UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DO CRISTIANISMO
Não
se pode esquecer a ingente soma de trabalho desinteressado realizado por
cristãos, pastores, sacerdotes, religiosos e leigos que, impelidos pelo amor a
seus irmãos que vivem em condições desumanas, se esforçam por prestar auxílio e
proporcionar alívio aos inumeráveis males que são frutos da miséria. Entre
eles, alguns se preocupam por encontrar os meios eficazes que permitam pôr fim,
o mais depressa possível, a uma situação intolerável.O
zelo e a compaixão, que devem ocupar um lugar no coração de todos os pastores,
correm por vezes o risco de se desorientar ou de serem desviados para
iniciativas não menos prejudiciais ao homem e à sua dignidade do que a própria
miséria que se combate, se não se prestar suficiente atenção a certas
tentações.O sentimento angustiante da urgência dos problemas não
pode levar a perder de vista o essencial, nem fazer esquecer a resposta de
Jesus ao Tentador (Mt 4, 4): «
Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus » (Dt 8, 3). Assim, sucede que alguns,
diante da urgência de repartir o pão, são tentados a colocar entre parênteses e
a adiar para amanhã a evangelização: primeiro o pão, a Palavra mais tarde. É um
erro fatal separar as duas coisas, até chegar a opô-las. O senso cristão,
aliás, espontaneamente sugere a muitos que façam uma e outra.A
alguns parece até que a luta necessária para obter justiça e liberdade humanas,
entendidas no sentido económico e político, constitua o essencial e a
totalidade da salvação. Para estes, o Evangelho se reduz a um evangelho
puramente terrestre.É
em relação à opção preferencial pelos pobres, reafirmada com vigor e sem
meios termos, após Medellin, na Conferência de Puebla de um lado, e à
tentação de reduzir o Evangelho da salvação a um evangelho terrestre, de outro
lado, que se situam as diversas teologias da
libertação.Lembremos
que a opção preferencial, definida em Puebla, é dupla: pelos pobres e
pelos jovens. É significativo que a opção pela juventude seja, de maneira
geral, totalmente silenciada.Dissemos
acima (cf. IV, 1) que existe uma autêntica « teologia da libertação », aquela
que lança raízes na Palavra de Deus, devidamente interpretada.Mas sob um ponto de vista descritivo, convém falar das teologias da libertação, pois a
expressão abrange posições teológicas, ou até mesmo ideológicas, não apenas
diferentes, mas até, muitas vezes, incompatíveis entre si. Conceitos
tomados por empréstimo, de maneira a-crítica, à ideologia marxista e o recurso
a teses de uma hermenêutica bíblica marcada pelo racionalismo encontram-se na
raiz da nova interpretação, que vem corromper o que havia de autêntico no
generoso empenho inicial em favor dos pobres.
A HERESIA ECLESIOLÓGICA PRESENTE NA
TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
A ANÁLISE MARXISTA
A
impaciência e o desejo de ser eficazes levaram alguns cristãos, após perdida a
confiança em qualquer outro método, a voltarem-se para aquilo que chamam de «
análise marxista ».Seu raciocínio é o seguinte: uma situação intolerável e
explosiva exige uma ação eficaz que
não pode mais ser adiada. Uma ação eficaz supõe uma análise científica das causas estruturais da miséria. Ora, o
marxismo aperfeiçoou um instrumental para semelhante análise. Bastará pois
aplicá-lo à situação do Terceiro Mundo e especialmente à situação da América
Latina(Simples assim ?...).Que
o conhecimento científico da situação e dos possíveis caminhos de transformação
social seja o pressuposto de uma ação capaz de levar aos objetivos prefixados,
é evidente. Vai nisto um sinal de seriedade no compromisso. O termo «
científico », porém, exerce uma fascinação quase mítica; nem tudo o que ostenta
a etiqueta de científico o é necessariamente. Por isso tomar emprestado um
método de abordagem da realidade é algo que deve ser precedido de um exame
crítico de natureza epistemológica. Ora, este prévio exame crítico falta a
várias « teologias da libertação ».Nas ciências inexatas: humanas e sociais, convém estar
atento antes de tudo à pluralidade de métodos e de pontos de vista, cada um dos
quais põe em evidência um só aspecto da realidade; esta em virtude de sua
complexidade, escapa a uma explicação unitária e unívoca.No
caso do marxismo, tal como se pretende utilizar na conjuntura de que falamos,
tanto mais se impõe a crítica prévia, quanto o pensamento de Marx constitui uma
concepção totalizante do mundo, na qual numerosos dados de observação e de
análise descritiva são integrados numa estrutura filosófico-ideológica, que
determina a significação e a importância relativa que se lhes atribui. Os a
priori ideológicos são pressupostos para a leitura da realidade social.
Assim, a dissociação dos elementos heterogéneos que compõem este amálgama
epistemologicamente híbrido torna-se impossível, de modo que, acreditando
aceitar somente o que se apresenta como análise, se é forçado a aceitar, ao
mesmo tempo, a ideologia. Por isso não é raro que sejam os aspectos ideológicos
que predominem nos empréstimos que diversos « teólogos da libertação » pedem
aos autores marxistas.A advertência de Paulo VI continua ainda hoje plenamente
atual: através do marxismo, tal como è vivido concretamente, podem-se
distinguir diversos aspectos e diversas questões propostas à reflexão e à ação
dos cristãos. Entretanto, « seria ilusório e perigoso chegar ao ponto de
esquecer o vínculo estreito que os liga radicalmente, aceitar os elementos da
análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia, entrar na
prática da luta de classes e de sua interpretação marxista sem tentar perceber
o tipo de sociedade totalitária à qual este processo conduz ».É
verdade que desde as origens, mais acentuadamente porém nestes últimos anos, o
pensamento marxista se diversificou, dando origem a diversas correntes que
divergem consideravelmente entre si. Na medida, porém, em que se mantêm
verdadeiramente marxistas, estas correntes continuam a estar vinculadas a um
certo número de teses fundamentais que não são compatíveis com a concepção
cristã do homem e da sociedade. Neste contexto, certas fórmulas não são
neutras, mas conservam a significação que receberam na doutrina marxista
original. É o que acontece com a « luta de classes ». Esta expressão continua
impregnada da interpretação que Marx lhe deu e não poderia, por conseguinte,
ser considerada, como um equivalente, de caráter empírico, da expressão «
conflito social agudo ». Aqueles que se servem de semelhantes fórmulas,
pretendendo reter apenas certos elementos da análise marxista, que de resto
seria rejeitada na sua globalidade, alimentam pelo menos um grave mal-entendido
no espírito de seus leitores.Lembremos que o ateísmo e a negação da pessoa humana,, de
sua liberdade e de seus direitos, encontram-se no centro da concepção marxista.
Esta contém de fato erros que ameaçam diretamente as verdades de fé sobre o
destino eterno das pessoas. Ainda mais: querer integrar na teologia uma «
análise » cujos critérios de interpretação dependam desta concepção ateia, significa
embrenhar-se em desastrosas contradições. O desconhecimento da natureza
espiritual da pessoa, aliás, leva a subordiná-la totalmente à coletividade e
deste modo a negar os princípios de uma vida social e política em conformidade
com a dignidade humana.O
exame crítico dos métodos de análise tomados de outras disciplinas impõe-se de
maneira particular ao teólogo. É a luz da fé que fornece à teologia seus
princípios. Por isso a utilização, por parte dos teólogos, de elementos
filosóficos ou das ciências humanas tem um valor « instrumental » e deve ser
objeto de um discernimento crítico de natureza teológica. Em outras palavras, o
critério final e decisivo da verdade não pode ser, em última análise, senão um
critério teológico. É à luz da fé, e daquilo que ela nos ensina sobre a verdade do homem e
sobre o sentido último de seu destino, que se deve julgar da validade ou do
grau de validade daquilo que as outras disciplinas propõem, de resto, muitas
vezes à maneira de conjectura, como sendo verdades sobre o homem, sobre a sua
história e sobre o seu destino.Aplicados
à realidade económica, social e política de hoje, certos esquemas de interpretação
tomados de correntes do pensamento marxista podem apresentar, à primeira vista,
alguma verosimilhança na medida em que a situação de alguns países oferece
analogias com aquilo que Marx descreveu e interpretou, em meados do século
passado. Tomando por base estas analogias, operam-se simplificações que,
abstraindo de fatores essenciais específicos, impedem, de fato, uma análise
verdadeiramente rigorosa das causas da miséria, mantêm as confusões.Em
certas regiões da América Latina, a monopolização de grande parte das riquezas
por uma oligarquia de proprietários desprovidos de consciência social, a quase
ausência ou as carências do estado de direito, as ditaduras militares que
suprimem os direitos elementares do homem, o abuso do poder por parte de certos
dirigentes, as manobras selvagens de um certo capital estrangeiro, constituem
outros tantos fatores que alimentam um violento sentimento de revolta junto
àqueles que, deste modo, se consideram vítimas impotentes de um novo
colonialismo de cunho tecnológico, financeiro, monetário ou económico. A tomada
de consciência das injustiças é acompanhada por un pathos que pede
muitas vezes emprestado ao marxismo seu discurso, apresentado abusivamente como
sendo um discurso « científico ».A
primeira condição para uma análise é a total docilidade à realidade que se
pretende descrever. Por isso, uma consciência crítica deve acompanhar o uso das
hipóteses de trabalho que se adotam. É necessário saber que elas correspondem a
um ponto de vista particular, o que tem por consequência inevitável sublinhar
unilateralmente certos aspectos do real, deixando outros na sombra. Esta
limitação, que deriva da natureza das ciências sociais, é ignorada por aqueles
que, à guisa de hipóteses reconhecidas como tais, recorrem a uma concepção
totalizante, como é o pensamento de Marx.
A SUBVERSÃO DO SENSO DA VERDADE E VIOLÊNCIA
Esta
concepção totalizante impõe assim a sua lógica e leva as « teologias da
libertação » a aceitar um conjunto de posições incompatíveis com a visão cristã
do homem. Com efeito, o núcleo ideológico, tomado do marxismo e, que serve de
ponto de referência, exerce a função de princípio determinante. Este
papel lhe é confiado em virtude da qualificação de científico, quer
dizer, de necessariamente verdadeiro, que lhe é atribuída. Neste núcleo
podem-se distinguir diversos componentes:Na
lógica do pensamento marxista, a « análise » não é dissociável da praxis
e da concepção da história à qual esta praxis está ligada, A análise é
pois um instrumento de crítica e a crítica não passa de uma etapa do combate
revolucionário. Este combate é o da classe do Proletariado investido de sua
missão histórica.Em consequência, somente quem participa deste combate pode fazer uma análise correta.A
consciência verdadeira é pois uma consciência « partidarista ». Pelo que se vê,
é a própria concepção da verdade que aqui está em causa e que se encontra
totalmente subvertida: não existe verdade – afirma-se – a não ser na e pela
praxis « partidarista ».praxis
e a verdade que dela deriva, são praxis
e verdade partidaristas, porque a estrutura fundamental da história está
marcada pela luta de classes.
Existe pois uma necessidade objetiva de entrar na luta de classes (que é o
reverso dialético da relação de exploração que se denuncia). A verdade é a
verdade de classe – não há verdade senão no combate da classe revolucionária.A
lei fundamental da história, que é a lei da luta de classes, implica que a
sociedade esteja fundada sobre a violência. À violência que constitui a relação
de dominação dos ricos sobre os pobres deverá responder a contra-violência
revolucionária, mediante a qual esta relação será invertida.A luta de classes é pois apresentada como uma lei
objetiva e necessária. Ao entrar no seu processo, do lado dos oprimidos, «
faz-se » a verdade, age-se « cientificamente ». Em consequência, a concepção da
verdade vai de par com a afirmação da violência necessária e, por isso, com a
do amoralismo político. Nesta perspectiva, a referência a exigências éticas,
que prescrevam reformas estruturais e institucionais radicais e corajosas perde
totalmente o sentido.A
lei fundamental da luta de classes tem um caráter de globalidade e de
universalidade. Ela se reflete em todos os domínios da existência, religiosos,
éticos, culturais e institucionais. Em relação a esta lei, nenhum destes
domínios é autónomo. Em cada um esta lei constitui o elemento determinante. Quando se assumem estas teses de origem marxista é, em
particular, a própria natureza da ética que é radicalmente questionada. De
fato, o caráter transcendente da distinção entre o bem e o mal, princípio da
moralidade, encontra-se implicitamente negado na ótica da luta de classes.
TRADUÇÃO « TEOLÓGICA » DESTE NÚCLEO IDEOLÓGICO
As
posições aqui expostas encontram-se às vezes enunciadas com todos os seus
termos em alguns escritos de « teólogos da libertação ». Em outros, elas se
deduzem logicamente das premissas colocadas. Em outros ainda, elas são
pressupostas em certas práticas litúrgicas (como por exemplo a « Eucaristia »
transformada em celebração do povo em luta), embora quem participa destas
práticas não esteja plenamente consciente disso. Estamos pois diante de um
verdadeiro sistema, mesmo quando alguns hesitam em seguir a sua lógica até o
fim. Como tal, este sistema é uma perversão da mensagem cristã, como esta foi
confiada por Deus à Igreja. Esta mensagem se encontra pois posta em xeque, na
sua globalidade, pelas « teologias da libertação ».Não
é o fato das estratificações sociais, com as conexas desigualdades e
injustiças, é a teoria da luta de classes como lei estrutural
fundamental da história que é recebida por estas « teologias da libertação »,
na qualidade de princípio. A conclusão a que se chega é que a luta de classes,
entendida deste modo, divide a própria Igreja e em função dela se devem julgar
as realidades eclesiais. Pretende-se ainda que afirmar que o amor, na sua
universalidade, é um meio capaz de vencer aquilo que constitui a lei estrutural
primária da sociedade capitalista, seria manter, de má fé, uma ilusão falaz.Dentro
desta concepção, a luta de classes é o motor da história. A história torna-se
assim uma noção central. Afirmar-se-á que Deus se fez história.
Acrescentar-se-á que não existe senão uma única história, na qual já não é
preciso distinguir entre história da salvação e história profana. Manter a
distinção seria cair no « dualismo ». Semelhantes afirmações refletem um
imanentismo historicista. Tende-se deste modo a identificar o Reino de Deus e o
seu advento com o movimento de libertação humana e a fazer da mesma história o
sujeito de seu próprio desenvolvimento como processo da auto-redenção do homem
por meio de luta de classes. Esta identificação está em oposição com a fé da
Igreja, como foi relembrada pelo Concílio Vaticano II.Nesta
linha, alguns chegam até ao extremo de identificar o próprio Deus com a
história e a definir a fé como « fidelidade à história », o que significa
fidelidade comprometida com uma prática política, afinada com a concepção do
devir da humanidade concebido no sentido de um messianismo puramente temporal.Por conseguinte, a fé, a esperança e a caridade recebem
um novo conteúdo: são « fidelidade à história », « confiança no futuro », «
opção pelos pobres ». É o mesmo que dizer que são negadas em sua realidade
teologal.Desta
nova concepção deriva inevitavelmente uma politização radical das afirmações da
fé e dos juízos teológicos. Já não se trata somente de chamar a atenção para as
consequências e incidências políticas das verdades de fé que seriam respeitadas
antes de tudo em seu valor transcendente. Toda e qualquer afirmação de fé ou de
teologia se vê subordinada a um critério político, que, por sua vez, depende da
teoria da luta de classes, como motor da história.Apresenta-se
por conseguinte o ingresso na luta de classes como uma exigência da própria
caridade; denuncia-se como atitude desmobilizadora e contrária ao amor pelos
pobres a vontade de amar, de saída, todo homem, qualquer que seja a classe a
que pertença, e de ir ao seu encontro pelas vias não-violentas do diálogo e da
persuasão. Mesmo afirmando que ele não pode ser objeto de ódio, afirma-se com a
mesma força que, pelo fato de pertencer objetivamente ao mundo dos ricos, ele
é, antes de tudo, um inimigo de classe a combater. Como consequência, a
universalidade do amor ao próximo e a fraternidade transformam-se num princípio
escatológico que terá valor somente para o « homem novo », que surgirá da
revolução vitoriosa.Quanto à Igreja, a tendência é de encará-la
simplesmente como uma realidade dentro da história, sujeita ela também às leis
que, segundo se pensa, governam o devir histórico na sua imanência. Esta
redução esvazia a realidade específica da Igreja, dom da graça de Deus e
mistério da fé. Contesta-se, igualmente, que a participação na mesma Mesa
eucarística de cristãos que, por acaso, pertençam a classes opostas, tenha
ainda algum sentido.Na sua significação positiva, a Igreja dos pobres indica
a preferência, sem exclusivismo, dada aos pobres, segundo todas as formas de
miséria humana, porque eles são os prediletos de Deus. A expressão significa
ainda que a Igreja, como comunhão e como instituição, assim como os membros da
mesma Igreja, tomam consciência, em nosso tempo, das exigências da pobreza
evangélica. Mas as « teologias da libertação », que têm o mérito de haver
revalorizado os grandes textos dos profetas e do Evangelho acerca da defesa dos
pobres, passam a fazer um amálgama pernicioso entre o pobre da Escritura e o proletariado
de Marx. Perverte-se deste modo o sentido cristão do pobre e o combate pelos direitos dos pobres
transforma-se em combate de classes na perspectiva ideológica da luta de
classes. A Igreja dos pobres
significa então Igreja classista, que tomou consciência das
necessidades da luta revolucionária como etapa para a libertação e que celebra
esta libertação na sua liturgia.É
necessário fazer uma observação análoga a respeito da expressão Igreja do
povo. Do ponto de vista pastoral, pode-se entender com essa expressão os
destinatários prioritários da evangelização, aqueles para os quais, em virtude
de sua condição, se volta primeiro que tudo o amor pastoral da Igreja. É
possível referir-se também à Igreja como « povo de Deus », ou seja, como o povo
da Nova Aliança realizada em Cristo.As « teologias da libertação », a que aqui nos referimos,
porém, entendem por Igreja do povo
a Igreja da luta libertadora organizada. O povo assim entendido chega mesmo a
tornar-se, para alguns, objeto de fé.A
partir de semelhante concepção da Igreja do povo, elabora-se uma crítica das
próprias estruturas da Igreja. Não se trata apenas de uma correção fraterna
dirigida aos pastores da Igreja, cujo comportamento não reflita o espírito
evangélico de serviço e se apegue a sinais anacrónicos de autoridade que
escandalizam os pobres. Trata-se, sim, de pôr em xeque a estrutura
sacramental e hierárquica da Igreja, tal como a quis o próprio Senhor. São
denunciados na Hierarquia e no Magistério os representantes objetivos da classe
dominante, que é preciso combater. Teologicamente, esta posição equivale a
afirmar que o povo é a fonte dos ministérios e portanto pode dotar-se de
ministros à sua escolha, de acordo com as necessidades de sua missão
revolucionária histórica.
UMA NOVA HERMENÊUTICA
A concepção partidarista da verdade, que se manifesta na praxis revolucionária de classe,
corrobora esta posição. Os teólogos que não compartilham as teses da « teologia
da libertação », a hierarquia e sobretudo o Magistério romano são assim
desacreditados a priori, como
pertencentes à classe dos opressores. A teologia deles é uma teologia de classe.
Os
argumentos e ensinamentos não merecem pois ser examinados em si mesmos, uma vez
que refletem simplesmente os interesses de uma classe.( E já não mais de todo
povo de Deus). Por isso, decreta-se que o discurso deles é, em
princípio, falso.Aparece
aqui o carácter global e totalizante da « teologia da libertação ». Por isso
mesmo, deve ser criticada não nesta ou naquela afirmação que ela faz, mas a
partir do ponto de vista de classes que ela adopta a priori e que nela
funciona como princípio hermenêutico determinante.Por causa deste pressuposto classista, torna-se
extremamente difícil, para não dizer impossível, conseguir com alguns «
teólogos da libertação » um verdadeiro diálogo, no qual o interlocutor seja
ouvido e seus argumentos sejam discutidos objetivamente e com atenção. Com efeito estes teólogos mais ou
menos conscientemente, partem do pressuposto de que o ponto de vista da classe
oprimida e revolucionária, que seria o mesmo deles constitui o único ponto de
vista da verdade. Os critérios teológicos da verdade, vêem-se, deste
modo, relativizados e subordinados aos imperativos da luta de classes. Nesta
perspectiva substitui-se a ortodoxia como regra correta da fé pela ideia
da ortopráxis, como critério de verdade. A este respeito, é preciso não
confundir a orientação prática, própria à teologia tradicional, do mesmo modo e
pelo mesmo título que lhe é própria também a orientação especulativa, com um
primado privilegiado, conferido a um determinado tipo de praxis. Na
realidade esta última é a praxis revolucionária que se tornaria assim
critério supremo da verdade teológica. Uma metodologia teológica sadia toma em
consideração, sem dúvida, a praxis da Igreja e nela encontra um de seus
fundamentos, mas isto porque essa praxis é decorrência da fé e constitui
uma expressão vivenciada dessa fé.A
doutrina social da Igreja é rejeitada com desdém. Esta procede, afirma-se, da
ilusão de um possível compromisso, próprio das classes médias, destituídas de
sentido histórico.A
nova hermenêutica inserida nas « teologias da libertação » conduz a uma
releitura essencialmente política da Escritura. É assim que se atribui a
máxima importância ao acontecimento do Êxodo, enquanto libertação da
escravidão política. Propõe-se igualmente una leitura política do Magnificat.
O erro aqui não está em privilegiar uma dimensão política das narrações
bíblicas; mas em fazer desta dimensão a dimensão principal e exclusiva, o que
leva a uma leitura redutiva da Escritura. (Pois este princípio já não se aplica
ao NOVO TESTAMENTO, onde o tema da
liberdade e do mal é ampliado e tendo como solução não meras estruturas, mas ir
na raiz do problema que é o pecado).Quem
assim procede, coloca-se por isso mesmo na perspectiva de um messianismo
temporal, que é uma das expressões mais radicais da secularização do Reino de
Deus e de sua absorção na imanência da história humana.Privilegiar deste modo a dimensão
política, é o mesmo que ser levado a negar a radical novidade do Novo Testamento e, antes de tudo, a
desconhecer a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro
homem, bem como o caráter específico da libertação que Ele nos traz e que é
fundamentalmente libertação do pecado, fonte de todos os males.Aliás,
pôr de lado a interpretação autorizada do Magistério, denunciada como
interpretação de classe, é afastar-se automaticamente da Tradição. É, por isso
mesmo, privar-se de um critério teológico essencial para a interpretação e
acolher no vazio assim criado, as teses mais radicais da exegese racionalista.
Retoma-se, então, sem espírito crítico, a oposição entre o « Jesus da
história » e o « Jesus da fé ».Conserva-se,
sem dúvida, a letra das fórmulas da fé, especialmente a de Calcedônia, mas
atribui-se a essas fórmulas uma nova significação, que constitui uma negação da
fé da Igreja. De um lado, rejeita-se a doutrina cristológica apresentada pela
Tradição, em nome do critério de classe; e de outro lado, pretende-se chegar ao
« Jesus da história » a partir da experiência revolucionária da luta dos pobres
pela sua libertação.Pretende-se
reviver uma experiência análoga à que teria sido a de Jesus. A experiência dos
pobres lutando por sua libertação, que teria sido a de Jesus, e só ela,
revelaria assim o conhecimento do verdadeiro Deus e do Reino.É
claro que a fé no Verbo encarnado, morto e ressuscitado por todos os homens, a
Quem « Deus fez Senhor e Cristo » é negada. Toma o seu lugar uma « figura » de
Jesus, uma espécie de símbolo que resume em si mesmo as exigências da luta dos
oprimidos.Propõe-se
assim uma interpretação exclusivamente política da morte de Cristo. Nega-se
desta maneira seu valor salvífico e toda a economia da redenção. A nova
interpretação atinge assim todo o conjunto do mistério cristão.De um modo geral, ela opera o que
se poderia chamar de inversão dos símbolos. Assim, em lugar de ver no Êxodo com
São Paulo, uma figura do batismo, se tenderá ao extremo de fazer deste um
símbolo da libertação política do povo. Pelo mesmo critério hermenêutico,
aplicado à vida eclesial e à constituição hierárquica da Igreja, as relações
entre a hierarquia e a « base » tornam-se relações de dominação que obedecem à
lei da luta de classes. A sacramentalidade, que está na raiz dos ministérios
eclesiásticos e que faz da Igreja uma realidade espiritual que não se pode
reduzir a uma análise puramente sociológica, é simplesmente ignorada.Verifica-se
ainda a inversão dos símbolos no domínio dos sacramentos. A Eucaristia
não é mais entendida na sua verdade de presença sacramental do sacrifício
reconciliador e como dom do Corpo e do Sangue de Cristo. Torna-se celebração do
povo na sua luta. Por conseguinte, a unidade da Igreja é radicalmente negada. A
unidade, a reconciliação, a comunhão no amor não mais são concebidas como um
dom que recebemos de Cristo.É a classe histórica dos pobres que, mediante o
combate, construirá a unidade. A luta de classes é o caminho desta unidade. A
Eucaristia torna-se, deste modo, Eucaristia de classe. Nega-se também, ao mesmo
tempo a força triunfante do amor de Deus que nos é dado.
ORIENTAÇÕES SEGURAS DA IGREJA:
Chamar
a atenção para os graves desvios que algumas « teologias da libertação » trazem
consigo não deve, de modo algum, ser interpretado como uma aprovação, ainda que
indireta, aos que contribuem para a manutenção da miséria dos povos, aos que
dela se aproveitam, aos que se acomodam ou aos que ficam indiferentes perante
esta miséria. A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor ao
homem, escuta o clamor pela justiça e deseja responder com todas as suas
forças. Um
imenso apelo é assim dirigido à Igreja. Com audácia e coragem, com
clarividência e prudência, com zelo e força de ânimo, com um amor aos pobres
que vai até ao sacrifício, os pastores, como muitos já fazem, hão-de considerar
como tarefa prioritária responder a este apelo.Todos aqueles, sacerdotes,
religiosos e leigos que, auscultando o clamor pela justiça, quiserem trabalhar
na evangelização e na promoção humana, fá-lo-ão em comunhão com seu bispo e com
a Igreja, cada um na linha de sua vocação eclesial específica.Conscientes
do carácter eclesial de sua vocação, os teólogos colaborarão lealmente e em
espírito de diálogo com o Magistério da Igreja. Saberão reconhecer no
Magistério um dom de Cristo à sua Igreja e acolherão a sua palavra e as suas
orientações com respeito filial.Somente
a partir da tarefa evangelizadora, tomada em sua integralidade, se compreendem
as exigências de uma promoção humana e de uma libertação autênticas. Esta
libertação tem como pilares indispensáveis, a verdade sobre Jesus Cristo, o Salvador, a verdade sobre a Igreja, a
verdade sobre o homem e sobre a sua dignidade.É à luz das
bem-aventuranças, da bem-aventurança dos pobres de coração em primeiro lugar,
que a Igreja, desejosa de ser no mundo inteiro a Igreja dos pobres, quer servir
a nobre causa da verdade e da justiça. Ela se dirige a cada homem e, por isso
mesmo, a todos os homens. Ela é a « Igreja universal. A
Igreja do mistério da encarnação. Não é a Igreja de uma classe ou de uma só
casta. Ela fala em nome da própria verdade. Esta verdade é realista ».
Ela leva a ter em conta « cada realidade humana, cada injustiça, cada tensão,
cada luta ».Uma
defesa eficaz da justiça deve apoiar-se na verdade do homem, criado à imagem de
Deus e chamado à graça da filiação divina. O reconhecimento da verdadeira
relação do homem com Deus constitui o fundamento da justiça, enquanto regula as
relações entre os homens. Esta é a razão pela qual o combate pelos direitos do
homem, que a Igreja não cessa de promover, constitui o autêntico combate pela
justiça.A
verdade do homem exige que este combate seja conduzido por meios que estejam de
acordo com a dignidade humana. Por isso o recurso sistemático e deliberado
à violência cega, venha essa de um lado ou de outro, deve ser condenado.Pôr a
confiança em meios violentos na esperança de instaurar uma maior justiça é ser
vítima de uma ilusão fatal. Violência gera violência e degrada o homem. Rebaixa
a dignidade do homem na pessoa das vítimas e avilta esta mesma dignidade
naqueles que a praticam.A
urgência de reformas radicais que incidam sobre estruturas que segregam a
miséria e constituem, por si mesma, formas de violência, não pode fazer perder
de vista que a fonte da injustiça se encontra no coração dos homens. Não
se obterão pois mudanças sociais que estejam realmente ao serviço do homem
senão fazendo apelo às capacidades
éticas da pessoa e à constante necessidade de conversão interior.
Pois na medida em que colaborarem livremente, por sua própria iniciativa e em
solidariedade, nestas necessárias mudanças, os homens, despertados no sentido
de sua responsabilidade, crescerão em humanidade. A inversão entre moralidade e
estruturas é própria de uma antropologia materialista, incompatível com a
verdade do homem.É pois igualmente ilusão fatal crer que novas estruturas
darão origem por si mesmas a um « homem novo », no sentido da verdade do homem. O cristão não pode
desconhecer que o Espírito Santo que nos foi dado é a fonte de toda verdadeira
novidade e que Deus é o senhor da história.A
derrubada, por meio da violência revolucionária, de estruturas geradoras de
injustiças não é pois ipso facto o começo da instauração de um regime
justo. Um fato marcante de nossa época deve ocupar a reflexão de todos aqueles
que desejam sinceramente a verdadeira libertação dos seus irmãos. Milhões
de nossos contemporâneos aspiram legitimamente a reencontrar as liberdades
fundamentais de que estão privados por regimes totalitários e ateus, que
tomaram o poder por caminhos revolucionários e violentos, exatamente em nome da
libertação do povo. Não se pode desconhecer esta vergonha de nosso tempo:
pretendendo proporcionar-lhes liberdade, mantêm-se nações inteiras em condições
de escravidão indignas do homem. Aqueles que, talvez por inconsciência, se
tornam cúmplices de semelhantes escravidões, traem os pobres que eles quereriam
servir.A luta de classes como caminho para uma sociedade sem
classes é um mito que impede as reformas e agrava a miséria e as injustiças.
Aqueles que se deixam fascinar por este mito deveriam refletir sobre as
experiências históricas amargas às quais ele conduziu. Compreenderiam então
que não se trata, de modo algum, de abandonar uma via eficaz de luta em prol
dos pobres em troca de um ideal desprovido de efeito. Trata-se, pelo contrário,
de libertar-se de uma miragem para se apoiar no Evangelho e na sua força de
realização.Uma das condições para uma necessária retificação
teológica é a revalorização do magistério
social da Igreja. Este magistério não é, de modo algum, fechado. É, ao
contrário, aberto a todas as novas questões que não deixam de surgir no
decorrer dos tempos. Nesta perspectiva, a contribuição dos teólogos e dos
pensadores de todas as regiões do mundo para a reflexão da Igreja é hoje
indispensável.Do
mesmo modo, a experiência daqueles que trabalham diretamente na evangelização e
na promoção dos pobres e dos oprimidos é necessária à reflexão doutrinal e
pastoral da Igreja. Neste sentido é preciso tomar consciência de certos aspectos
da verdade a partir da praxis, se por praxis se entende a prática
pastoral e uma prática social que conserva sua inspiração evangélica.O
ensino da Igreja em matéria social proporciona as grandes orientações éticas.
Mas para que possa atingir diretamente a ação, ele precisa de pessoas
competentes, do ponto de vista científico e técnico, bem como no domínio das
ciências humanas e da política. Os pastores estarão atentos à formação destas
pessoas competentes, profundamente impregnadas pelo Evangelho. São aqui
visados, em primeiro lugar, os leigos, cuja missão específica é a de construir
a sociedade.As teses das « teologias da
libertação » estão sendo largamente difundidas, sob uma forma ainda
simplificada, nos cursos de formação ou nas comunidades de base, que carecem de
preparação catequética e teológica e de capacidade de discernimento. São assim
aceitas, por homens e mulheres generosos, sem que seja possível um juízo
crítico.É por isso que os pastores devem vigiar sobre a qualidade
e o conteúdo da catequese e da formação que devem sempre apresentar a integralidade da mensagem da salvação
e os imperativos da verdadeira libertação humana, no quadro desta mensagem
integral.Nesta
apresentação integral do mistério cristão, será oportuno acentuar os aspectos
essenciais que as « teologias da libertação » tendem especialmente a
desconhecer ou eliminar: transcendência e gratuidade da libertação em Jesus
Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem; soberania de sua graça; verdadeira
natureza dos meios de salvação, e especialmente da Igreja e dos sacramentos. Tenham-se
presentes a verdadeira significação da ética, para a qual a distinção entre o
bem e o mal não pode ser relativizada; o sentido autêntico do pecado; a
necessidade da conversão e a universalidade da lei do amor fraterno. Chame-se a
atenção contra uma politização da existência, que, desconhecendo ao mesmo tempo
a especificidade do Reino de Deus e a transcendência da pessoa, acaba
sacralizando a política e abusando da religiosidade do povo em proveito de
iniciativas revolucionárias.É
frequente dirigir aos defensores da « ortodoxia » a acusação de passividade, de
indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a situações intoleráveis de
injustiça e de regimes políticos que mantêm estas situações. A
conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o zelo pela
justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza, são exigidos
a todos, especialmente aos pastores e aos responsáveis. A preocupação pela
pureza da fé não subsiste sem a preocupação de dar a resposta de um testemunho
eficaz de serviço ao próximo e, em especial, ao pobre e ao oprimido, através de
uma vida teologal integral. Pelo testemunho de sua capacidade de amar,
dinâmica e construtiva, os cristãos lançarão, sem dúvida, as bases desta «
civilização do amor » de que falou, depois de Paulo VI, a Conferência de
Puebla.De resto, são numerosos os sacerdotes, religiosos ou leigos, que se
consagram de um modo verdadeiramente evangélico à criação de uma sociedade justa.
CONCLUSÃO
As
palavras de Paulo VI, na Profissão de fé do povo de Deus, exprimem, com
meridiana clareza, a fé da Igreja, da qual ninguém pode afastar-se sem
provocar, juntamente com a ruína espiritual, novas misérias e novas
escravidões.« Nós professamos que o Reino de Deus iniciado aqui na
terra, na Igreja de Cristo, não é deste mundo, cuja figura passa, e que seu
crescimento próprio não se pode confundir com o progresso da civilização, da
ciência ou da técnica humanas, mas consiste em conhecer cada vez mais
profundamente as insondáveis riquezas de Cristo, em esperar cada vez mais
corajosamente os bens eternos, em responder cada vez mais ardentemente ao amor
de Deus e em difundir cada vez mais amplamente a graça e a santidade entre os
homens. Mas é este mesmo amor
que leva a Igreja a preocupar-se constantemente com o bem temporal dos homens.
Não cessando de lembrar a seus filhos que eles não têm aqui na terra uma morada
permanente, anima-os também a contribuir, cada qual segundo a sua vocação e os
meios de que dispõem, para o bem de sua cidade terrestre, a promover a justiça,
a paz e a fraternidade entre os homens, a prodigalizar-se na ajuda aos irmãos,
sobretudo aos mais pobres e mais infelizes. A intensa solicitude da Igreja,
esposa de Cristo, pelas necessidades dos homens, suas alegrias e esperanças,
seus sofrimentos e seus esforços, nada mais é do que seu grande desejo de lhes
estar presente para os iluminar com a luz de Cristo e reuni-los todos nele, seu
único Salvador. Esta solicitude não
pode, em hipótese alguma, comportar que a própria Igreja se conforme às coisas
deste mundo, nem que diminua o ardor da espera pelo seu Senhor e pelo Reino
eterno ».
FONTE: INSTRUÇÃO:
Libertatis Nuntius - SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA « TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO »
A
HERESIA MORAL E ANTROPOLÓGICA: O FALSO CONCEITO DA LIBERDADE CRISTÃ E
HUMANA PRESENTE NA TL
Dimensão soteriológica e ética da libertação
A força dessa libertação penetra e transforma em
profundidade o homem e sua história, em sua atualidade presente, e anima o seu
élan escatológico. O sentido primário e fundamental da libertação que assim se manifesta é
o sentido soteriológico: o homem é libertado da escravidão radical do mal e do
pecado.Nessa experiência da salvação, o homem descobre o verdadeiro
sentido da sua liberdade, já que a libertação é restituição da liberdade. Ela é
também educação da liberdade, isto é, educação para o reto uso da liberdade.
Dessa forma, à dimensão soteriológica da libertação acrescenta-se a sua
dimensão ética.
Uma nova fase da história da liberdade
Em graus diversos, o sentido da fé, que se encontra
na origem de uma experiência radical de libertação e da liberdade, impregnou a
cultura e os costumes dos povos cristãos.Hoje, porém, de um modo totalmente
novo, por causa dos terríveis desafios que a humanidade deve enfrentar,
torna-se necessário e urgente que o amor de Deus e a liberdade na verdade e na
justiça imprimam a sua marca nas, relações entre os homens e entre os povos e
animem a vida das culturas.Pois onde faltam a verdade e o amor, o processo de
libertação leva à morte de uma liberdade que terá perdido qualquer base de
apoio.Abre-se diante de nós uma nova fase da história da liberdade. As
capacidades libertadoras da ciência, da técnica, do trabalho, da economia e da
ação política, só darão frutos se encontrarem sua inspiração e medida na
verdade e no amor mais fortes do que o sofrimento, revelados aos homens por
Jesus Cristo.
CAPÍTULO II
VOCAÇÃO DO HOMEM À LIBERDADE E DRAMA DO PECADO
I. Primeiras abordagens da liberdade - Uma resposta espontânea
A resposta espontânea à pergunta: « O que é ser
livre?», é a seguinte: é livre aquele que pode fazer unicamente o que quiser,
sem ser impedido por coação externa e que, por conseguinte, goza de plena independência.
O contrário da liberdade seria, assim, a dependência de nossa vontade à uma
vontade estranha.Mas o homem sabe sempre o que quer? Pode tudo o que
deseja? É conforme à natureza do homem limitar-se ao próprio eu, separando-se
da vontade de outrem? Frequentemente, a vontade de um momento não é a vontade
real. E no mesmo homem podem coexistir vontades contraditórias. Mas, sobretudo,
o homem defronta-se com os limites da sua própria natureza: ele sempre quer
mais do que pode. Dessa forma, o obstáculo que se opõe ao seu querer nem sempre
provém de fora, mas dos limites do seu ser. Por isso, sob pena de se destruir,
o homem deve aprender a conciliar a sua vontade com a sua natureza.
Verdade e justiça, regras da liberdade
Além disso, cada homem é orientado para os outros
homens e tem necessidade da sua sociedade. Somente aprendendo á pôr de acordo a
sua vontade com a dos outros, em vista de um bem verdadeiro, ele fará o
aprendizado da retidão do querer. É, pois, a harmonia com as exigências da natureza
humana que torna humana a vontade. Com efeito, esta exige o critério da verdade
e uma relação justa com a vontade dos outros. Verdade e justiça são, assim, a
medida da verdadeira liberdade. Afastando-se desse fundamento, o homem, ao
tomar-se por Deus, cai na mentira e, ao invés de se realizar, destrói-se.Longe de cumprir-se em uma total autonomia do eu e
na ausência de relações, a liberdade só existe verdadeiramente quando laços
recíprocos, regidos pela verdade e pela justiça, unem as pessoas. Mas para que
tais laços sejam possíveis, cada um, pessoalmente, deve ser verdadeiro.A liberdade não é liberdade de fazer não importa o quê; ela é liberdade
para o Bem, o único em que reside a Felicidade. O Bem é também a sua
finalidade. Por
conseguinte, o homem torna-se livre na medida em que tem acesso ao conhecimento
do verdadeiro e que este último conhecimento, e não qualquer outra força, guie
a sua vontade. A libertação em vista de um conhecimento da verdade que – única
– dirige a vontade é condição necessária para uma liberdade digna desse nome.
II. Liberdade e libertação
Uma liberdade de criatura
Em outras palavras, a liberdade que é controle
interno de seus próprios atos e é auto-determinação, implica imediatamente uma
relação com a ordem ética. Ela encontra seu verdadeiro sentido na escolha do
bem moral. Manifesta-se, então, como um resgate em relação ao mal moral.Por sua
ação livre, o homem deve tender para o Bem supremo, através dos bens conformes
às exigências da sua natureza e de acordo com a sua vocação divina.Exercendo a sua liberdade, ele decide sobre si
mesmo e se forma. Nesse sentido, o homem é causa de si mesmo. Mas ele o
é a título de criatura e de imagem de Deus. Tal é a verdade do seu ser, que
manifesta, por contraste, o que têm de profundamente erróneo as teorias que
crêem exaltar a liberdade do homem ou a sua « praxis histórica », fazendo dela
o princípio absoluto do seu ser e do seu devir. Essas teorias são expressões do
ateísmo, ou tendem ao ateísmo, por sua lógica própria. O indiferentismo e o
agnosticismo deliberado vão na mesma direção. É a imagem de Deus, no homem, que
fundamenta a liberdade e a dignidade da pessoa humana.
Uma liberdade participada
A liberdade do homem é uma liberdade participada.
Sua capacidade de se realizar não é, de forma alguma, suprimida pela sua
dependência de Deus. É próprio do ateísmo, justamente, crer em
uma posição irredutível entre a causalidade de uma liberdade divina e a da
liberdade do homem, como se a afirmação de Deus significasse a negação do
homem, ou como se a sua intervenção na história tornasse vãs as tentativas
deste último. Na realidade, é de Deus e com relação a Ele, que a liberdade
humana adquire sentido e consistência.
A opção livre do homem
Mas a liberdade do homem é finita e falível. Seu
desejo pode voltar-se para um bem aparente: optando por um falso bem, ele falta
à vocação da sua liberdade. O homem, por seu livre arbítrio, dispõe de si
mesmo, realizando, dessa forma, a sua vocação régia de filho de Deus. « Pelo serviço
de Deus, ele reina ». A autêntica liberdade é « serviço da justiça
», enquanto, ao contrário, a escolha da desobediência e do mal é « escravidão
do pecado ».
Libertação temporal e liberdade
A partir dessa noção de liberdade, torna-se
mais clara a dimensão da noção de liberdade temporal: trata-se do conjunto dos
processos quem têm o objetivo de proporcionar e garantir as condições exigidas
pelo exercício de uma liberdade humana autêntica.Portanto, não é a libertação que, por si mesma, produz a liberdade do
homem. O senso comum, confirmado pelo sentido cristão, sabe que, mesmo
submetida a condicionamentos, a liberdade nem por isso é completamente
destruída. Homens
que sofrem terríveis coações conseguem manifestar a sua liberdade e se
movimentar pela própria libertação. Um processo de libertação que atingir o seu
termo pode apenas criar condições melhores para o exercício efetivo da
liberdade. Da mesma forma, uma libertação que não levar em consideração a
liberdade pessoal daqueles que por ela combatem, está de antemão condenada ao
fracasso.
III. A
liberdade e a sociedade humana
Os Direitos do Homem e as «liberdades»
Deus não criou o homem como um «ser solitário »,
mas o quis « ser social ».A vida social, portanto, não é algo de exterior ao
homem: este não pode crescer e realizar a sua vocação senão em relação com os
outros. O
homem pertence a diversas comunidades, familiar, profissional, política, e é no
seio destas que deve exercer a sua liberdade responsável. Uma ordem social
justa oferece ao homem uma ajuda insubstituível para a realização da sua
personalidade livre. Ao contrário, uma ordem social injusta é uma ameaça e um
obstáculo que podem comprometer o seu destino.Trata-se de uma exigência de natureza moral, que
encontrou a sua expressão na formulação dos Direitos do Homem. Entre
eles, alguns têm por objeto o que se convencionou chamar « as liberdades »,
isto é, maneiras de se reconhecer a cada ser humano o seu caráter de pessoa
responsável por ela mesma e por seu destino transcendente, como também de reconhecer a
inviolabilidade da sua consciência.
Dimensões sociais do homem e glória de
Deus
IV. Liberdade do homem e domínio da natureza
Vocação do homem: «dominar» a natureza – As Descobertas científicas e progresso moral
Compete, pois, à liberdade bem orientada fazer com
que as conquistas científicas e técnicas, a procura de sua eficácia, os
produtos do trabalho e as próprias estruturas da organização económica e
social, não sejam submetidos a projetos que os privem de suas finalidades
humanas, fazendo-os voltarem-se contra o próprio homem.A atividade científica e a atividade técnica
comportam, cada uma, exigências específicas. Entretanto, elas só alcançam o seu
significado e o seu valor propriamente humanos, quando subordinadas aos valores
morais. Essas exigências devem ser respeitadas; mas querer atribuir-lhes uma
autonomia absoluta e obrigatória, não conforme à natureza das coisas, é entrar
em um caminho que leva à ruína a autêntica liberdade do homem.
V. O pecado, fonte de divisão, opressão e separação de Deus
Deus chama o homem para a liberdade. Em cada homem
é viva a vontade de ser livre. E, no entanto, tal vontade quase sempre leva à
escravidão e à opressão. Qualquer empenho pela libertação e pela liberdade supõe,
pois, que se tenha enfrentado esse dramático paradoxo.O pecado do homem, isto é, a sua ruptura com Deus, é a razão radical das
tragédias que marcam a história da liberdade. Para compreendê-lo, muitos de
nossos contemporâneos deverão, primeiramente, redescobrir o sentido do pecado.No anseio de liberdade do homem esconde-se a
tentação de renegar a sua própria natureza. Na medida em que deseja tudo querer
e tudo poder, esquecendo-se, assim, de que é finito e criado, ele pretende ser
um deus. « Sereis como Deus » (Gn 3, 5). Essa palavra da serpente
manifesta a essência da tentação do homem; ela comporta a perversão do sentido
da sua própria liberdade. Tal é a natureza profunda do pecado: o homem
separa-se da verdade, impondo-lhe a sua vontade. Querendo libertar-se de Deus e
ser, ele mesmo, um deus, engana-se e se destrói. Aliena-se de si mesmo.Neste querer ser deus e tudo submeter a seu prazer
pessoal esconde-se uma perversão da ideia mesma de Deus. Deus é amor e verdade
na plenitude do dom recíproco das Pessoas divinas. O homem é chamado a ser
semelhante a Deus, é verdade. Entretanto, ele se torna semelhante a Deus não no
arbitrário do seu querer, mas na medida em que reconhece a verdade e o amor
como o princípio e a finalidade da sua liberdade.
O pecado, raiz das alienações humanas
Ao pecar, o homem mente a si mesmo e separa-se da
sua verdade. Buscando a total autonomia e a auto-suficiência, ele nega Deus e
nega-se a si mesmo. A alienação com relação à verdade do seu ser de criatura
amada por Deus é a raiz de todas as outras alienações. Negando, ou tentando
negar Deus, seu Princípio e seu Fim, o homem altera profundamente a sua ordem e
o seu equilíbrio interior, os da sociedade e até mesmo os da criação visível.É em conexão com o pecado que a Escritura considera
o conjunto das calamidades que oprimem o homem em seu ser individual e
social.Ela mostra como todo o curso da história mantém uma ligação misteriosa
como agir do homem que, desde a origem, abusou da sua liberdade erguendo-se contra
Deus e procurando alcançar os seus fins fora d’Ele.No caráter penoso do
trabalho e da maternidade, no domínio do homem sobre a mulher e na morte, o
livro do Génesis indica as consequências do pecado original. Os homens privados
da graça divina herdaram, dessa forma, uma natureza comum mortal, incapaz de se
fixar no bem, e inclinada à cobiça.
Idolatria e desordem
A idolatria é uma forma extrema da desordem
gerada pelo pecado. A substituição da adoração do Deus vivo pelo culto da
criatura falseia as relações entre os homens e arrasta consigo diversas formas
de opressão.O desconhecimento culpável de Deus desencadeia as
paixões, causas de desequilíbrio e de conflitos no íntimo do homem. Daí derivam
inevitavelmente as desordens que afetam a esfera familiar e social:
licenciosidade sexual, injustiça, homicídio. É assim que São Paulo descreve o
mundo pagão, levado pela idolatria às piores aberrações que arruínam o
indivíduo e a sociedade.Já antes dele, os Profetas e os Sábios de
Israel viam nas desgraças do povo um castigo do seu pecado de idolatria, e no «
coração cheio de maldade » (Ec 9, 3), a fonte da radical escravidão do
homem e das opressões que ele inflige aos seus semelhantes.
Desprezar Deus e voltar-se para as
criaturas
A tradição cristã, nos Padres e Doutores da Igreja explicitou esta
doutrina da Escritura acerca do pecado. Para ela, o pecado e desprezo de Deus (contemptos Dei). Ele comporta a vontade de fugir da
relação de dependência do servidor para com seu senhor ou, mais ainda, do filho
para com seu Pai. Pecando, o homem pretende livrar-se de Deus. Na realidade, ele torna-se
escravo. Pois, ao recusar Deus, quebra o impulso da sua aspiração ao infinito e
da sua vocação à participação da vida divina. É por isso que seu coração fica
entregue à inquietação.O homem pecador que recusa de aderir a Deus,
é conduzido, necessariamente, a se ligar à criatura, de um modo falacioso e
destruidor. Neste voltar-se para a criatura (conversio ad creaturam),
ele concentra sobre essa o seu insatisfeito desejo de infinito. Mas os
bens criados são limitados; por isso mesmo, seu coração corre de um para outro,
sempre em busca de uma paz impossível.Na realidade, quando atribui às criaturas um peso
de infinitude, o homem perde o sentido do seu ser criado. Ele pretende
encontrar o seu centro e a sua unidade em si mesmo. O amor desordenado de si é
a outra face do desprezo de Deus. O homem pretende, então, apoiar-se em si
mesmo somente; ele quer realizar-se a si mesmo, bastando-se na sua própria
imanência.
O ateísmo falsa emancipação da
liberdade
Isto torna-se mais particularmente manifesto quando
o pecador julga só poder afirmar a sua liberdade própria, quando explicitamente
negar Deus. A dependência da criatura para com o Criador ou a da consciência moral
com relação à lei divina seriam, para ele, intoleráveis servidões. O ateísmo é,
pois, aos seus olhos, a verdadeira forma de emancipação e de libertação do
homem, enquanto a religião ou mesmo o reconhecimento de uma lei moral seriam
alienações. O homem quer, então, decidir soberanamente acerca do bem e do mal, ou
acerca dos valores, e, com um mesmo movimento, rejeita ao mesmo tempo a ideia
de Deus e a ideia de pecado. É através da audácia da transgressão que ele
pretende tornar-se adulto e livre. Ele reivindica tal emancipação não apenas
para si, mas para a humanidade inteira.
Pecado e estruturas de injustiça
Tornando-se seu próprio centro, o homem pecador tende a se afirmar e a
satisfazer seu desejo de infinito, servindo-se das coisas: riquezas, poderes e
prazeres, em menosprezo dos outros homens que ele despoja injustamente e trata
como objetos ou instrumentos. Assim, contribui, por sua parte, para a criação
daquelas estruturas de exploração e de servidão que, por outro lado, ele
pretende denunciar.
CAPÍTULO III
EVANGELHO,LIBERTAÇÃO
E LIBERDADE CRISTÃ
A história humana, marcada pela experiência do
pecado, levar-nos-ia ao desespero, se Deus tivesse abandonado sua criatura a
ela mesma. Mas as promessas divinas de libertação e o seu vitorioso cumprimento
na morte e ressurreição de Cristo são o fundamento da « alegre esperança » na
qual a comunidade cristã busca a força para agir resoluta e eficazmente ao
serviço do amor, da justiça e da paz. O Evangelho é uma mensagem de liberdade e
uma força de libertação que realiza a esperança de Israel, fundada sobre a
palavra dos Profetas. Esta apoiava-se na ação de Javé que, antes mesmo de
intervir como « goél »,libertador, redentor, salvador do seu Povo, escolhera-o
gratuitamente em Abraão.
I. A libertação no Antigo Testamento - O Êxodo e
as intervenções libertadoras de Javé
No Antigo Testamento, a ação libertadora de Javé,
que serve de modelo e referência a todas as outras, é o Êxodo do Egito, « casa
de servidão ». Se Deus arranca seu Povo de uma dura escravidão económica,
política e cultural, é para fazer dele, através de Aliança do Sinai, « um reino
de sacerdotes e uma nação santa » (Ex 19, 6).
Deus não precisa, mas quer ser adorado por homens
livres!
Todas as libertações ulteriores do Povo de Israel
tendem a conduzi-lo a essa liberdade em plenitude que ele só pode encontrar na
comunhão com o seu Deus.O acontecimento principal e fundacional do Êxodo tem,
portanto, um significado ao mesmo tempo religioso e político. Deus liberta o
seu Povo, dá-lhe uma descendência, uma terra, uma lei, mas dentro de uma
Aliança e para uma Aliança. Não se poderia, portanto, isolar o aspecto
político, atribuindo-lhe um valor por si mesmo; é necessário considerá-lo à luz
do desígnio de natureza religiosa no qual ele se integra.
A Lei de Deus
Em seu desígnio de salvação, Deus deu sua Lei a
Israel. Juntamente com os preceitos morais universais do Decálogo, ela continha
também normas cultuais e civis, que deviam regulamentar a vida do povo
escolhido por Deus para ser sua testemunha entre as nações.O amor de Deus acima
de todas as coisas e do próximo como a si mesmo já
constitui o centro desse conjunto de leis. Mas a justiça, que deve presidir as
relações entre os homens, e o direito, que é a sua expressão jurídica,
pertencem também à trama mais característica da Lei bíblica. Os Códigos e a
pregação dos Profetas, como também os Salmos, referem-se constantemente a
ambas, frequentemente unido-as.É em tal contexto que deve ser apreciado o
cuidado da Lei bíblica pelos pobres, os desprovidos, a viúva e o órfão: a eles
é devida a justiça, segundo o ordenamento jurídico do Povo de Deus. Já existem,
portanto, o ideal e o esboço de uma sociedade centralizada no culto do Senhor e
fundada na justiça e no direito animados pelo amor.
O ensinamento dos Profetas
Os Profetas não cessam de lembrar a Israel as
exigências da Lei da Aliança. Eles denunciam no coração endurecido do homem a
fonte das repetidas transgressões e anunciam uma Nova Aliança, na qual Deus
transformará os corações, gravando neles a Lei do seu Espírito.Anunciando e preparando essa nova era, eles
denunciam com vigor a injustiça perpetrada contra os pobres; em favor destes,
fazem-se porta-vozes de Deus. Javé é o supremo recurso dos pequeninos e dos
oprimidos. Será missão do Messias defendê-los.A situação do pobre é uma
situação de injustiça contrária à Aliança. Por isso a Lei da Aliança protege-o
com preceitos que refletem a própria atitude de Deus ao libertar Israel da
servidão do Egito.A injustiça para com os pequeninos e os pobres é um grave
pecado, que quebra a comunhão com Javé.
Os «pobres de Javé»
A partir de todas as formas de pobreza, de
injustiça sofrida e de aflição, os « justos » e os « pobres de Javé », nos
Salmos, fazem subir até Ele as suas súplicas. Eles sofrem em seus corações pela
servidão â que foi reduzido, por causa de seus pecados, o povo «de dura cerviz
». Suportam a perseguição, o martírio e a morte, mas vivem na esperança da
libertação. Acima de tudo, põem a sua confiança em Javé, a quem recomendam a
própria causa.Os « pobres de Javé » sabem que a comunhão com Ele é
o bem mais precioso, no qual o homem encontra a sua verdadeira liberdade.Para
eles, o mal mais trágico é a perda dessa comunhão. É por isso que o seu combate
contra a injustiça assume o sentido mais profundo e a sua eficácia na vontade
de ser libertados da servidão do pecado.
No limiar do Novo Testamento
No limiar do Novo Testamento, os « pobres de Javé»
constituem as primícias de um « povo humilde e pobre », que vive na esperança
da libertação de Israel.Personificando essa esperança, Maria ultrapassa o
limiar do Antigo Testamento. Ela anuncia com alegria o acontecimento messiânico
e louva o Senhor que se prepara para libertar o seu Povo. Em seu hino de louvor
à divina misericórdia, a humilde Virgem, para quem o povo dos pobres volta-se
espontaneamente e com tanta confiança, canta o mistério da salvação e a sua
força de transformação. O senso da fé, tão vivo nos pequeninos, sabe reconhecer
imediatamente toda a riqueza do Magnificat, ao mesmo tempo soteriológica
e ética.
II. Significação cristológica do Antigo Testamento - A luz de Cristo
O Êxodo, a Aliança, a Lei, a voz dos Profetas e a
espiritualidade dos « pobres de Javé » não atingem a sua plena significação a
não ser em Cristo.A Igreja lê o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e
ressuscitado por nós. A Igreja vê a sua própria prefiguração no Povo de Deus da
Antiga Aliança, encarnado no corpo concreto de uma nação particular, política e
culturalmente constituída, que se inseria na trama da história como testemunha de
Javé diante das nações, até o término do tempo da preparação e das figuras. Na
plenitude dos tempos, vinda com Cristo, os filhos de Abrãao foram então
chamados com todas as nações a entrar na Igreja de Cristo, para formar com elas
um só Povo de Deus, espiritual e universal.
III. A libertação cristã - A "Boa-Nova" anunciada aos pobres!
Jesus anuncia a Boa-Nova do Reino de Deus e chama
os homens à coversão. «Os pobres são evangelizados » (Mt 11,
5): retomando a palavra do Profeta,Jesus manifesta a sua ação messiânica
em favor daqueles que esperam a salvação de Deus.Mais ainda, o Filho de Deus
que se fez pobre por nosso amor, quer ser reconhecido nos pobres,
naqueles que sofrem ou são perseguidos:« o que fizestes a um desses meus irmãos
mais pequeninos, a mim o fizestes » (Mt 25, 40).
O Mistério Pascal
Mas é, antes de tudo, pela força do seu Mistério
Pascal que Cristo nos libertou.Por sua obediência perfeita na Cruz e pela
glória da sua resurreição, o Cordeiro de Deus tirou o pecado do mundo e
abriu-nos o caminho da libertação definitiva.Por nosso serviço e nosso amor,
mas também pelo oferecimento de nossas provações e sofrimentos, nós
participamos do único sacrifício redentor de Cristo, completando em nós « o que
falta das tribulações de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja » (Cl 1,
24), na expectativa da ressurreição dos mortos.
Graça, reconciliação e liberdade
A medula da experiência cristã da liberdade
encontra-se na justificação pela graça da fé e dos sacramentos da Igreja. Essa
graça liberta-nos do pecado e nos introduz na comunhão com Deus. Pela morte e
ressurreição de Cristo, o perdão nos é oferecido. A experiência da nossa
reconciliação com o Pai é fruto do Espírito Santo. Deus revela-se a nós como o
Pai de misericórdia, diante de quem podemos apresentar-nos com uma confiança
total.Reconciliados com Ele e recebendo
aquela paz de Cristo que o mundo não pode dar,somos chamados a ser, entre os
homens, construtores de paz.Em Cristo, podemos vencer o pecado e a morte não
nos separa mais de Deus; ela será finalmente destruída por ocasião da nossa
ressurreição semelhante à de Jesus.O próprio « cosmos », cujo centro e vértice
é o homem, espera ser « liberto da escravidão da corrupção para entrar na liberdade
da glória dos filhos de Deus » (Rm 8, 21). Desde já, Satã é derrotado;
ele, que detém o poder da morte, foi reduzido à impotência pela morte de
Cristo.Recebemos alguns sinais que antecipam a glória futura.
Luta contra a escravidão do pecado!
A liberdade, trazida por Cristo no Espírito Santo
restituíu-nos a capacidade, de que o pecado nos privara, de amar a Deus acima
de todas as coisas e de com Ele permanecer em comunhão.Somos libertados do amor
desordenado de nós mesmos, que é a fonte do desprezo do próximo e das relações
de domínio entre os homens.No entanto, até o retorno glorioso do Ressuscitado,
o mistério de iniquidade está sempre em ação no mundo. São Paulo advertiu-nos:
« É para a liberdade que Cristo nos libertou » (Gl 5, 1). É preciso,
pois, perseverar e lutar para não recair sob o jugo da escravidão. Nossa
existência é um combate espiritual pela vida segundo o Evangelho e com as armas
de Deus.Mas recebemos a força e a certeza da nossa vitória sobre o mal, vitória
do amor de Cristo ao qual nada pode resistir.
O Espírito e a Lei
São Paulo proclama o dom da Lei Nova do Espírito,
em oposição à lei da carne ou da cobiça que inclina o homem ao mal e torna-o
incapaz de escolher o bem.Essa falta de harmonia e essa fraqueza interior não
abolem a liberdade e a responsabilidade do homem, mas comprometem o seu
exercício em vista do bem. É isso que faz o Apóstolo exclamar: « Não faço o bem
que eu quero, mas pratico o mal que não quero » (Rm 7, 19). Com razão,
ele fala da « servidão do pecado » e da « escravidão da lei », pois ao homem
pecador, a lei, que ele não pode interiorizar, aparece como opressora.No
entanto, São Paulo reconhece que a Lei conserva seu valor para o homem e para o
cristão, porque « ela é santa, e santo, justo e bom é o preceito » (Rm
7, 12).Ele reafirma o Decálogo, pondo-o em relação com a caridade, que é a sua
verdadeira plenitude. Além disso, ele sabe muito bem que uma ordem jurídica é
necessária para o desenvolvimento da vida social.Mas a novidade que ele
proclama, é que Deus nos deu seu Filho « a fim de que o preceito da Lei se
cumpra em nós » (Rm 8, 4).
IV. O Mandamento novo - O Amor, dom do
Espírito
O Amor de Deus, derramado em nossos corações pelo
Espírito Santo, implica o amor do próximo. Relembrando o primeiro mandamento,
Jesus acrescenta imediatamente: « O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu
próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os
Profetas » (Mt 22, 39-40). E São Paulo diz que a caridade é o pleno
cumprimento da Lei.O amor do próximo não conhece limites, e
exclusões, estende-se aos inimigos e aos perseguidores. Imagem da perfeição do
Pai, a perfeição à qual deve tender o discípulo reside na misericórdia.A parábola do Bom Samaritano demonstra que o amor
cheio de compaixão, que se põe a serviço do próximo, destrói os preconceitos
que sublevam os grupos étnicos ou sociais uns contra os outros.Todos os textos
do Novo Testamento apresentam, com uma riqueza inesgotável, todos os
sentimentos de que é portador o amor cristão pelo próximo.
O amor do próximo
O amor cristão, gratuito e universal, recebe a sua
natureza do amor de Cristo que deu a sua vida por nós: « Como eu vos amei,
amai-vos também uns aos outros » (Jo 13, 34-35).73 Tal é o «
mandamento novo » para os discípulos.À luz desse mandamento, São Tiago lembra
severamente aos ricos o seu dever e São João afirma que quem possui riquezas
deste mundo e fecha o seu coração a seu irmão que passa necessidade, não pode
ter o amor de Deus vivendo nele.O amor do irmão é a pedra de toque do amor de
Deus: « Quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá
amar » (1 Jo 4, 20). São Paulo sublinha, com energia, o laço existente
entre a participação no sacramento do Corpo e Sangue de Cristo e a partilha com
o irmão que se encontra em necessidade.
Justiça e caridade
O amor evangélico e a vocação de filho de Deus, à
qual todos os homens são chamados, têm como consequência a exigência, direta e
imperativa, do respeito de cada ser humano em seus direitos à vida e à
dignidade. Não existe distância entre o amor do próximo e a vontade de justiça.
Opor amor e justiça seria desnaturar a ambos. Mais ainda, o sentido da
misericórdia completa o da justiça, impedindo a esta última de se fechar no
círculo da vingança.A Igreja, na sua docilidade ao Espírito, avança
fielmente pelos caminhos da libertação autêntica. Seus membros têm consciência
de suas falhas e de seus recuos nessa busca. Mas uma multidão de cristãos,
desde o tempo dos Apóstolos, tem comprometido suas forças e sua vida pela
libertação de todas as formas de opressão e pela promoção da dignidade humana.
A experiência dos santos e o exemplo das inúmeras obras ao serviço do próximo
constituem um estímulo e uma luz, em vista das iniciativas libertadoras que hoje
se impõem.
V. A Igreja, Povo de Deus na Nova Aliança - Rumo à plenitude da
liberdade
O Povo de Deus na Nova Aliança é a Igreja de
Cristo. Sua lei è o mandamento do amor. No coração dos seus membros, o Espírito
habita como em um templo. Ela é aqui na terra, germe e começo do Reino de Deus,
que receberá a sua realização definitiva no final dos tempos, com a
ressurreição dos mortos e a renovação de toda a criação.Possuindo, dessa forma,
o penhor do Espírito,o Povo de Deus é conduzido à plenitude da liberdade. A
nova Jerusalém que, com fervor, nós esperamos, é chamada, com razão, cidade da
liberdade, em seu sentido mais alto.Então, « Deus enxugará toda lágrima dos seus
olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá
mais. Sim! As coisas antigas se foram » (Ap
31, 4). A esperança é a expectativa certa dos « novos céus e nova terra,
onde habitará a justiça » (2 Pd 3,
13).
O encontro final com Cristo
A transfiguração da Igreja, chegada ao termo da sua
peregrinação, é realizada pelo Cristo ressuscitado e não anula, de forma
alguma, o destino pessoal de cada um, ao final da própria vida. Cada homem, se
julgado digno diante do tribunal de Cristo por ter usado bem o seu livre
arbítrio na graça de Deus, alcançará a bem-aventurança. Tornar-se-á semelhante
a Deus, pois vê-lo-á tal como Ele é.O dom divino da bem-aventurança eterna é a
exaltação da mais alta liberdade que possa conceber.
Esperança escatológica e empenho pela
libertação temporal
Esta esperança não enfraquece o esforço pelo
progresso da cidade terrestre, más, pelo contrario, dá-lhe sentido e força.
Convém, certamente, distinguir cuidadosamente progresso terrestre e crescimento
do Reino, que não são da mesma ordem. Entretanto, tal distinção não é uma
separação; pois a vocação do homem à vida eterna não suprime e sim confirma a
sua missão de pôr em obra as energias e os meios que recebeu do Criador para
desenvolver a sua vida temporal.Iluminada pelo Espírito do Senhor, a Igreja de
Cristo pode discernir, nos sinais dos tempos, os que trazem consigo promessas
de libertação e outros, que são enganadores e ilusórios. Ela convoca os homens
e as sociedades a vencer as situações de pecado e de injustiça, e a estabelecer
as condições de uma verdadeira liberdade. Ela tem consciência de todos estes
bens – dignidade humana, união fraterna, liberdade – que constituem o fruto de
esforços coerentes com a vontade de Deus. Encontrá-los-emos « lavados de toda
mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo apresentará ao Pai o reino
eterno e universal », que é um reino de liberdade.A espera vigilante e ativa da vinda do Reino é
também a de uma justiça enfim perfeita, para os vivos e para os mortos, para os
homens de todos os tempos e de todos os lugares, que Jesus Cristo, como Juiz
supremo, instaurará.Uma tal promessa, que ultrapassa todas as possibilidades
humanas, diz respeito diretamente à nossa vida neste mundo. Pois uma verdadeira
justiça deve estender-se a todos, respondendo à imensa soma de sofrimentos
suportados por todas as gerações. Na realidade, sem a ressurreição dos mortos e
o julgamento do Senhor, não há justiça, no sentido pleno desse termo, A
promessa de ressurreição vem gratuitamente ao encontro do anseio de verdadeira
justiça, que reside no coração humano.
CAPÍTULO IV
A MISSÃO LIBERTADORA DA
IGREJA - A Igreja e as inquietudes
do homem
A Igreja tem o firme propósito de responder à
inquietude do homem contemporâneo, marcado por duras opressões e desejoso de
liberdade. A gestão política e económica da sociedade não entra diretamente na
sua missão.Mas o Senhor Jesus confiou-lhe a palavra da verdade, capaz de
iluminar as consciências. O amor divino, que é a sua vida, leva-a a se fazer
realmente solidária com cada homem que sofre. Se seus membros permanecerem fiéis
a essa missão, o Espírito Santo, fonte de liberdade, habitará neles e
produzirão frutos de justiça e de paz em seu ambiente familiar, profissional e
social.
I. Pela salvação integral do mundo - As
Bem-aventuranças e a força do Evangelho
O Evangelho é força da vida eterna, dada desde
agora àqueles que o acolhem. Mas, ao gerar homens novos, essa força penetra na
comunidade humana e na sua história, purificando e vivificando, assim, as suas
atividades. Por isso, ela é « raiz de cultura ».As Bem-aventuranças proclamadas por Jesus exprimem
a perfeição do amor evangélico. Elas não cessaram de ser vividas, ao longo da
história da Igreja, por numerosos batizados e, de uma maneira eminente, pelos
santos.As Bem-aventuranças, a partir da primeira, a dos
pobres, formam um todo que não deve ser separado do conjunto do Sermão da
Montanha.Neste, Jesus, novo Moisés, comenta o Decálogo, a Lei da Aliança,
dando-lhe seu sentido definitivo e pleno. Lidas e interpretadas na totalidade
do seu contexto, as Bem-aventuranças exprimem o espírito do Reino de Deus que
vem. À luz do destino definitivo da história humana assim manifestada,
aparecem, ao mesmo tempo, com uma mais viva clareza, os fundamentos da
injustiça na ordem temporal.Pois, ao ensinar a confiança que se apoia em Deus,
a esperança da vida eterna, o amor da justiça, a misericórdia que chega até o
perdão e a reconciliação, as Bem-aventuranças permitem situar a ordem temporal
em função de uma ordem transcendente que, longe de eliminar sua própria
consistência, confere-lhe a sua verdadeira medida.À luz das Bem-aventuranças, o necessário
empenho nas tarefas temporais a serviço do próximo e da comunidade dos homens
é, ao mesmo tempo, exigido com urgência e mantido na sua justa perspectiva. As
Bem-aventuranças preservam da idolatria dos bens terrestres e das injustiças
que a sua busca desenfreada traz consigo.Elas preservam da busca de um mundo
perfeito, utópica e causadora de ruína, pois « a figura deste mundo passa » (1 Cor 7, 31).
O anúncio da Salvação
A missão essencial da Igreja, prolongando a missão
de Cristo, é uma missão evangelizadora e salvífica.Ela encontra o seu élan na
caridade divina. A evangelização é o anúncio da salvação, dom de Deus. Pela
palavra de Deus e pelos sacramentos, o homem é libertado, antes de tudo, do
poder do pecado e do poder do Maligno que o oprimem, e é introduzido na
comunhão de amor com Deus. Nas pegadas do seu Senhor, « que veio ao
mundo para salvar os pecadores » (1
Tim 1, 15), a Igreja deseja a salvação de todos os homens.Nessa
missão, a Igreja ensina o caminho que o homem deve percorrer neste mundo, para
entrar no Reino de Deus. Sua doutrina abrange, pois, toda a ordem moral e,
principalmente a justiça que deve regular as relações humanas. Tudo isso faz
parte da pregação do Evangelho.Mas o amor que faz a Igreja comunicar a todos a
participação gratuita na vida divina, leva-a também, pela ação eficaz de seus
membros, a buscar o verdadeiro bem temporal dos homens, ir ao encontro de suas
necessidades, prover a sua cultura e promover uma libertação integral de tudo
aquilo que impede o desenvolvimento das pessoas. A Igreja quer o bem do homem
em todas as suas dimensões: em primeiro lugar, como membro de cidade de Deus;
em seguida, como membro da cidade terrestre.
Evangelização e promoção da justiça
Quando, pois, se pronuncia sobre a promoção
da justiça nas sociedades humanas, ou leva os seus fiéis leigos a nelas
trabalharem segundo a vocação própria deles, a Igreja não excede a sua missão.
Ela toma cuidado, no entanto, para que essa missão não seja absorvida pelas
preocupações concernentes a ordem temporal nem a estas últimas se reduza. Por
isso, ela presta grande atenção em manter, clara e firmemente, tanto a unidade
como a distinção entre evangelização e promoção humana: unidade, porque ela
busca o bem do homem todo; distinção, porque essas duas tarefas, sob títulos
diversos, integram a sua missão.
Evangelho e realidades terrestres
Procurando, pois, realizar a sua finalidade própria
é que a Igreja ilumina, com a luz do Evangelho, as realidades terrestres, de
modo que a pessoa humana seja curada de suas misérias e elevada na sua
dignidade. A coesão da sociedade segundo a justiça e a paz é, assim, promovida
e reforçada.Por isso mesmo, a Igreja é fiel à sua missão quando denuncia os
desvios, as servidões e as opressões de que os homens são vítimas.Ela é
fiel à sua missão quando se opõe às tentativas de instauração de uma forma de
vida social da qual Deus esteja ausente, seja por uma oposição consciente, seja
por uma negligência culposa.Por fim, ela é fiel à sua missão quando exerce seu
julgamento a respeito de movimentos políticos que pretendem lutar contra a
miséria e a opressão segundo teorias e métodos de ação contrários ao Evangelho
e opostos ao próprio homem.
II. O amor preferencial pelos pobres - Jesus e a
pobreza
Cristo Jesus, sendo rico, fez-se pobre para nos
enriquecer por meio de sua pobreza.São Paulo fala, aqui, do mistério da
Encarnação do Filho eterno, que veio assumir a natureza humana mortal para
salvar o homem da miséria na qual o pecado o tinha mergulhado. Mais ainda, na
condição humana, Cristo escolheu um estado de pobreza e de despojamento,a fim
de mostrar em que consiste a verdadeira riqueza a ser buscada, a da comunhão de
vida com Deus. Ele ensinou o desapego das riquezas da terra para que se deseje
as riquezas do céu.Os Apóstolos que escolheu também tiveram que abandonar tudo
e participar do seu despojamento.Anunciado pelo Profeta como o Messias dos
pobres,é entre eles, os humildes, os « pobres de Javé » sedentos da justiça do
Reino, que ele encontrou corações capazes de acolhê-lo. Mas quis também estar perto
daqueles que, mesmo ricos dos bens deste mundo, eram excluídos da comunidade,
como «publicanos e pecadores », pois ele tinha vindo chamá-los à conversão.É
uma tal pobreza, feita de desapego, de confiança em Deus, de sobriedade, da
disposição à partilha, que Jesus declarou bem-aventurada.
Jesus e os pobres
A Bem-aventurança da pobreza que Jesus proclamou
não significa, pois, absolutamente, que os cristãos podem desinteressar-se dos
pobres desprovidos do necessário à vida humana neste mundo. Fruto e
consequência do pecado dos homens e da sua fragilidade natural, essa miséria é
um mal de que é preciso, tanto quanto possível, libertar os seres humanos.
O amor preferencial pelos pobres
Sob as suas múltiplas formas – extrema privação
material, opressão injusta, enfermidades físicas e psíquicas e, por fim, a
morte – a miséria humana é o sinal manifesto da condição nativa de fraqueza na
qual o homem se encontra após o primeiro pecado e da necessidade de uma
salvação. É por isso que ela atrai a compaixão de Cristo Salvador, que quis
assumi-la sobre si,identificando-se com os « mais pequeninos entre os seus
irmãos » (Mt 25, 40. 45). É também por isso que todos aqueles que ela
atinge são objeto de um amor preferencial por parte da Igreja que, desde as
suas origens, apesar das falhas de muitos dos seus membros, não deixou nunca de
se esforçar por aliviá-los, defendê-los e libertá-los. Ela o faz através de
inúmeras obras de beneficência, que continuam a ser, sempre e por toda a parte,
indispensáveis.Depois, através da sua doutrina social que se esforça por
aplicar, ela procurou promover mudanças estruturais na sociedade, a fim de se
alcançar condições de vida dignas da pessoa humana.Amando os pobres, enfim, a Igreja testemunha a
dignidade do homem. Ela afirma claramente que este vale mais pelo que é do que
pelo que possui. Ela testemunha que essa dignidade não pode ser destruída, seja
qual for a situação de miséria, de desprezo, de rejeição e de impotência a que
o homem foi reduzido. Ela mostra-se solidária com aqueles que não contam para
uma sociedade da qual se vêem espiritual e às vezes até mesmo fisicamente
rejeitados. De modo particular, a Igreja volta-se com afeto materno para os filhos
que, por causa da maldade humana, nunca virão à luz, como também para as
pessoas idosas, sós ou abandonadas.“A opção privilegiada pelos
pobres, longe de ser um sinal de particularismo ou de sectarismo, manifesta a
universalidade do ser e da missão da Igreja. Tal opção não é exclusiva nem
excludente.É por essa razão que a Igreja não pode exprimi-la com a ajuda de
categorias sociológicas e ideológicas redutoras, que fariam de tal preferência
uma opção partidária e de natureza conflitiva.”
Comunidades de base e movimentos eclesiais
As novas comunidades de base e outros grupos
de cristãos, formados para serem testemunhas deste amor evangélico, são um
motivo de grande esperança para a Igreja. Se viverem verdadeiramente em unidade
com a Igreja local e a Igreja universal, serão uma autêntica expressão da
comunhão e um meio de se construir uma comunhão mais profunda. Serão fiéis à
sua missão na medida em que tiverem o cuidado de educar os seus membros na integralidade
da fé cristã, pela escuta da Palavra de Deus, pela fidelidade ao ensinamento do
Magistério, à ordem hierárquica da Igreja e à vida sacramental. Sob tais
condições, sua experiência, radicada em um empenho pela libertação integral do
homem, torna-se uma riqueza para a Igreja inteira.
A reflexão teológica
De maneira semelhante, uma reflexão teológica desenvolvida a partir de
uma experiência particular pode constituir uma contribuição muito positiva, já
que permite pôr em evidência aspectos da Palavra de Deus cuja riqueza total
ainda não tinha sido plenamente percebida. Mas para que tal reflexão seja
verdadeiramente uma leitura da Escritura e não uma projeção sobre a Palavra de
Deus de um sentido que ela não contém, o teólogo estará atento a interpretar a
experiência, da qual ele parte, à luz da tradição e da experiência da própria
Igreja. Essa experiência da Igreja brilha, com uma luminosidade singular e em
toda a sua pureza, na vida dos santos. Compete aos Pastores da Igreja, em comunhão
com o Sucessor de Pedro, discernir a autenticidade de tais experiências.
CAPÍTULO V
A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA: POR UMA
PRAXIS CRISTÃ DA LIBERTAÇÃO
A dimensão soteriológica da libertação não pode ser reduzida à dimensão
socio-ética, que é uma sua consequência. Restituindo ao homem a verdadeira liberdade, a
libertação radical realizada por Cristo atribui ao mesmo homem uma tarefa: a
praxis cristã, que é a execução do grande mandamento do amor. Este último é o
princípio supremo da moral social cristã, fundada sobre o Evangelho e sobre
toda a tradição desde os tempos apostólicos e a época dos Padres da Igreja até
às recentes intervenções do Magistério.
I. Natureza da doutrina social da Igreja - Mensagem
evangélica e vida social
O ensinamento social da Igreja nasceu do encontro
da mensagem evangélica e de suas exigências, resumidas no mandamento supremo do
amor,com os problemas que emanam da vida da sociedade. Ele constituiu-se como uma
doutrina, usando os recursos da sabedoria e das ciências humanas, diz respeito
ao aspecto ético desta vida e leva em consideração os aspectos técnicos dos problemas,
mas sempre para julgarmos do ponto de vista moral.Essencialmente orientado para
a ação, esse ensinamento desenvolve-se em função das circunstâncias mutáveis da
história. É por essa razão que, com princípios sempre válidos, ele comporta
também juízos contingentes.Longe de constituir um sistema fechado, ele permanece constantemente
aberto às questões novas que não cessam de se apresentar; requer a contribuição
de todos os carismas, experiências e competências. Perita em humanidade, a Igreja
oferece, em sua doutrina social, um conjunto de princípios de reflexão, de
critérios de julgamento, como também de diretrizes de
açao, para que sejam realizadas as mudanças profundas que as
situações de miséria e de injustiça estão a exigir e isso de uma maneira que
sirva ao verdadeiro bem dos homens.
Princípios fundamentais
Ao fundamento, que é a
dignidade do homem, estão intimamente ligados o princípio de solidariedade e
o princípio de subsidiariedade: Em virtude do primeiro, o homem deve contribuir,
com os seus semelhantes, para o bem comum da sociedade, em todos os seus
níveis. Sob este ângulo, a doutrina da
Igreja opõe-se a todas as formas de individualismo social ou político.Em
virtude do segundo, nem o Estado, nem sociedade alguma, jamais devem
substituir-se à iniciativa e à responsabilidade das pessoas e das comunidades
intermediárias, no nível em que essas possam agir, nem destruir o espaço
necessário à liberdade das mesmas.Por este lado, a doutrina social da Igreja
opõe-se a todas as formas de coletivismo Estatal ( O Estado foi feito para o
homem e não o homem para o estado).
Critérios de julgamento
Os princípios estabelecem critérios para efetuar
um julgamento acerca das situações, das estruturas e dos sistemas
sociais.Assim, a Igreja não hesita em denunciar as situações de vida
que lesem a dignidade e a liberdade do homem.Tais critérios permitem também
julgar o valor das estruturas. Estas são o conjunto das instituições e
das práticas que os homens já encontram em ação ou criam, em plano nacional e
internacional, e que orientam ou organizam a vida económica, social e política.
Em si necessárias, elas tendem, frequentemente, a se fixarem e enrijecerem em mecanismos
relativamente independentes da vontade humana, paralizando ou pervertendo assim
o desenvolvimento social e gerando a injustiça. No entanto, elas dependem sempre
da responsabilidade do homem, que pode modificá-las, e não de um pretenso
determinismo da história.As instituições e as leis, quando são conformes à lei natural e
ordenadas ao bem comum, são a garantia da liberdade das pessoas e da sua
promoção. Não se
pode condenar todos os aspectos coercitivos da estabilidade de um estado de
direito digno desse nome. Pode-se falar, portanto, de estruturas marcadas pelo
pecado, mas não se pode condenar as estruturas enquanto tais.Os critérios de julgamento dizem respeito também
aos sistemas econômicos, sociais e políticos. A doutrina social da Igreja não
propõe algum sistema particular, mas à luz dos seus princípios fundamentais,
permite ver em que medida os sistemas existentes são ou não conformes às
exigências da dignidade humana.
Primado das pessoas sobre as estruturas
A Igreja tem certamente consciência da complexidade
dos problemas que as sociedades devem enfrentar e das dificuldades de se
encontrar soluções adequadas. No entanto, ela pensa ser necessário, antes
de tudo, apelar para as capacidades espirituais e morais da pessoa e para a
exigência permanente de conversão interior, se se quiser obter mudanças
económicas e sociais que estejam realmente ao serviço do homem.O
primado atribuído às estruturas e à organização técnica e não à pessoa e às
exigências da sua dignidade, é a expressão de uma antropologia materialista,
contrária à edificação de uma ordem social justa.Entretanto, a prioridade reconhecida à liberdade e
à conversão do coração não elimina, de forma alguma, a necessidade de uma
mudança das estruturas injustas. É, portanto, plenamente legítimo que aqueles
que sofrem opressão por parte dos detentores da riqueza ou do poder político
ajam, por meios moralmente lícitos, a fim de obter estruturas e instituições
nas quais os seus direitos sejam verdadeiramente respeitados.A verdade, porém, é que as estruturas instauradas para o bem das
pessoas, por si mesmas são incapazes de realizá-lo e de garanti-lo. Prova-o a
corrupção que, em certos países, atinge dirigentes e burocracia de Estado,
destruindo qualquer vida social honesta. A retidão dos costumes é condição
indispensável para a saúde da sociedade. É preciso, pois, trabalhar, ao mesmo tempo, pela
conversão dos corações e pela melhoria das estruturas, pois o pecado que se
encontra na origem das situações injustas é, em sentido próprio e primário, um
ato voluntário que tem sua origem na liberdade da pessoa. É só em um sentido
derivado e secundário que ele é aplicado às estruturas e que se pode falar de «
pecado social ».Por outro lado, no processo de libertação, não se pode fazer abstração
da situação histórica da nação, nem atentar contra a identidade cultural do
povo. Por conseguinte, não se pode aceitar passivamente – e menos ainda
ativamente apoiar – grupos que, pela força ou pela manipulação da opinião,
apoderem-se do aparelho estatal para impor abusivamente à coletividade uma ideologia importada, oposta aos verdadeiros valores
culturais do povo. A esse propósito, convém recordar a grave responsabilidade
moral e política dos intelectuais.
Diretrizes de ação
Os princípios fundamentais e os critérios de
julgamento inspiram diretrizes de ação: uma vez que o bem comum da
sociedade humana está ao serviço das pessoas, os meios de ação devem ser
conformes à dignidade do homem e favorecer a educação da sua liberdade. Este é
um critério seguro de julgamento e de ação:“não haverá verdadeira libertação se, desde o
princípio, não forem respeitados os direitos da liberdade.”É preciso denunciar, no recurso sistemático à
violência apresentado como caminho necessário da libertação, uma ilusão
destruidora, que abre estrada a novas servidões. Deve-se condenar, com o mesmo
vigor, a violência contra os pobres, exercida pelos que têm posses, o arbítrio
policial, como também toda forma de violência transformada em sistema de
governo. Nesses campos, é preciso saber aprender das lições de trágicas
experiências que a história do nosso século conheceu e conhece ainda.
Não se pode tampouco admitir a culpável cumplicidade dos poderes públicos nas
democracias em que a situação social de um grande número de homens e mulheres
está longe de corresponder ao que exigem os direitos individuais e sociais
constitucionalmente garantidos.
Uma luta pela justiça
Quando encoraja a criação e a ação de associações
como os sindicatos, que lutam pela defesa dos direitos e dos interesses
legítimos dos trabalhadores e pela justiça social, nem por isso a Igreja admite
a teoria que vê na luta de classes o dinamismo estrutural da vida social. A
ação que ela preconiza não é a luta de uma classe contra outra, em vista de
obter a eliminação do adversário; ela não procede da submissão aberrante a uma
pretensa lei da história. Trata-se, antes, de uma luta nobre e
ponderada, visando a justiça e a solidariedade sociais.O cristão preferirá
sempre a via do diálogo e do acordo.Cristo deu-nos o mandamento do amor aos
inimigos.No espírito do Evangelho, a libertação é, portanto, incompatível com o
ódio pelo outro, considerado individual ou coletivamente, inclusive com o ódio
ao inimigo.
O mito da revolução
Situações de grave injustiça requerem a coragem de
reformas em profundidade e a supressão de privilégios injustificáveis. Porém, os que descrêem do caminho das reformas em proveito do
mito da revolução, não apenas alimentam a ilusão de que a abolição de uma
situação iníqua basta por si mesma para criar uma sociedade mais humana, mas
ainda favorecem o advento de regimes totalitários.A luta contra
as injustiças só tem sentido se ela for conduzida para a instauração de uma
nova ordem social e política conforme às exigências da justiça. Esta deve
determinar as etapas da sua instauração, já desde o início. Existe uma
moralidade dos meios.
Um recurso extremo
Esses princípios devem ser
aplicados especialmente no caso extremo do recurso à luta armada, indicado pelo
Magistério como remédio último para pôr fim a uma « tirania evidente e
prolongada, que atingisse gravemente os direitos fundamentais das pessoas e
prejudicasse perigosamente o bem comum de um país ».Entretanto, a aplicação concreta desse meio não
pode ser encarnada, senão após uma análise muito rigorosa da situação. Com
efeito, por causa do contínuo desenvolvimento das técnicas empregadas e da
crescente gravidade dos perigos implicados no recurso à violência, o que hoje
vem sendo chamado de « resistência passiva » abre um caminho mais conforme aos
princípios morais e não menos prometedor de êxito.Jamais poder-se-ia admitir, nem por parte do
poder constituído nem por parte dos grupos sublevados, o recurso a meios
criminosos como as represálias feitas contra a população, a tortura, os métodos
do terrorismo e a provocação calculada para acarretar a morte de pessoas
durante manifestações populares. São igualmente inadmissíveis as odiosas
campanhas de calúnia, capazes de destruir uma pessoa, psíquica e moralmente.
O papel dos leigos
Não compete aos Pastores da Igreja intervir
diretamente na construção política e na organização da vida social. Tal tarefa
faz parte da vocação dos leigos, agindo por sua própria iniciativa, juntamente
com seus concidadãos. Eles devem realizá-la, conscientes de que a
finalidade da Igreja é difundir o Reino de Cristo para que todos os homens
sejam salvos e que, por eles, o mundo seja efetivamente ordenado a Cristo.A obra da salvação aparece, pois, indissoluvelmente
unida à missão de melhorar e elevar as condições da vida humana neste mundo.A
distinção entre ordem sobrenatural da salvação e ordem temporal da vida humana
deve ser vista ao interno de um único desígnio de Deus, o de recapitular todas
as coisas em Cristo. É por isso que, em um e outro campo, o leigo, ao
mesmo tempo fiel e cidadão, deve deixar-se guiar constantemente pela
consciência cristã.A ação social, que pode comportar uma
pluralidade de caminhos concretos, terá sempre em vista o bem comum e será
conforme à mensagem e ao ensinamento da Igreja. Evitar-se-á que a diferença de
opiniões prejudique o sentido da colaboração, conduza à paralisia dos esforços
ou produza desorientação no povo cristão.A orientação dada pela doutrina social da Igreja
deve estimular a aquisição das competências técnicas e científicas
indispensáveis. Ela estimulará também a busca da formação moral do caráter e o
aprofundamento da vida espiritual. Fornecendo princípios e conselhos de
sabedoria, essa doutrina não dispensa a educação para a prudência política,
indispensável para o governo e gestão das realidades humanas.
II. Exigências evangélicas de transformações em
profundidade - Necessidade de
uma transformação cultural:
Um desafio sem precedente é hoje lançado aos
cristão que se esforçam por realizar aquela « civilização do amor » que reúne
toda a herança ético-social do Evangelho. Essa tarefa exige uma reflexão nova
sobre aquilo que constitui a relação entre mandamento supremo do amor e ordem
social, comprendida em toda a sua complexidade.Finalidade direta de tal reflexão em profundidade é
a elaboração e atuação de programas de ação audaciosos, em vista da libertação
socioeconómica de milhões de homens e mulheres, cuja situação de opressão
económica, social e política é intolerável.Essa ação deve começar por um imenso esforço
de educação: educação para a civilização do trabalho, educação para a
solidariedade, acesso de todos à cultura.
Evangelho do trabalho
A vida de Jesus em Nazaré, verdadeiro « Evangelho
do trabalho », oferece-nos um vivo exemplo e o princípio da radical
transformação cultural indispensável para resolver os graves problemas que
nossa época deve enfrentar. Aquele que, sendo Deus, fez-se semelhante a nós em
tudo, durante a maior parte de sua vida terrena entregou-se a um trabalho
manual.A cultura que nossa época espera, será caracterizada pelo pleno
reconhecimento da dignidade do trabalho humano, que aparece em toda a sua
nobreza e fecundidade à luz dos mistérios da Criação e da Redenção.Reconhecido
como expressão da pessoa, o trabalho torna-se fonte de sentido e esforço
criador.
Uma verdadeira civilização do trabalho
Dessa forma, a solução da maioria dos
gravíssimos problemas da miséria encontra-se na promoção de uma verdadeira
civilização do trabalho. De certa forma, o trabalho é a chave de toda a questão
social.É, pois, no campo do trabalho que deve ser
empreendida, prioritariamente, uma ação evangelizadora na liberdade. Uma vez
que a, relação entre pessoa humana e trabalho é radical e vital, as formas e
modalidades que regulamentam tal relação exercerão uma influência positiva, em
vista da solução do conjunto de problemas sociais e políticos que se apresentam
a cada povo. Relações de trabalho justas prefigurarão um sistema de comunidade
política apto a favorecer o desenvolvimento integral de toda a pessoa humana.Se o sistema das relações de trabalho, posto em
funcionamento pelos protagonistas diretos, trabalhadores e empregadores, com o
indispensável apoio dos poderes públicos, consegue dar origem a uma civilização
do trabalho, produzir-se-á, então, na maneira de ver dos povos e até nas bases
institucionais e políticas, uma profunda revolução pacífica.
Bem comum nacional e internacional
Uma tal cultura do trabalho deverá supor e pôr em
ação um certo número de valores essenciais. Ela reconhecerá que a pessoa do
trabalhador é princípio, sujeito e fim da atividade laboriosa. Afirmará a
prioridade do trabalho sobre o capital e a destinação universal dos bens
materiais. Será animada pelo senso de uma solidariedade que não comporta apenas
direitos a reivindicar, mas também deveres a cumprir. Implicará a participação,
visando promover o bem comum nacional e internacional e não apenas a defesa de
interesses individuais ou corporativos. Ela assimilará o método do confronto
pacífico e do diálogo franco e vigoroso.
O valor do trabalho humano
Uma cultura que reconheça a eminente dignidade do
trabalhador, evidenciará a dimensão subjetiva do trabalho.O valor de cada
trabalho humano não se deduz, em primeiro lugar, do trabalho realizado; ele tem
o seu fundamento no fato de que quem o executa é uma pessoa.Trata-se, portanto,
de um critério ético, cujas exigências são evidentes.Assim, todo homem tem direito ao trabalho,
direito esse que deve ser reconhecido de forma prática, através de um efetivo
empenho em vista de se resolver o dramático problema do desemprego. É
intolerável que este mantenha em uma situação de marginalização amplas parcelas
da população, e, notadamente, da juventude. Por isso, a criação do postos de
trabalho é uma tarefa social primordial, que se impõe aos indivíduos e à
iniciativa privada, mas igualmente ao Estado.Como regra geral, aqui como em outros campos, o
Estado tem uma função subsidiária; mas frequentemente ele pode ser chamado a
intervir diretamente, como no caso de acordos internacionais entre diversos
Estados. Tais acordos devem respeitar o direito dos emigrantes e de suas
famílias.
Promover a participação
O salário, que não pode ser concebido como uma
simples mercadoria, deve permitir ao trabalhador e à sua família terem acesso a
um nível de vida verdadeiramente humano na ordem material, social, cultural e
espiritual. É a dignidade da pessoa que constitui o critério para julgar o
trabalho, e não o contrário. Seja qual for o tipo de trabalho, o trabalhador
deve poder vivê-lo como expressão da sua personalidade. Daí decorre a
exigência de uma participação que, muito mais que uma partilha dos frutos do
trabalho, deveria comportar uma verdadeira dimensão comunitária em nível de
projetos, de iniciaivas e de responsabilidades.
Prioridade do trabalho sobre o capital
A prioridade do trabalho sobre o capital faz com
que os empresários tenham o dever de justiça de considerar o bem dos
trabalhadores antes do aumento dos lucros. Eles têm a obrigação moral de não
manter capitais improdutivos, e de procurar, nos investimentos, antes de tudo,
o bem comum. Este último exige que se busque, como prioridade, a consolidação
ou a criação de novos postos de trabalho, na produção de bens realmente úteis.O direito à propriedade privada não é
concebível sem seus deveres para com o bem comum. Ele é subordinado ao
princípio superior da destinação universal dos bens.
Reformas em profundidade
Esta doutrina deve inspirar reformas, antes que
seja tarde demais. O acesso de todos aos bens requeridos por uma vida humana,
pessoal e familiar, digna desse nome, é uma exigência primária da justiça
social. Sua aplicação deve abranger a área do trabalho industrial e, de um modo
todo especial, a do trabalho agrícola.Com efeito, os camponeses, sobretudo no
Terceiro Mundo, formam a massa preponderante dos pobres.
III. Promoção da solidariedade - Uma nova solidariedade
A solidariedade é uma exigência direta da
fraternidade humana e sobrenatural. Os graves problemas socio-econômicos, que
hoje se apresentam, só poderão ser resolvidos se novas frentes de solidariedade
forem criadas: solidariedade dos pobres entre si; solidariedade com os pobres,
para a qual os ricos são convocados; solidariedade dos trabalhadores e com os
trabalhadores. As instituições e organizações sociais, em diferentes níveis,
como também o Estado, devem participar de um movimento geral de solidariedade.
Ao fazer este apelo, a Igreja sabe que também ela encontra-se envolvida nele de
um modo todo particular.
A destinação universal dos bens
O princípio da destinação universal dos bens,
juntamente com o da fraternidade humana e sobrenatural, impõe aos países mais
ricos deveres para os países pobres. Deveres que são de solidariedade na ajuda
aos países em vias de desenvolvimento; de justiça social, mediante uma revisão,
em termos correios, das relações comerciais entre Norte e Sul e pela promoção
de um mundo mais humano para todos, onde cada um possa dar e receber, e onde o
progresso de uns não seja mais um obstáculo ao desenvolvimento de outros, nem
um protexto para a sua sujeição.A solidariedade internacional é uma exigência de
ordem moral. Ela não se impõe unicamente nos casos de extrema urgência, mas
também como ajuda ao verdadeiro desenvolvimento. Trata-se de uma obra comum,
que requer um esforço convergente e constante para se encontrarem as soluções
técnicas concretas, mas também para criar uma nova mentalidade nos homens deste
tempo. A paz mundial, em grande parte, depende disso.
IV. Tarefas culturais e educativas - Direito à instrução e a
cultura
As desigualdades, contrárias à justiça, na posse e
no uso dos bens materiais são acompanhadas e agravadas pelas desigualdades
igualmente injustas no acesso à cultura. Cada homem tem direito à cultura, que
é o modo específico de uma existência verdadeiramente humana, à qual ele tem
acesso pelo desenvolvimento de suas faculdades de conhecimento, de suas
virtudes morais, de suas capacidades de relacionamento com seus semelhantes, de
suas aptidões para criar obras úteis e belas. Daí advém a exigência da promoção
e da difusão da educação, que é um direito inalienável de cada um. Sua primeira
condição é a eliminação do analfabetismo.O direito de cada homem à cultura não é assegurado,
se não for respeitada a liberdade cultural. Muito frequentemente, a cultura é
pervertida em ideologia e a educação transformada em instrumento ao serviço do
poder político ou económico. Não compete à autoridade pública determinar
a cultura. Sua função é promover e proteger a vida cultural de todos, inclusive
a das minorias.
A função educativa da família
A tarefa educativa pertence fundamental e
prioritariamente à família. A missão do Estado é subsidiária: seu papel é o de
garantir, proteger, promover e suprir. Quando o Estado reivindica o monopólio
escolar, ele excede os seus direitos e ofende a justiça. É aos pais que compete
o direito de escolher a escola à qual enviarem seus próprios filhos, de criar e
manter centros educacionais de acordo com suas próprias convicções. O
Estado não pode, sem injustiça, contentar-se em tolerar as chamadas escolas
privadas. Estas realizam um serviço público e têm, por conseguinte, o direito
de serem ajudadas economicamente.
As «liberdades» e a participação
A educação, que possibilita o acesso à cultura, é
também educação para o exercício responsável da liberdade. É por isso que só
existe autêntico desenvolvimento em um sistema social e político que respeite
as liberdades, favorecendo-as pela participação de todos. Uma tal participação
pode assumir formas diversas; ela é necessária para garantir um justo
pluralismo nas instituições e nas iniciativas sociais. Notadamente pela
separação real entre os poderes do Estado, ela assegura o exercício dos
direitos do homem, protegendo-os igualmente contra possíveis abusos por parte
dos poderes públicos. Dessa participação na vida social e política, ninguém
pode ser excluído por motivo de sexo, de raça, de cor, de condição social, de
língua ou de religião. Manter o povo à margem da vida cultural,
social e política, constitui, em muitas nações, uma das injustiças mais
estridentes do nosso tempo.Ao regular o exercício das liberdades, as autoridades
políticas não devem usar como pretexto as exigências da ordem pública e da
segurança para limitar sistematicamente essas mesmas liberdades. Nem o pretenso
princípio da « segurança nacional », nem uma visão estritamente económica, nem
uma concepção totalitária da vida social podem prevalecer sobre o valor da
liberdade e sobre os seus direitos.
O desafio da aculturação
A fé é inspiradora de critérios de julgamento, de
valores determinantes, de linhas de pensamento e de modelos de vida, válidos
para toda a comunidade humana.É por essa razão que a Igreja, atenta às
angústias de nossa época, indica o caminho de uma cultura na qual o trabalho
seja reconhecido segundo a sua plena dimensão humana e onde cada ser humano
encontre a possibilidade de se realizar como pessoa. Ela o faz em
virtude da sua abertura missionária pela salvação integral do mundo,
respeitando a identidade de cada povo e nação.A Igreja, comunhão que une diversidade e unidade,
por sua presença no mundo inteiro, assume em cada cultura o que aí encontra de
positivo. Todavia, a aculturação não é simples adaptação externa; é uma íntima
transformação dos autênticos valores culturais pela sua integração no
cristianismo e pelo enraizamento do cristianismo nas diversas culturas humanas.A
separação entre Evangelho e cultura é um drama, cuja triste ilustração são os
problemas mencionados. Impõe-se, portanto, um generoso esforço de evangelização
das culturas. Estas serão regeneradas, no seu encontro como Evangelho. Mas tal
encontro supõe que o Evangelho seja verdadeiramente proclamado.Iluminada pelo
Concílio Vaticano II, a Igreja quer consagrar-se a tal esforço com todas as
suas energias, a fim de provocar um imenso impulso evangelizador.
Fonte: INSTRUÇÃO: LIBERTATIS CONSCIENTIA - SOBRE A
LIBERDADE CRISTÃ E A LIBERTAÇÃO
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