Tradicionalistas, conservadores, carismáticos, progressistas
– quem são?
De maneira periódica somos interpelados, seja na internet, seja na vida
real, sobre as divisões internas da Igreja. Algumas pessoas querem saber como
se portar diante delas, outras pretendem simplesmente negar que pertencem a uma
(pois aderem à idéia de que “um católico é apenas um católico”), e, de modo
mais constante, me perguntam sobre como conceituar os diferentes grupos e como
enquadrar as pessoas neles.Há uma explicação famosa do conhecido Pe. Paulo
Ricardo sobre o tema, mas para mim ela está enviesada, isto é, pende para o
lado que mais o agrada. Nela o Pe. Paulo, que é um neoconservador (calma,
já já explico o que isso quer dizer), considera como “conservador” aquilo que
historicamente os tradicionalistas defendem, e como “tradicionalista”
apenas os integrantes caricatos desse último grupo. Não aceito isso e vou
explicar o motivo, de modo que futuros leitores deste texto não venham tentar
contrapor a ele o pensamento do Pe. Paulo como que usando um argumento falacioso
da autoridade fosse suficiente para convencer em tudo.
Em primeiro lugar,
cabe um vôo panorâmico sobre o que ocorreu nas últimas décadas.
No
Vaticano II tínhamos três tendências disputando a influência na formulação dos
textos:
1)-
Os tomistas, que aderiam à teologia tradicional da Igreja
e ao ethos construído em torno disso ao longo dos séculos.
2)- Os
da patrologia, que defendiam o que consideravam ser uma volta às
fontes da Fé.
3)-
E finalmente, os que se ligavam à teologia
moderna, uma espécie de neomodernistas.
Durante o Concílio, os adeptos da
patrologia se juntaram aos neomodernistas, numa estratégia política para fazer
valer suas opiniões, e isso pode ser percebido nos textos conciliares, onde
parágrafos se contradizem, remetendo à necessidade de uma exegese sistemática,
holística. Ou seja, é como se o centro tivesse se juntado com a esquerda.
Mas,
para a surpresa do segundo grupo, logo na segunda metade dos anos 60 passamos a
ver, devido ao poder monetário e midiático, além do “agrado” que certas
propostas davam ao homem contemporâneo, uma divulgação crescente de uma
interpretação neomodernista do Vaticano II; e as coisas foram ficando
tão radicais que o grupo tomista passou a ser visto como uma categoria
inexistente de tão non sense, e o
grupo da patrologia foi alçado para a direita.
Portanto, os conservadores no sentido dado a
essa expressão por Burke ou Russel Kirk (conservador é aquele que adere às
lições e formas do passado para um desenvolvimento orgânico da vida social), são
os herdeiros do grupo tomista, os atuais tradicionalistas,e os ligados à patrologia só podem ser
chamados de neoconservadores,
já que representam historicamente uma quebra com a tradição e só foram alçados
à condição de direita pelo fato da Igreja ter caminhado excessivamente para a
esquerda.
No meio disso tudo, apareceu um
quarto grupo, o dos carismáticos, que tem, ao mesmo tempo, alguns
aspectos híbridos dos outros grupos e alguns que são inéditos. Certas parcelas
do carismatismo estão muito próximas do neconservadorismo, em especial no que
se refere à obediência à autoridade; outras dos tradicionalistas, como no que
se refere à disciplina eclesiástica (uso de roupas clericais); e, em vários
aspectos, eles inovaram, como na maneira de se organizarem em comunidades de vida e aliança.
Chegando neste ponto,
alguém pode perguntar: mas isso tudo não seriam apenas categorias políticas?
Não é um reducionismo com a Igreja? Eu não me enquadro em nenhuma delas e
algumas pessoas parecem se enquadrar em mais de uma, como você explica tal
fato? Todo progressista é um neomodernista?
Respostas: De fato, isso são categorias políticas, ou melhor,
sociológicas, mas que se refletem na política eclesial (e ninguém venha me
dizer bovinamente que não há política na Igreja, pois há, é natural que exista,
já que Cristo fundou uma sociedade de fiéis e em toda sociedade a política é
necessária); não estou tratando de categorias teológicas, pois a suposição aqui
é que todas elas sejam católicas (se alguém defende que alguma não é, então que
leve às últimas conseqüências sua conclusão).
Isso é assumidamente
reducionismo, pois tudo não passa de um instrumental didático para se tentar
organizar um pouco a complexidade do real. Algumas pessoas, de fato, podem
estar fora de todas elas (embora eu particularmente não conheça ninguém), mas a
maioria vai se inserir preponderantemente, mas não exclusivamente, num dos
grupos citados. Nem todo progressista é um neomodernista, mas o progressismo
atual tem seus antecedentes no trabalho de pessoas que ignoravam os conselhos e
mandamentos de São Pio X (assim como nem todo tradicionalista é
lefebvrista, mas todos tem seus antecedentes na luta desse santo bispo).
Agora, feita toda essa introdução, posso esquematizar
minhas respostas a certas colocações/perguntas que já li:
1) O que cada grupo (tradicionalistas,
neoconservadores, carismáticos e progressistas) defende?
a)- Tradicionalistas: as formas litúrgicas
e disciplinares anteriores ao Vaticano II, a teologia neotomista.
b)- Neoconservadores: a posição oficial de
Roma em relação a tudo, os resultados da terceira fase do movimento litúrgico,
a “teologia das fontes”.
c)-Carismáticos: a valorização da
experiência com o sagrado(ou seja,com a misericórdia de Deus), envolvendo a emoção
(Amarás o Sr Deus com todo teu coração),na vida eclesial, em paralelo a
“teologia das fontes” com uma moral racional neotomista (com todo teu
entendimento), e no uso dos carismas (e com todas as tuas forças).
c)- Progressistas: a busca da
harmonização entre a doutrina católica e a filosofia moderna, a “teologia das
fontes” com uma leitura toda particular e com reflexos na liturgia e nas regras
disciplinares.
2) Qual o posicionamento de cada
um em relação ao Vaticano II?
a)- Tradicionalistas: variado, da simples
negação (que tende ao cisma) à leitura escolhida por eles mesmos de partes do
Depósito da Fé mais compatíveis às suas próprias exigências (nesse caso, com
resultados que variam segundo o valor que se dá ao concílio: dogmático ou
pastoral).
b)- Neoconservadores: aceitam a exegese
oficial e suas justificativas.
c)- Carismáticos: em geral, aceitam a
exegese oficial e suas justificativas, mas em alguns pontos aderem ao chamado
“espírito do Vaticano II” e em outros possuem uma visão próxima a dos
tradicionalistas moderados.
d)- Progressistas: o Vaticano II deve
ser aproveitado segundo seu “espírito”, isto é, segundo o desejo de mudança e
harmonização com a realidade atual que se depreende mais da vontade dos padres
conciliares que da letra dos textos.
3) Acredito que a questão política
é semelhante à questão eclesial, modificando apenas alguns termos específicos
no que tange o funcionamento do Estado em relação ao que ocorre na Igreja.
Não, a questão
política não tem nada haver com a eclesial.Todos os tradicionalistas, se forem
tradicionalistas de verdade, são conservadores no campo político. Já os
neoconservadores eclesiológicos podem ser conservadores ou social democratas no
campo político.
Eclesiologicamente:
a) Os conservadores,
que querem conservar as formas que passaram no teste do tempo e, ao mesmo
tempo, aceitam as mudanças orgânicas, são aqueles que fizeram resistência ao
caos pós-conciliar. São os tradicionalistas.
b) Já os
neoconservadores são os que não aceitam essa resistência, mas que também não
levam até o fim os princípios nos quais as diretrizes do pós-concílio se
apoiam, são os oficialistas acima de tudo.
4) Esquematize as posições das
várias “tribos católicas” sobre os assuntos que você acha mais importantes.
Tradicionalistas:
1) Ênfase histórica
na reforma tridentina e Concílio Vaticano I.
2) Afinidades: Com os
ortodoxos bizantinos;
3) Fontes de reflexão
pastoral: Magistério anterior ao Vaticano II + vida dos santos;
4) Ênfase catequética:
Magistério, Tradição(seletiva) e Escritura;
5) Revelação (foco):
Tradição com elementos escolhidos a dedo, e não toda a tradição da Igreja.
6) Uso de ferramentas
científicas: não;
7) Ética: moralista;
8) Inserção sócio
política: direita;
9) Liturgia:
ritualista;
10) Questões
divisivas (valor do Vaticano II, maneira de obedecer ao Magistério
contemporâneo, rubricas usadas no rito gregoriano, aparicionismo): tendência à
separação.
Neoconservadores:
1) Ênfase histórica:
Padres;
2) Afinidades:
ortodoxos bizantinos;
3) Fontes de reflexão
pastoral: Magistério posterior ao Vaticano II + vida dos santos;
4) Ênfase
catequética: Magistério, Escritura, Tradição;
5) Revelação (foco):
Escritura;
6) Uso de ferramentas
científicas: sim, com reservas;
7) Ética: moralista
moderada/social;
8) Inserção sócio
política: direita
9) Liturgia:
ritualista;
10) Questões
divisivas (relação com outros grupos eclesiais, ecumenismo, interpretação do
Vaticano II): obedecem à última palavra do superior.
Carismáticos:
1) Ênfase histórica:
Igreja primitiva;
2) Afinidades:
Pentecostal + ortodoxos bizantinos;
3) Fontes de reflexão
pastoral: vida dos santos + Escritura;
4) Ênfase
catequética: Escritura, Magistério, Tradição;
5) Revelação (foco):
Escritura;
6) Uso de ferramentas
científicas: não;
7) Ética: moralista;
8) Inserção sócio
política: alienação/direita;
9) Liturgia:
ritualista/emoções;
10)
Questões divisivas (oração X ação social, uso de elementos da cultura
contemporânea na evangelização, obediência ao Magistério da Igreja com ênfase
no Vaticano II.
Progressistas:
1) Ênfase histórica:
igreja pré-constantina e tempos modernos;
2) Afinidades fora do
catolicismo: protestantes liberais;
3) Fontes de reflexão
pastoral: Bíblia + ciências modernas (experiência);
4) Ênfase
catequética: Escritura, Magistério, Tradição;
5) Revelação (foco):
Escrituras/razão;
6) Uso de ferramentas
científicas: sim, abundantemente;
7) Ética:
situacional/social;
8) Inserção
sócio-política: esquerda;
9) Liturgia:
despojada/moderada;
10) Questões
divisivas (divórcio, ordenação feminina, uniões homossexuais, aborto e métodos
anticoncepcionais): tendência a uma prática pastoral complacente.
Bem, é isso, acho que
com este texto os confrades e demais leitores terão um ponto inicial mais
sólido para refletirem sobre as divisões internas da Igreja nos dias atuais,
pois cada época tem as suas, pois a Igreja está inserida e é filha de cada
tempo.
Fonte: Apologética Católica
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