Entrevista a Luiz Felipe
Pondé: “Materialismo” – (revista
Veja) – “Por que a política
não pode ser redentora?”
Luiz
Felipe Pondé:O cristianismo, que é uma religião hegemônica no Ocidente, fala do
pecador, de sua busca e de seu conflito interior. É uma espiritualidade
riquíssima, pouco conhecida por causa do estrago feito pelo secularismo
extremado. Ao lado de sua vocação repressora institucional, o cristianismo
reconhece que o homem é fraco, é frágil. As redenções políticas não têm isso.
Esse é um aspecto do pensamento de esquerda que eu acho brega. Essa visão do
homem sem responsabilidade moral pelos seus atos. O mal para os esquerdistas
está sempre na classe social, na relação econômica, na opressão do
poder. Na visão medieval, é a graça de Deus que redime o mundo. É um
conceito complexo e fugidio. Não se sabe se alguém é capaz de ganhar a graça
por seus próprios méritos, ou se é Deus na sua perfeição que concede a graça.
Em qualquer hipótese, a graça não depende de um movimento positivo de um grupo.
Na redenção política, é sempre o coletivo, o grupo, que assume o papel de
redentor. O grupo, como a história do século 20 nos mostrou, é sempre
opressivo.
Luiz
Felipe Pondé:Pegue a ideia de santidade. Ninguém,
em nenhuma teologia da tradição cristã – nem da judaica ou islâmica –, pode
dizer-se santo. Nunca. Isso na verdade vem desde Aristóteles: ninguém pode
enunciar a própria virtude. A
virtude de um homem é anunciada pelos outros homens. Na tradição católica – o
protestantismo não tem santos –, o santo é sempre alguém que, o tempo todo,
reconhece o mal em si mesmo. O clero da esquerda, ao contrário, é movido por um
sentimento de pureza. Considera sempre o outro como o porco capitalista, o
burguês. Ele próprio não. Ele está salvo, porque reclica lixo, porque vota no
PT, ou em algum partido que se acha mais puro ainda, como o PSOL, até porque o
PT já está meio melado. Não há contradição interior na moral
esquerdista. As pessoas se autointitulam santas e ficam indignadas com o mal do
outro.
Quando o cristianismo
cruza o pensamento de esquerda, como no caso da Teologia da Libertação, a
humildade se perde?
Luiz
Felipe Pondé:Sim. Eu vejo isso empiricamente
em colegas da Teologia da Libertação. Eles se acham puros. Tecnicamente, a Teologia da Libertação é, por
um lado, uma fiel herdeira da tradição cristã. Ela vem da crítica social que
está nos profetas de Israel, no Antigo Testamento. Esses profetas falam mal do
rei, mas sem idealizar o povo. O cristianismo é descendente principalmente
desse viés do judaísmo. Também o cristianismo nasceu questionando a estrutura
social. Até aqui, isso não me parece um erro teológico. Só que a Teologia da Libertação
toma como ferramenta o marxismo, e isso sim é um erro. Um cristão que recorre a
Marx, ou a Nietzsche – a quem admiro –, é como uma criança que entra na jaula
do leão e faz bilu-bilu na cara dele. É natural que a Teologia da Libertação,
no Brasil, tenha evoluído para Leonardo Boff, que já não tem nada de cristão.
Boff evoluiu para um certo paganismo Nova Era – e já nem é marxista tampouco. É
como já se disse: enquanto a Teologia da Libertação fez a opção pelo pobre, o
pobre fez a opção pelo pentecostalismo.
Luiz
Felipe Pondé:Sim. Mas já fui ateu por muito tempo. Quando digo que acredito em
Deus, é porque acho essa uma das hipóteses mais elegantes em relação, por
exemplo, à origem do universo. Não é que eu rejeite o acaso ou a violência
implícitos no darwinismo – pelo contrário. Mas considero que o conceito de Deus
na tradição ocidental é, em termos filosóficos, muito
sofisticado. Lembro-me sempre de algo que o escritor inglês Chesterton
dizia: não há problema em não acreditar em Deus; o problema é que quem deixa de
acreditar em Deus começa a acreditar em qualquer outra bobagem, seja na
história, na ciência ou sem si mesmo, que é a coisa mais brega de todas. Só
alguém muito alienado pode acreditar em si mesmo. Minha posição teológica não é
óbvia e confunde muito as pessoas. Opero no debate público assumindo os riscos
do niilista. Quase nunca lanço a hipótese de Deus no debate moral, filosófico
ou político. Do ponto de vista político, a importância que vejo na
religião é outra. Para mim, ela é uma fonte de hábitos morais, e historicamente
oferece resistência à tendência do Estado moderno de querer fazer a cura das
almas, como se dizia na Idade Média – querer se meter na vida moral das
pessoas.
Luiz
Felipe Pondé: Comecei a achar o ateísmo aborrecido, do ponto de vista
filosófico. A hipótese de Deus bíblico, na qual estamos ligados a um enredo e
um drama morais muito maiores do que o átomo, me atraiu. Sou basicamente
pessimista, cético, descrente, quase na fronteira da melancolia. Mas tenho sorte
sem merecê-la. Percebo uma certa beleza, uma certa misericórdia no mundo, que
não consigo deduzir a partir dos seres humanos, tampouco de mim mesmo. Tenho a
clara sensação de que às vezes acontecem milagres. Só encontro isso na tradição
teológica.
Fonte: Revista Veja
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