
Na espiritualidade católica, a morte não é vista como derrota, mas como cumprimento de uma promessa. O próprio Cristo venceu a morte e, pela sua ressurreição, abriu para nós o caminho da vida eterna (cf. Jo 11,25-26). Por isso, a Igreja ensina que “a morte é o fim da peregrinação terrestre do homem, do tempo da graça e da misericórdia que Deus lhe oferece” (CIC 1013). É nesse horizonte de fé que compreendemos o gesto ousado de São Francisco de Assis, que chamou a morte de “irmã”. Para Francisco, que viveu em plena comunhão com toda a criação, nada era estranho à obra do Criador, nem mesmo a morte. Acolhê-la não significa desejar a dor, mas reconhecer que ela faz parte do ciclo da vida e é caminho de retorno à casa do Pai. O santo nos ensina que a verdadeira preparação para esse encontro não está em temê-la ou em evitá-la a qualquer custo, mas em viver com simplicidade, amor e desapego, certos de que “se morremos com Cristo, com Ele viveremos” (cf. Rm 6,8). Assim, acolher a “irmã morte” é um convite à confiança: confiar que a vida não se perde, mas se transforma; que o último suspiro não é o fim, mas passagem para a eternidade; que cada instante vivido na graça é já um passo rumo ao encontro definitivo com Deus. São Francisco nos lembra que não devemos temê-la, mas acolhê-la com fé, pois ela nos conduz ao abraço misericordioso do Criador.Em um trecho
da letra de um cântico sobre São Francisco
de Assis sobre a sua morte, há uma mensagem muito
interessante a qual deve ser refletida, que diz assim:
"Que a nossa irmã morte
seja bem acolhida, como a gente acolhe o sono depois de um dia bem conturbado...” (hinários franciscanos: “Ofício Divino Franciscano - Cantos Franciscanos para a Liturgia”)
“Louvado sejas, meu Senhor,
pela Irmã nossa,
a morte corporal,
da qual
nenhum homem vivente
pode escapar...”
Nos relata Tomás de
Celano seu biógrafo:
“Convidava também, todas as
criaturas ao louvor de Deus e, por meio das palavras que outrora compusera, ele
próprio exortava ao amor de Deus. Exortava
ao louvor até a própria morte, terrível e odiosa para todos, indo alegre ao
encontro dela, convidava-a a sua hospitalidade; disse, “Bem-vinda, minha irmã
morte!” (2Cel 217,7).
Francisco preparou
ritualmente sua morte, fez da sua morte uma celebração, um rito de passagem!
Por estar plenamente na vida e na totalidade da existência integrou a morte não
como aquele grande absurdo que é para alguns filósofos, mas como parte
natural do ciclo da vida.Francisco de Assis é uma afirmação da vida por isso pode encarar a morte
como um processo da curva biológica que traça a linha do nascer, crescer,
envelhecer, morrer no momento oportuno ou prematuramente. Francisco
preocupou-se com a vida e não com a doença e morte. Morre cantando a vida e sua
essência! Ao celebrar a morte,
ele a encarou de frente como aquela que lhe estendia a mão para concretizar o
grande sonho humano: a imortalidade! Ele sabe que não está perdendo nada da
vida porque encontrou e ganhou a vida plena que estava dentro de si mesmo.Fez do Amor seu projeto de vida, amar a Deus, amar a humanidade, a
fraternidade, amar todos os seres.
Esta confraternização universal do Amor não
conhece a morte e o morrer. Tudo fez parte de sua vida, inclusive a finitude.
Ele pode dizer como Santa Terezinha, “Eu não morro, entro na vida!”. Ele pode dizer como Gabriel
Marcel:“Amar é dizer: Tu não morrerás jamais!” Francisco de Assis
sente e pensa, sente e age com a certeza de que a morte não é um fim, mas a
grande oferenda, a entrega, a restituição de si mesmo para Deus! Conquistou a
esperança dos justos, que é imortalizar-se e andar para sempre no florido e
fecundo caminho do Paraíso. A força vital que emana de Francisco de Assis o fez
dar boas-vindas à Irmã Morte.
Francisco faz da
morte uma celebração, uma liturgia. Por ser ela um fato humano, uma realidade
“da qual homem algum pode escapar”, ele a convoca para unir-se aos demais
elementos vitais do homem: o sol, a lua, a terra com suas flores e frutas, as
estrelas e o vento, a água cristalina e cantante. Não é ela a mensageira de uma
fatalidade, embora, homem vivente algum dela possa esquivar-se, não é
destruidora da tessitura da vida e separadora de corações e dos elementos
naturais.
A morte não é uma criatura deformada, repelente, intrusa ou alheia à criação
de Deus!
Ela é também uma criatura nascida, como todas, da bondade de Deus.Se para Francisco todas as criaturas são irmãos e irmãs, também a morte
é a irmã, aquela que nos toma pela mão e nos conduz por este trecho do caminho,
misterioso e sombrio. Misterioso porque não temos dele nenhuma experiência.
Tudo o que da morte sabemos é algo exterior a nós, algo que nos chega de fora.Por isso, não a
conscientizamos. E, conseqüentemente, não a incorporamos à nossa história, procurando
afastá-la. E como não o podemos fazer biologicamente, fazemo-lo mentalmente:
recusamo-nos a pensar nela e dela falar. Rejeitamo-la. Sombrio, porque as
civilizações e as culturas encheram este caminho de negrume e sombras
assustadoras.
Para Francisco de Assis, esta
saudação não é mera exuberância poética, numa hora de bem-estar espiritual,
quando nosso ser suporta até os pensamentos aparentemente mais assustadores e
desconfortantes. É uma saudação
arrancada, no momento de plena consciência da proximidade de sua dissolução,
quando o fenômeno morte lhe está próximo, palpável, no tempo e no espaço. Nem
tampouco é um grito nascido de um “cansado da vida”, porque sua cosmovisão
fazia-o degustar a vida, e amá-la, em suas múltiplas alegrias. É a conformidade
profunda, nascida da fé que acredita numa realidade meta-histórica, atingível
apenas através da morte.
Se a morte é irmã,
isto significa que entre ela e o homem existe um parentesco, portanto não se
trata de algo estranho, algo punitivo, algo fatal, algo inimigo. Também
aqui aparece uma dimensão diferente: o desapego foi libertando o homem, até
desejar apenas a realização no plano eterno de Deus.
Portanto, não
fala, aqui, a emoção estética, ainda que o belo exercesse tão profundo fascínio
em Francisco, mas é uma expressão teológica de aceitação alegre. Tudo é bem.
Tudo é dádiva. Tudo é gratuidade! Por isso ele usa a expressão: bem-vinda! A terra é “irmã” e sobre ela quer seu corpo estendido para nela passar à
realidade eterna, pelas mãos de outra “irmã”, a Morte. Sempre de novo, na visão
de Francisco, aparece a fraternização, que vem marcada pela entrega total.
Francisco foi o homem “à disposição” de tudo e de todos, como ensina em suas
exortações: o frade está submisso à toda criatura. Mormente à disposição de
Deus. Daí a entrega final, generosa e alegre, fraterna e pacificada.
Francisco tinha bem claro que o
homem não é um ser-para-a-morte, mas um ser-para-a-vida! Por isso, olha com o
mesmo olhar límpido e destemido o sol, a lua, as flores, as águas e a morte,
porque em todos eles se manifesta o mesmo mistério do ser e palpita a mesma
centelha da vida. Sem dúvida, é resultado de uma longa caminhada. Sobretudo,
resultado de um relacionamento equilibrado e iluminado com todos os seres,
relacionamento feito de ternura e de amor.
O que se ama não se teme, pois os
dois termos são excludentes. Esta estrofe não foi um aditamento de última hora,
mas um complemento necessário, sem o qual o Cântico das Criaturas ficaria
mutilado e incompleto.
O Cântico começa com
o SOL e termina com a MORTE sem estabelecer um paradoxo, ou antagonismos, mas é
uma continuidade natural, uma decorrência lógica. É o encontro da luz solar com
a luz da eternidade. É a explosão da luz. Francisco aproximou o Sol e a Morte,
a Vida e a Morte, a Beleza e a Morte, a Alegria e a Morte, dentro de sua
simplicidade característica, sem fazer violências a si ou aos outros, mas na
aceitação plena de quem sabe que somente quando as folhas da flor caem é que a
semente tem possibilidade de tornar-se geradora de uma nova primavera! “Na verdade, na verdade vos digo que se o grão de trigo, caindo na
terra, não morrer, fica ele só, mas se morrer, dá muito fruto...” (Jo 12,24).
Ou somente no “apodrecer
no seio da terra”, irrompe a vida do grão. Na tradição franciscana, desde Frei
Pacífico, o jogral da corte, dos dias de Francisco até um Alceu Amoroso Lima, vamos
encontrar esta fraterna convivência do homem com a morte, depois de ter
exorcizado todos os fantasmas e medos e de ter aceito o parentesco com a Irma
Morte que deve ser bem acolhida não importando se cedo, ou tardiamente.
Adaptação do livro: “São Francisco, vida e ideal”, de Frei Hugo Baggio, Vozes.
ORAÇÃO DA "BOA MORTE"
Meu
Senhor Jesus Cristo, Deus de bondade e Pai de misericórdia, eu me apresento a
vós com o coração contrito e humilhado, para recomendar-vos o meu último
suspiro e o que depois dele me espera de vosso reto e justo juizo. Quando
a imobilidade de meus pés me advertirem que a minha carreira neste mundo está
prestes a terminar:
– Misericordioso Jesus, tende
piedade de mim!
Quando
as minhas mãos trêmulas e entorpecidas já não puderem sustentar o crucifixo e,
a meu pesar, o deixarem cair sobre o meu leito de dor:
– Misericordioso Jesus, tende
piedade de mim!
Quando
os meus olhos, ofuscados pelo horror da morte iminente, fixarem em Vós as
vistas lânguidas e desfalecidas:
– Misericordioso Jesus, tende
piedade de mim!
Quando
os meus lábios, frios e trêmulos, pronunciarem pela última vez o vosso nome
adorável:
– Misericordioso Jesus, tende
piedade de mim!
Quando
a minha face, pálida e lívida, inspirar aos circunstantes compaixão e terror, e
os meus cabelos, banhados de suor da morte, anunciarem o meu fim próximo:
– Misericordioso Jesus, tende
piedade de mim!
Quando
os meus ouvidos, prestes a cerrarem-se para sempre aos discursos dos homens, se
abrirem para escutar a vossa voz, que pronunciará a irrevogável e decisiva
sentença de minha sorte para toda a eternidade! (Vinde mim, ou afasta-te!)
– Misericordioso Jesus, tende
piedade de mim!
Quando
a minha imaginação e o meu espírito perturbados pelo aspecto das minhas
iniquidades e pelo temor da vossa justiça, lutarem contra o anjo das trevas,
que procurará afastar-me da vista consoladora das vossas misericórdias e
precipitar-me no abismo da desesperação:
– Misericordioso Jesus, tende piedade
de mim!
Quando
o meu débil coração, oprimido pelas dores da enfermidade e tomado dos horrores
da morte, se achar extenuado pelos esforços que tiver feito contra os inimigos
de minha salvação:
– Misericordioso Jesus, tende
piedade de mim!
Quando
correrem dos meus olhos as últimas gotas de lágrimas, sintomas da minha
destruição; recebei-as, ó meu Jesus, em sacrifício expiatório, para que eu
expire como vítima de penitência, e nesse terrível momento:
– Misericordioso Jesus, tende
piedade de mim!
Quando
meus parentes e amigos, ao redor do meu leito, se enternecerem à vista do meu
doloroso estado e vos invocarem por mim:
– Misericordioso Jesus, tende
piedade de mim!
Quando
eu tiver perdido o uso de todos os meus sentidos, e o mundo inteiro tiver desaparecido
diante de mim, deixando-me só, inteiramente só, a gemer nas angústias da
extrema agonia e nas aflições da morte:
– Misericordioso Jesus, tende
piedade de mim!
Quando as ânsias extremas do
coração forçarem a minha alma a desprender-se do corpo, arrancando os últimos
suspiros, aceitai-os como sinal de uma santa
impaciência de unir-me a vós:
– Misericordioso Jesus, tende
piedade de mim!
Quando
a minha alma sair para sempre deste mundo e deixar meu corpo pálido, frio,
inanimado, e cadáver, aceitai essa destruição do meu ser físico em sacrifício de
homenagem por mim prestada à vossa divina majestade, e então:
– Misericordioso Jesus, tende
piedade de mim!
Finalmente,
quando minha alma comparecer na vossa presença, e ver pela primeira vez o
esplendor de vossa infinita majestade, não a expulseis da vossa vista, antes
recebei-a no amoroso seio da vossa misericórdia, para que cante eternamente os
vossos louvores:
– Misericordioso Jesus, tende
piedade de mim!
PETIÇÃO
Meu Deus que, condenando-nos à morte, nos ocultastes a hora dela, fazei que, vivendo em justiça e santidade todos os dias da nossa
vida, mereçamos sair deste mundo em vosso santo amor, pelos merecimentos de
Nosso Senhor Jesus Cristo, que convosco vive e reina, na unidade com o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos.
Amém!
CONCLUSÃO
São Francisco de Assis nos ensina que a morte não é um inimigo, mas uma irmã a ser bem acolhida, pois ela nos conduz à presença de Deus. Na perspectiva católica, a vida é um dom divino, e a morte, uma passagem para a eternidade, onde a alma encontra a plenitude do amor de Deus. Ao contemplarmos a nossa fragilidade e finitude, somos chamados a viver com santidade, caridade e fé, conscientes de que cada dia é uma oportunidade de nos aproximarmos do Senhor. Que possamos, como São Francisco, receber a morte com serenidade, confiando na misericórdia de Deus, sabendo que ela não encerra, mas transforma a vida em comunhão eterna com o Criador e com todos os irmãos e irmãs que nos antecederam na fé.
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São José patrono da boa morte, rogai por nós e por todos os moribundos que neste momento fazem esta passagem!
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