprias decisões.’”
Obianuju Ekeocha mostra que essa suposta ideia de “humanização”
trazida pela cultura ocidental com relação às mulheres africanas não passa de
uma distorção e não traduz o que realmente significa o aborto para a maioria
dos africanos. Ela diz: “Eu sou de uma tribo
chamada Igbo, na Nigéria. Se eu tentar traduzir em minha língua o que significa
‘uma mulher escolher o que fazer com o seu corpo’, não conseguiria. A maioria das línguas nativas africanas sequer têm uma forma de
interpretar ‘aborto’”, pois “a maioria das comunidades africanas realmente
acredita, por tradição, por seu padrão cultural, que o aborto é um ataque
direto à vida humana!Então, para qualquer um convencer uma mulher da África de
que aborto pode ser algo bom, primeiramente terá de dizer para ela que aquilo
que seus pais, avós e ancestrais ensinaram está, na verdade, errado. Que eles
sempre tiveram uma ideia errada. E isso sim, é uma forma de colonização!”
(...) se a mulher luta por reconhecimento e ele só pode ser dado pela aceitação psíquica do homem, segue que a mulher (...) precisa conferir ao homem valor superior ao dela. Em outras palavras, é nunca sair do cativeiro de sua sujeição. Ou a mulher tem dignidade intrínseca ou não tem. Se ela tem, os homens são obrigados a reconhecê-la. Se não tem, pode ser que os homens não o façam. Para oferecer uma resposta mais filosófica, sigo aqui as análises de Elio Sgreccia. Se a humanização de alguém é determinada pelo reconhecimento dado por terceiros, nesse caso, então, são as atitudes de aceitação e reconhecimento da mãe que conferem o valor humano ao embrião.
Caso a mãe não aceite e reconheça o filho, a escolha de interromper a gravidez torna-se socialmente justificável. Sgreccia não tem dificuldade em salientar o ponto cego desse raciocínio. Se o embrião já é ser humano ainda antes da “humanização”, não se vê como é possível justificar a sua supressão do corpo materno; se não é humano, então que nos digam o que é e como pode ser humanizado por uma simples atitude psicológica da mãe?
Se a questão em causa é a humanização do homem através de um ato psicológico de terceiros, o ato psicológico se justifica em virtude do quê? O que confere ao ato psicológico poder para decidir o que os outros são ou deixam de ser? Nada mais do que a imposição do forte sobre o fraco. Porém, há um problema para quem defende o aborto alegando direitos das mulheres. Uma mulher aceitar isso não faz o menor sentido, sobretudo quando se entende como objetivamente legítima a atual luta de mulheres pelo reconhecimento de sua dignidade. Pois se a mulher luta por reconhecimento e ele só pode ser dado pela aceitação psíquica do homem, segue que a mulher, para ser socialmente reconhecida, precisa conferir ao homem valor superior ao dela. Em outras palavras, é nunca sair do cativeiro de sua sujeição. Ou a mulher tem dignidade intrínseca ou não tem. Se ela tem, os homens são obrigados a reconhecê-la. Se não tem, pode ser que os homens não o façam.
O escritor Gustavo Nogy, em um texto chamado “Do aborto ao botox”,
expressa bem a lógica dessas disposições que submetem o preço da vida ao
reconhecimento:
“Nietzsche considera que muitos dos nossos escrúpulos dependem das
comparações que fazemos — da comensurabilidade — entre semelhantes e
dessemelhantes. Quanto maior a diferença entre dois seres — de poder, de
tamanho, de força —, menor será o impulso à compaixão. Esmagamos formigas
porque formigas são tão pequenininhas que não conseguimos sequer compreender
seu sofrimento. Esmagamos animais, escravos, prisioneiros de guerra, mulheres,
velhos e crianças pelo mesmo motivo.”
Qualidade de vida x aborto
O outro termo problemático, inspirado na
ideia de reconhecimento e na distinção “ser humano” e “pessoa”, é “qualidade de
vida”. Como diz Elio Sgreccia, eis mais uma “distinção capciosa”. Para o
defensor do aborto o direito à vida depende da “qualidade de vida”. Em Peter
Singer isso fica evidente, já que entre salvar a vida de um gorila e a de um
ser humano adoecido, salve o macaco. Na ideia de qualidade de vida está implícita
muita coisa, principalmente a perigosa ideia de “normalidade”. O limite para o
valor da vida do embrião está submetido ao critério do desenvolvimento de uma
vida normal. E aqui valem as reflexões de Michael Foucault — filósofo francês
que estudou as origens mais perversas das relações de poder na sociedade —
quando mostra que no surgimento da ideia de “anormalidade”, no século XIX,
havia uma aproximação entre medicina e direito (se isso soa familiar, não é
mero acaso). Foucault avalia que o anormal, o “monstro humano”, é aquele que
constitui “em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das
leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza”, pois “serve como o
grande modelo de todas as pequenas discrepâncias. Mesmo sendo o princípio de
inteligibilidade de todas as formas da anomalia” e, neste contexto, “o anormal
é, no fundo, um monstro cotidiano, um monstro banalizado”.
A expressão “qualidade de vida” serve como o atual princípio
seletivo entre “normal” e “anormal”. Baseado nessa concepção difusa de “vida
boa” se justifica eliminar o embrião afetado por anomalias, cujo caso de
embriões microcéfalos é só o mais atual exemplo. As anomalias, porém, não
precisam ser só físicas ou psíquicas, mas sociais e econômicas. Como argumenta
Elio Sgreccia, a possibilidade de “prever déficit ou deficiência, ou também
que, por razões extrínsecas, tivesse embaraços em seu desenvolvimento humano”,
sejam por quais motivos forem, será da família o ônus de carregar esse fardo.
Um filho “anormal” não é compatível com as expectativas de qualidade de vida de
um casal, de uma mulher ou da sociedade.
Esses raciocínios não diferem em estrutura
daqueles que fundamentavam teorias eugenistas do final do século XIX e início
do XX a respeito do “aperfeiçoamento” humano. Sem a propriedade objetiva, basta
a sociedade declarar guerra contra os fracos.
Alertava-nos Foucault em Os anormais
que “não será mais simplesmente nessa figura excepcional do monstro que o
distúrbio da natureza vai perturbar e questionar o logos da lei”, pois,
conforme a teoria dos degenerados que aturará na base dos sistemas
psiquiátricos para a defesa da sociedade contra os anormais, ele estará “em
toda parte, o tempo todo, até nas condutas mais ínfimas, mais comuns, mais
cotidianas, no objeto mais familiar da psiquiatria, que encarará algo que terá,
de um lado, estatuto de irregularidade em relação a uma norma e que deverá ter,
ao mesmo tempo, estatuto de disfunção patológica em relação ao normal”. Através
da inocente expressão “qualidade de vida” como atributo de uma vida digna e
medida apenas pelo princípio de maior bem-estar material e psicológico,
aceita-se o princípio racista, eugênico e discriminatório e cuja única
diferença com outras formas declaradas de racismo, eugenia e preconceito é ser
aplicada ao embrião.
-A terceira dificuldade é só um adendo ao raciocínio de Antonio
Cicero. Do fato de embriões não contemplarem suas possibilidades triviais
objetivas, implica se tornarem só mais um habitante irrelevante do
planeta.
Por esse motivo podem ser “mortos” sem o risco de se violar
qualquer direito, pois se não são pessoas capazes de estimarem a si mesmas, não
são sujeitos de direito. Mas por que do fato de contemplarem suas
possibilidades seguiria necessariamente alguma mudança objetiva em relação à
relevância deles como habitantes do planeta? Um suicida seria menos pessoa por
não contemplar mais as possibilidades triviais objetivas de sua vida sem
sentido?
O problema central desse tipo de mentalidade pode ser resumido com
as seguintes palavras:
A relevância moral muda conforme o cérebro dispõe ou não de boas
condições e muda conforme pessoas são capazes de atribuir relevância para si
mesmas e para as outras. Só isso. Por que haveria mais alguma coisa? Quanto
mais o cérebro for desenvolvido, maior o status pessoal e a relevância moral;
quanto menos o cérebro for desenvolvido, menor status pessoal e relevância
moral. E quanto mais alguém estima a si, mais relevância moral para si mesma;
quanto menos, menos relevância moral.
Um depressivo seria moralmente miserável perto de alguém de “bem com a vida”!?
Quem sofre de esquizofrenia, transtornos de bipolaridade ou
qualquer outro tipo severo de transtorno mental que impeça ou iniba o
desenvolvimento de sua identidade, projeto de vida e ambição seria, além de
“menos pessoa”, menos relevante do ponto de vista moral quando comparado a uma
pessoa que não desenvolveu doenças desse tipo. Já as pessoas com alta
performance mental seriam mais relevantes moralmente para si e forçosamente
para os outros. O conselho é ler livros de autoajuda e evitar poesias.
NO VÍDEO ABAIXO PERCEBA A DIFICULDADE DO FILÓSOFO, que se diz ateu, LUIZ FELIPE PONDé EM CONTRA ARGUMENTAR COM A "PRESIDENTE DO PRO VIDA", QUANDO ELA USOU O ARGUMENTO RACIONAL E NÃO RELIGIOSO ! ELE ATÉ QUIS QUE ELA O USASSE POIS FICARIA MAIS FÁCIL DE CONTRA ARGUMENTAR! ficou sem chão, não conseguiu refuta-la, e preferiu sair pela tangente com outras abordagens!
Enfim, esses raciocínios não diferem em estrutura daqueles que fundamentavam teorias eugenistas do final do século XIX e início do XX a respeito do “aperfeiçoamento” humano. Sem a propriedade objetiva, basta a sociedade declarar guerra contra os fracos, justamente em um tempo que se fala tanto da "defesa de minorias e dos sem vez e sem voz", e o que dizer de um feto indesejado no útero de uma mãe? Quem os defenderá e falará por eles?...
Fonte - https://www.gazetadopovo.com.br/justica/nao-e-preciso-crer-em-deus-para-ser-contra-o-aborto-8cf840h5z30vsitw3fu2picw7/
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