Por Rodrigo da Silva
O
que está rolando em Hong Kong pode definir o mundo do próximo século. Enquanto
a maior pandemia desde a Gripe Espanhola consome as atenções do planeta, uma
pequena ilha na Ásia promete estremecer a já combalida relação entre as duas
maiores potências do mundo. Aqui tentamos explicar como os acontecimentos deste
jogo de Xadrez podem ser preponderantes para definir os rumos do século 21. A
depender dos próximos passos, o mundo nunca mais será o mesmo! A Guerra Fria
Econômica assume ares de confrontação colonial, como nas velhas guerras do
ópio, só que agora é a China que está na posição de potência agressora, contra
a população de Hong Kong. Os “bárbaros estrangeiros” não podem fazer muita
coisa.
Essa história começa
com uma flor! Há seis mil anos os sumérios a chamavam de planta da alegria. Na
Mesopotâmia, ela era utilizada para sanar doenças como insônia e constipação
intestinal. Assírios e babilônios extraiam o suco dos seus frutos para produzir
remédios. Logo a sua fama alcançou o mundo! Consta que Deméter, a deusa da agricultura na Mitologia Grega, conhecia suas propriedades tão bem que, desesperada com o estupro de sua filha Perséfone, ingeriu suas substâncias para dormir e, assim, esquecer seu sofrimento.
Egípcios, indianos, persas, árabes e romanos fizeram uso generalizado de sua natureza, mencionada nos textos médicos mais importantes do mundo antigo, incluindo o Papiro de Ebers e os escritos de Dioscórides, Hipócrates, Cláudio Galeno e Avicena.
Homero a descreveu na
Odisseia. Chama-se Papaver somniferum, mas você provavelmente a conhece como
papoula. Essa planta é a origem de um narcótico conhecido como ópio. O
principal agente narcótico do ópio é a morfina. A
curto prazo, seu efeito pode ser descrito como um desligamento do mundo
exterior, acompanhado de um prazer intenso. A longo prazo, sua dependência é
perigosa. Em abstinência, os riscos são imensos: há produção em excesso de
noradrenalina, uma das monoaminas com maior influência no humor, na ansiedade,
no sono e na alimentação. O coração dispara e o usuário corre seríssimo risco
de um ataque cardíaco. Na China, o ópio foi
introduzido por comerciantes árabes na longínqua dinastia Tang, que durou entre
618 a 907. Mas por mil anos foi consumido via oral, como medicamento para aliviar
a tensão e a dor, utilizado em quantidades limitadas.
O
hábito de fumar ópio só foi introduzido no país no século 17, pelos holandeses.
Foi um sucesso! Com o tempo sua importação foi expandida - inicialmente pelos
portugueses, depois pelos franceses e finalmente pelos ingleses. O consumo
mostrou-se indispensável à saúde da economia europeia. Os britânicos usavam os
lucros da venda de ópio no Oriente para comprar artigos de luxo como porcelana,
seda e chá, com alta demanda no Ocidente.O
comércio, no entanto, desagradava a China, incomodada com o crescimento da
dependência do narcótico. A primeira proibição de consumo de ópio no país é
datada em 1729, mas teve pouco efeito prático.A coisa degringolou de
vez apenas mais de um século depois, em 1839, quando o governo chinês destruiu
uma imensa quantidade de ópio, equivalente a um ano de consumo, nas mãos de
mercadores britânicos.
Os
ingleses reagiram com fúria, enviando ao Oriente navios abarrotados de
soldados. Era o início da Primeira Guerra do Ópio.Os britânicos derrotaram os
chineses três anos após o incidente, obrigando-os a assinar um tratado de
abertura dos portos e de indenização pelo ópio destruído. O consumo do
narcótico, no entanto, continuava proibido.O negócio complicou de novo em 1856, quando autoridades chinesas revistaram um barco britânico à procura de ópio contrabandeado. Era a desculpa que a Grã-Bretanha precisava para declarar a Segunda Guerra do Ópio, vencida novamente pelos ingleses, em 1857 - dessa vez com apoio dos americanos e dos franceses. Como preço pela derrota, a China teve de engolir a legalização da importação de ópio para o país por quase um século. O narcótico só voltou a ser proibido em 1949, após a tomada do poder pelos comunistas.
Mas a humilhação não restringiu-se
ao consumo de ópio. Em 1842, para encerrar o primeiro confronto, os chineses cederam aos britânicos, "para sempre",
o controle de uma pequena ilha rochosa ao sul, escassamente habitada por
pescadores, como um porto livre com direitos de comércio para o continente. Era
a Ilha de Hong Kong. Em 1860, com a derrota no segundo
confronto, os chineses acabaram também cedendo a Península de Kowloon,
ampliando os poderes dos britânicos na região. Em 1898, por fim, para
garantir o abastecimento da colônia, Londres assegurou ainda os Novos
Territórios, uma região agrícola acima da ilha de Hong Kong e da Península de
Kowloon, através de um terceiro tratado. Este último, um arrendamento com prazo de validade: 99 anos.
Ou seja, com domínio assegurado até 1997.Assim, Hong Kong, como todo
o território é conhecido, passou a ter um desenvolvimento particular sob
cuidado dos britânicos. A região quase inabitada no século 19, alcançou o
século 21 como uma das mais densamente povoadas do planeta. E em poucas
décadas, se tornou também um dos territórios mais ricos do mundo. Um
cidadão médio de Hong Kong não é apenas cinco vezes mais rico que um cidadão
médio da China continental - também é mais rico que um habitante médio do próprio Reino
Unido! Em setembro de 1982,
quando Margaret Thatcher, a primeira-ministra inglesa, sentou-se para negociar
uma renovação do arrendamento do território com Deng Xiaoping, o líder político
chinês, os comunistas foram irredutíveis: não queriam apenas a devolução dos
Novos Territórios, prevista no terceiro acordo, mas de toda a região!
Para
os chineses, os tratados anteriores eram injustos. Thatcher assumiria, anos
mais tarde, que Deng ameaçou, sem rodeios, tomar Hong Kong à força caso suas
solicitações não fossem atendidas - e que não havia absolutamente nada que os
britânicos pudessem fazer para impedi-lo.Assim, em dezembro de
1984, Londres e Pequim estabeleceram que Hong Kong voltaria ao domínio chinês
após 156 anos de administração colonial britânica: à meia noite do dia 1º de
julho de 1997. Em
comum acordo, ingleses e chineses aceitaram um processo de transição que
transformaria Hong Kong numa Região Administrativa Especial. Numa estrutura conhecida como "Um país, dois
sistemas", originalmente proposto pelo próprio Deng Xiaoping, a China
prometeu não alterar o sistema em vigor no território por 50 anos.O que
significa dizer que, com o novo tratado, Hong Kong continuaria a ser um porto
livre e um centro financeiro internacional até 2047 - com autonomia interna,
inclusive fiscal, e amplas liberdades individuais aos seus habitantes,
exceto nas áreas de defesa e política externa. Na última década, no
entanto, esta autonomia vem sendo sistematicamente violada por Pequim, gerando
uma série de protestos populares em Hong Kong, brutalmente confrontados pela
polícia com sprays de pimenta, gás lacrimogêneo e canhões de água.E é exatamente nesse
cenário que alcançamos 2020. Ao longo de abril e maio, enquanto o mundo prestava atenção
na pandemia de coronavírus, Hong Kong foi flagrantemente perdendo sua condição
de território independente. Primeiro, Pequim foi atrás de seus maiores
opositores. Em abril, 15 dos seus principais ativistas pró-democracia
foram presos. Simultaneamente, o Gabinete de Ligação, o mais alto
representante do governo chinês em Hong Kong, anunciou que não estava vinculado
ao Artigo 22 da Lei Básica. A
Lei Básica de Hong Kong serve como o documento constitucional do território.
Essa é a legislação que regula a região desde a queda do domínio britânico, em
1997. O Artigo 22 da Lei Básica diz que “nenhum departamento do Governo Popular
Central e nenhuma província, região autônoma ou município diretamente sob o
governo central, pode interferir nos assuntos administrados internamente pela
Região Administrativa Especial de Hong Kong”.Na prática, Pequim admitiu não
respeitar o acordo de "um país, dois sistemas", estabelecido até
2047. Na última semana, o
governo chinês assumiu que criará por decreto uma lei de segurança nacional em
Hong Kong, contornando o processo legislativo autônomo da região para enfrentar
diretamente a dissidência política contra o Partido Comunista. Em 2003, as
tentativas de aprovar uma legislação semelhante provocaram manifestações em
massa, fazendo o esforço ser descartado.Dessa
vez, as regras de distanciamento social dificultam os protestos. Mas manifestações
continuaram a acontecer. Pelo menos 180 ativistas foram presos. Inúmeros
acabaram hospitalizados. Nesses últimos 23 anos, essa é a medida mais ousada de
Pequim para tomar o controle total de Hong Kong. A tendência é que a legislação
seja aprovada. A medida tende a agravar as tensões nas relações da China com os
Estados Unidos.Trump disse que os
Estados Unidos responderiam fortemente a qualquer tentativa das autoridades
chinesas de impor uma repressão a Hong Kong. Mike Pompeo, o secretário de
Estado americano, disse que as ameaças chinesas podem fazer com que os Estados
Unidos reavaliem o tratamento especial que o território recebe como região
autônoma sob a lei americana.Pat Toomey e Chris Van
Hollen, dois membros do Senado americano, assumiram que apresentarão um projeto
de lei capaz de permitir aos Estados Unidos sancionar autoridades e entidades
chinesas que aplicarem novas leis de segurança nacional em Hong Kong. Robert
O'Brien, conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, disse que o país
instituirá sanções à China caso a legislação seja aprovada: "A
China depende de capital do resto do mundo para fazer
com que sua economia cresça e amplie a classe média. Eles dependem de liquidez
e dos mercados financeiros. Se eles perderem acesso a isso por meio de Hong
Kong, será um estrago real para Xi Jinping e para o Partido Comunista. Eu
espero que eles levem isso em conta, enquanto refletem sobre o próximo
passo." O mercado de ações em
Hong Kong, um dos principais centros financeiros do mundo, desabou depois que
Pequim anunciou o plano. O Senado americano aprovou um projeto de lei que
ameaça proibir empresas chinesas de serem listadas nas bolsas americanas ou
angariar fundos de investidores norte-americanos. O projeto de lei exige que
empresas de qualquer nacionalidade, interessadas em participar do mercado de
ações nos Estados Unidos, certifiquem às autoridades que “não pertencem ou são
controladas por um governo estrangeiro”. A medida atrapalha os planos
de algumas das maiores empresas da China, umbilicalmente ligadas a Pequim.O projeto foi aprovado por unanimidade por republicanos e
democratas. Joe Biden, candidato à presidência pelo partido
Democrata, disse à CNBC que os Estados Unidos não deveriam se calar em relação
a Hong Kong e, se ele fosse presidente, levaria o assunto às Nações Unidas. “Governamos
não apenas pelo exemplo de nosso poder, mas pelo poder de nosso exemplo, e não
devemos permanecer calados. Deveríamos pedir ao resto do mundo que condene
estas ações.” O Washington
Post publicou que os Estados Unidos cogitam realizar seu primeiro teste nuclear
em 28 anos. Três dias depois, o governo chinês disse que "usará medidas
necessárias" caso os Estados Unidos interfiram em Hong Kong.Graças ao
crescimento das tensões com os americanos, Xi Jinping alertou a China para
estar preparada para um combate militar...
A guerra fria do século
21 alcançou o seu verão!
Fonte: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/05/a-nova-guerra-do-opio-desta-vez-da.html
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