João 18,37: “Eu para isso nasci, e
para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é
da verdade ouve a minha voz...”
Hierarquia das verdades: uma tomada de consciência
importante para quem quer evangelizar
Por Felipe Kolle
O Beato Paulo VI deu algumas
orientações em sua primeira encíclica a respeito da evangelização como diálogo
compreensivo e amistoso. Se queremos, porém, evangelizar com fidelidade à fé da
Igreja e com a esperança de sermos compreendidos pelos nossos interlocutores, é
necessário tomar consciência de uma noção muito importante: a hierarquia das
verdades. Implicitamente, essa noção não é nenhuma novidade, mas
corresponde a uma sensibilidade básica que guiou o anúncio da Igreja desde o
início. Foi o Concílio Vaticano II que a retomou de modo explícito, dizendo que:
“Existe uma ordem ou hierarquia das verdades da doutrina católica, já
que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente” (Decreto Unitatis
Redintegratio, n. 11).
O papa Francisco, por
sua vez, a desenvolveu na sua exortação Evangelii Gaudium (n. 34-39):
“No mundo atual, com a velocidade
das comunicações e a seleção interessada dos conteúdos feita pelos meios de
comunicação de massa, a mensagem que
anunciamos corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a
alguns dos seus aspectos secundários”, constata Francisco. É algo que
percebemos no dia-a-dia: quantas pessoas, por exemplo, têm a impressão de que a
doutrina da Igreja se resume a um conjunto de proibições, pela maneira como
temas como aborto, contracepção e homossexualidade são tratados nas notícias? O
problema maior ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então
identificada com tais aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes,
por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo”, diz o
papa - Portanto, convém ser realistas e
não pressupor que os nossos interlocutores conhecem o horizonte completo
daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar o nosso discurso com o núcleo
essencial do Evangelho que lhe confere sentido, beleza e fascínio.”
Desvinculadas daquilo
que é o núcleo essencial do anúncio cristão, questões sobre aspectos morais ou
sacramentais podem parecer sem sentido. Não basta falar sobre ir à missa aos
domingos ou sobre o sexo antes do casamento e simplesmente esperar que o
ouvinte, instantaneamente, veja sentido no que dizemos. Nem sequer explicar
exaustivamente esses pontos é suficiente. É preciso ir mais fundo e entender o
horizonte no qual se situam essas questões, deixando claro qual a relação que
existe entre elas e o coração do Evangelho.
Por isso, diz o papa:
“Uma pastoral em chave
missionária não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma imensidade
de doutrinas que se tentam impor à força de insistir. Quando se assume um
objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem
exceções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais
belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário. A
proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade, e
assim se torna mais convincente e radiosa. Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte
divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas delas são mais importantes
por exprimir mais diretamente o coração do Evangelho.”
Qual é, então, o essencial? Em que consiste a medula do
anúncio cristão? "Qual é a doutrina segura que a Igreja proclama?"
“Todas as verdades reveladas
procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas
delas são mais importantes por exprimir mais diretamente o coração do
Evangelho. Neste núcleo fundamental, o
que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo
morto e ressuscitado”, escreve Francisco.
O amor de Deus que
nos salva! Um amor tão incondicional, tão sublime, tão apaixonado que nos
constrange, que nos faz corar de vergonha pela nossa frieza. Na vida, morte e
ressurreição de Jesus, Deus torna esse amor imenso palpável, concreto,
inegável. O papa tira as consequências práticas disso para a nossa pregação: “Antes de mais nada, deve-se
dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário que haja uma proporção
adequada. Esta reconhece-se na frequência com que se mencionam alguns temas e
nas acentuações postas na pregação. Por
exemplo, se um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a
temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça,
gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente aquelas virtudes
que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese. E o mesmo
acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus
Cristo, mais do papa que da Palavra de Deus.”
E Francisco deixa claro:
“Isso não significa negar ou
esconder nenhum elemento da doutrina da Igreja. Pelo contrário, trata-se de fazer cada elemento ser compreendido na
plenitude de seu significado, e não distorcido e tornado, assim, estéril e
frágil, fazendo da doutrina da Igreja “um castelo de cartas”, como diz o
papa.
Se falamos desses
elementos sem evidenciá-los como decorrências daquele anúncio central de amor,
o risco é grande. Muitas pessoas, não vendo sentido no que dizemos, não
aceitarão a nossa pregação – e com razão. Diz o papa:
“É que, então, não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas
algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções
ideológicas.”
A tarefa do
evangelizador não é propagar verdades isoladas, fragmentadas e
incompreensíveis, mas anunciar o amor misericordioso de Deus manifestado em
Jesus Cristo e só então, a partir daí, servir à consciência do outro,
explicitando como a nossa resposta de amor pode se concretizar nas diversas
dimensões da nossa vida.
A abolição da verdade
Por Veritatis
Splendor
No nosso tempo, no
mundo inteiro, estão num primeiro plano do debate político e dos comentários da
mídia as questões controvertidas sobre a o valor da vida humana (desde a concepção
até a morte natural), sobre a bioética na perspectiva dos atuais progressos da
Ciência, sobre o significado da sexualidade e da família, etc. Nos países
democráticos, é reconhecido a todos – pessoas singulares ou entidades –, o
direito de manifestar livremente a sua opinião, de sugerir soluções e de
apresentá-las na mídia, ou por meio de representantes do povo, de projetos de
lei, etc. É uma decorrência lógica dos princípios de liberdade e pluralismo,
que são considerados essenciais para uma autêntica democracia. Neste sentido,
nem políticos nem mídia se atreveriam a negar ou restringir, por exemplo, o
direito de o movimento gay expor e defender as suas reivindicações; nem o
direito de ONGS ou movimentos ecológicos reivindicar, por exemplo, o
reconhecimento de que os animais possuam os mesmos direitos que os seres
humanos. Cada opinião é respeitada, por princípio, e aceita para debate
civilizado, exceto… Sim, há uma exceção: a Igreja Católica. Quando a Igreja se
manifesta sobre essas questões debatidas na atualidade, levanta-se
imediatamente um clamor, que ecoa em grande parte da mídia, contra o seu
direito de opinar, falar, sugerir, propor. Parece que só em relação à Igreja a
liberdade e o pluralismo ideológico e político deixam de ter vigência.
Dirão que é porque a
Igreja é “dogmática”. Mas a Igreja não manda no país, nem tem poder algum para
fazê-lo numa sociedade civil laica, que ela não só aceita de bom grado mas
defende como tal (se alguém ignora isso, ignora os ensinamentos da Igreja desde o
Concílio Vaticano II). Mas a Igreja, que reúne em si um grupo
amplamente majoritário de brasileiros, simplesmente acha, e com toda a razão,
que a sua voz pode ser ouvida pelo menos com um respeito análogo ao que se
presta a opiniões minoritárias, por vezes bem singulares, de grupos
numericamente insignificantes.Ora, a realidade é que, sem tréguas, uma gritaria
desrespeitosa – e com freqüência ofensiva – pretende silenciar, abafar, excluir
do debate essa voz.
Esse processo de exclusão, de abolição, procede por quatro
degraus, que coincidem num progressivo “banimento da verdade”, degraus que analisaremos
brevemente a seguir:
1)-O primeiro degrau: Como nos mais
explosivos tempos do Iluminismo, mal a Igreja – por seus representantes legítimos
– manifesta uma posição nessas questões debatidas, e a defende com argumentos
que julga apropriados, começa a escutar-se a velha toada de “obscurantismo”, “atraso”,
“antagonismo entre fé e ciência”, “religião inimiga do progresso” . A
Igreja, segundo esses acusadores, estaria pretendendo opor-se aos progressos da
ciência e ao bem da humanidade com a irracionalidade da fé e dos dogmas. Um
mínimo de objetividade – de honestidade – permitiria a qualquer pessoa de boa fé
perceber que, nos temas de bioética hoje em debate, a Igreja jamais apresenta
como soluções a serem aceitas pelos governantes teses baseadas na Sagrada
Escritura, nas definições dos Concílios ou nos ensinamentos magisteriais dos
Papas. Pelo contrário, baseia a sua defesa da vida e da dignidade do ser humano
em argumentações científicas (isto é, em conclusões aceitas e defendidas por um
número ponderável de cientistas atuais de primeira linha) e em argumentos
racionais, compartilhados por filósofos pensadores totalmente alheios à
religião.Neste sentido, a posição da
Igreja nessas questões (células-tronco embrionárias, aborto, eutanásia,
casamento homossexual, etc.) alicerça-se fundamentalmente numa antropologia
filosófica amadurecida na reflexão de grande número dos maiores pensadores da
humanidade, do Ocidente e do Oriente, muitos deles pré-cristãos (Sócrates,
Platão, Aristóteles, Epicteto…), mentes brilhantes que, ao longo de milênios,
também na era cristã, aprimoraram o pensamento humano e chegaram a formular
conceitos enormemente “respeitáveis” de antropologia filosófica e de ética
natural, um acervo de autêntica “sabedoria”, que enriqueceu e elevou a
humanidade. Hoje, quer se queira quer não,
a Igreja é a grande herdeira dessa sabedoria. Não é a “inimiga do progresso”,
mas a “amiga da verdade e da vida”. Por isso, toda a orquestração
já automatizada – e sistemática –, que clama contra o “obscurantismo religioso”
da Igreja, contra a “fé inimiga da ciência” é, simplesmente, uma impostura, uma
mentira: um banimento da verdade.
2)-O segundo degrau: Acontece, porém, que
alguns, mais esclarecidos e serenos na apreciação das coisas, reconhecem que a
posição da Igreja corresponde ao que acabamos de dizer. Mas – dizem – essa posição
parte da base de que a razão é capaz de alcançar a verdade ou, por outra, de
que existem verdades absolutas que a razão humana pode captar, esclarecer,
aprofundar e levar às suas autênticas conseqüências. E isso seria falso. A repulsa às posições da Igreja
(bem como aos pensadores não-religiosos, de escolas filosóficas laicas, que
coincidem com o “raciocínio” da filosofia perene), adota, pois, agora uma nova
orientação: o postulado dogmático do agnosticismo, isto é, que não existe a
verdade ou, se existe, é impossível que seja objetivamente conhecida. Como se sabe, na raiz dessa concepção da “verdade”,
está a herança da filosofia do imanentismo, uma linha de pensamento,
anti-metafísica por essência, que em seu processo evolutivo desembocou em Hegel
e produziu, como filhos inesperados mas naturais, o marxismo-leninismo e o
nazismo.O agnosticismo, e a sua conseqüência necessária, o relativismo, “levaram
a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças de um ceticismo
geral […]. A legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo
indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes:
trata-se de um dos sintomas mais difusos, no contexto atual, da desconfiança na
verdade […]. Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião” (João
Paulo II, Enc. Fides et ratio, 14/9/1998, n. 5). É interessante frisar
que, tanto a Encíclica Fides et ratio como o discutido discurso de Bento XVI na
Universidade de Ratisbona, não são uma defesa da fé perante o perigo dos
desvios da razão, mas, ao contrário, uma vigorosa defesa da razão como
instrumento para captar a verdade, alertando para os perigos de uma fé que
prescinda da colaboração estreita da razão.
3)-O terceiro degrau: Sim.
Dir-se-á que a razão é incapaz de atingir o ser e a verdade íntimas das coisas,
e que, portanto, resta apenas, como base segura em que nos apoiarmos, o que a
ciência experimental pode oferecer como “verdade materialmente comprovada”.
Acontece, porém, que a Igreja apresenta cada vez mais argumentações científicas,
altamente ponderáveis, na sua defesa da vida. Chegando-se a este ponto, o
banimento da verdade sente-se obrigado a dar mais um passo, que o exemplo
citado a seguir ilustra bem. Quando se começou a debater a questão das
experiências com células-tronco embrionárias, o tema foi abordado num diálogo
público numa TV de São Paulo. Uma das especialistas em embriologia, que
trabalhara com células-tronco adultas no Canadá, defendeu com argumentos
científicos que a vida humana começa no próprio instante da concepção (neste
sentido, são praticamente irrebatíveis os estudos do famoso geneticista francês
Jerôme Léjeune). Para contradizer essa posição, outra pesquisadora, partidária
do uso das células embrionárias, retrucou dizendo que, se bem era verdade que
em seus livros acadêmicos ela dizia que a vida humana começa com a concepção,
no caso concreto das células-tronco embrionárias esse argumento científico não
seria válido: quem deveria determinar quando a vida humana começa é a lei. Como “prova”
disso aduzia que, para efeitos de transplante de órgãos, as leis dos diversos
países definem de formas diferentes a “morte clínica” que autoriza a extração
de órgãos para transplante. Esse mesmo argumento foi apresentado, há
pouco, nas páginas de um dos principais jornais de São Paulo: o começo da vida
humana não deve ser definido pela ciência, mas pela legislação de cada país.
Mas, definida com base em quê? No consenso. Como não há referenciais
absolutos (pois não há verdades absolutas), como já dizia João Paulo II, “tudo
é convencional, tudo é negociável” (Encíclica Evangelium vitae, n. 20).
Negada assim a existência de valores ou verdades objetivas e
universais, o que resta? Só a vontade, o puro e simples querer. Toda a Encíclica Veritatis Splendor alerta sobre os
perigos dessa tendência de fazer da liberdade a fonte da verdade, isto é, de só
aceitar como “verdadeiro”, em cada momento, o que livremente escolhe o
indivíduo ou a “maioria” (Não lembram a história recente? O nazismo chegou o
poder e o manteve – com todos os seus crimes horrendos contra a humanidade – ,
apoiado pela maioria).
4)-O quarto degrau: Chamaremos quarto
degrau a um prolongamento da reflexão sobre o terceiro degrau, sobre o
relativismo absoluto que se traduz na pulverização de quaisquer valores morais. Se a liberdade é a única fonte da
verdade, isto é, se só se pode aceitar como verdadeiro em cada momento o que
livremente escolhe a “maioria”, nada impede que os legisladores – se calhar e
houver interesses nacionais e internacionais poderosos envolvidos no assunto –,
fiquem de acordo em aprovar que a vida começa quando a criança tem dois anos de
idade e que, em conseqüência, até os dois anos, qualquer criança pode ser
desmanchada para experiências científicas úteis para curar doenças e salvar
vidas. Dirão que isso é extrapolar. Por que? Se não há mais valores objetivos e universais, se não existem mais
referenciais éticos intocáveis, onde estão os limites do que se “pode” fazer? Só
resta o puro arbítrio, nas mãos dos egoísmos do momento.Durante os milênios
em que os valores éticos eram tidos em conta, o que se “pode” fazer tinha um
sentido moral: pode-se fazer o que é lícito moralmente; não se pode o que é ilícito.
No atual relativismo radical, a palavra “pode” perdeu toda a conotação moral, e
ficou reduzida ao que a ciência “pode fazer” (p.e., as experiências que, nos
lager nazistas, eram praticadas com seres humanos “podiam” ser feitas
cientificamente), ou ao que a lei (meramente positiva e mutável, conforme os
interesses de cada momento) autoriza fazer. Sem valores nem referências
de verdade e bem, o mundo – a humanidade – fica perdido no espaço como um
astronave que saiu da órbita. A Igreja, como seu
Mestre, ama a verdade e o bem, ama o ser humano e a sua dignidade, ama a vida
e, por isso, não se importa em ser incompreendida quando vai contra-corrente na
defesa dos únicos valores que podem preservar a humanidade da desintegração
moral.
Talvez com isso impeça que algum dia possam ser erigidas na Praça dos Três
Poderes as estátuas de Pilatos (O que é a verdade?) e do Dr. Mengele.
Fonte: padrefaus.googlepages.com
SÃO JOÃO PAULI II - "O ESPLENDOR DA VERDADE"
Em síntese: A
Encíclica Veritatis Splendor, a décima do pontificado de João Paulo II, não
versa sobre questões particulares de sexualidade (como noticiava a imprensa),
mas trata dos princípios fundamentais da Moral Católica, tendo em vista as
tendências subjetivistas que ameaçam a autêntica compreensão da Ética. O
Papa reafirma a existência da lei natural incutida em todo ser humano, com suas
normas universais e imutáveis: não matar, não roubar, não adulterar, não
caluniar... Por conseguinte, não é a vontade do homem que define o bem e o mal,
mas é o próprio Deus, Criador da natureza humana. Disto se segue que há
atos intrinsecamente maus, isto é, pecaminosos por sua índole mesma. À
consciência compete levar em conta o teor objetivo, dos preceitos morais e
aplicá-los à situação concreta do indivíduo; para tanto, requer-se que a
consciência seja bem formada, evitando escrúpulos doentios e laxismo frívolo. A Encíclica lembra ainda que a rigidez da Igreja Católica
em Moral é um serviço prestado ao homem e à sociedade, visto que a grave crise
sócio-econômico-política de nossos dias, em última análise, é uma crise ética.
Somente a fundamentação em Deus e nos seus preceitos permitirá à sociedade
contemporânea superar seu momento difícil e proporcionar maior bem-estar aos
seus cidadãos. O Papa João Paulo II
assinou a décima Encíclica de seu pontificado aos 6 de agosto de 1993, após
quase seis anos de paciente e atenta preparação. A imprensa, já mesmo antes da
publicação desse documento, que se deu no dia 6/10/1993, comentava a Encíclica,
apresentando-a como explanação da moralidade sexual. Este tema parecia ser o
assunto dominante da Veritatis Splendor. Ora quem lê o texto, verifica que
pouco se detém em casuística ou em problemas particulares de Moral; vem a ser,
antes do mais, uma reflexão sobre a Moral Fundamental ou os grandes princípios
da Moral frente às teorias de Ética contemporânea, que tendem a fazer da
vontade do homem o critério absoluto da Moralidade. Os aspectos
particulares da vida moral são abordados pelo Catecismo da Igreja Católica, ao
qual a Encíclica, logo em seu início, faz referência:
"Ao remeter para o Catecismo como texto de referência seguro e
autêntico para o ensino da doutrina católica, a Encíclica limitar-se-á a afrontar
algumas questões fundamentais do ensinamento moral da Igreja, sob a forma de um
necessário discernimento sobre problemas controvertidos entre os estudiosos da
Ética e da Teologia" (no 5).
Dada a importância do documento, passamos a percorrer os
seus principais tópicos:
1. O TEOR DOUTRINÁRIO DA ENCÍCLICA
A leitura da
Encíclica não é fácil, visto que recorre a frases longas e de terminologia
especializada. Como quer que seja, percebe-se que o seu fio condutor é a
intenção de abordar o problema "subjetivismo x objetivismo" em Moral.
Com outras palavras: o comportamento ético é regido por normas válidas para
todos os homens ou é lícito a cada um definir sua conduta unicamente a partir de
seu modo de pensar e querer? Tal é, sem dúvida, o problema lançado por muitas
correntes de pensamento contemporâneas, impregnadas de existencialismo. ([1])
Frente a tais concepções, o S. Padre reafirma, com toda a Tradição Católica,
que:
“Existem normas objetivas e universais de Moralidade, baseadas na lei
natural: "Não matarás, Não roubarás, Não adulterarás, Não caluniarás...
"Naturalmente essas normas universais hão de ser consideradas pela
consciência de cada indivíduo; após atento exame das circunstâncias (estado de
saúde, idade, conhecimento de causa...), a consciência dirá se a lei universal
vale, e até que ponto vale, no caso concreto deste ou daquele indivíduo.”
Explicitemos os textos da Encíclica em que tal tese é
proposta:
1.1. Que é a Moral?
A Moral da Igreja é a
indicação, ao homem, daquilo que ele deve fazer para possuir a vida eterna. A
pergunta do jovem rico a Jesus: "Mestre, que farei de bom para entrar na
vida eterna?" (Mt 19, 16) é a pergunta de todo homem, que sente em si o
chamado intimo à plenitude da vida. A resposta de Jesus a tal indagação aponta
o Decálogo, que corresponde ao que se chama "a lei natural":
"Se queres entrar na vida, cumpre os mandamentos...: Não matarás,
não adulterarás, não roubarás, não levantarás falso testemunho; honra pai e
mãe, e honra a teu próximo como a ti mesmo" (Mt 19, 17-19).
O S. Padre afirma,
pois, com toda a Tradição cristã, mesmo com pensadores pré-cristãos e não
cristãos, a existência de uma lei Incutida no coração de todo homem e anterior
a qualquer escola ou cultura:"Só Deus pode responder à pergunta sobre o bem, porque Ele é o Bem.
Mas Deus respondeu já a esta pergunta... criando o homem e ordenando-o com
sabedoria e amor ao seu fim, mediante a lei inscrita no seu coração (cf. Rm
2,15), a lei natural... Graças a ela, conhecemos o que se deve cumprir e o que
se deve evitar" (no 12). Desta afirmação se
conclui que "a Moral da Igreja implica necessariamente uma dimensão
normativa"; ela não é apenas a verificação fria dos diversos
comportamentos dos homens e dos povos; ela não se limita a fazer estatísticas,
das quais se depreenderia o que é certo e o que é errado; certo seria o que a
maioria dos homens faz: "A Teologia Moral não se
pode reduzir a um conhecimento elaborado só no contexto das chamadas ciências
humanas. Enquanto estas se ocupam com o fenômeno da moralidade como fato
histórico e social, a Teologia Moral, embora deva servir-se das ciências do
homem e da natureza, não está subordinada aos resultados da observação
empírico-formal ou da compreensão fenomenológica...Os princípios morais não são dependentes do momento histórico em que
são descobertos. Além disso, o fato de alguns crentes agirem sem observar os
ensinamentos do Magistério ou considerarem erradamente como moralmente justa
uma conduta declarada pelos seus Pastores contrária à lei de Deus, não pode
constituir argumento válido para rejeitar a verdade das normas morais ensinadas
pela Igreja. A afirmação dos princípios morais não é da competência dos
métodos empírico-formais" (no 111s).
1.2. Lei Natural e Autonomia da Razão
Em nossos dias, a
estima da liberdade de arbítrio tem levado vários pensadores a proclamar a
autonomia da razão humana em matéria ética; o homem teria o poder de definir o
que é bem e o que é mal. Tal teoria assume modalidades diversas, que o texto da
Encíclica enumera. Eis uma delas:
"Alguns chegaram a conceber uma completa soberania da razão no
âmbito das normas morais...; tais normas constituiriam o âmbito de uma Moral
meramente 'humana', isto é, seriam a expressão de uma lei que o homem
autonomamente daria a si próprio, com a sua fonte exclusiva na razão
humana" (no 36).
Outra modalidade de autonomia seria a seguinte:
"Querendo manter a vida
moral num contexto cristão, foi introduzida por alguns teólogos moralistas uma
nítida distinção, contrária à doutrina católica, entre uma ordem ética, que
teria origem humana e valor apenas temporal, e uma ordem da salvação, para a
qual contariam apenas algumas intenções e atitudes interiores relativas a Deus
e ao próximo... A Palavra de Deus
limitar-se-ia a propor uma exortação genérica, que... a razão autônoma teria a
tarefa de preencher com determinações normativas... adequadas à situação
histórica concreta" (no 37).
Observa João Paulo II:
"É impossível não ver que uma tal interpretação da autonomia da
razão humana comporta teses incompatíveis com a doutrina católica" (no
37).
Lembra o texto que a
autonomia da razão humana não é ilimitada; Deus deu ao homem o mandamento de
cultivar e embelezar a terra; todavia ele o deve fazer como imagem e semelhança
de Deus ou como mandatário do Criador. O homem não é fonte dos valores morais; foi
precisamente este o pecado dos primeiros pais — o querer ser árbitros entre o
bem e o mal, como lhes sugeriu o tentador: "Deus sabe que no dia em que comerdes, vossos olhos se abrirão e
sereis como deuses, arbitrando entre o bem e o mal" (Gn 3,5). Na verdade, a
autonomia moral do homem não significa a recusa, mas, sim, o acolhimento dos
mandamentos de Deus. A liberdade do homem e a lei de Deus são chamadas a
compenetrar-se entre si, no sentido de que ao homem compete prestar livre
obediência a Deus, enquanto Deus tributa gratuita benevolência ao homem. Disto
resulta que o homem não é soberanamente autônomo em matéria moral; mas também
não é heterônomo, isto é, guiado por alguém que lhe é estranho; na verdade, o
homem é teônomo... Teônomo, porque a livre obediência do homem a Deus implica a
participação da razão e da vontade do homem na Sabedoria e Providência de Deus.
1.3. Atos intrinsecamente maus
Atos intrinsecamente
maus são aqueles que, por sua índole mesma, são pecaminosos, independentemente
de circunstâncias; assim matar um inocente, roubar, caluniar.Se a Moralidade é
algo de objetivo e não depende do alvitre do indivíduo, torna-se claro que
existem atos intrinsecamente maus. Retomando um dos exemplos citados, diremos
que matar um inocente (uma criança no seio materno...) é algo de imoral,
independentemente das circunstâncias em que se encontre a gestante. Ainda
que esta, ao abortar, tenha a intenção de evitar o nascimento de uma criança
deficiente ou a intenção de salvaguardar a economia do lar, o ato abortivo,
como tal, é mau; não se torna moralmente bom pelo fato de que pai e mãe tenham
boas intenções, pois o fim não justifica os meios. Para atingir um objetivo
bom, não é lícito recorrer a meios maus ou pecaminosos. Eis outro
exemplo: o latrocínio (matar para roubar, ou tomar posse de algo) é algo de
intrinsecamente mau; por isto o latrocínio nunca é lícito, nem mesmo quando se
tem a intenção de socorrer um pobre ([2]). A tal respeito lê-se na Encíclica:"Como ensina o Catecismo da igreja Católica, 'há comportamentos concretos
pelos quais é sempre errado optar, pois tal opção inclui uma desordem da
vontade, isto é, um mal moral' (n° 1761)" (no 78). Adiante ainda se lê: "A razão atesta que há
objetos do ato humano que se configuram como 'não-ordenáveis' a Deus, porque contradizem
radicalmente o bem da pessoa, feita à Sua imagem. São os atos que, na tradição moral da Igreja, foram denominados
'intrinsecamente maus'; são-no sempre e por si mesmos, ou se/a, pelo próprio
objeto, independentemente das posteriores intenções de quem age e das
circunstâncias. Por isto, sem querer minimamente negar o influxo que têm as
circunstâncias e sobretudo as intenções sobre a moralidade, a Igreja ensina que
'existem atos que, por si e em si mesmos, independentemente das circunstâncias,
são sempre gravemente ilícitos, por motivo do seu objeto' (Exortação ApostólicaPós-sinodal
Reconciliatio et Paenitentia n° 17)" (no 80).
1.4. A Consciência
A Moral Católica, que
apregoa a objetividade dos preceitos éticos, não é fria ou indiferente às
situações em que o homem se encontre; este não é um autômato, regido por normas
cegas. Por isto existe em todo ser humano uma faculdade à qual compete avaliar
a obrigatoriedade ou não das leis morais nas circunstâncias concretas em que o
indivíduo se ache. Tal faculdade é chamada a consciência moral. À
consciência moral toca tomar conhecimento exato das leis objetivas da
Moralidade (a consciência não é autônoma, mas teônoma) e ponderar o grau de
vigência (plena, parcial ou nula) de tais normas no contexto concreto em que se
encontra o indivíduo. Assim, por exemplo, quem tem obrigação de comparecer ao
escritório ou à fábrica para trabalhar como assalariado e se acha em condições
de saúde abaladas, pondere em sua consciência se, aqui e agora, o dever de ir
trabalhar ainda o obriga; pode ser que a consciência lhe diga Sim como também
lhe pode dizer Não. Para que o julgamento seja correto, requer-se que a
consciência seja devidamente formada, evitando tanto os escrúpulos doentios
quanto o laxismo leviano. Há, porém, quem hoje queira atribuir à consciência o
direito de ignorar ou violar as normas objetivas da Moral; a consciência
poderia permitir ao indivíduo cometer tranqüilamente atos intrinsecamente maus: "Tendo em vista as
circunstâncias e a situação, a consciência poderia legitimamente estabelecer
exceções à regra geral, permitindo cumprir, em boa consciência, aquilo que a
lei morai qualifica como intrinsecamente mau... Sobre esta base, pretende-se estabelecer a
legitimidade de soluções chamadas 'pastorais', contrárias aos ensinamentos do
Magistério e justificar uma hermenêutica 'criadora' segundo a qual a
consciência moral não estaria, de modo algum, obrigada, em todos os casos, por
um preceito negativo particular" (no 56)". O fundamento mais profundo desta posição errônea estaria na
observação seguinte: Cada pessoa é um
mistério único, complexo e irrepetível, de modo que nenhuma lei pode valer para
todos os indivíduos em todos os tempos e lugares (cf. no 55). Com
outras palavras: não haveria que procurar praticar a verdade objetiva, mas
bastaria a sinceridade (a sinceridade não pode ser o
critério da verdade, pois uma pessoa pode estar sinceramente equivocada) do
comportamento; o homem estaria livre para agir como bem quisesse, contanto que
procedesse de acordo com os ditames meramente subjetivos de sua consciência: "Em algumas correntes do
pensamento moderno, chegou-se a exaltar a liberdade até o ponto de se tornar um
absoluto, que seria a fonte dos valores... Atribuíram-se à consciência
individual as prerrogativas de instância suprema do juízo moral, que decide
categórica e infalivelmente sobre o bem e o mal. Deste modo a imprescindível exigência de verdade desaparece em prol
de um critério de sinceridade, de autenticidade, de acordo consigo próprio, a
ponto de se ter chegado a uma concepção radicalmente subjetivista do juízo
moral" (no 32). Em resposta a estas
teorias, é de notar que, embora cada ser humano seja rico em facetas originais,
existe, não obstante, em todo indivíduo uma mesma e única natureza, portadora
das mesmas normas para todos; assim, por exemplo, no plano físico todos devem
ingerir alimentos sadios, respirar ar puro, repousar convenientemente, evitar
tóxicos...; caso não respeite tais normas naturais, o indivíduo se condena a
deteriorar ou perder a vida física; paralelamente no plano ético, a natureza
manda não matar, não roubar, não adulterar..., sob pena de que o indivíduo se
desfigure moralmente; à consciência nunca será lícito ignorar ou violar tais
leis, mesmo que a observância das mesmas exija sacrifício e renúncias. Também
as leis do corpo humano são normas para a conduta moral do indivíduo; o que
contraria a fisiologia ou as leis da biologia, é violação da própria dignidade
humana; daí a recusa, por parte da Moral Católica, de contracepção,
esterilização, masturbação, relações homossexuais, relações pré-matrimoniais,
fecundação artificial (n? 47). Sim; lembra o S. Padre que a liberdade do homem
é limitada também pelas leis da sua biologia ou fisiologia, pois o homem não é
um ser meramente espiritual ou angélico, mas é psicossomático; em conseqüência,
as leis do sorna ou do corpo são as leis do próprio homem; não são leis
extrínsecas ao homem, que o livre arbítrio possa aceitar ou rejeitar segundo
critérios subjetivos. Escreve o Papa: "Uma doutrina que separe o
ato moral das dimensões corpóreas do seu exercício, é contrária aos
ensinamentos da Sagrada Escritura e da Tradição; essa doutrina faz reviver, sob
novas formas, alguns velhos erros sempre combatidos pela Igreja, porquanto
reduzem a pessoa humana a uma liberdade espiritual puramente formal. Esta redução desconhece o significado moral
do corpo e dos comportamentos que a ele se referem (cf. 1Cor 6,19). O Apóstolo
Paulo declara excluídos do Reino dos céus os imorais, idólatras, adúlteros,
efeminados, sodomitas, ladrões, avarentos, bêbados, maldizentes e salteadores
(cf. 1Cor 6,9s)... De fato, corpo e alma são inseparáveis na pessoa, no agente
voluntário e no ato deliberado; eles salvam-se ou perdem-se juntos" (no
49).
1.5. Pecado mortal e pecado venial
Também a clássica
noção de pecado tem sido posta em xeque. O pecado, que é um Não dito a Deus, livre,
conciente e deliberado, o qual ocorre, segundo a Tradição, quando três
condições se realizam simultaneamente:
a)-Haja matéria
grave.
b)-Pleno conhecimento
de causa.
c)-Vontade livre e deliberada.
Tal pecado é dito mortal, porque extingue a vida da graça
no íntimo de quem o comete. Caso falte alguma das três condições mencionadas, o
pecado é leve ou venial. Ora, ultimamente
alguns autores têm afirmado que, para haver pecado mortal, é necessário que o indivíduo
retrate sua opção fundamental ou queira romper explicitamente seu liame de comunhão
com Deus. Enquanto a pessoa pratica algo que contraria a lei de Deus, mas não
pretende, com isto, desligar-se de Deus, tal pessoa não estaria pecando
mortalmente. Sendo assim, o pecado mortal seria algo de raro, pois a
maioria das pessoas que pecam gravemente não pensa em apostatar da fé e da
comunhão com Deus; interessa-se apenas pelo prazer que o pecado lhes possa
proporcionar. Ora a propósito o S. Padre lembra: "O Sínodo dos Bispos de 1983... não só reafirmou tudo o que foi
proclamado no Concílio de Trento sobre a existência e a natureza dos pecados
mortais e veniais, mas quis ainda lembrar que é pecado mortal aquele que tem
por objeto uma matéria grave e que, conjuntamente, é cometido com plena
advertência e consentimento deliberado. A afirmação do Concílio de Trento não considera só a matéria grave do
pecado mortal, mas lembra também, como sua condição necessária, a plena
advertência e o consentimento deliberado... Há de evitar-se reduzir o pecado
mortal a um ato de opção fundamental — como hoje em dia se costuma dizer —
contra Deus, entendendo com isso quer um desprezo explícito e formal de Deus e
do próximo, quer uma recusa implícita e não reflexa do amor. Dá-se efetivamente
o pecado mortal também quando o homem, sabendo e querendo, por qualquer motivo
escolhe alguma coisa gravemente desordenada.
Com efeito, numa escolha assim já
está incluído um desprezo do preceito divino, uma rejeição do amor de Deus para
com a humanidade e para com toda a criação: o homem afasta a si próprio de Deus
e perde a caridade. A orientação fundamental pode, pois, ser radicalmente
modificada por atos particulares" (no 70). Outro aspecto do tema "pecado" é o seguinte: Quando alguém comete
um ato gravemente desordenado sem saber que é tal, está sendo vítima de
ignorância moral. Tal ignorância pode não ser culpada (a pessoa pode não ter
culpa de não saber que está cometendo algo de errôneo); neste caso não há
pecado formal ou propriamente dito; há apenas pecado material, isto é, uma ação
má não imputável à responsabilidade de quem a comete. Todavia a ignorância pode
ser culpada ou pode ser devida a uma negligência consciente e voluntária de
quem age; é o caso do médico que comete erros no exercício de sua profissão,
porque descuida conscientemente de se atualizar; cf. no 63s. Explanadas tais
verdades na primeira e na segunda Partes da Encíclica, o S. Padre, na terceira
Parte, se volta para aplicações e conseqüências concretas de quanto foi
exposto.
2. APLICAÇÕES CONCRETAS - Realcemos cinco tópicos importantes:
2.1. Relativismo de pensamento
A necessidade de
reafirmar certos princípios éticos em nossos dias é tanto mais evidente quanto
mais se presencia a derrocada da dignidade humana. "O homem freqüentemente já
não sabe quem é, donde vem e para onde vai. E é assim que não raro assistimos à
tremenda derrocada da pessoa humana em situações de autodestruição progressiva.
Se fôssemos dar ouvidos a certas vozes,
parece que não mais se deveria reconhecer o indestrutível caráter absoluto de
qualquer valor moral. Está patente aos olhos de todos o desprezo da vida humana
já concebida e ainda não nascida, a violação permanente de fundamentais
direitos da pessoa, a destruição iníqua dos bens necessários para uma vida
verdadeiramente humana. Mas algo de mais grave aconteceu: o homem já não está
convencido de que só na verdade pode encontrar a salvação. A força
salvadora da verdade é contestada, confiando-se à simples liberdade,
desvinculada de toda objetividade, a tarefa de decidir autonomamente o que é
bem e o que é mal. Este relativismo gera, no campo teológico, desconfiança na
sabedoria de Deus, que guia o homem com a lei moral. Àquilo que a lei moral
prescreve, contrapõem-se as chamadas situações concretas, no fundo, deixando de
considerar a lei de Deus como sendo sempre o único verdadeiro bem do
homem" (no 84). O quadro se torna ainda mais sombrio na seguinte
passagem: "A razão e a experiência
atestam não só a debilidade da liberdade humana, mas também o seu drama. O homem descobre que a sua liberdade está
misteriosamente inclinada a trair esta abertura à Verdade e para o Bem, e que,
com bastante freqüência, ele prefere escolher bens finitos, limitados e
efêmeros. Mais ainda: por trás dos erros e das opções negativas, o homem
detecta a origem de uma revolta radical, que o leva a rejeitar a Verdade e o
Bem para arvorar-se em princípio absoluto de si próprio: 'Sereis como Deus' (Gn
3,5). Portanto a liberdade necessita de ser libertada. Cristo é o seu
Libertador. Ele nos libertou, para que permaneçamos livres (Gl 5,1)" (no
86).
2.2. O Martírio
O martírio, que
sempre acompanhou e ainda acompanhada a vida da Igreja, é o testemunho mais
significativo possível de coerência e de fidelidade aos bons princípios: "A recusa das teorias éticas teleológicas, conseqüencialistas e
proporcionalistas, que negam a existência de normas morais negativas referentes
a determinados comportamentos e válidas sem exceção, encontra uma confirmação
particularmente eloqüente no fato do martírio cristão, que sempre acompanhou e
ainda acompanha a vida da Igreja" (no 90). O martírio é a
rejeição de qualquer exceção ou fuga covarde; é o Não dito a qualquer tipo de
relativismo ou de "adaptação" traiçoeira da verdade às circunstâncias
do indivíduo; é o ato mais corajoso e leal que alguém possa apresentará
sociedade: "O martírio desautoriza como
ilusório e falso qualquer significado humano que se pretendesse atribuir, mesmo
em condições excepcionais, ao ato em si próprio moralmente mau; mais ainda,
revela claramente a sua verdadeira face: a de uma violação da humanidade do
homem, antes ainda em quem o realiza do que naquele que o padece. Portanto o martírio é também exaltação da
perfeita humanidade e da verdadeira vida da pessoa, como testemunha S. Inácio
de Antioquia, dirigindo-se aos cristãos de Roma, lugar do seu martírio: 'Tende compaixão de mim, irmãos: não me impeçais de viver,
não queirais que eu morra... Deixai que eu alcance a pura luz; chegado lá,
serei verdadeiramente homem. Deixai
que eu imite a Paixão do meu Deus' (Aos romanos VI, 2s)" (no 92).
2.3. Intransigência intolerável?
A insistência da
Igreja em defender a perene validade dos preceitos morais, especialmente dos
que proíbem atos intrinsecamente maus, é tida freqüentemente como sinal de
intransigência intolerável; não quadraria com as situações complexas em que as
pessoas se vêem em nossos dias. À Igreja faltariam compreensão e compaixão. Em
resposta, nota João Paulo II que não se pode separar do título de
"Igreja-Mãe" o de "Igreja-Mestra". O amor à pessoa humana
não seria autêntico se calasse os valores que garantem o verdadeiro bem do
homem: "A apresentação clara e
vigorosa da verdade moral jamais pode prescindir de um profundo e sincero
respeito, animado por um amor paciente e confiante, de que o homem sempre
necessita na sua caminhada moral, tornada, com freqüência, cansativa pelas
dificuldades, delibilidades e situações dolorosas. A Igreja, que jamais poderá renunciar ao princípio da verdade e da
coerência, pelo qual não aceita chamar bem ao mal e mal ao bem, deve estar
sempre atenta para não partir a cana já fendida e para não apagar a chama que
ainda fumega (cf. Is 42,3). Paulo VI escreveu: 'Não diminuir em nada a doutrina
salvífica de Cristo constitui eminente forma de caridade para com as almas.
Esta, porém, deve ser sempre acompanhada da paciência e bondade, de que o
próprio Senhor deu exemplo ao tratar com os homens. Tendo vindo não para
julgar, mas para salvar (cf. Jo 3,17), Ele foi certamente intransigente com o
mal, mas misericordioso com as pessoas'(Ene. Humanae Vitae 29)" (n9
95).
2.4. Renovação da vida social e política
O Papa refere-se às
graves modalidades de injustiça social e econômica e de corrupção política que
pesam sobre povos e nações inteiras, causando a infelicidade de muitas pessoas
oprimidas e humilhadas. E propõe a urgente necessidade de uma renovação social
e política baseada nos princípios da Moral; sem esta, qualquer tentativa de
remediar seria frustrada: "No âmbito político, deve-se
assina/ar que a veracidade nas relações dos governantes com os governados, a
transparência na administração pública, a imparcialidade no serviço das
instituições públicas, o respeito dos direitos dos adversários políticos, a
tutela dos direitos dos acusados face a processos e condenações sumárias, o uso justo e honesto do dinheiro público,
a recusa de meios equívocos ou ilícitos para conquistar, manter e aumentar a
todo custo o poder, são princípios que encontram a sua raiz primária — como
também a sua singular urgência no valor transcendente da pessoa e nas
exigências morais objetivas de governo dos Estados" (no 101).
2.5. Bispos e Teólogos
Após mostrar que a
nova evangelização requer sólida fundamentação ética, o Papa se dirige aos
Bispos e aos teólogos, exortando-os a colaborar, cada qual em sua função, para
a preservação dos valores éticos e sua irradiação na sociedade. Em particular aos Bispos é dito o seguinte: "Temos o dever, como Bispos,
de vigiar a fim de que a Palavra de Deus seja fielmente ensinada. Meus Irmãos
no Episcopado, faz parte do nosso ministério pastoral vigiar sobre a
transmissão fiel deste ensinamento moral e recorrer às medidas oportunas para
que os fiéis sejam preservados de toda doutrina e teoria a ele contrária. Nesta
tarefa, todos somos ajudados pelos teólogos, mas as opiniões teológicas não
constituem a regra nem a norma do nosso ensinamento. A autoridade deste deriva,
com a assistência do Espírito Santo e na comunhão cum Petro et sub Petro, da
nossa fidelidade à fé católica recebida dos Apóstolos. Como Bispos, temos a obrigação grave de vigiar pessoalmente para que a
sã doutrina da fé e da Moral seja ensinada nas nossas dioceses.Uma particular
responsabilidade se impõe aos Bispos relativamente às instituições católicas.
Quer se trate de organismos para a pastoral familiar ou social, quer de
instituições dedicadas ao ensino ou aos cuidados sanitários, os Bispos podem
erigir e reconhecer estas estruturas e delegar-lhes algumas responsabilidades;
mas nunca ficam dispensados das próprias obrigações. Compete-lhes, em
comunhão com a Santa Sé, a tarefa de reconhecer ou de retirar em casos de grave
incoerência a denominação de 'católico' a escolas, Universidades, clínicas e
serviços sócio-sanitários, que se dizem na Igreja" (no 116).
Duas conclusões importantes são enunciadas nesta
passagem:
1ª)-Os teólogos têm
um papel de pesquisa e aprofundamento da doutrina, mas não
lhes compete dizer a última palavra sobre assuntos de fé e de Moral.
2ª)-As instituições ditas "católicas" que não se orientem
pelos princípios da Moral Católica, sejam destituídas do seu título.
Assim concebida, a
Encíclica Veritatis Splendor merece toda a estima não só dos fiéis católicos,
mas de todas as pessoas de bem: "João Paulo II teve a
coragem de falar, julgou seu dever elevar a voz. Denunciar a trapaça de um humanismo sem Deus ou contra Deus e, por isso
mesmo, desumano. Anunciar um humanismo integral e pleno, fruto de um
Acontecimento — a irrupção de Deus na História por meio do homem Filho de
Deus" (D. Lucas Moreira Neves, A
Coragem de Falar, em JORNAL DO BRASIL, 20/10/1993, p. 11).
Dom Estêvão
Bettencourt
Referências do texto
acima:
[1] O
existencialismo é a escola que tem por critério da verdade e da Moral "eu
e minhas circunstâncias". Ora, como as circunstâncias em que me acho,
mudam, a verdade e a Moral (o bem e o mal) podem mudar constantemente para mim
e para os meus semelhantes. Não haveria, pois, normas universalmente válidas.
[2] A formulação negativa de um preceito ("Não
matar, não roubar, não adulterar, não caluniar...) torna esse preceito
absolutamente inviolável, pois a fórmula negativa estabelece o limite entre o
bem e o mal. O Não indica que o Sim é mau; dizer Sim ao morticínio, ao roubo,
ao adultério... é mau; por isto é preciso dizer-lhes Não. Não há meio-termo
entre o bem e o mal.
"A Razão em busca da Verdade": um discurso não proferido, ou rejeitado?
(Padre jesuíta italiano Federico Lombardi) |
Da visita de Bento
XVI à Universidade La Sapienza de Roma - Artigo de Federico
Lombardi
Para Bento XVI:
“A universidade deve estar ligada exclusivamente à autoridade da verdade
e, portanto, deve ser autônoma, livre de autoridades pessoais, quer políticas partidárias,
ideológicas e eclesiásticas”.
Por isso, se
interroga sobre o que um papa tem a dizer no encontro com a universidade de sua
cidade, Roma. Para responder, ele reflete acima de tudo sobre a natureza e a missão
do papado e, depois, sobre a natureza e a missão da universidade. Publicamos
aqui a conferência do Padre jesuíta italiano Federico
Lombardi, ex-porta-voz da Santa Sé, proferida na International Academic
Conference: In search of the truth. From Nicolaus Copernicus to Benedict XVI,
realizada na Faculdade de Teologia da University of Nicolaus Copernicus, em
Toruń, Polônia, 17-04-02018. O discurso foi publicado no sítio da Fundação
Ratzinger. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto do Pe. Federico Lombardi:
Ilustres professores, estudantes
e amigos,
Estou muito grato pela honra que
vocês me prestam, ao me acolherem nesta importante conferência e me dando a
palavra por primeiro. Na realidade, estou ciente de que falar por primeiro não
significa tanto que o meu discurso seja o mais importante, mas que, não podendo
participar de todos os seus trabalhos por causa da minha grave ignorância da
língua de vocês, é bom que meu discurso seja o primeiro, de modo que, depois,
vocês fiquem mais livres para continuar os seus trabalhos na belíssima língua
polonesa.O meu breve discurso se propõe dois objetivos:
-O primeiro é de oferecer uma
contribuição para recordar um discurso do Papa Bento XVI, que é bastante
significativo para quem trabalha na universidade, como vocês, mas que
permaneceu menos conhecido do que outros. Justamente há três meses, em janeiro deste
ano, celebrava-se o 10º aniversário desse discurso, e, por isso, eu o escolhi
para esta intervenção.
-O segundo objetivo, inspirando-se
nesse discurso, é de expressar algumas
ideias sobre a linha programática da Fundação Ratzinger, que eu represento
e que tem a alegria de colaborar com vocês nesta ocasião e, se possível, também
no futuro.
O discurso do Papa Bento de que falo é um discurso que, na realidade,
nunca foi proferido. Recordo, aqui, muito brevemente os acontecimentos. Bento XVI havia sido
convidado oficialmente pelo reitor da mais antiga e maior universidade de Roma, que se
chama “La Sapienza” – fundada pelo Papa Bonifácio VIII em 1303 –, para visitar
a universidade e fazer um discurso na Aula Magna. Alguns professores, em
sua maioria ideologicamente orientados à esquerda, manifestaram-se contrários.
Mas se tratava de relativamente poucas pessoas. A data havia sido fixada para o
dia 17 de janeiro, mas, nos dias anteriores, um grupo de estudantes ocupou a reitoria em protesto e iniciou uma
contestação com tons muito duros contra a visita, dizendo que o Papa Bento era
um expoente do obscurantismo contrário à cultura e que a universidade, como
lugar da liberdade de pesquisa e de pensamento, não podia aceitar essa visita.
Tratava-se de
uma pequena minoria, mas a repercussão foi grande. Para evitar tensões, Bento XVI renunciou à visita
dois dias antes da data marcada, mas enviou o texto do discurso, que foi lido e aplaudido por
muitos presentes.Na realidade, o episódio continua sendo um fato de séria
intolerância por parte daqueles que queriam se apresentar como arautos da razão
e da liberdade, e muitíssimos intelectuais italianos, até mesmo não católicos,
se envergonharam profundamente disso. Mas eu não tenho a intenção de
voltar sobre isso. Acho que hoje é preciso refletir mais sobre o conteúdo do
próprio discurso, que se insere na série de muitos discursos dedicados por
Bento XVI à natureza e à finalidade da universidade, e é provavelmente um dos
mais importantes deles. Bento XVI começa afirmando expressamente
que a universidade “deve estar ligada exclusivamente à autoridade da verdade”
e, portanto, deve ser autônoma, livre “de autoridades políticas e
eclesiásticas”. Por isso, se interroga sobre o que um papa tem a dizer no
encontro com a universidade de sua cidade. Para responder, ele reflete acima de
tudo sobre a natureza e a missão do papado e, depois, sobre a natureza e a
missão da universidade. Bento reconhece naturalmente que a missão do papado é, acima de tudo, de
guiar a comunidade dos fiéis, mas observa que essa comunidade vive no mundo e,
portanto, as suas condições e as suas vicissitudes atuam sobre o conjunto da
comunidade humana. Por isso, o papa “tornou-se cada vez mais uma voz da razão
ética da humanidade” (à luz da autoridade internacional conquistada pelos papas
recentes, em particular por João Paulo II, antes, e Francisco, hoje, isso
parece ser completamente correspondente à nossa experiência). Depois de pronunciar as palavras:
“razão ética da humanidade”, Bento faz um aprofundamento muito interessante. Pode-se falar de “razão” ética, se os
juízos do papa provêm da fé? Que validade eles podem ter para quem não
compartilha essa fé? Por isso, Bento se pergunta: “O que é a razão? Como uma
afirmação – acima de tudo, uma norma moral – pode se demonstrar como
‘razoável’?”. Para responder Bento faz
referência ao famoso filósofo político estadunidense John Rawls, que reconhece às doutrinas das grandes
religiões o caráter de “razoabilidade” pois “derivam de uma tradição
responsável e motivada, na qual, durante longos tempos, foram desenvolvidas
argumentações suficientemente boas em seu sustento”. De sua parte, Bento concorda e
evidencia “que a experiência e a demonstração ao longo de gerações, o fundo
histórico da sabedoria humana são também um sinal da sua razoabilidade e do seu
duradouro significado”. A razão não deve
ser a-histórico, “a sabedoria da humanidade como tal – a sabedoria das grandes
tradições religiosas – deve ser valorizada”, não pode ser “jogada na lata de
lixo da história das ideias”. Bento conclui, então, a resposta
à primeira pergunta dizendo que o papa fala à universidade “como representante
de uma comunidade que conserva em de si um tesouro de conhecimento e de
experiência éticos, que é importante para a humanidade inteira: nesse sentido,
fala como representante de uma razão ética”. Passando, depois, à pergunta
sobre a natureza da universidade, o papa pensa que “a íntima origem da
universidade está na ânsia de conhecimento que é própria do ser humano”. Ele quer saber o que é tudo o que o
cerca. Quer verdade”. Bento XVI identifica no
interrogar-se de Sócrates a manifestação mais clara desse desejo de conhecer e
enfatiza o fato de que Sócrates exerce a sua maiêutica justamente na crítica à
antiga religião mítica e na busca de um Deus supremo e verdadeiramente divino.
Para Bento, é fundamental entender que os cristãos dos primeiros séculos se
reconheceram nesse exercício socrático: para eles, “o interrogar-se da razão
sobre o Deus maior, assim como sobre a verdadeira natureza e sobre o verdadeiro
sentido do ser humano (...), fazia parte da essência do seu modo de ser
religioso”. Eles deviam “reconhecer como parte da própria identidade a busca
fatigante da razão para alcançar o conhecimento da verdade inteira”. Bento dá também outro passo aqui. “O ser humano quer conhecer – quer
verdade”, e verdade é “coisa do ver, do compreender (...) mas - ele observa –
nunca é somente teórica”. “Verdade significa mais do que saber: o conhecimento
da verdade tem como propósito o conhecimento do bem. Este é também o sentido do
interrogar-se socrático: qual é o bem que nos torna verdadeiros? A verdade nos
torna bons, e a bondade é verdadeira”. Os cristãos se reconhecem também
nessa direção, ou, melhor, nessa direção, sua reflexão floresce esplendidamente.
Os Padres sublinham que “a fé corresponde às exigências da razão em busca da
verdade (...) é o ‘sim’ à verdade, em relação às religiões míticas”. Assim, a dissolução da religião mitológica dá lugar “à descoberta
daquele Deus que é Razão criadora e, ao mesmo tempo, Razão-Amor”. A fé cristã é
profundamente “otimista” – observa Ratzinger – “porque a ela foi concedida a
visão do Logos, da Razão criadora, que, na encarnação de Deus, revelou-se ao
mesmo tempo como o Bem, a própria Bondade”. Bento XVI está convencido de que,
pelo fato de a busca da razão fazer parte da própria identidade cristã, a
universidade “podia ou, melhor, devia nascer no âmbito da fé cristã, no mundo
cristão”. Nesse ponto, o discurso se desloca, então, para a estrutura da
universidade medieval e para como a busca do conhecimento e da verdade se
desenvolve nas suas quatro faculdades fundamentais: Medicina, Jurisprudência,
Filosofia e Teologia. Sobre a Medicina, Ratzinger não
diz muito: limita-se a destacar que, na época, a medicina não era concebida
tanto como “ciência”, mas como “arte de curar”, mas sua inserção na
universidade significa que ela é “subtraída do âmbito da magia” para entrar
cada vez mais no âmbito e sob a orientação da racionalidade. Muito mais amplo é o discurso
sobre a Jurisprudência, porque nela “se trata de dar forma justa à liberdade
humana”. Aqui, Ratzinger dá um “salto ao presente” para levantar uma das
questões debatidas hoje e que mais estão em seu coração: “É a questão de como
pode ser encontrada uma normativa jurídica que constitua um ordenamento da
liberdade, da dignidade humana e dos direitos humanos”. Ratzinger a considera como uma
questão crucial para a democracia moderna e para o futuro da humanidade,
estando totalmente ciente dos problemas que nascem da contínua multiplicação
dos “direitos humanos” e dos conflitos que surgem entre eles, e dos
fundamentalismos ideológicos e religiosos (não foi à toa que Bento XVI abordou
isso em várias ocasiões, como os grandes discursos públicos de Westminster Hall
em Londres ou do Reichstag em Berlim). Sobre tal questão, portanto, ele quis
dialogar de modo construtivo com grandes pensadores atuais. No discurso de que estamos
falando, ele indica como seu interlocutor significativo Jürgen Habermas (com
quem – como sabemos – ele tivera, em 2004, um famoso diálogo público na
Katholische Akademie de München). Ratzinger aprecia o fato de Habermas ver os
fundamentos da legitimidade de um ordenamento estatal não só “na participação
política igualitária de todos os cidadãos”, mas também na “forma razoável em
que os contrastes políticos são resolvidos”. Ele aprecia sobretudo que essa “forma razoável” não é identificada por
Habermas apenas com o cálculo aritmético das maiorias, mas como “um processo de
argumentação sensível à verdade” (wahrheitssensibles Argumentationsverfahren).
Ratzinger conclui a parte do
discurso dedicada a esse assunto com duas observações importantes:
-Por um lado, destaca com grande
realismo que, na realidade do debate político, “a sensibilidade à verdade é
sempre de novo subjugada pela sensibilidade aos interesses”.
-Por outro lado, considera significativo que Habermas, ao falar da
“sensibilidade à verdade como elemento necessário no processo de argumentação
política, insere novamente o conceito de verdade no debate filosófico e no
político”.
No decorrer do diálogo – primeiro
com Rawls, depois com Habermas, dois dos maiores filósofos políticos
contemporâneos – são reacendidos, portanto, os conceitos de “razoabilidade” e
de “verdade”, como conceitos inevitáveis se quisermos tentar fundamentar a
legitimidade da convivência humana, o direito da liberdade, além de uma mera
composição dos interesses graças às regras da maioria. Mas o que são a
razoabilidade e a verdade? Aqui, Ratzinger retorna à
estrutura da universidade medieval e à função das outras duas faculdades: a
filosofia e a teologia, às quais “era confiada a pesquisa sobre o ser humano na
sua totalidade e, com isso, a tarefa de manter viva a sensibilidade pela
verdade”. Isso ainda vale; porque não só naquela época, mas hoje também esse é
“o sentido permanente de ambas as faculdades: serem guardiães da sensibilidade
pela verdade, não permitir que o ser humano seja desviado da busca da verdade”. Mas o que me parece
particularmente significativo é aquilo que o Papa Bento diz logo depois,
manifestando um espírito extraordinariamente humilde e respeitoso,
verdadeiramente aberto ao diálogo com a grande cultura da história e do mundo. De fato, após dizer que as
faculdades de filosofia e teologia “não devem permitir que o ser humano se
desvie da busca da verdade”, ele faz uma das afirmações mais emocionantes e
impressionantes para mim de todo o discurso: “Como elas podem corresponder a essa tarefa? Essa é uma pergunta para a
qual é preciso, sempre de novo, se esforçar e que nunca é posta e resolvida
definitivamente. Assim, nesse ponto, nem eu posso oferecer propriamente uma
resposta, mas sim um convite para permanecer a caminho com essa pergunta – a
caminho com os grandes que, ao longo de toda a história, lutaram e buscaram,
com as suas respostas e com a sua inquietação pela verdade, que continuamente
remete para além de cada resposta individual”. O título desta conferência diz: “Em busca da verdade: de Nicolau
Copérnico a Bento XVI”. Com efeito, Bento XVI absolutamente não é – como afirmavam aqueles que o
impediram de proferir essas palavras – uma pessoa que impõe aos outros com
prepotência a sua posse da verdade, mas sim uma pessoa que se sente solidária
com todos os grandes apaixonados buscadores da verdade, sabendo que, nesta terra,
ninguém jamais a possuirá. À universidade medieval da Europa
cristã e, em particular, a São Tomás de Aquino, Ratzinger reconhece o mérito de
ter destacado a autonomia da filosofia, isto é, “o direito e a responsabilidade
próprios da razão que se interroga com base nas suas forças”. As religiões
míticas haviam desaparecido, e, ao contrário, os escritos filosóficos de
Aristóteles haviam se tornado acessíveis integralmente, e as filosofias
judaicas e árabes haviam se apropriado deles. Nesse contexto, “o cristianismo,
em um novo diálogo com a razão dos outros, que vinha encontrando, teve que
lutar pela própria razoabilidade”. A
filosofia, portanto, torna-se uma verdadeira faculdade, “uma parceira autônoma
da teologia e da fé nela refletida”. A relação entre filosofia e
teologia é apresentada por Ratzinger em analogia com a famosa fórmula de
Calcedônia sobre as duas naturezas de Cristo: “sem confusão e sem separação”:
-Sem confusão. “A filosofia deve
permanecer verdadeiramente como uma busca da razão na própria liberdade e
responsabilidade (...)deve ver seus limites e sua grandeza”. “A teologia deve
continuar recorrendo a um tesouro de conhecimento que não foi inventado por ela
mesma”, mas que recebeu e que a supera, e, sendo inesgotável, sempre a coloca
novamente em movimento.
-Sem separação. Porque a filosofia
não deve se isolar, mas se mover no grande diálogo da sabedoria histórica, que
inclui também a riqueza trazida pelas religiões e, particularmente, pelo
cristianismo. Enquanto a teologia – e também as autoridades eclesiais – deve
aceitar a purificação da crítica da razão e, ao mesmo tempo, constituir uma
força purificadora da própria razão, em particular libertando-a das pressões do
poder e dos interesses. (Esse tema da purificação recíproca entre fé e razão
voltou com força em outros grandes discursos de Ratzinger, como o da
Westminster Hall, em Londres, onde era aplicado à contribuição positiva da fé
cristã e das religiões na vida pública e na sociedade moderna).
Naturalmente, Ratzinger sabe
muito bem que a universidade moderna abraça outras dimensões do saber que
cresceram de modo extraordinário e maravilhoso. Ele fala sobretudo de dois
âmbitos, o das ciências naturais e o das ciências históricas e humanísticas.O
discurso aqui se torna muito mais sintético, mas continua sendo rico em
intuições de reflexão fundamentais. “Abriu-se à humanidade uma medida
imensa de saber e de poder; cresceram também o conhecimento e o reconhecimento
dos direitos e da dignidade do ser humano.” Bento vê e admira o positivo, mas
adverte com lucidez e coragem as ambiguidades e os riscos, algo que, aliás, é
evidente nos eventos dramáticos da história atual. Como o discurso de que
estamos falando se dirige ao mundo da universidade, ou seja, daqueles que estão
envolvidos plenamente no estudo, no alargamento e no aprofundamento do saber,
Ratzinger se encaminha à conclusão se concentrando nos riscos relacionados com
essa dimensão da nossa vida histórica. “O perigo do mundo ocidental –
para falar apenas dele – é hoje que o ser humano, precisamente em consideração
da grandeza do seu saber e poder, se rende perante a questão da verdade. E isso
significa, ao mesmo tempo, que a razão, no fim, se curva diante da pressão dos
interesses e da atratividade da utilidade, forçada a reconhecê-la como critério
último.”
-Do ponto de vista da vida da universidade, para Ratzinger, isso
significa que a filosofia se degrada em positivismo e que a teologia se confine
à esfera privada de um pequeno grupo. Significa que a razão se torna surda à
sabedoria que lhe é oferecida pela fé cristã e se empobrece e seca. Perde a
coragem da verdade e se apequena nas tarefas e nos horizontes.
-Do ponto de vista da cultura
europeia, para Ratzinger, isso significa que, “se quiser apenas se
autoconstruir com base no círculo das próprias argumentações e – preocupada com
a sua laicidade – se afasta das raízes das quais vive, então não se torna mais
razoável e mais pura, mas se decompõe e se despedaça”.
A conclusão do discurso, nesse
ponto, é clara:
O papa não vai à universidade para impor de modo autoritário a
fé, que só pode ser dada, mas para “manter desperta a sensibilidade pela
verdade; convidar sempre de novo a razão a se pôr em busca do verdadeiro, do
bem, de Deus” e a entrever ao longo da história as luzes que surgiram a partir
da fé cristã, de modo a poder perceber Jesus Cristo como a Luz que ilumina a
história e o caminho rumo ao futuro. Quem conhece o pensamento de
Joseph Ratzinger e os grandes discursos do pontificado de Bento XVI facilmente
reconhecerá reflexões e temas familiares e característicos. O discurso poderia
ser facilmente enriquecido e ampliado com inúmeras citações e referências.
Evidentemente, não é o que pretendo fazer. Em vez disso, como mencionei no
início, no rastro do que recordei, quero explicar brevemente o espírito no qual
a nossa Fundação está se movendo e se propõe a operar. Simplificando de maneira extrema,
pode-se dizer que o grande pensamento de Joseph Ratzinger se desenvolveu ao longo de duas diretrizes principais complementares: Uma que podemos chamar de
vertical: o chamado do primado de Deus, do Deus revelado por Jesus Cristo e
aquilo que se segue para a vida cristã e da Igreja. E uma que podemos chamar de
horizontal ou transversal: o diálogo com a cultura contemporânea, fundamentado
na confiança na razão, considerada capaz de buscar e encontrar respostas
razoáveis e verdadeiras para as suas perguntas.
O discurso que evoquei é típico
dessa linha do diálogo, do exercício confiante da razão, que olha com otimismo
e com gosto ao enriquecimento recíproco das diversas dimensões do saber, das
ciências naturais às humanas, à filosofia, à teologia. Para isso, porém, a
razão não deve se fechar nos estreitos limites do positivismo, deve se manter
aberta à questão da verdade, do bem, do sentido da vida, de Deus. Também deve
se manter aberta àquele fascinante diálogo com os grandes da história de que
Ratzinger nos falou por referências, de Sócrates e a filosofia grega, às
testemunhas da sabedoria do Antigo Testamento e das grandes religiões, ao
Evangelho e aos Padres da Igreja, aos filósofos e aos teólogos medievais, a
Copérnico e aos cientistas modernos, até Rawls e Habermas, filósofos políticos
dos nossos dias... Ainda no discurso evocado, vieram
à tona alguns nós problemáticos cruciais para a humanidade do nosso tempo, aos
quais Ratzinger dedicou muitíssima atenção. Cito dois em particular: os
fundamentos do direito e de um ordenamento jurídico e político legítimo no
mundo atual; os fundamentos de um uso responsável do imenso saber e poder dado
ao ser humano pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Não se trata, de
modo algum, de problemas abstratos. São de interesse comum evidente, estão no
centro da preocupação da Igreja, como ficou claro a partir das últimas duas
grandes encíclicas sociais, a Caritas in veritate de Bento XVI e a Laudato si’
do Papa Francisco. São também nós problemáticos que, para serem enfrentados na
sua complexidade, requerem naturalmente abordagens interdisciplinares e,
portanto, chamam ao apelo o mundo que, por sua vocação, é chamado ao diálogo
interdisciplinar: o mundo universitário. Por todos esses motivos, a nossa
Fundação, embora se conservando em suas finalidades institucionais atenta a
encorajar muitas iniciativas e direções do trabalho teológico e, mais
amplamente, cultural, sente-se chamada hoje a promover em particular os
esforços que se orientam ao exercício da “razão aberta”, do diálogo
interdisciplinar que se ocupa de responder aos grandes desafios da humanidade
atual.Em certo sentido, queremos continuar o compromisso de Bento XVI com o
diálogo com a cultura moderna, como um dos grandes serviços pela humanidade
hoje, mesmo que se trate, às vezes, de um diálogo difícil, que pode se
encontrar diante de fechamentos ou preconceitos, como nos recorda a recusa
encontrada por Bento na Universidade de Roma. Assim, o Simpósio Anual realizado
no ano passado na Costa Rica, com a nossa contribuição e apoio, ocupou-se dos
desafios da ecologia humana já enfocados pelo Papa Ratzinger e aprofundados
mais ainda na encíclica Laudato si’. Por sua vez, o Simpósio em preparação para
o próximo outono [europeu] se ocupará especificamente dos problemas dos
fundamentos do direito e dos direitos humanos, no 70º aniversário da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Depois, em colaboração com a
Universidade Francisco de Vitoria de Madri, está sendo desenvolvida a segunda
edição do Prêmio Razão Aberta, que pretende promover pesquisas específicas e
iniciativas de docência universitária que traduzam concretamente em ações
aquele diálogo entre as diversas disciplinas – ciências naturais, humanas, da
comunicação, artes, filosofia, teologia... –, diálogo no espírito comum da
busca da verdade que Ratzinger deseja para que o saber não se despedace e se
decomponha em setores não comunicantes, mas conserve a coragem e o gosto de
responder às grandes perguntas do ser humano e da sociedade, sem excluir
aquelas últimas sobre a origem e o fim, sobre o sentido e sobre Deus.Se, nessas
perspectivas, conseguirmos identificar linhas realistas de colaboração e de
promoção na pesquisa, a nossa Fundação terá muita alegria em colaborar e dar a
contribuição possível a ela.
Obrigado pela atenção!
QUAL O MAIOR DESAFIO DA IGREJA
HOJE ?
“Certamente, a Igreja já fez, está fazendo muito no
campo social, e precisará fazer mais ainda. Mas, é preciso que fique claro: não
é essa a missão originária, "própria” da Igreja, como repete expressamente
o Vaticano II (cf. GS 42,2; e ainda 40,2-3 e 45,1). A missão social
é, antes, uma missão segunda, embora derivada, necessariamente, da primeira,
que é de natureza "religiosa”. Essa lição nunca foi bem compreendida pelo
pensamento laico. Foram os Iluministas que queriam reduzir a missão da Igreja à
mera função social. Daí terem cometido o crime, inclusive cultural, de
destruírem celebres mosteiros e proibido a existência de ordens religiosas, por
acharem tudo isso coisa completamente inútil, mentalidade essa ainda forte na
sociedade e até mesmo dentro da Igreja. Agora, se perguntamos:
Qual é o maior desafio da Igreja?, Devemos responder: É o maior
desafio do homem: o sentido de sua vida. Essa é uma questão que transcende
tanto as sociedades como os tempos. É uma questão eterna, que, porém, hoje, nos
pós-moderno, tornou-se, particularmente angustiante e generalizada. É, em
primeiríssimo lugar, a essa questão, profundamente existencial e hoje
caracterizadamente cultural, que a Igreja precisa responder, como, aliás, todas
as religiões, pois são elas, a partir de sua essência, as "especialistas
do sentido”. Quem não viu a gravidade desse desafio, ao mesmo
tempo existencial e histórico, e insiste em ver na questão social "a
grande questão”, está "desantenado” não só da teologia, mas também da
história.”- ( Frei Clodovis M. Boff).
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