Publicamos
a seguir mais uma contribuição do Procurador Regional da
República, Paulo Vasconcelos Jacobina, enviada para os leitores de ZENIT.
(Por : Paulo Vasconcelos Jacobina)
Há uma
fala de Jesus que é bastante utilizada em meios agnósticos para calar a voz dos
cristãos nos grandes debates públicos.
Trata-se da
passagem de Mc 12, 17 (e paralelo em Mt 22, 21), em que Jesus ensina que se
deve dar “a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.
Assim,
afirmam eles, nós cristãos deveríamos cuidar das coisas de Deus, e deixar as
coisas estatais para os sem religião, dispostos a dar a César o que é de César.
Obedecendo a esta fala de Jesus, segundo eles, deveríamos evitar colocar nossas
posições em assuntos como aborto, eutanásia, suicídio assistido, casamento
entre pessoas do mesmo sexo, uso de entorpecentes e outros do mesmo tipo;
nossas “convicções religiosas” sobre tais assuntos deveriam limitar-se a que nós
próprios, como indivíduos, não praticássemos tais coisas em nossas vidas, mas
jamais que impuséssemos àqueles que nelas acreditam e desejam praticá-las, que
não o pudessem fazer em nome de convicções religiosas que eles não
compartilham.
O curioso é
ver, neste debate, a Bíblia sendo citada por quem nela não crê, para
fundamentar um silenciamento de quem nela crê. E sendo citada, muitas vezes,
por agentes estatais, mesmo por Ministros de Cortes judiciais elevadas, como a
estabelecer uma espécie de “hermenêutica oficial” para este trecho bíblico.
Poder-se-ia
dizer que compreenderam de modo completamente errado esta passagem.
Mas pouco
adiantaria: em certos meios agnósticos, a Bíblia somente pode ser citada quando
supostamente desmente os que nela creem.
Note-se,
porém, que qualquer leitura um pouco mais atenta deste trecho demonstra
exatamente o contrário do que se quer fazer crer: Jesus determina que se
devolvam as moedas a César, porque têm a imagem de César. Mas reclama que se dê
a Deus aquilo que a Deus pertence: o ser humano, feito à imagem do Altíssimo.
Vale dizer:
“Se as moedas
pertencem a César, porque têm a imagem de César, é justo que se deem moedas a César.
Mas as pessoas têm em si a imagem de Deus. Pertencem, portanto, essencialmente
a Deus, e não a César. Assim, se César tem a legitimidade para exigir lealdade e obediência quanto às
realidades econômicas e temporais, somente Deus pode reclamar a totalidade
existencial do homem.”
Não é
acidental, porém, que aqueles que desejam silenciar os cristãos citem
exatamente este trecho. Trata-se de uma afirmação única na história das religiões:
Para os cristãos,
a partir desta fala de Jesus, existe, de fato, um Deus pessoal e transcendente,
para quem a pessoa está existencialmente orientada, e ao qual deve aquilo que
ao poder estatal não é lícito exigir: o seu fim último.
Uso, aqui,
a palavra “fim” no sentido mais abrangente possível: como origem e destino, a
interioridade e a integridade pessoal pertencem somente ao Deus pessoal,
amoroso e criador, que transcende o ordenamento estatal e o relativiza,
dando-lhe a dimensão adequada: cabe a tal ordenamento o regramento das coisas
que passam, e apenas quanto a elas o Estado é legítimo.
Somente no
contexto cristão, portanto, foi possível construir uma doutrina de “separação”
(melhor diríamos, de relativa autonomia) entre a esfera transcendente, que
reclama as dimensões mais integrais da pessoa, e a esfera imanente, histórica,
temporal, econômica e passageira, que as realidades estatais têm legitimidade
própria para disciplinar – respeitando aquela.
César não pode
exigir que a pessoa deixe de trazer em si a imagem de Deus. Ainda que esta
pessoa nem sequer saiba que a traz.Nenhuma outra religião, nenhuma outra
filosofia, nenhuma outra doutrina desenvolveu esta intuição antes de Jesus a
expressar. Ela é originariamente cristã.
Ainda que
hoje ela tenha sido distorcida e seja usada, muitas vezes, para calar o cristianismo
e os cristãos, afastando-os do debate público.
No
entanto, fora do mundo cristão a autonomia das esferas é um problema que nem
sequer se colocou. No oriente, ainda temos imperadores divinos e Estados
totalitários que exigem da pessoa uma lealdade integral e finalística.
No mundo
muçulmano, embora haja uma história de tolerância e de convivência, sempre se
teve muita dificuldade para articular o poder estatal com a onipotência e a
submissão exigidas a partir da sua peculiar relação com Deus.
No mundo
judaico não é diferente: sua estrutura religiosa os conservou como estrangeiros
em todas as ordens jurídicas pelas quais passaram, exatamente pela dificuldade
de articular a organização temporal com a lealdade ao Deus nacional. Dos
estados materialistas nem se precisa falar: são devoradores implacáveis de
vidas humanas, demandadores de uma lealdade completamente idólatra.
Os
exemplos poderiam prosseguir, sem que alguém, fora ou antes do cristianismo,
atinasse com a ideia de que a relação da pessoa com Deus e a pertença a seu
povo pudesse articular-se com a cidadania num ordenamento estatal autônomo e não
salvífico em si mesmo.
Todos os
temas polêmicos dos quais querem excluir os cristãos, inclusive mediante a citação
distorcida da palavra de Jesus, são temas com forte conotação social e com
graves argumentos de âmbito científico, filosófico e ético contra si.
Sua rejeição
não se encontra no plano das escolhas individuais, nem a sua regulamentação
legal envolve apenas questões de fé. Não há situação mais claramente política
do que a discussão sobre os limites e as condições em que, num determinado
Estado, vidas inocentes podem ser suprimidas ou a sanidade física e mental pode
ser descartada.
No entanto, é preciso registrar:
Os cristãos
têm feito a defesa tranquila e racional da vida e da liberdade da pessoa
humana, contra a cultura da morte, do aborto, da eutanásia, do suicídio, da
promiscuidade e da adição química, com base em argumentos éticos, naturais,
filosóficos e científicos, guiados, é claro, por uma opção fundamental por Deus
e pela plenitude da vida que Ele nos deu.
Surpreende-nos,
nos debates, ver os argumentos religiosos sendo utilizados – e mal utilizados -
exatamente contra os de fé religiosa, e exatamente pelos que alegam não aceitá-los.
BRASILIA,
terça-feira, 29 de maio de 2012 (ZENIT.org)
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