Em síntese: O Fundamentalismo é a atitude do homem religioso que, amedrontado por avanços da ciência e da cultura contemporânea, se fecha em verdades de sua fé tidas como fundamentais.
Tal atitude ocorre não somente entre cristãos, mas também entre judeus e muçulmanos.
O fundamentalista cristão se apega a um livro sagrado (a Bíblia ou um código de Revelações, como existe entre os MÓRMONS e os adventistas do 79 dia); a Bíblia é, muitas vezes, interpretada ao pé da letra, sem se levar em conta os aspectos lingüísticos, históricos e geográficos que podem ajudar a compreender o texto.
Um chefe espiritual, dotado de grande autoridade, é tido como mestre seguro dos discípulos fundamentalistas; estes costumam ser pouco intelectuais e muito dados às emoções (pessimismo em relação ao mundo e à história).
Deve-se reconhecer que o Fundamentalismo procede do desejo muito nobre de guardar valores sagrados ameaçados pelo secularismo e o hedonismo de nossos dias. Todavia assume atitude exageradamente agressiva e sombria em relação às expressões da ciência e da cultura contemporânea.
O Cristianismo não é primeiramente combate ao erro, mas, é, antes de mais, profissão da verdade; esta já tem força defensiva e atraente em si mesma; somente em função da verdade o cristão combate o erro. Ademais o apavoramento do Fundamentalismo resulta, não raro, de insegurança em matéria de fé. Quem sabe nitidamente o que é e o que não é de fé, pode enfrentar com destemor as proposições da ciência moderna, pois tem argumentos para distinguir da verdade os erros nela existentes.
Em suma, é preciso guardar os dois aspectos do ser humano: homo religiosus, sim, mas também animal rationale. A razão bem conduzida não se opõe a uma fé lúcida e adulta, mas, ao contrário, é apta a corroborá-la.
O fenômeno dos Novos Movimentos Religiosos — impropriamente ditos "seitas" — preocupa a sociedade ocidental, por ser caráter proselitista e polêmico, que, não raro, explora a credulidade popular e tem acarretado problemas diversos. Ora na base de vários desses movimentos religiosos de origem cristã, está uma atitude chamada "Fundamentalismo"; os seus adeptos querem conservar o que há de fundamental na fé dentro, porém, de categorias de pensamento fechado e agressivo.
O Fundamentalismo não é uma atitude exclusivamente protestante e norte-americana, embora tenha tido origem entre os protestantes dos Estados Unidos. Com o passar do tempo, foi afetando também outras crenças religiosas e novas regiões. Atualmente existem fundamentalistas católicos, protestantes e anglicanos, judeus e muçulmanos; quase todas as seitas de origem cristã podem ser tidas como fundamentalistas.
1. Origem e história do Fundamentalismo:
O fundamentalismo surgiu no Sul e no Centro dos Estados Unidos da América, no chamado Bible belt (cinturão da Bíblia) em meados do século XIX. Apresentava-se como a corrente fiel ao pensamento cristão.
— frente ao pensamento científico e cientificista representado por Darwin e a teoria evolucionista mecanicista;
— frente ao pensamento liberal, que punha em xeque ou em dúvida as verdades fundamentais do Cristianismo, como a concepção virginal de Maria Santíssima, a realidade do inferno, a existência da ordem de coisas sobrenatural.
— frente às ciências históricas, que, aplicadas à S. Escritura, pareciam desmentir a mensagem bíblica, reduzindo-a a lendas.
O ambiente de origem dessa corrente eram pequenas cidades da zona rural dos Estados Unidos, onde o conservadorismo encontra mais clima propício do que na zona industrial e nas grandes metrópoles.
No final do século XIX o Fundamentalismo exerceu influência notável sobre a cultura norte-americana, influência que se protrairia pelas décadas do século XX.
O núcleo (hard core) de sua doutrina foi formulado nos famosos Five Points da Niágara Bible Conference em 1895; tais eram:
1) a inspiração divina de toda a S. Escritura e a conseqüente inerrancia desta;
2) a Divindade de Jesus Cristo;
3) o nascimento virginal de Jesus;
4) a expiação dos pecados mediante o sangue de Cristo;
5) a ressurreição corporal e a segunda vinda de Jesus Cristo.
Em virtude do primeiro ponto, os fundamentalistas contestavam a legitimidade do estudo científico (ou histórico-crítico) da Bíblia. Queriam ignorar que a Bíblia não foi ditada mecanicamente pelo Senhor Deus; sabe-se que o pensamento de Deus passou por cabeças e mãos humanas, que o transmitiram com plena fidelidade, dando-lhe, porém, as marcas da sua cultura arcaica oriental. Ao mesmo tempo, os fundamentalista estabeleciam uma autoridade indiscutível ao alcance de todos os homens, fonte de certeza e fundamento seguro da fé.
O quinto ponto apregoava o milenarismo, ou seja, a segunda vinda de Cristo para instaurar, sobre a terra, um reino milenar de paz e bonança. Esta concepção, já professada por cristãos dos primeiros séculos (S. Justino, S. Ireneu, Tertuliano. . .), cairia em descrédito, mas fora restaurada na Inglaterra em principio do século XIX. Grande arauto de tal doutrina foi Cyrus Scofield, autor da Scofield Reference Bible (1909), que quis mostrar como se podia interpretar toda a mensagem bíblica em chave milenarista. Assim inerrancia bíblica e milenarismo vieram a ser os ingredientes básicos do Fundamentalismo norte-americano.
O Manifesto dos Cinco Pontos de 1895 seria apenas um documento de circulação limitada a teólogos conservadores, se, entre 1909 e 1915, as suas idéias não se tivessem difundido mediante um instrumento de comunicação de massa: o folheto. Em 1909 apareceu o primeiro de doze folhetos intitulados The Fundamentals: a Testimony to the Truth (Os Fundamentalistas: um testemunho dado à Verdade); resultavam da colaboração de protestantes filiados a denominações diversas: presbiterianos, anglicanos, luteranos, metodistas, congregacionalistas, batistas. . . Tais impressos, patrocinados pelos irmãos milionários de Los Angeles Lipman e Milton Steward, foram enviados gratuitamente a pastores, missionários, estudantes de Teologia e agentes de Pastoral dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, alcançando a tiragem aproximada de três milhões de exemplares. Assim o debate, que originariamente era apenas de nível teológico, veio a ser assunto para mobilizar as consciências, convite para tomar partido e lutar contra os avanços do pensamento liberal.
Contribuíram para a expansão do movimento fundamentalista alguns acontecimentos de ressonância nacional e internacional:
1) a fundação de Institutos e Associações Bíblicas nacionais (norte-americanas) e internacionais, tais como o Los Angeles Bible Institute, o Moody Bible Institute de Chicago, a Baptist Bible Union of America. Em 1919 constituiu-se a World Christian Fundamentals Association, propugnando um projeto de reconquista do mundo ameaçado pela cultura libertina moderna; tendia outrossim a assumir posições de influência dentro das diversas denominações protestantes.
2) A batalha para que as leis do Estado proibissem o ensino das teorias evolucionistas de Darwin nas escolas públicas. Tal luta foi vitoriosa em quatro Estados: Tennessee (1925), Mississipi (1926), Arkansas (1928), e Texas (1929). Tornou-se famoso o caso de John T. Scopes, professor de Biologia numa Escola Superior de Dayton (Tennessee): acusado de ensinar o darwinismo, foi levado a tribunal. O jornal New York Times divulgou o processo, motivando o público a participar do julgamento, fosse pró, fosse contra o darwinismo. Scopes acabou sendo condenado.
3) O movimento fundamentalista viveu seus anos de glória entre 1910 e 1920, época em que a política internacional se preocupou com o aumento da potência armada da Alemanha e o triunfo da revolução comunista na Rússia. A mentalidade milenarista identificou o Império Alemão com a Besta do Apocalipse (cap. 13) e a ideologia marxista com o Anticristo, precursor do iminente juízo final. De um lado, estaria o Reino do Mal e de Satanás; do outro lado, uma grande nação chamada por Deus para defender a liberdade e a fé do mundo; os Estados Unidos apareciam assim como o novo Israel da história da salvação. Inflamava-se o patriotismo norte-americano em nome da Bíblia!
2. O Fundamentalismo hoje:
A corrente fundamentalista sobreviveu ao longo dos decênios até nossos dias e não parece estar perto de se dissipar. A atitude básica do Fundamentalismo penetrou, segundo proporções diversas, em correntes religiosas não protestantes e mesmo não cristãs. Donde as perguntas: como se apresenta atualmente o Fundamentalismo? Qual a sua influência na mentalidade dos homens religiosos de hoje?
— Na verdade, a resposta é complexa, visto que o fenômeno fundamentalista admite vários matizes. Como quer que seja, eis alguns dados seguros:
1) Em nossos dias não existe um Movimento Fundamentalista, mas estão presentes em certos grupos religiosos um estilo e uma concepção de vidafundamentalista. O Prof. H. L. Mencken, em frase exagerada e burlesca, escrevia: "Heave an egg out of a Pullman window and you will hit a Fundamentalist almost anywhere in the United States (Lance um ovo para fora de uma janela de um ônibus e você golpeará um fundamentalista quase em toda parte nos Estados Unidos)",(1) o mesmo se poderia dizer, cada vez mais acertadamente, a respeito de outros países.
(1) Citado por Danièle Hervieu-Léger, Les fondamentalistes américains en politique, in Lumière et Vie, 186 (1988), pág. 19.
2) Embora o Fundamentalismo tenha sido berçado pelo Protestantismo norte-americano, ele integra hoje outros grupos com nomes variados: integrismo, neoconservadorismo, new orthodoxy. Moral Mayority, Adventistas do 7o dia, Testemunhas de Jeová, Meninos de Deus, assim como correntes do islamismo e do judaísmo. Pode existir também dentro do mundo católico, como ocorreu no caso dos discípulos de D. Mareei Lefèbvre.
3) O Fundamentalismo está-se tornando também uma força política, que invade outros setores da vida da sociedade contemporânea. Na política norte-americana o voto dos fundamentalistas foi decisivo para a eleição de Jimmy Cárter e a de Ronald Reagan, Presidentes dos Estados Unidos. Também na Guatemala o Presidente protestante Rios Montt foi beneficiado pelos sufrágios dos fundamentalistas. No Irã e no Iraque, sabe-se que existe uma maioria de população muçulmana fundamentalista. Na Algéria, o Partido dos Fundamentalistas islâmicos conseguiu maioria nas últimas eleições, embora não haja assumido o poder. Na França, o Fundamentalismo muçulmano está suscitando graves problemas sociais, educativos e políticos. A difusão de novos movimentos religiosos na América Latina é, em boa parte, devida à atuação de fundamentalistas.
4) O Fundamentalismo tem-se revelado muito sagaz na difusão de suas concepções. Utiliza o marketing publicitário, os meios sofisticados de recolher dinheiro, inclusive o mailing por computador, os recursos da televisão que caracterizam as "igrejas eletrônicas" com seus telepregadores (famosos são nos Estados Unidos Jim Bakker, Jimmy Swaggart, Pat Robertson, Jerry Falwell, Robert Schuller. . .).
5) Em suma, a ficha de identidade (identikit) do fundamentalista de nossos dias poderia compreender os seguintes traços:
— Na política, conservador
— Na religião, tradicionalista e integrista, contrário ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso
— Em Moral, intransigente e rígido
— Na sociedade, intolerante e legalista
— Em seu modo de pensar, tendente ao antiintelectualismo e antiprogressismo, pois propenso à emoção e à exploração dos sentimentos (o que ocorre, por excelência, nos mass media)
— Sociologicamente, pertencente a diversas classes, com predominância da classe média
— Frente à história, pessimista quanto ao presente e portador de expectativas sinistras para o futuro.
Esta análise não significa que todo indivíduo conservador, amigo da Tradição, fiel às leis, firme em matéria de Moral. . . seja fundamentalista. O fundamentalista é aquele que associa em si as notas atrás recenseadas numa atitude pessimista, obcecada, fanática. ..
Dentre as modalidades do Fundamentalismo, uma se destaca por sua projeção nos países latino-americanos: o Fundamentalismo bíblico. Examinemo-lo de perto.
3. O Fundamentalismo bíblico
Eis as características principais deste movimento:
1) O Livro, a letra, o chefe espiritual
Todo fundamentalista baseia sua vida sobre um livro de importância capital, no qual procura as verdades que alimentam a sua inteligência, os princípios que norteiem o seu comportamento e as diretrizes para a sua vida espiritual. Tal livro, para os judeus, é a Torah; para os muçulmanos, o Corão; para muitos cristãos, a Bíblia; para outros grupos religiosos, é o livro deixado pelo fundador tido como pessoa profundamente sábia ou altamente inspirada para interpretar a Bíblia ([1]).
Tal livro básico é interpretado ao pé da letra. Não se requerem ciências exegéticas (lingüística, arqueologia, história e geografia antigas) para decifrá-lo corretamente. O fundamentalista vê em cada palavra e em cada sentença da Bíblia a Palavra e a linguagem de Deus, sem levar em conta o instrumento ou o canal humano do qual Deus se tenha servido para comunicar-se aos homens; o estudo da personalidade do autor- humano de um livro sagrado (Isaías, Jeremias, São João. . .) torna-se desnecessário e desprezível.
Apenas uma autoridade é reconhecida na interpretação do texto sagrado: a do mestre ou chefe espiritual. A este os discípulos atribuem um prestígio indiscutível, de modo que as interpretações da Bíblia por ele formuladas têm quase a mesma autoridade que a Palavra de Deus ([2]). Tal mestre pode ser uma pessoa ou um colegiado de estudiosos (anciãos), como ocorre entre as Testemunhas de Jeová. Em conseqüência, prevalece entre os fundamentalistas o argumento de autoridade: "A Bíblia diz. . . O Mestre assim entende a Bíblia. . ." (1).
Com outras palavras diga-se:
A Bíblia tem seus gêneros literários (narrativas históricas, tradições de família, parábolas, alegorias, profecias, partes apocalípticas. . .). Estes constituem um desafio para o leitor: tomar todo e qualquer texto ao pé da letra implica, não raro, trair o pensamento do autor sagrado, pois, se este teve em mira uma parábola ou uma alegoria, não deve ser entendido literalmente. Como então interpretar adequadamente as páginas bíblicas, redigidas entre o século XIII a.C. e o século I d. C?
Os grupos fundamentalistas atribuem ao seu chefe ou mestre a autoridade segura para expor o sentido da Bíblia. Muitas vezes, porém, tem-se a impressão de que tal mestre, em vez de deduzir da Bíblia a respectiva mensagem, nela introduz o que ele pensa de maneira simplista e arbitrária. Tenha-se em vista o que ocorre com os relatos da criação em Gn 1-2: os líderes fundamentalistas valem-se destes textos para rejeitar as teses da ciência sobre a origem do mundo e do homem; não levam em conta nem o gênero literário nem a finalidade estritamente religiosa do texto sagrado (5). Algo de semelhante se dá com o Apocalipse de São João, tido como repertório de profecias relativas a catástrofes e fim do mundo, por parte de milenaristas, adventistas, testemunhas de Jeová. . .
2) O mundo como inimigo
Os fundamentalistas professam geralmente a tese de que o mundo moderno é regido por Satanás, o "Príncipe deste mundo" (cf. Jo 12,31). Aos crentes tocaria a tarefa de reconquistar o mundo, arrancando-o das garras de Satanás. Tenha-se em vista o significativo título do livro de Susan Rosa: Keeping them out of the hands of Satan ([3]) (New York 1988): esta autora aponta, como sinais evidentes do domínio de Satanás no mundo, o materialismo que degrada o homem ao nível dos animais irracionais, o libertinismo sexual, a prática do aborto, da eutanásia, a criminalidade em alta escala. . . De modo geral, a cultura moderna é rejeitada pelo Fundamentalismo, que a tem freqüentemente na conta de diabólica.
3) Dogmatismo
O fundamentalista dificilmente admite o diálogo religioso ou a análise objetiva de suas idéias. A verdade está com ele, e somente com ele. Interessa-lhe, sim, ganhar adeptos para seu modo de pensar, inspirado pela Bíblia entendida segundo as diretrizes do mestre de sua denominação. Daí também a recusa do pluralismo teológico ou exegético ([4]). Na obra Lettreaux Eglises de F. Bluche e P. Chaunu (Paris, Ed. Fayard, 1977, p. 59), lê-se:
"Que é o pluralismo? É um slogan hipócrita que permite introduzir ao menos um ateu em cada redil de ovelhas".
Por conseguinte, dentro dos quadros do Fundamentalismo há pouco lugar para levantar dúvidas ou questionamentos. Existe, antes, a certeza absoluta e a convicção de que cada adepto do grupo pertence à elite dos verdadeiros cristãos. Esta aparente segurança não raro esconde o medo. . . medo da liberdade e do dinamismo do pensar e do progresso, medo que produz certo esclerosamento e imobilismo como se estes fossem exigidos pela própria Palavra de Deus.
Os fundamentalistas se fortalecem em suas posições rígidas, considerando casos infelizes e desastrosos que no plano da fé e da Moral ocorreram e ocorrem entre aqueles cristãos que se dão ao estudo e procuram beneficiar sua fé com os subsídios oferecidos pela ciência e a cultura moderna. Apontam discordâncias entre os pesquisadores, das quais resulta confusão para a fé do povo simples; consideram abusos intelectuais e morais para condenar tudo o que seja abertura ao mundo contemporâneo.
Passemos agora a uma:
4. Avaliação
Proporemos três pontos relativos ao Fundamentalismo entre cristãos.
4.1. Fidelidade aos valores da Fé
O Fundamentalismo parte, sem dúvida, de uma premissa muito válida: o Cristianismo implica fidelidade à Palavra de Deus, que pode parecer loucura e escândalo ao homem moderno (cf. 1Cor 1,23). É preciso não ceder à tentação de esvaziar a Palavra de Deus, adaptando-a arbitrariamente às diretrizes do pensamento racionalista ou hedonista. O fiel católico é conservador na medida em que se mantém fiel à Tradição de vinte séculos através da qual recebeu a mensagem do Evangelho; tal fidelidade não vem a ser motivo de vergonha, mas, antes, de louvor e estímulo. É certo que muitas das tentativas de adaptar o Evangelho ao mundo contemporâneo fracassaram, redundando em erros doutrinários e desvios morais.
4.2. Apavoramento
Acontece que o Fundamentalismo, querendo guardar os valores fundamentais da fé, se deixa tomar de pavor pelas expressões doutrinárias do mundo atual e pela ação do demônio. Este medo, que por vezes é agressivo, resulta, em parte, de insegurança na profissão de fé: sem saber exatamente o que possa ou não possa ser adaptado ou atualizado, o fundamentalista prefere guardar cegamente as clássicas expressões religiosas do passado. O pavor lhe sugere outrossim uma Moral de preceitos negativos ou proibições e a suposição de que poucos se salvarão. Deus aparece então como Juiz justiceiro e temível, cujo julgamento se aproxima, em vez de se ver em Deus o Amor que criou benevolamente o homem e morreu na Cruz para salvá-lo.
Ora o Cristianismo é, antes do mais, uma mensagem positiva e alvissareira. Professa a verdade do Evangelho e, somente em função da verdade, denuncia o erro. A verdade bem explanada entusiasma e nobilita o homem; ela possui em si mesma uma força defensiva. Para dissipar o erro, muitas vezes basta expor com clareza e firmeza o teor da verdade. — É certo que, em muitos momentos da sua história, o cristão tem que refutar erros doutrinários, cultivando a Apologética da fé; mas a sua missão é, antes do mais, voltada para a verdade de Cristo, e não para os erros dos hereges.
O Cristianismo reconhece a existência do pecado no mundo; reconhece também Satanás e sua ação sedutora. Mas não considera o mundo inteiro como presa do demônio. O cristão sabe que Deus amou o mundo a ponto de lhe dar seu Filho único (cf. Jo 3,14s); sabe igualmente que Satanás é um cão acorrentado, que pode latir fortemente, mas só morde a quem se lhe chega perto.
O apavoramento pode levar muitos fundamentalistas ao desequilíbrio mental. Tem-se verificado, especialmente nos Estados Unidos, que não poucos daqueles que abandonam uma facção fundamentalista sofrem de problemas psico-afetivos, e dificilmente se readaptam a um modo de vida mais otimista, confiante e aberto ao mundo de hoje (no que este tem de sadio).
4.3. Antiintelectualismo
O estudo sereno e objetivo não perturba a fé. Ao contrário, diz-se sabiamente que a pouca ciência afasta de Deus, ao passo que a muita ciência leva a Deus. Em nossos dias, o fiel católico deve procurar conhecer nitidamente as verdades do seu Credo, pois é interpelado por diversas proposições aparentemente verídicas e atraentes. O estudo realizado dentro da caudal da Tradição da Igreja só o pode beneficiar.
Em particular, o entendimento da S. Escritura não deve depender de um líder "iluminado" subjetivamente, mas, sim, de pesquisa científica realizada em consonância com a S. Igreja, que berçou a Bíblia e goza de especial assistência do Senhor para a entregar genuinamente aos seus filhos.
O Concílio do Vaticano II enunciou os critérios de interpretação da S. Escritura, que conciliam entre si análise científica e atitude de fé. Ei-los, reproduzidos com palavras da Constituição Dei Verbum (sobre a Palavra de Deus) no 12:
1. Intenção do autor sagrado: "O intérprete da Escritura deve estudar com atenção o que os autores sagrados querem dizer e Deus queria manifestar mediante tais Palavras".
2. Gêneros literários: "Para descobrir a intenção dos autores sagrados, é preciso levar em conta, entre outras coisas, os gêneros literários".
3. A cultura do autor sagrado: "Faz-se mister considerar atentamente os modos de pensar, exprimir-se e narrar que estavam em voga na época do escritor sagrado e também as expressões que então eram mais habituais no colóquio ordinário dos homens".
4. A função do Espírito: "A S. Escritura há de ser lida e interpretada segundo o mesmo Espírito pelo qual foi escrita".
5. Escritura-Tradição-Fé: "Para descobrir o verdadeiro sentido do texto sagrado, é necessário dar muita atenção ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura, à Tradição viva da Igreja e à analogia da fé".([5])
Em suma, o Fundamentalismo se apresenta aos fiéis como um alerta contra tentativas de acomodação e concessões ao secularismo ([6]) de nossos dias, mas ressente-se de perspectivas unilaterais e exageradas que disseminam o pânico e certo irracionalismo.
É, sem dúvida, necessário preservar os valores do homo religiosus, sem, porém, esquecer que este também é animal rationale (vivente racional).
REFERÊNCIAS:
[1] Recordemos, por exemplo, que, para os Adventistas do 7o Dia, a obra "O Grande Conflito", de Eilen Gould White, é quase tão inspirada por Deus quanto a Bíblia. - Para os MÓRMONS, o "Livro de Mórmon"é fruto de "revelações" feitas ao fundador Joseph Smith "a respeito da plenitude do Evangelho eterno"; é quase tão sagrado quanto a Bíblia, pois vem a ser a tradução de umas placas de ouro, nas quais se apresentava uma mensagem em idioma egípcio antigo (reformado), mensagem que Smith terá decifrado com a ajuda do anjo Moroni.
[2] É de notar que, entre os Adventistas, o fundador William Miler propôs os anos de 1843 e 1844 (em duas interpretações sucessivas) como datas de fim do mundo. Os discípulos se prepararam fervorosamente para o evento. Visto, porém, que nada aconteceu do que esperavam, William Mi/ler formulou uma explicação que todos aceitaram tranqüilamente: "Na verdade, em 1844 ocorreram fatos muito importantes, mas no mundo invisível ou no céu, onde Cristo se encontra, oficiando na parte superior do Santuário em favor dos homens".
[4] Por pluralismo entendem-se duas ou mais maneiras de formularas verdades da fé, ressalvada sempre a ortodoxia; assim Tomismo e Molinismo em questões de graça e livre arbítrio humano; Tomismo e Escotismo, em questões cristológicas...
5 Paradoxalmente, pode ocorrer também o inverso: diante de conclusões muito evidentes das ciências naturais, o fundamentalista pode procurar adaptar o texto da Bíblia às proposições da ciência, como se Moisés, por exemplo, no século XIII a.C. já tivesse descrito a origem do mundo como ela é concebida pela ciência contemporânea. A essa tentativa de concórdia (preconcebida e artificial) entre a ciência e a fé dá-se o nome de concordismo.Este falha, pois supõe que a Bíblia queria ensinar o que as ciências naturais ensinam; não se leva em conta a finalidade estritamente religiosa do texto sagrado.
(5) Analogia da fé é expressão paulina (cf. Rm 12,6). Significa a consonância ou a harmonia e a complementação mútua que caracterizam as verdades da fé, de modo que a interpretação dada a algum texto bíblico deve estar em acordo com o conjunto das verdades da fé ou, ao menos, não deve destoar do mesmo.
([6]) Por "secularismo" entenda-se a tendência a apagar o sagrado dentre as expressões do ser humano.
Este artigo muito deve ao de Antonio Izquierdo: El Fundamentalismo, in Ecclesia VI-2 (1992), pp. 367-378.
Dom Estêvão Bettencourt
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