“A nossa forma de celebrar não é
pelo Missal de Paulo VI, ou seja pela forma ordinária? Sei que há diferenças
entre as duas formas de celebrar, mas não sei concretamente quais. As rubricas
dessa “Forma Extraordinária” não aparecem na IGMR. Então porquê anunciar a
celebração da Missa na forma extraordinária? Tanto faz ir a uma celebração
tridentina como a uma do rito ordinário? Sei de pessoas, que frequentam semanas
de formação litúrgica e catequética de âmbito nacional, e celebram a Eucaristia
nos dois modos. Porquê? Gostava também que me dissesse algo sobre o Coro e os
cânticos nas celebrações tridentinas”.
O nosso consulente faz-nos perguntas muito concretas. Vamos
tentar responder-lhes o mais concretamente possível. Enunciaremos sempre a
pergunta e procuraremos, na resposta, cingir-nos a ela.
1. “Missa na forma extraordinária do Rito Romano”
é o mesmo que “Missa Tridentina”?
Sim, é o mesmo. Pode
consultar, a esse respeito, a Carta que, em 3 de Outubro de 1984, a Congregação
do Culto Divino enviou “aos Presidentes das Conferências Episcopais” sobre o
uso do Missal Romano segundo a edição típica de 1962, e posteriormente tudo o
que o Papa Bento XVI determinou na Carta apostólica “Summorum Pontificum”, de 7
de Julho de 2007, à qual pertence este extracto: «O Missal Romano promulgado por
Paulo VI é a expressão ordinária da “Lex orandi” (“Lei da oração”), da Igreja
católica de rito latino. Mas o Missal Romano promulgado por S. Pio V e
novamente editado pelo B. João XXIII deve considerar-se como expressão
extraordinária da mesma “Lex orandi” e gozar do respeito devido pelo seu uso
venerável e antigo. Estas duas
expressões da “Lex orandi” da Igreja não levarão de forma alguma a uma divisão
da “Lex credendi” (“Lei da fé”) da Igreja, pois são, de facto, dois usos do
único rito romano. Por isso é
lícito (e não obrigatório), celebrar o Sacrifício da Missa segundo a edição
típica do Missal Romano promulgado pelo B. João XXIII em 1962, e nunca
ab-rogado, como forma extraordinária da Liturgia da Igreja».
2. Se sim, habitualmente não são Missas privadas?
As designações “Missa
privada” e “Missas privadas” aparece, ao que sei, uma única vez nos documentos
da reforma litúrgica, mais concretamente na “Carta Encíclica Mysterium fidei”,
do Papa Paulo VI, de 3 de Setembro de 1965, e nunca mais reaparecem. Na
hora actual, e de acordo com a Instrução Geral do Missal Romano, há dois modos
de designar as celebrações da Missa:
a)-A partir das assembleias
que nelas tomam parte.
b)-Da presença ou
ausência do povo.
Segundo as assembleias que tomam parte na celebração, as
Missas designam-se do seguinte modo:
a) Missa presidida pelo
Bispo rodeado do seu presbitério, diáconos e ministros leigos, com
participação plena e activa de todo o povo santo de Deus.
b) Missa celebrada com
uma comunidade, sobretudo com a comunidade paroquial;
c) Missa conventual
ou “da Comunidade”, celebrada por certas comunidades, seja de
religiosos seja de cónegos.
Segundo a presença ou ausência do povo a classificação
recebe outros nomes:
I) Missa com o povo,
aquela que é celebrada com participação dos fiéis (sem diácono ou com diácono).
II) Missa concelebrada
por vários bispos, ou por vários presbíteros, ou por vários bispos e
presbíteros, ou por um bispo e um presbítero, sempre sob a presidência de um
deles.
III) Missa com a
participação de um só ministro, isto é, celebrada pelo sacerdote, com a
assistência de um só ministro.
IV) Missa que, por
causa justa e razoável, se celebra sem a assistência de um ministro ou ao menos
de algum fiel, ou seja, missa celebrada apenas pelo sacerdote (bispo ou
presbítero).
Portanto, e de acordo
com estas várias denominações, as Missas a que se refere serão habitualmente
missas com o povo.
3. Então por quê um cartaz de divulgação para a missa
Tridentina?
Terá que o perguntar
aos responsáveis pela celebração, ou aos serviços da Cúria local, mas, em
princípio, penso que é perfeitamente normal que assim se faça, para
o dar a conhecer aos fiéis que participam nessas celebrações.
4. A nossa forma de celebrar não é pelo Missal de
Paulo VI, ou seja, pela forma ordinária?
Com toda a certeza.
Declara-o o Papa Paulo VI, na Constituição Apostólica Missale Romanum, pela
qual promulgou o Missal Romano que leva o seu nome, com estas palavras:
“Também Nós, ainda que admitamos no
novo Missal, de acordo com as prescrições do Concílio Vaticano II, variantes e adaptações legítimas, confiamos
que ele irá ser recebido pelos fiéis como instrumento valioso para testemunhar
e confirmar entre todos a mútua unidade. Por variadas que sejam as línguas, uma
só e mesma oração, mais fragrante que o incenso, subirá ao Pai dos Céus, pelo
nosso Sumo Pontífice Jesus Cristo, no Espírito Santo. Ordenamos que as
prescrições contidas nesta Constituição entrem em vigor no dia 30 do próximo
mês de Novembro do corrente ano [1969], primeiro Domingo do Advento. Queremos também que
tudo quanto nesta Constituição fica estabelecido e prescrito tenha força de
lei, agora e para o futuro, não obstante, se for caso disso, as
Constituições e Ordenações Apostólicas dos nossos Predecessores, ou quaisquer
outras prescrições, ainda que dignas de especial menção ou derrogação”.
Infelizmente, embora
fossem estes os votos e desejos do Papa e do Missal por ele apresentado ao povo
de Deus, a realidade não tardou a revelar-se outra. Porquê? Porque nem toda a
gente pensava como Paulo VI. A oposição de alguns cardeais e bispos, que já se
manifestara durante o Concílio, subiu de tom logo que foi publicada a 1.ª
edição da Instrução Geral do Missal Romano. O novo Missal foi imediatamente
acusado de não ser testemunha da fé de sempre, de ter interrompido a Tradição,
e de ter introduzido novidades contrárias à “lex orandi”.Foi esta oposição ao
novo Missal que levou o Papa a mandar introduzir, na 2.ª edição típica da
Instrução Geral um Proémio, com três subtítulos, que transcrevemos:
“Testemunho
de fé inalterável”, “Uma tradição ininterrupta”, “Adaptação às novas
circunstâncias”, que mais não são do que a resposta às falsas acusações do
grupo contestatário da reforma do Missal.
Esse grupo veio a ter
como principal protagonista e mentor cismático Mons. Lefebvre, que fora Bispo de Argel, e cuja posição intelectual
se pode resumir nestas palavras:
Nós
não aceitamos o Missal protestante de Paulo VI, mas só o Missal verdadeiramente
católico de S. Pio V.
A oposição manteve-se
viva ao longo do pontificado de Paulo VI, caluniosamente acusado de ser um falso papa
e membro da maçonaria, e continuou no tempo de S. João Paulo II, que tudo fez
para chamar os recalcitrantes à unidade e paz da Igreja. Nessa
tentativa se inscreve a Carta da Congregação do Culto Divino acima referida.Mas
as atitudes conciliadoras do Papa não deram o resultado esperado, como se pode
verificar pela Carta Apostólica por ele escrita, a 2 de Julho de 1988, da qual
fazemos esta síntese:
1)- A ordenação
episcopal de quatro bispos realizada por Mons. Lefebvre a 30 de Junho de 1988
foi um acto cismático;
2) Apesar disso o Papa manifesta, a todos os fiéis
católicos vinculados às formas litúrgicas e disciplinares do Missal de S. Pio
V, a vontade de lhes facilitar a comunhão eclesial mediante as medidas
necessárias para garantir o respeito das suas justas aspirações.
3)Com essa finalidade institui uma Comissão com a tarefa de
facilitar a plena comunhão eclesial dos sacerdotes, seminaristas, comunidades
religiosas ou de cada um dos seus membros, homens ou mulheres, ligados à
Fraternidade de S. Pio X, conservando as
suas tradições espirituais e litúrgicas, de acordo com o protocolo assinado, a
5 de Maio de 1988, pelo então Cardeal Ratzinger e por Mons. Lefebre.
4) além disso, o Papa pede que em toda a parte se respeite
o espírito de todos aqueles que se sentem ligados à tradição litúrgica latina
do Missal de S. Pio V, segundo a edição de 1962, mandada fazer pelo Papa João
XXIII.
5. Sei que há diferenças entre as duas formas de
celebrar, mas não sei concretamente quais?
As rubricas dessa
“Forma Extraordinária” não aparecem na IGMR. Então porquê anunciar a celebração da
Missa na forma extraordinária? As diferenças são aquelas que resultam
das duas edições em causa:
a)-O Missal Romano de S. Pio V na sua versão de 1962,
b)-E o Missal Romano de Paulo VI, de 1970.
Só o confronto entre
ambos poderá mostrar-lhe essas diferenças, que são muitas, desde as vestes
litúrgicas, à língua, à forma de celebrar de costas para a assembleia (ou de
frente para o altar do sacrifício), etc., às antífonas de entrada e da comunhão
(canto gregoriano ou canto em línguas vernáculas). As rubricas da “Forma
Extraordinária” não aparecem na IGMR, mas sim nos documentos iniciais da edição
do Missal de 1962, que são praticamente iguais às do Missal de 1570.
Quanto ao porquê do anúncio a que se refere, só os autores do cartaz e os responsáveis
da celebração poderão esclarecê-lo, mas volto a dizer, não nos deve causar
admiração.
6. Tanto faz ir a uma celebração tridentina como
a uma do rito ordinário de Paulo VI?
Sei de pessoas, que
frequentam semanas de formação litúrgica e catequética de âmbito nacional, e
celebram a Eucaristia nos dois modos. Porquê? Vou dar-lhe uma resposta que
talvez o desaponte, mas é assim que eu vejo as coisas. Segundo as palavras de
Paulo VI acima transcritas:
“Confiamos que o Missal
Romano reformado por decreto do Concílio Vaticano II irá ser recebido pelos
fiéis como instrumento valioso para testemunhar e confirmar entre todos a mútua
unidade...”
Parece claro que, por
vontade do Papa, o Missal Romano reformado pelo Vaticano II se destinava a
substituir o de S. Pio V, e o único que confirmaria a unidade dos fiéis na
Igreja católica. Mas a partir das decisões de Bento XVI, na Carta Apostólica Summorum
Pontificum, já não é lícito pensar assim. Vou sintetizar essa decisões
para que possa, por si mesmo, formar o seu juízo:
[«Art. 1. O Missal Romano
promulgado por Paulo VI é a expressão ordinária da “Lex orandi” (“Lei da
oração”), da Igreja católica de rito latino. Mas o Missal Romano promulgado por S. Pio V e
novamente editado pelo B. João XXIII deve considerar-se como expressão
extraordinária da mesma “Lex orandi” e gozar do respeito devido pelo seu uso
venerável e antigo… Estas duas expressões da “Lex orandi” da Igreja são dois
usos do único rito romano. Por isso é
lícito celebrar o Sacrifício da Missa segundo a edição típica do Missal Romano
promulgado pelo B. João XXIII em 1962, e nunca ab-rogado, como forma
extraordinária da Liturgia da Igreja.
Art. 2. Nas Missas celebradas sem o
povo, todo o sacerdote católico de rito latino, tanto secular como religioso,
pode utilizar quer o Missal Romano editado pelo beato Papa João XXIII em 1962,
quer o Missal Romano promulgado pelo Papa Paulo VI em 1970, em qualquer dia,
excepto no Tríduo Sagrado. Para tal celebração, segundo um ou outro Missal, o sacerdote
não precisa de qualquer licença, nem da Sé Apostólica nem do seu Ordinário.
Art. 3. As comunidades dos
Institutos de vida consagrada e das Sociedades de vida apostólica, tanto de
direito pontifício como diocesano, que desejem celebrar a Santa Missa segundo a
edição do Missal Romano promulgado em 1962 na celebração conventual ou
“comunitária” nos seus oratórios próprios, podem fazê-lo…
Art. 4. Nas celebrações da Santa
Missa a que se refere o art. 2, podem ser admitidos, observadas as normas do
direito, os fiéis que o peçam de livre vontade.
Art. 5, § 1. Nas paróquias, onde
haja um grupo estável de fiéis aderentes à tradição litúrgica anterior, o
pároco acolherá de bom grado a sua petição de celebrar a Santa Missa segundo o
rito do Missal Romano de 1962...
§ 2. A celebração segundo o Missal
do B. João XXIII pode ter lugar nos dias feriais; nos domingos e festas pode
haver também uma celebração deste género.
§ 3. O pároco permita também, aos
fiéis e sacerdotes que o solicitem, a celebração nesta forma extraordinária em
circunstâncias particulares, como matrimónios, exéquias ou celebrações
ocasionais, por exemplo as peregrinações.
§ 4. Os sacerdotes que utilizem o
Missal do B. João XXIII devem ser idóneos e não ter nenhum impedimento
jurídico.
§ 5. Nas igrejas que não são
paroquiais nem conventuais, é competência do Reitor da igreja conceder a
licença acima citada.
Art. 6. Nas Missas celebradas com o
povo segundo o Missal do B. João XXIII, as leituras podem ser proclamadas
também na língua vernácula, utilizando as edições reconhecidas pela Sé Apostólica.
Art. 7. Se algum grupo de fiéis
leigos, dos quais se falou no art. 5, § 1, não tiver obtido o que pediu ao
pároco, dê conhecimento disso ao Bispo diocesano. Convida-se vivamente o Bispo
a escutar o que lhe pedem. Se não puder prover a tal celebração, remeta-se o
assunto à Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei”.
Art. 8. O Bispo, que deseja
responder a estas petições dos fiéis leigos, mas que é impedido por várias
causas, pode entregar o assunto à Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei” para que o
aconselhe e o ajude.
Art. 9, § 1. O pároco, depois de
considerar atentamente todas as coisas, também pode conceder a licença para
usar o ritual mais antigo na administração dos sacramentos do Baptismo, do
Matrimónio, da Penitência e da Unção dos Enfermos, se o requerer o bem das
almas.
§ 2. Aos Ordinários concede-se a
faculdade de celebrar o sacramento da Confirmação usando o Pontifical Romano
antigo, se o requerer o bem das almas.
§ 3. Aos clérigos constituídos “in
sacris” é lícito usar o Breviário Romano promulgado pelo B. João XXIII no ano
de 1962.
Art. 10. O Ordinário do lugar, se o
considera oportuno, pode erigir uma paróquia pessoal de acordo com a norma do
cânone 518 para as celebrações com a forma antiga do rito romano, ou nomear um
capelão, observadas as normas do direito…»].
Conclusão:
Embora sujeitando o meu
parecer a outra interpretação que se apresente como autêntica da parte de quem
tenha direito de o fazer, na prática parece que tanto faz ir a uma celebração
tridentina como a uma do rito ordinário.
7. Gostava também que me dissesse algo sobre o
Coro e os cânticos nas celebrações tridentinas.
Penso que em tudo há
que seguir as normas do canto gregoriano do Missal de S. Pio e do Liber
Usualis.
Haveria mesmo algum problema com o Missal de Paulo VI?
Essa pergunta só se
tornou pertinente, ao menos para nós, depois que o Cardeal Ratzinger levantou a
suspeita, manifestando a necessidade de uma “reforma da reforma” litúrgica,
expressão que ficou famosa em alguns de seus textos. Também como Papa, Bento
XVI fez vários gestos nessa direção, com o apoio de seu então mestre de
cerimônias, monsenhor Guido Marini.Para quem foi educado numa experiência mais
majestosa da liturgia pós-conciliar, a crítica permanente dos tradicionalistas
à chamada “Missa Nova” devia parecer, no mínimo, um exagero saudosista. Os
membros do cabido da Basílica de São Pedro, por exemplo, sempre foram exortados
a tratar a liturgia com máxima reverência, sobretudo no tempo em que o Cardeal
Virgílio Noè esteve à frente do grupo, na função de arcipreste. Por ter sido
mestre de cerimônias de Paulo VI, o Cardeal Noè era um verdadeiro entusiasta do
Missal reformado, de modo que ele insistia muito no respeito às rubricas e à
dignidade da Eucaristia. Nesse sentido, ninguém que fosse fiel a esse mesmo
espírito podia achar razoável o que se dizia nos meios mais tradicionais a
respeito da reforma litúrgica pós-conciliar.
Até
que Bento XVI resolveu publicar o Motu Proprio Summorum Pontificum e recuperar
algumas tradições mais antigas, seja no uso de paramentos mais solenes, seja na
celebração ad orientem.
De fato, a iniciativa
do Papa Bento suscitou, como acenamos anteriormente, uma questão inadiável
acerca da estrutura do atual Rito Ordinário, que, embora seja realmente válido
e obrigatório, não deixa de apresentar certas lacunas e deficiências. Trata-se,
portanto, de considerar como o novo Missal respeita e custodia os
três pilares da liturgia eucarística, isto é:
1.A distinção própria e
certa entre o ofício do sacerdote ordenado e o do laicato no oferecimento do
sacrifício eucarístico.
2.A presença real,
verdadeira e substancial de Cristo nas espécies eucarísticas.
3.A natureza sacrifical
da Missa.
Dentro da vasta
bibliografia sobre o assunto, quem nos pode oferecer uma introdução muito
oportuna nesse debate é o autor Michael Davies. No primeiro volume de sua
trilogia sobre a reforma litúrgica, Davies apresenta um relato minucioso e, ao
mesmo tempo, chocante de como o arcebispo Thomas Cranmer, líder da Igreja
Anglicana no tempo de Henrique VIII, manipulou o Livro de Orações e a liturgia,
a fim de converter a fé católica do rei e dos demais ingleses num calvinismo
disfarçado. Sim, Henrique VIII tinha uma fé ortodoxa nos sacramentos, especialmente
na Eucaristia, apesar do rompimento com o Papa. Por isso, Cranmer
viu-se obrigado a uma estratégia ardilosa para perverter o hábito da fé nos
fiéis, escrevendo, para isso, textos ambíguos que podiam ser interpretados
segundo a teologia calvinista. Assim, num prazo de poucas gerações, ele
conseguiu acabar com a fé católica na Inglaterra, negando o caráter particular
do sacerdócio ordenado frente ao dos simples batizados, o dogma da
transubstanciação de Cristo na Eucaristia e, por fim, a natureza sacrifical da
Missa.
Conforme a expressão consagrada do
liturgista J. A. Jungman, “a Missa nos conduz ao Calvário”. Para Cranmer, no
entanto, o sacrifício oferecido pelo sacerdote católico na liturgia não tinha
nada a ver com o Corpo de Cristo nem com a sua Paixão. Tratar-se-ia apenas de
um “sacrifício de louvor”, realizado durante a ceia comunitária, esta também
sem qualquer graça sacramental. Com essa mentalidade, diz Davies, “a fé do povo
católico pôde ser alterada simplesmente ao se alterar a liturgia” [1]. Em
outras palavras, modificando a lex orandi, o arcebispo Cranmer modificou a lex
credendi. Cranmer levou a cabo seu intento por meio de textos propositalmente
ambíguos e da pregação insistente de heresias.
A partir desse panorama
inicial já podemos vislumbrar quais sejam os problemas da reforma paulina. Na
verdade, o terceiro volume do trabalho de Michael Davies analisa como o Missal de
Paulo VI é textualmente ambíguo — a Oração Eucarística II, por exemplo
—, podendo ser interpretado em alguns lugares tanto em sentido católico quanto
em sentido protestante.
Quando
Paulo VI encerrou o Concílio, havia o texto formidável da Constituição
Sacrosanctum Concilium, que jamais pediu a confecção arbitrária de um novo Missal.
A partir da natureza e do crescimento orgânico da própria liturgia, o que se
pedia era uma reforma que ajudasse os fiéis a exprimir na vida e a manifestar
aos outros “o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja”
(n. 2).
Mas o que o Consilium
ad exsequendam Constitutionem de Sacra Liturgia, comissão chefiada pelo
controverso Annibale Bugnini, acabou fazendo foi algo bastante diverso. Tal foi
a revolução empregada na reforma pós-conciliar que um de seus defensores
constatou, ao término dos trabalhos: “O rito romano tal qual o conhecemos não
existe mais”. Daí a notória diferença entre a chamada Missa Tridentina e a
Missa do Vaticano II, duas formas do mesmo rito romano que parecem se
contrapor. A esse respeito, o já falecido Cardeal Ferdinando Antonelli,
ex-membro do Consilium, deixou alguns escritos bastante intrigantes que revelam
o caráter radical dos seus companheiros reformadores. Desde logo, é curiosa a
afirmação de que o grupo contava com alguns observadores protestantes, cujas
ideias serviram para pautar a mentalidade antirromana e o desprezo pela
liturgia como era celebrada até então. Além disso, segundo o mesmo relato do
Cardeal Antonelli, havia também a tendência dos arqueologistas, que desejavam
expurgar da Missa tudo aquilo que fosse “acréscimo medieval”. No fim das
contas, o Missal preparado pela comissão resultou numa indigência litúrgica tão
grande que, para preencher certos espaços, muitos liturgistas se dão o direito
de inventar pantomimas e jograis para “incrementar” a celebração eucarística.
Os relatos do Cardeal
Ferdinando Antonelli foram compilados em livro pelo monsenhor Nicola
Giampietro. A sua publicação causou tanto furor, que os defensores da reforma
litúrgica resolveram enviar todo o acervo do Consilium para o Arquivo Secreto
do Vaticano, com um embargo de 80 anos. Além do que já mencionamos, outra
situação embaraçosa que provavelmente quiseram esconder é a do protagonismo do
então padre Annibale Bugnini na condução da reforma. Para ele, era fundamental
criar uma Missa ecumênica, eliminando “cada pedra que pudesse se tornar ainda
que só uma sombra de possibilidade de obstáculo ou de desagrado aos irmãos
separados” [2]. Por isso, embora os observadores protestantes não tenham
ajudado diretamente na redação do Missal, a forma mentis de quem o escreveu
deixou aberta a possibilidade de um duplo padrão hermenêutico, semelhante ao da
reforma de Cranmer.
Ao se dar conta dessa realidade, o Papa Paulo VI tomou
algumas iniciativas para remediá-la:
1)-Em primeiro lugar, o Santo Padre exigiu que o Cânon
Romano fosse preservado na liturgia eucarística.
2)-Também escreveu a encíclica Mysterium Fidei, condenando
as teorias que colocavam em xeque o dogma da transubstanciação.
3)-Por fim, mandou reeditar a Instrução Geral do Missal
Romano, a fim de que a nova versão expressasse com maior clareza a doutrina
católica sobre o sacrifício eucarístico.
Com
isso, o Papa quis afastar a mentalidade de que a “renovação do Missal Romano
tenha sido feita de modo improvisado” (Missale Romanum, 3 de abril de 1969).
Mas nenhum desses
esforços, devemos admitir, foram suficientes para estancar a sangria no Corpus
Domini, isto é, na sagrada Liturgia revisada após o Concílio.De
qualquer modo, a principal deficiência do Missal de Paulo VI continua a ser a
sua ambiguidade com relação àqueles três pilares da liturgia católica.
Chama
a atenção, nesse sentido, a Oração Eucarística II, que não distingue o
sacrifício oferecido exclusivamente pelo sacerdote do sacrifício de louvor dos
fiéis, de modo que a presença real, verdadeira e substancial de Cristo no
Santíssimo Sacramento fica apenas subentendida. E quando se fala da oferta do
pão e do vinho [3], o fiel bem pode entendê-la como uma obra da humanidade,
segundo a “teologia cósmica” de Teilhard de Chardin.
Que haja uma ligação
direta entre essa forma de celebração e a crescente incredulidade sobre a
Eucaristia no meio clerical, parece coisa mais que provável. Foi exatamente
isso que ocorreu com os católicos da Inglaterra após anos a fio celebrando a
liturgia de Cranmer.
A
“reforma da reforma” sugerida por Bento XVI, portanto, não pretende escrever
outro Missal, mas reaproximar a atual liturgia da sua fonte mais genuína, a fim
de fazê-la “manifestar, de maneira mais intensa do que frequentemente tem
acontecido até agora, aquela sacralidade que atrai muitos para o uso antigo”
(Carta aos Bispos…, 7 de julho de 2007).
Por fim, insiste Bento XVI:
“A garantia mais segura que há de o
Missal de Paulo VI poder unir as comunidades paroquiais e ser amado por elas é
celebrar com grande reverência em conformidade com as rubricas” (id.).
Referências
1.Michael Davies, A reforma litúrgica de Cranmer: a
destruição do catolicismo por meio da mudança litúrgica. Niterói: Permanência,
2017, p. 13.
2.L’Osservatore Romano, de 11 de março de 1965; Doc. Cath.
N.º 1445, de 4/4/1965, coll. 603-604.
3.Sobre a polêmica do Ofertório no Missal de Paulo VI, cf.
a aula n.º 14 de nosso curso “Os Sacramentos”.
Recomendações
-Annibale Bugnini, A reforma litúrgica. São Paulo:
Paulinas-Loyola, 2018, 840p.
-Nicola Giampietro, The Development of the Liturgical
Reform: As Seen by Cardinal Ferdinando Antonelli from 1948 to 1970. Roman
Catholic Books, 2010. 347p.
-Texto do Cânon Romano (trad. do Secretariado Nacional de
Liturgia da CNBB), 1965.
-Resumo das transmissões sobre O Missal de Paulo VI e a
“reforma da reforma”, pelo próprio Pe. Paulo Ricardo.
Fonte: Padre Paulo
Ricardo
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