Luiz Felipe Pondé (foto), 52, é um raro
exemplo de filósofo brasileiro que consegue conversar com o mundo para além dos
muros da academia. Seja na sua coluna semanal na Folha de S.Paulo, seja em
livros como o recém-lançado "O Catolicismo Hoje" (Benvirá), ele sabe se comunicar
como o grande público sem baratear suas ideias. Mais rara ainda é sua disposição para criticar
certezas e lugares-comuns bem estabelecidos entre seus pares.
Pondé é um
crítico da dominância burra que a esquerda assumiu sobre a cultura brasileira.Professor da Faap e da PUC, em São Paulo, Pondé, em
seus ensaios, conseguiu definir ironicamente o espírito dos tempos descrevendo
um cenário comum na classe média intelectualizada:O jantar inteligente, no
qual os comensais, entre uma e outra taça de vinho chileno, se cumprimentam
mutuamente por sua “consciência social”.Diz
Pondé: “Sou filósofo casado com
psicanalista. Somos convidados para muitos jantares assim. Há até jantares
inteligentes para falar mal de jantares inteligentes. Estudioso de
teologia, Pondé considera o ateísmo filosoficamente raso, mas não é seguidor de
nenhuma religião em particular. Eis um pensador capaz de surpreender quem
valoriza o rigor na troca de ideias!
1)-Em seus ensaios, o senhor
delineou um cenário exemplar do mundo atual: o jantar inteligente. O que vem a
ser isso?
Luiz Felipe Pondé: É uma
reunião na qual há uma adesão geral a pacotes de ideias e comportamentos. Pode
ser visto como a versão contemporânea das festas luteranas nas Dinamarca do
Século 19, que o filósofo Soren Kierkegaard criticava por sua hipocrisia. Esse
vício migor de um cenário no qual o cristianismo era base da hipocrisia para
uma falsa espiritualidade de esquerda. Como a esquerda não tem a tensão do
pecado, ela é pior do que o cristianismo.
2)- Como assim?
Luiz Felipe Pondé: A
esquerda é menos completa como ferramenta cultural para produzir uma visão de
si mesma. A espiritualidade de esquerda é rasa. Aloca toda a responsabilidade do mal fora de você: o mal está na classe
social, no capital, no estado, na elite. Isso infantiliza o ser humano. Ninguém
sai de um jantar inteligente para se olhar no espelho e ver um demônio. Não:
todos se veem como heróis que estão salvando o mundo por andar de bicicleta!
3)- Quais são os temas mais
comuns da conversa em um jantar desses?
Luiz Felipe Pondé: Filhos
são um tema recorrente. Todos falam de como seus filhos são diferentes dos
outros porque frequentam uma escola que cobra R$ 2.000 por mês, mas é de
esquerda e estuda a sério o inviável modelo econômico cubano. Ou dizem que a
filha já tem consciência ambiental e trabalha e uma ong que ajuda as crianças
da África. Também se fala sempre de algum filme chatíssimo de que todos fingem
ter gostado para mostrar como têm repertório. Mais timidamente, há certa preocupação
com a saúde e o corpo. Reciclar lixo, e mais recentemente, andar de bicicleta
também são temas valorizados. Sempre se
fala mal dos Estados Unidos, mas Barack Obama é um deus. Fala-se mal de Israel,
sem conhecer patativa da história do conflito israelo-palestino. Mas, claro, é
obrigatório enfatizar que você é antissionista, mas não antissemita, pois em
jantar inteligente muito provavelmente haverá um judeu – apesar de serem muitas
vezes judeus em crise consigo mesmos, o que é bem típico dos judeus.
4)-Que assuntos são tabus?
Luiz Felipe Pondé:Imagine
dizer em uma reunião na Dinamarca luterana de Kierkegaard que algumas mulheres
são infelizes porque não chegam ao orgasmo. Seria um escândalo. Simetricamente,
hoje é um escândalo dizer que as mulheres emancipadas e donas de seu nariz
estão mesmo é loucas de solidão. No jantar inteligente, você tem sempre de
dizer que a emancipação feminina criou problemas para as mulheres, que os
homens aprenderam a ser sensíveis e que uma mulher nunca vai dar um pé no homem
que se mostre sensível demais. Os jantares inteligentes misturam cardápios
interessantes — pratos peruanos ou, sei lá, vietnamitas – como papo-cabeça, mas
servem à mesma função que os jantares dos pais dessas pessoas cumpriam: passar
o tempo. Os problemas amorosos, sexuais
e profissionais são os mesmos, mas todos se acham bem resolvidos. Costumo
provocar dizendo que há 100 anos se fazia sexo melhor. Tinha mais culpa e
pecado, o que deve ser uma excitação tremenda. Hoje, todos mundo diz que tem um
desempenho maravilhoso, e que vive uma relação de troca plena com o seu
parceiro ou parceira. Eu considero a revolução sexual um dos maiores engodos da
história recente. Criou uma dimensão de indústria, no sentido da quantidade,
das relações sexuais – mas na maioria elas são muito ruins, porque as pessoas
são complicadas.
5)- Quando começaram os jantares
inteligentes?
Luiz Felipe Pondé: A
matriz histórica são os filósofos da França pré-revolucionária. Os saraus, os
jantares em casa de condessas e marquesas eram então uma atividade da
burguesia, ou de uma aristocracia falida, aburguesada. Eram uma das formas que
a burguesia usava para constituir sua identidade, para mostrar que tinha
cultura e opiniões. Mas era um grupo de vanguarda, que discutia a fratura e
crises do pensamento. Nos jantares de hoje, a inteligência tem a mesma função
do vinho chileno.
6)- Não há lugar para um
pensamento alternativo nem na hora da sobremesa?
Luiz Felipe Pondé: Não! A
gente anos de ditadura no Brasil. Mas, quando ela acabou, a esquerda estava em
sua plenitude. Tomou conta das
universidades, dos institutos culturais, das redações de jornal. Você pode ver
nas universidades, por exemplo, cartazes de um ciclo de palestras sobre o
pensamento de Trotsky e sua atualidade, mas não se veem cartazes anunciando
conferência sobre a crítica à Revolução Francesa de Edmund Burke, filósofo
irlandês fundamental para entender as origens do conservadorismo.
Não há um
pensamento alternativo à tradição de Rousseau, de Hegel e de Marx. Tenho um
amigo que é dono de uma grande indústria e cuja filha estuda em um colégio de
São Paulo que nem é desses chiques de esquerda. É uma escola bastante
tradicional. Um dia, uma professora falava da Revolução Cubana, como se esse
fosse um grande tema. Ela citou Che Guevara, e a menina perguntou: “Ele não
matou muita gente?” A professora se vira para a menina e responde: “O seu pai
também mata muita gente de fome”. O que autorizou uma professora usar esse tipo
de argumento é o status quo que se instalou também nas escolas, e não só na
universidade. O infantilismo político dá vazão e legitima esse tipo de
julgamento moral sumário.
7)- Como essa tendência se
manifesta na universidade?
Luiz Felipe Pondé: O
mundo das ciências humanos, em que há pouco dinheiro e se faz pouca coisa, é
dominado pela esquerda aguada. Há muitos
corporativismo e a tendência geral de excluir, por manobras institucionais,
aqueles que não se identificam com a esquerda. Existe ainda a nova
esquerda, para a qual não é mais o proletariado que carrega o sentido da
história, como queria Marx. Os novos esquerdistas acreditam que esse papel hoje
cabe às mulheres oprimidas, aos índios, aos aborígenes, aos imigrantes ilegais.
Esses segmentos formariam a nova classe sobre a qual estaria depositada a graça
redentora! Eu detesto política como
redenção.
8)- Por que a política não pode
ser redentora?
Luiz Felipe Pondé:O
cristianismo, que é uma religião hegemônica no Ocidente, fala do pecador, de
sua busca e de seu conflito interior. É uma espiritualidade riquíssima, pouco
conhecida por causa do estrago feito pelo secularismo extremado. Ao lado de sua
vocação repressora institucional, o cristianismo reconhece que o homem é fraco,
é frágil. As redenções políticas não têm isso. Esse é um aspecto do pensamento
de esquerda que eu acho brega. Essa visão do homem sem responsabilidade moral. O
mal está sempre na classe social, na relação econômica, na opressão do poder. Na visão medieval, é a graça de Deus que
redime o mundo. É um conceito complexo e fugidio. Não se sabe se alguém é capaz
de ganhar a graça por seus próprios méritos, ou se é Deus na sua perfeição que
concede a graça. Em qualquer hipótese, a graça não depende de um movimento
positivo de um grupo. Na redenção política, é sempre o coletivo, o grupo, que
assume o papel de redentor. O grupo, como a história do século 20 nos
mostrou, é sempre opressivo.
9)- Em que o cristianismo é superior
ao pensamento de esquerda?
Luiz Felipe Pondé: Pegue
a ideia de santidade. Ninguém, em nenhuma teologia da tradição cristã – nem da
judaica ou islâmica –, pode dizer-se santo. Nunca. Isso na verdade vem desde
Aristóteles: ninguém pode enunciar a própria virtude. A virtude de um homem é anunciada pelos outros homens. Na tradição
católica – o protestantismo não tem santos –, o santo é sempre alguém que, o
tempo todo, reconhece o mal em si mesmo. O clero da esquerda, ao contrário, é
movido por um sentimento de pureza. Considera sempre o outro como o porco
capitalista, o burguês. Ele próprio não. Ele está salvo, porque reclica lixo,
porque vota no PT, ou em algum partido que se acha mais puro ainda, como o
PSOL, até porque o PT já está meio melado. Não há contradição interior na
moral esquerdista. As pessoas se autointitulam santas e ficam indignadas com o
mal do outro.
10)- Quando o cristianismo cruza
o pensamento de esquerda, como no caso da Teologia da Libertação, a humildade
se perde?
Luiz Felipe Pondé: Sim! Eu vejo isso empiricamente em colegas da Teologia da Libertação. Eles se acham
puros! Tecnicamente, a Teologia da
Libertação é, por um lado, uma fiel herdeira da tradição cristã. Ela vem da
crítica social que está nos profetas de Israel, no Antigo Testamento. Esses
profetas falam mal do rei, mas em idealizar o povo. O cristianismo é
descendente principalmente desse viés do judaísmo. Também o cristianismo nasceu
questionando a estrutura social. Até aqui, isso não me parece um erro
teológico. Só que a Teologia da Libertação toma como ferramenta o marxismo, e
isso sim é um erro. Um cristão que recorre a Marx, ou a Nietzsche – a quem
admiro –, é como uma criança que entra na jaula do leão e faz bilu-bilu na cara
dele. É natural que a Teologia da Libertação, no Brasil, tenha evoluído para
Leonardo Boff, que já não tem nada de cristão. Boff evoluiu para um certo
paganismo Nova Era – e já nem é marxista tampouco. A Teologia da Libertação é
ruim de marketing. É como já se disse: enquanto a Teologia da Libertação fez a
opção pelo pobre, o pobre fez a opção pelo pentecostalismo.
11)- O senhor acredita em Deus?
Luiz Felipe Pondé:Sim! Mas já fui ateu por muito tempo. Quando digo que acredito em Deus, é porque
acho essa uma das hipóteses mais elegantes em relação, por exemplo, à origem do
universo. Não é que eu rejeite o acaso ou a violência implícitos no darwinismo
– pelo contrário. Mas considero que o conceito de Deus na tradição ocidental é,
em termos filosóficos, muito sofisticado. Lembro-me
sempre de algo que o escritor inglês Chesterton dizia: não há problema em não
acreditar em Deus; o problema é que quem deixa de acreditar em Deus começa a
acreditar em qualquer outra bobagem, seja na história, na ciência ou sem si
mesmo, que é a coisa mais brega de todas. Só alguém muito alienado pode
acreditar em si mesmo. Minha posição teológica não é óbvia e confunde muito as
pessoas. Opero no debate público assumindo os riscos do niilista. Quase nunca
lanço a hipótese de Deus no debate moral, filosófico ou político. Do ponto
de vista político, a importância que vejo na religião é outra. Para mim, ela é
uma fonte de hábitos morais, e historicamente oferece resistência à tendência
do Estado moderno de querer fazer a cura das almas, como se dizia na Idade
Média – querer se meter na vida moral das pessoas.
12)- Por que o senhor deixou de
ser ateu?
Luiz Felipe Pondé: Comecei
a achar o ateísmo aborrecido, do ponto de vista filosófico. A hipótese de Deus
bíblico, na qual estamos ligados a um enredo e um drama morais muito maiores do
que o átomo, me atraiu. Sou basicamente
pessimista, cético, descrente, quase na fronteira da melancolia. Mas tenho
sorte sem merecê-la. Percebo uma certa beleza, uma certa misericórdia no mundo,
que não consigo deduzir a partir dos seres humanos, tampouco de mim mesmo.
Tenho a clara sensação de que às vezes acontecem milagres. Só encontro isso na
tradição teológica.
Tags: Luiz Felipe
Pondé - Materialismo - Revista Veja
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