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Catequeses de João Paulo II, Bento XVI, e papa Francisco: "A Igreja e a hierarquia da verdade a partir do Concílio Vaticano II"

Written By Beraká - o blog da família on quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020 | 22:50








João 18,37: “Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz...”
 



Hierarquia das verdades: uma tomada de consciência importante para quem quer evangelizar




Por Felipe Kolle





O Beato Paulo VI deu algumas orientações em sua primeira encíclica a respeito da evangelização como diálogo compreensivo e amistoso. Se queremos, porém, evangelizar com fidelidade à fé da Igreja e com a esperança de sermos compreendidos pelos nossos interlocutores, é necessário tomar consciência de uma noção muito importante: a hierarquia das verdades. Implicitamente, essa noção não é nenhuma novidade, mas corresponde a uma sensibilidade básica que guiou o anúncio da Igreja desde o início. Foi o Concílio Vaticano II que a retomou de modo explícito, dizendo que:






“Existe uma ordem ou hierarquia das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente” (Decreto Unitatis Redintegratio, n. 11).





O papa Francisco, por sua vez, a desenvolveu na sua exortação Evangelii Gaudium (n. 34-39):






“No mundo atual, com a velocidade das comunicações e a seleção interessada dos conteúdos feita pelos meios de comunicação de massa, a mensagem que anunciamos corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos seus aspectos secundários”, constata Francisco. É algo que percebemos no dia-a-dia: quantas pessoas, por exemplo, têm a impressão de que a doutrina da Igreja se resume a um conjunto de proibições, pela maneira como temas como aborto, contracepção e homossexualidade são tratados nas notícias? O problema maior ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então identificada com tais aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo”, diz o papa - Portanto, convém ser realistas e não pressupor que os nossos interlocutores conhecem o horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere sentido, beleza e fascínio.”





Desvinculadas daquilo que é o núcleo essencial do anúncio cristão, questões sobre aspectos morais ou sacramentais podem parecer sem sentido. Não basta falar sobre ir à missa aos domingos ou sobre o sexo antes do casamento e simplesmente esperar que o ouvinte, instantaneamente, veja sentido no que dizemos. Nem sequer explicar exaustivamente esses pontos é suficiente. É preciso ir mais fundo e entender o horizonte no qual se situam essas questões, deixando claro qual a relação que existe entre elas e o coração do Evangelho.






Por isso, diz o papa:





“Uma pastoral em chave missionária não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir. Quando se assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem exceções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade, e assim se torna mais convincente e radiosa. Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas delas são mais importantes por exprimir mais diretamente o coração do Evangelho.”






Qual é, então, o essencial? Em que consiste a medula do anúncio cristão? "Qual é a doutrina segura que a Igreja proclama?"






“Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas delas são mais importantes por exprimir mais diretamente o coração do Evangelho. Neste núcleo fundamental, o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado”, escreve Francisco.







O amor de Deus que nos salva! Um amor tão incondicional, tão sublime, tão apaixonado que nos constrange, que nos faz corar de vergonha pela nossa frieza. Na vida, morte e ressurreição de Jesus, Deus torna esse amor imenso palpável, concreto, inegável. O papa tira as consequências práticas disso para a nossa pregação: “Antes de mais nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário que haja uma proporção adequada. Esta reconhece-se na frequência com que se mencionam alguns temas e nas acentuações postas na pregação. Por exemplo, se um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do papa que da Palavra de Deus.”






E Francisco deixa claro:





“Isso não significa negar ou esconder nenhum elemento da doutrina da Igreja. Pelo contrário, trata-se de fazer cada elemento ser compreendido na plenitude de seu significado, e não distorcido e tornado, assim, estéril e frágil, fazendo da doutrina da Igreja “um castelo de cartas”, como diz o papa.





Se falamos desses elementos sem evidenciá-los como decorrências daquele anúncio central de amor, o risco é grande. Muitas pessoas, não vendo sentido no que dizemos, não aceitarão a nossa pregação – e com razão. Diz o papa:





“É que, então, não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas.”






A tarefa do evangelizador não é propagar verdades isoladas, fragmentadas e incompreensíveis, mas anunciar o amor misericordioso de Deus manifestado em Jesus Cristo e só então, a partir daí, servir à consciência do outro, explicitando como a nossa resposta de amor pode se concretizar nas diversas dimensões da nossa vida.







A abolição da verdade






Por Veritatis Splendor






No nosso tempo, no mundo inteiro, estão num primeiro plano do debate político e dos comentários da mídia as questões controvertidas sobre a o valor da vida humana (desde a concepção até a morte natural), sobre a bioética na perspectiva dos atuais progressos da Ciência, sobre o significado da sexualidade e da família, etc. Nos países democráticos, é reconhecido a todos – pessoas singulares ou entidades –, o direito de manifestar livremente a sua opinião, de sugerir soluções e de apresentá-las na mídia, ou por meio de representantes do povo, de projetos de lei, etc. É uma decorrência lógica dos princípios de liberdade e pluralismo, que são considerados essenciais para uma autêntica democracia. Neste sentido, nem políticos nem mídia se atreveriam a negar ou restringir, por exemplo, o direito de o movimento gay expor e defender as suas reivindicações; nem o direito de ONGS ou movimentos ecológicos reivindicar, por exemplo, o reconhecimento de que os animais possuam os mesmos direitos que os seres humanos. Cada opinião é respeitada, por princípio, e aceita para debate civilizado, exceto… Sim, há uma exceção: a Igreja Católica. Quando a Igreja se manifesta sobre essas questões debatidas na atualidade, levanta-se imediatamente um clamor, que ecoa em grande parte da mídia, contra o seu direito de opinar, falar, sugerir, propor. Parece que só em relação à Igreja a liberdade e o pluralismo ideológico e político deixam de ter vigência.














Dirão que é porque a Igreja é “dogmática”. Mas a Igreja não manda no país, nem tem poder algum para fazê-lo numa sociedade civil laica, que ela não só aceita de bom grado mas defende como tal (se alguém ignora isso, ignora os ensinamentos da Igreja desde o Concílio Vaticano II). Mas a Igreja, que reúne em si um grupo amplamente majoritário de brasileiros, simplesmente acha, e com toda a razão, que a sua voz pode ser ouvida pelo menos com um respeito análogo ao que se presta a opiniões minoritárias, por vezes bem singulares, de grupos numericamente insignificantes.Ora, a realidade é que, sem tréguas, uma gritaria desrespeitosa – e com freqüência ofensiva – pretende silenciar, abafar, excluir do debate essa voz. 





Esse processo de exclusão, de abolição, procede por quatro degraus, que coincidem num progressivo “banimento da verdade”, degraus que analisaremos brevemente a seguir:






1)-O primeiro degrau: Como nos mais explosivos tempos do Iluminismo, mal a Igreja – por seus representantes legítimos – manifesta uma posição nessas questões debatidas, e a defende com argumentos que julga apropriados, começa a escutar-se a velha toada de “obscurantismo”, “atraso”, “antagonismo entre fé e ciência”, “religião inimiga do progresso” . A Igreja, segundo esses acusadores, estaria pretendendo opor-se aos progressos da ciência e ao bem da humanidade com a irracionalidade da fé e dos dogmas. Um mínimo de objetividade – de honestidade – permitiria a qualquer pessoa de boa fé perceber que, nos temas de bioética hoje em debate, a Igreja jamais apresenta como soluções a serem aceitas pelos governantes teses baseadas na Sagrada Escritura, nas definições dos Concílios ou nos ensinamentos magisteriais dos Papas. Pelo contrário, baseia a sua defesa da vida e da dignidade do ser humano em argumentações científicas (isto é, em conclusões aceitas e defendidas por um número ponderável de cientistas atuais de primeira linha) e em argumentos racionais, compartilhados por filósofos pensadores totalmente alheios à religião.Neste sentido, a posição da Igreja nessas questões (células-tronco embrionárias, aborto, eutanásia, casamento homossexual, etc.) alicerça-se fundamentalmente numa antropologia filosófica amadurecida na reflexão de grande número dos maiores pensadores da humanidade, do Ocidente e do Oriente, muitos deles pré-cristãos (Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicteto…), mentes brilhantes que, ao longo de milênios, também na era cristã, aprimoraram o pensamento humano e chegaram a formular conceitos enormemente “respeitáveis” de antropologia filosófica e de ética natural, um acervo de autêntica “sabedoria”, que enriqueceu e elevou a humanidade. Hoje, quer se queira quer não, a Igreja é a grande herdeira dessa sabedoria. Não é a “inimiga do progresso”, mas a “amiga da verdade e da vida”. Por isso, toda a orquestração já automatizada – e sistemática –, que clama contra o “obscurantismo religioso” da Igreja, contra a “fé inimiga da ciência” é, simplesmente, uma impostura, uma mentira: um banimento da verdade.






2)-O segundo degrau: Acontece, porém, que alguns, mais esclarecidos e serenos na apreciação das coisas, reconhecem que a posição da Igreja corresponde ao que acabamos de dizer. Mas – dizem – essa posição parte da base de que a razão é capaz de alcançar a verdade ou, por outra, de que existem verdades absolutas que a razão humana pode captar, esclarecer, aprofundar e levar às suas autênticas conseqüências. E isso seria falso. A repulsa às posições da Igreja (bem como aos pensadores não-religiosos, de escolas filosóficas laicas, que coincidem com o “raciocínio” da filosofia perene), adota, pois, agora uma nova orientação: o postulado dogmático do agnosticismo, isto é, que não existe a verdade ou, se existe, é impossível que seja objetivamente conhecida. Como se sabe, na raiz dessa concepção da “verdade”, está a herança da filosofia do imanentismo, uma linha de pensamento, anti-metafísica por essência, que em seu processo evolutivo desembocou em Hegel e produziu, como filhos inesperados mas naturais, o marxismo-leninismo e o nazismo.O agnosticismo, e a sua conseqüência necessária, o relativismo, “levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças de um ceticismo geral […]. A legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no contexto atual, da desconfiança na verdade […]. Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião” (João Paulo II, Enc. Fides et ratio, 14/9/1998, n. 5). É interessante frisar que, tanto a Encíclica Fides et ratio como o discutido discurso de Bento XVI na Universidade de Ratisbona, não são uma defesa da fé perante o perigo dos desvios da razão, mas, ao contrário, uma vigorosa defesa da razão como instrumento para captar a verdade, alertando para os perigos de uma fé que prescinda da colaboração estreita da razão.














3)-O terceiro degrau: Sim. Dir-se-á que a razão é incapaz de atingir o ser e a verdade íntimas das coisas, e que, portanto, resta apenas, como base segura em que nos apoiarmos, o que a ciência experimental pode oferecer como “verdade materialmente comprovada”. Acontece, porém, que a Igreja apresenta cada vez mais argumentações científicas, altamente ponderáveis, na sua defesa da vida. Chegando-se a este ponto, o banimento da verdade sente-se obrigado a dar mais um passo, que o exemplo citado a seguir ilustra bem. Quando se começou a debater a questão das experiências com células-tronco embrionárias, o tema foi abordado num diálogo público numa TV de São Paulo. Uma das especialistas em embriologia, que trabalhara com células-tronco adultas no Canadá, defendeu com argumentos científicos que a vida humana começa no próprio instante da concepção (neste sentido, são praticamente irrebatíveis os estudos do famoso geneticista francês Jerôme Léjeune). Para contradizer essa posição, outra pesquisadora, partidária do uso das células embrionárias, retrucou dizendo que, se bem era verdade que em seus livros acadêmicos ela dizia que a vida humana começa com a concepção, no caso concreto das células-tronco embrionárias esse argumento científico não seria válido: quem deveria determinar quando a vida humana começa é a lei. Como “prova” disso aduzia que, para efeitos de transplante de órgãos, as leis dos diversos países definem de formas diferentes a “morte clínica” que autoriza a extração de órgãos para transplante. Esse mesmo argumento foi apresentado, há pouco, nas páginas de um dos principais jornais de São Paulo: o começo da vida humana não deve ser definido pela ciência, mas pela legislação de cada país. Mas, definida com base em quê? No consenso. Como não há referenciais absolutos (pois não há verdades absolutas), como já dizia João Paulo II, “tudo é convencional, tudo é negociável” (Encíclica Evangelium vitae, n. 20). Negada assim a existência de valores ou verdades objetivas e universais, o que resta? Só a vontade, o puro e simples querer. Toda a Encíclica Veritatis Splendor alerta sobre os perigos dessa tendência de fazer da liberdade a fonte da verdade, isto é, de só aceitar como “verdadeiro”, em cada momento, o que livremente escolhe o indivíduo ou a “maioria” (Não lembram a história recente? O nazismo chegou o poder e o manteve – com todos os seus crimes horrendos contra a humanidade – , apoiado pela maioria).






4)-O quarto degrau: Chamaremos quarto degrau a um prolongamento da reflexão sobre o terceiro degrau, sobre o relativismo absoluto que se traduz na pulverização de quaisquer valores morais. Se a liberdade é a única fonte da verdade, isto é, se só se pode aceitar como verdadeiro em cada momento o que livremente escolhe a “maioria”, nada impede que os legisladores – se calhar e houver interesses nacionais e internacionais poderosos envolvidos no assunto –, fiquem de acordo em aprovar que a vida começa quando a criança tem dois anos de idade e que, em conseqüência, até os dois anos, qualquer criança pode ser desmanchada para experiências científicas úteis para curar doenças e salvar vidas. Dirão que isso é extrapolar. Por que? Se não há mais valores objetivos e universais, se não existem mais referenciais éticos intocáveis, onde estão os limites do que se “pode” fazer? Só resta o puro arbítrio, nas mãos dos egoísmos do momento.Durante os milênios em que os valores éticos eram tidos em conta, o que se “pode” fazer tinha um sentido moral: pode-se fazer o que é lícito moralmente; não se pode o que é ilícito. No atual relativismo radical, a palavra “pode” perdeu toda a conotação moral, e ficou reduzida ao que a ciência “pode fazer” (p.e., as experiências que, nos lager nazistas, eram praticadas com seres humanos “podiam” ser feitas cientificamente), ou ao que a lei (meramente positiva e mutável, conforme os interesses de cada momento) autoriza fazer. Sem valores nem referências de verdade e bem, o mundo – a humanidade – fica perdido no espaço como um astronave que saiu da órbita. A Igreja, como seu Mestre, ama a verdade e o bem, ama o ser humano e a sua dignidade, ama a vida e, por isso, não se importa em ser incompreendida quando vai contra-corrente na defesa dos únicos valores que podem preservar a humanidade da desintegração moral. Talvez com isso impeça que algum dia possam ser erigidas na Praça dos Três Poderes as estátuas de Pilatos (O que é a verdade?) e do Dr. Mengele.






Fonte: padrefaus.googlepages.com







SÃO JOÃO PAULI II - "O ESPLENDOR DA VERDADE"
















Em síntese: A Encíclica Veritatis Splendor, a décima do pontificado de João Paulo II, não versa sobre questões particulares de sexualidade (como noticiava a imprensa), mas trata dos princípios fundamentais da Moral Católica, tendo em vista as tendências subjetivistas que ameaçam a autêntica compreensão da Ética. O Papa reafirma a existência da lei natural incutida em todo ser humano, com suas normas universais e imutáveis: não matar, não roubar, não adulterar, não caluniar... Por conseguinte, não é a vontade do homem que define o bem e o mal, mas é o próprio Deus, Criador da natureza humana. Disto se segue que há atos intrinsecamente maus, isto é, pecaminosos por sua índole mesma. À consciência compete levar em conta o teor objetivo, dos preceitos morais e aplicá-los à situação concreta do indivíduo; para tanto, requer-se que a consciência seja bem formada, evitando escrúpulos doentios e laxismo frívolo. A Encíclica lembra ainda que a rigidez da Igreja Católica em Moral é um serviço prestado ao homem e à sociedade, visto que a grave crise sócio-econômico-política de nossos dias, em última análise, é uma crise ética. Somente a fundamentação em Deus e nos seus preceitos permitirá à sociedade contemporânea superar seu momento difícil e proporcionar maior bem-estar aos seus cidadãos. O Papa João Paulo II assinou a décima Encíclica de seu pontificado aos 6 de agosto de 1993, após quase seis anos de paciente e atenta preparação. A imprensa, já mesmo antes da publicação desse documento, que se deu no dia 6/10/1993, comentava a Encíclica, apresentando-a como explanação da moralidade sexual. Este tema parecia ser o assunto dominante da Veritatis Splendor. Ora quem lê o texto, verifica que pouco se detém em casuística ou em problemas particulares de Moral; vem a ser, antes do mais, uma reflexão sobre a Moral Fundamental ou os grandes princípios da Moral frente às teorias de Ética contemporânea, que tendem a fazer da vontade do homem o critério absoluto da Moralidade. Os aspectos particulares da vida moral são abordados pelo Catecismo da Igreja Católica, ao qual a Encíclica, logo em seu início, faz referência:






"Ao remeter para o Catecismo como texto de referência seguro e autêntico para o ensino da doutrina católica, a Encíclica limitar-se-á a afrontar algumas questões fundamentais do ensinamento moral da Igreja, sob a forma de um necessário discernimento sobre problemas controvertidos entre os estudiosos da Ética e da Teologia" (no 5).







Dada a importância do documento, passamos a percorrer os seus principais tópicos:




1. O TEOR DOUTRINÁRIO DA ENCÍCLICA






A leitura da Encíclica não é fácil, visto que recorre a frases longas e de terminologia especializada. Como quer que seja, percebe-se que o seu fio condutor é a intenção de abordar o problema "subjetivismo x objetivismo" em Moral. Com outras palavras: o comportamento ético é regido por normas válidas para todos os homens ou é lícito a cada um definir sua conduta unicamente a partir de seu modo de pensar e querer? Tal é, sem dúvida, o problema lançado por muitas correntes de pensamento contemporâneas, impregnadas de existencialismo. ([1]) Frente a tais concepções, o S. Padre reafirma, com toda a Tradição Católica, que:







“Existem normas objetivas e universais de Moralidade, baseadas na lei natural: "Não matarás, Não roubarás, Não adulterarás, Não caluniarás... "Naturalmente essas normas universais hão de ser consideradas pela consciência de cada indivíduo; após atento exame das circunstâncias (estado de saúde, idade, conhecimento de causa...), a consciência dirá se a lei universal vale, e até que ponto vale, no caso concreto deste ou daquele indivíduo.”






Explicitemos os textos da Encíclica em que tal tese é proposta:



1.1. Que é a Moral?







A Moral da Igreja é a indicação, ao homem, daquilo que ele deve fazer para possuir a vida eterna. A pergunta do jovem rico a Jesus: "Mestre, que farei de bom para entrar na vida eterna?" (Mt 19, 16) é a pergunta de todo homem, que sente em si o chamado intimo à plenitude da vida. A resposta de Jesus a tal indagação aponta o Decálogo, que corresponde ao que se chama "a lei natural":






"Se queres entrar na vida, cumpre os mandamentos...: Não matarás, não adulterarás, não roubarás, não levantarás falso testemunho; honra pai e mãe, e honra a teu próximo como a ti mesmo" (Mt 19, 17-19).



O S. Padre afirma, pois, com toda a Tradição cristã, mesmo com pensadores pré-cristãos e não cristãos, a existência de uma lei Incutida no coração de todo homem e anterior a qualquer escola ou cultura:"Só Deus pode responder à pergunta sobre o bem, porque Ele é o Bem. Mas Deus respondeu já a esta pergunta... criando o homem e ordenando-o com sabedoria e amor ao seu fim, mediante a lei inscrita no seu coração (cf. Rm 2,15), a lei natural... Graças a ela, conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar" (no 12). Desta afirmação se conclui que "a Moral da Igreja implica necessariamente uma dimensão normativa"; ela não é apenas a verificação fria dos diversos comportamentos dos homens e dos povos; ela não se limita a fazer estatísticas, das quais se depreenderia o que é certo e o que é errado; certo seria o que a maioria dos homens faz: "A Teologia Moral não se pode reduzir a um conhecimento elaborado só no contexto das chamadas ciências humanas. Enquanto estas se ocupam com o fenômeno da moralidade como fato histórico e social, a Teologia Moral, embora deva servir-se das ciências do homem e da natureza, não está subordinada aos resultados da observação empírico-formal ou da compreensão fenomenológica...Os princípios morais não são dependentes do momento histórico em que são descobertos. Além disso, o fato de alguns crentes agirem sem observar os ensinamentos do Magistério ou considerarem erradamente como moralmente justa uma conduta declarada pelos seus Pastores contrária à lei de Deus, não pode constituir argumento válido para rejeitar a verdade das normas morais ensinadas pela Igreja. A afirmação dos princípios morais não é da competência dos métodos empírico-formais" (no 111s).







1.2. Lei Natural e Autonomia da Razão







Em nossos dias, a estima da liberdade de arbítrio tem levado vários pensadores a proclamar a autonomia da razão humana em matéria ética; o homem teria o poder de definir o que é bem e o que é mal. Tal teoria assume modalidades diversas, que o texto da Encíclica enumera. Eis uma delas:






"Alguns chegaram a conceber uma completa soberania da razão no âmbito das normas morais...; tais normas constituiriam o âmbito de uma Moral meramente 'humana', isto é, seriam a expressão de uma lei que o homem autonomamente daria a si próprio, com a sua fonte exclusiva na razão humana" (no 36).






Outra modalidade de autonomia seria a seguinte:






"Querendo manter a vida moral num contexto cristão, foi introduzida por alguns teólogos moralistas uma nítida distinção, contrária à doutrina católica, entre uma ordem ética, que teria origem humana e valor apenas temporal, e uma ordem da salvação, para a qual contariam apenas algumas intenções e atitudes interiores relativas a Deus e ao próximo... A Palavra de Deus limitar-se-ia a propor uma exortação genérica, que... a razão autônoma teria a tarefa de preencher com determinações normativas... adequadas à situação histórica concreta" (no 37).






Observa João Paulo II:






"É impossível não ver que uma tal interpretação da autonomia da razão humana comporta teses incompatíveis com a doutrina católica" (no 37).






Lembra o texto que a autonomia da razão humana não é ilimitada; Deus deu ao homem o mandamento de cultivar e embelezar a terra; todavia ele o deve fazer como imagem e semelhança de Deus ou como mandatário do Criador. O homem não é fonte dos valores morais; foi precisamente este o pecado dos primeiros pais — o querer ser árbitros entre o bem e o mal, como lhes sugeriu o tentador: "Deus sabe que no dia em que comerdes, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, arbitrando entre o bem e o mal" (Gn 3,5). Na verdade, a autonomia moral do homem não significa a recusa, mas, sim, o acolhimento dos mandamentos de Deus. A liberdade do homem e a lei de Deus são chamadas a compenetrar-se entre si, no sentido de que ao homem compete prestar livre obediência a Deus, enquanto Deus tributa gratuita benevolência ao homem. Disto resulta que o homem não é soberanamente autônomo em matéria moral; mas também não é heterônomo, isto é, guiado por alguém que lhe é estranho; na verdade, o homem é teônomo... Teônomo, porque a livre obediência do homem a Deus implica a participação da razão e da vontade do homem na Sabedoria e Providência de Deus.








1.3. Atos intrinsecamente maus






Atos intrinsecamente maus são aqueles que, por sua índole mesma, são pecaminosos, independentemente de circunstâncias; assim matar um inocente, roubar, caluniar.Se a Moralidade é algo de objetivo e não depende do alvitre do indivíduo, torna-se claro que existem atos intrinsecamente maus. Retomando um dos exemplos citados, diremos que matar um inocente (uma criança no seio materno...) é algo de imoral, independentemente das circunstâncias em que se encontre a gestante. Ainda que esta, ao abortar, tenha a intenção de evitar o nascimento de uma criança deficiente ou a intenção de salvaguardar a economia do lar, o ato abortivo, como tal, é mau; não se torna moralmente bom pelo fato de que pai e mãe tenham boas intenções, pois o fim não justifica os meios. Para atingir um objetivo bom, não é lícito recorrer a meios maus ou pecaminosos. Eis outro exemplo: o latrocínio (matar para roubar, ou tomar posse de algo) é algo de intrinsecamente mau; por isto o latrocínio nunca é lícito, nem mesmo quando se tem a intenção de socorrer um pobre ([2]). A tal respeito lê-se na Encíclica:"Como ensina o Catecismo da igreja Católica, 'há comportamentos concretos pelos quais é sempre errado optar, pois tal opção inclui uma desordem da vontade, isto é, um mal moral' (n° 1761)" (no 78). Adiante ainda se lê: "A razão atesta que há objetos do ato humano que se configuram como 'não-ordenáveis' a Deus, porque contradizem radicalmente o bem da pessoa, feita à Sua imagem. São os atos que, na tradição moral da Igreja, foram denominados 'intrinsecamente maus'; são-no sempre e por si mesmos, ou se/a, pelo próprio objeto, independentemente das posteriores intenções de quem age e das circunstâncias. Por isto, sem querer minimamente negar o influxo que têm as circunstâncias e sobretudo as intenções sobre a moralidade, a Igreja ensina que 'existem atos que, por si e em si mesmos, independentemente das circunstâncias, são sempre gravemente ilícitos, por motivo do seu objeto' (Exortação ApostólicaPós-sinodal Reconciliatio et Paenitentia n° 17)" (no 80).













1.4. A Consciência







A Moral Católica, que apregoa a objetividade dos preceitos éticos, não é fria ou indiferente às situações em que o homem se encontre; este não é um autômato, regido por normas cegas. Por isto existe em todo ser humano uma faculdade à qual compete avaliar a obrigatoriedade ou não das leis morais nas circunstâncias concretas em que o indivíduo se ache. Tal faculdade é chamada a consciência moral. À consciência moral toca tomar conhecimento exato das leis objetivas da Moralidade (a consciência não é autônoma, mas teônoma) e ponderar o grau de vigência (plena, parcial ou nula) de tais normas no contexto concreto em que se encontra o indivíduo. Assim, por exemplo, quem tem obrigação de comparecer ao escritório ou à fábrica para trabalhar como assalariado e se acha em condições de saúde abaladas, pondere em sua consciência se, aqui e agora, o dever de ir trabalhar ainda o obriga; pode ser que a consciência lhe diga Sim como também lhe pode dizer Não. Para que o julgamento seja correto, requer-se que a consciência seja devidamente formada, evitando tanto os escrúpulos doentios quanto o laxismo leviano. Há, porém, quem hoje queira atribuir à consciência o direito de ignorar ou violar as normas objetivas da Moral; a consciência poderia permitir ao indivíduo cometer tranqüilamente atos intrinsecamente maus: "Tendo em vista as circunstâncias e a situação, a consciência poderia legitimamente estabelecer exceções à regra geral, permitindo cumprir, em boa consciência, aquilo que a lei morai qualifica como intrinsecamente mau... Sobre esta base, pretende-se estabelecer a legitimidade de soluções chamadas 'pastorais', contrárias aos ensinamentos do Magistério e justificar uma hermenêutica 'criadora' segundo a qual a consciência moral não estaria, de modo algum, obrigada, em todos os casos, por um preceito negativo particular" (no 56)". O fundamento mais profundo desta posição errônea estaria na observação seguinte: Cada pessoa é um mistério único, complexo e irrepetível, de modo que nenhuma lei pode valer para todos os indivíduos em todos os tempos e lugares (cf. no 55). Com outras palavras: não haveria que procurar praticar a verdade objetiva, mas bastaria a sinceridade (a sinceridade não pode ser o critério da verdade, pois uma pessoa pode estar sinceramente equivocada) do comportamento; o homem estaria livre para agir como bem quisesse, contanto que procedesse de acordo com os ditames meramente subjetivos de sua consciência: "Em algumas correntes do pensamento moderno, chegou-se a exaltar a liberdade até o ponto de se tornar um absoluto, que seria a fonte dos valores... Atribuíram-se à consciência individual as prerrogativas de instância suprema do juízo moral, que decide categórica e infalivelmente sobre o bem e o mal. Deste modo a imprescindível exigência de verdade desaparece em prol de um critério de sinceridade, de autenticidade, de acordo consigo próprio, a ponto de se ter chegado a uma concepção radicalmente subjetivista do juízo moral" (no 32). Em resposta a estas teorias, é de notar que, embora cada ser humano seja rico em facetas originais, existe, não obstante, em todo indivíduo uma mesma e única natureza, portadora das mesmas normas para todos; assim, por exemplo, no plano físico todos devem ingerir alimentos sadios, respirar ar puro, repousar convenientemente, evitar tóxicos...; caso não respeite tais normas naturais, o indivíduo se condena a deteriorar ou perder a vida física; paralelamente no plano ético, a natureza manda não matar, não roubar, não adulterar..., sob pena de que o indivíduo se desfigure moralmente; à consciência nunca será lícito ignorar ou violar tais leis, mesmo que a observância das mesmas exija sacrifício e renúncias. Também as leis do corpo humano são normas para a conduta moral do indivíduo; o que contraria a fisiologia ou as leis da biologia, é violação da própria dignidade humana; daí a recusa, por parte da Moral Católica, de contracepção, esterilização, masturbação, relações homossexuais, relações pré-matrimoniais, fecundação artificial (n? 47). Sim; lembra o S. Padre que a liberdade do homem é limitada também pelas leis da sua biologia ou fisiologia, pois o homem não é um ser meramente espiritual ou angélico, mas é psicossomático; em conseqüência, as leis do sorna ou do corpo são as leis do próprio homem; não são leis extrínsecas ao homem, que o livre arbítrio possa aceitar ou rejeitar segundo critérios subjetivos. Escreve o Papa: "Uma doutrina que separe o ato moral das dimensões corpóreas do seu exercício, é contrária aos ensinamentos da Sagrada Escritura e da Tradição; essa doutrina faz reviver, sob novas formas, alguns velhos erros sempre combatidos pela Igreja, porquanto reduzem a pessoa humana a uma liberdade espiritual puramente formal. Esta redução desconhece o significado moral do corpo e dos comportamentos que a ele se referem (cf. 1Cor 6,19). O Apóstolo Paulo declara excluídos do Reino dos céus os imorais, idólatras, adúlteros, efeminados, sodomitas, ladrões, avarentos, bêbados, maldizentes e salteadores (cf. 1Cor 6,9s)... De fato, corpo e alma são inseparáveis na pessoa, no agente voluntário e no ato deliberado; eles salvam-se ou perdem-se juntos" (no 49).






1.5. Pecado mortal e pecado venial






Também a clássica noção de pecado tem sido posta em xeque. O pecado, que é um Não dito a Deus, livre, conciente e deliberado, o qual ocorre, segundo a Tradição, quando três condições se realizam simultaneamente:





a)-Haja matéria grave.

b)-Pleno conhecimento de causa.

c)-Vontade livre e deliberada.







Tal pecado é dito mortal, porque extingue a vida da graça no íntimo de quem o comete. Caso falte alguma das três condições mencionadas, o pecado é leve ou venial. Ora, ultimamente alguns autores têm afirmado que, para haver pecado mortal, é necessário que o indivíduo retrate sua opção fundamental ou queira romper explicitamente seu liame de comunhão com Deus. Enquanto a pessoa pratica algo que contraria a lei de Deus, mas não pretende, com isto, desligar-se de Deus, tal pessoa não estaria pecando mortalmente. Sendo assim, o pecado mortal seria algo de raro, pois a maioria das pessoas que pecam gravemente não pensa em apostatar da fé e da comunhão com Deus; interessa-se apenas pelo prazer que o pecado lhes possa proporcionar. Ora a propósito o S. Padre lembra: "O Sínodo dos Bispos de 1983... não só reafirmou tudo o que foi proclamado no Concílio de Trento sobre a existência e a natureza dos pecados mortais e veniais, mas quis ainda lembrar que é pecado mortal aquele que tem por objeto uma matéria grave e que, conjuntamente, é cometido com plena advertência e consentimento deliberado. A afirmação do Concílio de Trento não considera só a matéria grave do pecado mortal, mas lembra também, como sua condição necessária, a plena advertência e o consentimento deliberado... Há de evitar-se reduzir o pecado mortal a um ato de opção fundamental — como hoje em dia se costuma dizer — contra Deus, entendendo com isso quer um desprezo explícito e formal de Deus e do próximo, quer uma recusa implícita e não reflexa do amor. Dá-se efetivamente o pecado mortal também quando o homem, sabendo e querendo, por qualquer motivo escolhe alguma coisa gravemente desordenada. Com efeito, numa escolha assim já está incluído um desprezo do preceito divino, uma rejeição do amor de Deus para com a humanidade e para com toda a criação: o homem afasta a si próprio de Deus e perde a caridade. A orientação fundamental pode, pois, ser radicalmente modificada por atos particulares" (no 70). Outro aspecto do tema "pecado" é o seguinte: Quando alguém comete um ato gravemente desordenado sem saber que é tal, está sendo vítima de ignorância moral. Tal ignorância pode não ser culpada (a pessoa pode não ter culpa de não saber que está cometendo algo de errôneo); neste caso não há pecado formal ou propriamente dito; há apenas pecado material, isto é, uma ação má não imputável à responsabilidade de quem a comete. Todavia a ignorância pode ser culpada ou pode ser devida a uma negligência consciente e voluntária de quem age; é o caso do médico que comete erros no exercício de sua profissão, porque descuida conscientemente de se atualizar; cf. no 63s. Explanadas tais verdades na primeira e na segunda Partes da Encíclica, o S. Padre, na terceira Parte, se volta para aplicações e conseqüências concretas de quanto foi exposto.






2. APLICAÇÕES CONCRETAS - Realcemos cinco tópicos importantes:




2.1. Relativismo de pensamento










A necessidade de reafirmar certos princípios éticos em nossos dias é tanto mais evidente quanto mais se presencia a derrocada da dignidade humana. "O homem freqüentemente já não sabe quem é, donde vem e para onde vai. E é assim que não raro assistimos à tremenda derrocada da pessoa humana em situações de autodestruição progressiva. Se fôssemos dar ouvidos a certas vozes, parece que não mais se deveria reconhecer o indestrutível caráter absoluto de qualquer valor moral. Está patente aos olhos de todos o desprezo da vida humana já concebida e ainda não nascida, a violação permanente de fundamentais direitos da pessoa, a destruição iníqua dos bens necessários para uma vida verdadeiramente humana. Mas algo de mais grave aconteceu: o homem já não está convencido de que só na verdade pode encontrar a salvação. A força salvadora da verdade é contestada, confiando-se à simples liberdade, desvinculada de toda objetividade, a tarefa de decidir autonomamente o que é bem e o que é mal. Este relativismo gera, no campo teológico, desconfiança na sabedoria de Deus, que guia o homem com a lei moral. Àquilo que a lei moral prescreve, contrapõem-se as chamadas situações concretas, no fundo, deixando de considerar a lei de Deus como sendo sempre o único verdadeiro bem do homem" (no 84). O quadro se torna ainda mais sombrio na seguinte passagem: "A razão e a experiência atestam não só a debilidade da liberdade humana, mas também o seu drama. O homem descobre que a sua liberdade está misteriosamente inclinada a trair esta abertura à Verdade e para o Bem, e que, com bastante freqüência, ele prefere escolher bens finitos, limitados e efêmeros. Mais ainda: por trás dos erros e das opções negativas, o homem detecta a origem de uma revolta radical, que o leva a rejeitar a Verdade e o Bem para arvorar-se em princípio absoluto de si próprio: 'Sereis como Deus' (Gn 3,5). Portanto a liberdade necessita de ser libertada. Cristo é o seu Libertador. Ele nos libertou, para que permaneçamos livres (Gl 5,1)" (no 86).







2.2. O Martírio












O martírio, que sempre acompanhou e ainda acompanhada a vida da Igreja, é o testemunho mais significativo possível de coerência e de fidelidade aos bons princípios: "A recusa das teorias éticas teleológicas, conseqüencialistas e proporcionalistas, que negam a existência de normas morais negativas referentes a determinados comportamentos e válidas sem exceção, encontra uma confirmação particularmente eloqüente no fato do martírio cristão, que sempre acompanhou e ainda acompanha a vida da Igreja" (no 90). O martírio é a rejeição de qualquer exceção ou fuga covarde; é o Não dito a qualquer tipo de relativismo ou de "adaptação" traiçoeira da verdade às circunstâncias do indivíduo; é o ato mais corajoso e leal que alguém possa apresentará sociedade: "O martírio desautoriza como ilusório e falso qualquer significado humano que se pretendesse atribuir, mesmo em condições excepcionais, ao ato em si próprio moralmente mau; mais ainda, revela claramente a sua verdadeira face: a de uma violação da humanidade do homem, antes ainda em quem o realiza do que naquele que o padece. Portanto o martírio é também exaltação da perfeita humanidade e da verdadeira vida da pessoa, como testemunha S. Inácio de Antioquia, dirigindo-se aos cristãos de Roma, lugar do seu martírio: 'Tende compaixão de mim, irmãos: não me impeçais de viver, não queirais que eu morra... Deixai que eu alcance a pura luz; chegado lá, serei verdadeiramente homem. Deixai que eu imite a Paixão do meu Deus' (Aos romanos VI, 2s)" (no 92).






2.3. Intransigência intolerável?





A insistência da Igreja em defender a perene validade dos preceitos morais, especialmente dos que proíbem atos intrinsecamente maus, é tida freqüentemente como sinal de intransigência intolerável; não quadraria com as situações complexas em que as pessoas se vêem em nossos dias. À Igreja faltariam compreensão e compaixão. Em resposta, nota João Paulo II que não se pode separar do título de "Igreja-Mãe" o de "Igreja-Mestra". O amor à pessoa humana não seria autêntico se calasse os valores que garantem o verdadeiro bem do homem: "A apresentação clara e vigorosa da verdade moral jamais pode prescindir de um profundo e sincero respeito, animado por um amor paciente e confiante, de que o homem sempre necessita na sua caminhada moral, tornada, com freqüência, cansativa pelas dificuldades, delibilidades e situações dolorosas. A Igreja, que jamais poderá renunciar ao princípio da verdade e da coerência, pelo qual não aceita chamar bem ao mal e mal ao bem, deve estar sempre atenta para não partir a cana já fendida e para não apagar a chama que ainda fumega (cf. Is 42,3). Paulo VI escreveu: 'Não diminuir em nada a doutrina salvífica de Cristo constitui eminente forma de caridade para com as almas. Esta, porém, deve ser sempre acompanhada da paciência e bondade, de que o próprio Senhor deu exemplo ao tratar com os homens. Tendo vindo não para julgar, mas para salvar (cf. Jo 3,17), Ele foi certamente intransigente com o mal, mas misericordioso com as pessoas'(Ene. Humanae Vitae 29)" (n9 95).







2.4. Renovação da vida social e política











O Papa refere-se às graves modalidades de injustiça social e econômica e de corrupção política que pesam sobre povos e nações inteiras, causando a infelicidade de muitas pessoas oprimidas e humilhadas. E propõe a urgente necessidade de uma renovação social e política baseada nos princípios da Moral; sem esta, qualquer tentativa de remediar seria frustrada: "No âmbito político, deve-se assina/ar que a veracidade nas relações dos governantes com os governados, a transparência na administração pública, a imparcialidade no serviço das instituições públicas, o respeito dos direitos dos adversários políticos, a tutela dos direitos dos acusados face a processos e condenações sumárias, o uso justo e honesto do dinheiro público, a recusa de meios equívocos ou ilícitos para conquistar, manter e aumentar a todo custo o poder, são princípios que encontram a sua raiz primária — como também a sua singular urgência no valor transcendente da pessoa e nas exigências morais objetivas de governo dos Estados" (no 101).







2.5. Bispos e Teólogos















Após mostrar que a nova evangelização requer sólida fundamentação ética, o Papa se dirige aos Bispos e aos teólogos, exortando-os a colaborar, cada qual em sua função, para a preservação dos valores éticos e sua irradiação na sociedade. Em particular aos Bispos é dito o seguinte: "Temos o dever, como Bispos, de vigiar a fim de que a Palavra de Deus seja fielmente ensinada. Meus Irmãos no Episcopado, faz parte do nosso ministério pastoral vigiar sobre a transmissão fiel deste ensinamento moral e recorrer às medidas oportunas para que os fiéis sejam preservados de toda doutrina e teoria a ele contrária. Nesta tarefa, todos somos ajudados pelos teólogos, mas as opiniões teológicas não constituem a regra nem a norma do nosso ensinamento. A autoridade deste deriva, com a assistência do Espírito Santo e na comunhão cum Petro et sub Petro, da nossa fidelidade à fé católica recebida dos Apóstolos. Como Bispos, temos a obrigação grave de vigiar pessoalmente para que a sã doutrina da fé e da Moral seja ensinada nas nossas dioceses.Uma particular responsabilidade se impõe aos Bispos relativamente às instituições católicas. Quer se trate de organismos para a pastoral familiar ou social, quer de instituições dedicadas ao ensino ou aos cuidados sanitários, os Bispos podem erigir e reconhecer estas estruturas e delegar-lhes algumas responsabilidades; mas nunca ficam dispensados das próprias obrigações. Compete-lhes, em comunhão com a Santa Sé, a tarefa de reconhecer ou de retirar em casos de grave incoerência a denominação de 'católico' a escolas, Universidades, clínicas e serviços sócio-sanitários, que se dizem na Igreja" (no 116).







Duas conclusões importantes são enunciadas nesta passagem:






1ª)-Os teólogos têm um papel de pesquisa e aprofundamento da doutrina, mas não lhes compete dizer a última palavra sobre assuntos de fé e de Moral.





2ª)-As instituições ditas "católicas" que não se orientem pelos princípios da Moral Católica, sejam destituídas do seu título.




Assim concebida, a Encíclica Veritatis Splendor merece toda a estima não só dos fiéis católicos, mas de todas as pessoas de bem: "João Paulo II teve a coragem de falar, julgou seu dever elevar a voz. Denunciar a trapaça de um humanismo sem Deus ou contra Deus e, por isso mesmo, desumano. Anunciar um humanismo integral e pleno, fruto de um Acontecimento — a irrupção de Deus na História por meio do homem Filho de Deus" (D. Lucas Moreira Neves, A Coragem de Falar, em JORNAL DO BRASIL, 20/10/1993, p. 11).






Dom Estêvão Bettencourt






Referências do texto acima:





 [1] O existencialismo é a escola que tem por critério da verdade e da Moral "eu e minhas circunstâncias". Ora, como as circunstâncias em que me acho, mudam, a verdade e a Moral (o bem e o mal) podem mudar constantemente para mim e para os meus semelhantes. Não haveria, pois, normas universalmente válidas.



[2] A formulação negativa de um preceito ("Não matar, não roubar, não adulterar, não caluniar...) torna esse preceito absolutamente inviolável, pois a fórmula negativa estabelece o limite entre o bem e o mal. O Não indica que o Sim é mau; dizer Sim ao morticínio, ao roubo, ao adultério... é mau; por isto é preciso dizer-lhes Não. Não há meio-termo entre o bem e o mal.






"A Razão em busca da Verdade": um discurso não proferido, ou rejeitado?







(Padre jesuíta italiano Federico Lombardi)

         



Da visita de Bento XVI à Universidade La Sapienza de Roma - Artigo de Federico Lombardi




Para Bento XVI:




“A universidade deve estar ligada exclusivamente à autoridade da verdade e, portanto, deve ser autônoma, livre de autoridades pessoais, quer políticas partidárias, ideológicas e eclesiásticas”.





Por isso, se interroga sobre o que um papa tem a dizer no encontro com a universidade de sua cidade, Roma. Para responder, ele reflete acima de tudo sobre a natureza e a missão do papado e, depois, sobre a natureza e a missão da universidade. Publicamos aqui a conferência do Padre jesuíta italiano Federico Lombardi, ex-porta-voz da Santa Sé, proferida na International Academic Conference: In search of the truth. From Nicolaus Copernicus to Benedict XVI, realizada na Faculdade de Teologia da University of Nicolaus Copernicus, em Toruń, Polônia, 17-04-02018. O discurso foi publicado no sítio da Fundação Ratzinger. A tradução é de Moisés Sbardelotto.






Eis o texto do Pe. Federico Lombardi:





Ilustres professores, estudantes e amigos,





Estou muito grato pela honra que vocês me prestam, ao me acolherem nesta importante conferência e me dando a palavra por primeiro. Na realidade, estou ciente de que falar por primeiro não significa tanto que o meu discurso seja o mais importante, mas que, não podendo participar de todos os seus trabalhos por causa da minha grave ignorância da língua de vocês, é bom que meu discurso seja o primeiro, de modo que, depois, vocês fiquem mais livres para continuar os seus trabalhos na belíssima língua polonesa.O meu breve discurso se propõe dois objetivos:




-O primeiro é de oferecer uma contribuição para recordar um discurso do Papa Bento XVI, que é bastante significativo para quem trabalha na universidade, como vocês, mas que permaneceu menos conhecido do que outros. Justamente há três meses, em janeiro deste ano, celebrava-se o 10º aniversário desse discurso, e, por isso, eu o escolhi para esta intervenção.




-O segundo objetivo, inspirando-se nesse discurso, é de expressar algumas ideias sobre a linha programática da Fundação Ratzinger, que eu represento e que tem a alegria de colaborar com vocês nesta ocasião e, se possível, também no futuro.






O discurso do Papa Bento de que falo é um discurso que, na realidade, nunca foi proferido. Recordo, aqui, muito brevemente os acontecimentos. Bento XVI havia sido convidado oficialmente pelo reitor da mais antiga e maior universidade de Roma, que se chama “La Sapienza” – fundada pelo Papa Bonifácio VIII em 1303 –, para visitar a universidade e fazer um discurso na Aula Magna. Alguns professores, em sua maioria ideologicamente orientados à esquerda, manifestaram-se contrários. Mas se tratava de relativamente poucas pessoas. A data havia sido fixada para o dia 17 de janeiro, mas, nos dias anteriores, um grupo de estudantes ocupou a reitoria em protesto e iniciou uma contestação com tons muito duros contra a visita, dizendo que o Papa Bento era um expoente do obscurantismo contrário à cultura e que a universidade, como lugar da liberdade de pesquisa e de pensamento, não podia aceitar essa visita. Tratava-se de uma pequena minoria, mas a repercussão foi grande. Para evitar tensões, Bento XVI renunciou à visita dois dias antes da data marcada, mas enviou o texto do discurso, que foi lido e aplaudido por muitos presentes.Na realidade, o episódio continua sendo um fato de séria intolerância por parte daqueles que queriam se apresentar como arautos da razão e da liberdade, e muitíssimos intelectuais italianos, até mesmo não católicos, se envergonharam profundamente disso. Mas eu não tenho a intenção de voltar sobre isso. Acho que hoje é preciso refletir mais sobre o conteúdo do próprio discurso, que se insere na série de muitos discursos dedicados por Bento XVI à natureza e à finalidade da universidade, e é provavelmente um dos mais importantes deles. Bento XVI começa afirmando expressamente que a universidade “deve estar ligada exclusivamente à autoridade da verdade” e, portanto, deve ser autônoma, livre “de autoridades políticas e eclesiásticas”. Por isso, se interroga sobre o que um papa tem a dizer no encontro com a universidade de sua cidade. Para responder, ele reflete acima de tudo sobre a natureza e a missão do papado e, depois, sobre a natureza e a missão da universidade. Bento reconhece naturalmente que a missão do papado é, acima de tudo, de guiar a comunidade dos fiéis, mas observa que essa comunidade vive no mundo e, portanto, as suas condições e as suas vicissitudes atuam sobre o conjunto da comunidade humana. Por isso, o papa “tornou-se cada vez mais uma voz da razão ética da humanidade” (à luz da autoridade internacional conquistada pelos papas recentes, em particular por João Paulo II, antes, e Francisco, hoje, isso parece ser completamente correspondente à nossa experiência). Depois de pronunciar as palavras: “razão ética da humanidade”, Bento faz um aprofundamento muito interessante. Pode-se falar de “razão” ética, se os juízos do papa provêm da fé? Que validade eles podem ter para quem não compartilha essa fé? Por isso, Bento se pergunta: “O que é a razão? Como uma afirmação – acima de tudo, uma norma moral – pode se demonstrar como ‘razoável’?”. Para responder Bento faz referência ao famoso filósofo político estadunidense John Rawls, que reconhece às doutrinas das grandes religiões o caráter de “razoabilidade” pois “derivam de uma tradição responsável e motivada, na qual, durante longos tempos, foram desenvolvidas argumentações suficientemente boas em seu sustento”. De sua parte, Bento concorda e evidencia “que a experiência e a demonstração ao longo de gerações, o fundo histórico da sabedoria humana são também um sinal da sua razoabilidade e do seu duradouro significado”. A razão não deve ser a-histórico, “a sabedoria da humanidade como tal – a sabedoria das grandes tradições religiosas – deve ser valorizada”, não pode ser “jogada na lata de lixo da história das ideias”. Bento conclui, então, a resposta à primeira pergunta dizendo que o papa fala à universidade “como representante de uma comunidade que conserva em de si um tesouro de conhecimento e de experiência éticos, que é importante para a humanidade inteira: nesse sentido, fala como representante de uma razão ética”. Passando, depois, à pergunta sobre a natureza da universidade, o papa pensa que “a íntima origem da universidade está na ânsia de conhecimento que é própria do ser humano”. Ele quer saber o que é tudo o que o cerca. Quer verdade”. Bento XVI identifica no interrogar-se de Sócrates a manifestação mais clara desse desejo de conhecer e enfatiza o fato de que Sócrates exerce a sua maiêutica justamente na crítica à antiga religião mítica e na busca de um Deus supremo e verdadeiramente divino. Para Bento, é fundamental entender que os cristãos dos primeiros séculos se reconheceram nesse exercício socrático: para eles, “o interrogar-se da razão sobre o Deus maior, assim como sobre a verdadeira natureza e sobre o verdadeiro sentido do ser humano (...), fazia parte da essência do seu modo de ser religioso”. Eles deviam “reconhecer como parte da própria identidade a busca fatigante da razão para alcançar o conhecimento da verdade inteira”. Bento dá também outro passo aqui. “O ser humano quer conhecer – quer verdade”, e verdade é “coisa do ver, do compreender (...) mas - ele observa – nunca é somente teórica”. “Verdade significa mais do que saber: o conhecimento da verdade tem como propósito o conhecimento do bem. Este é também o sentido do interrogar-se socrático: qual é o bem que nos torna verdadeiros? A verdade nos torna bons, e a bondade é verdadeira”. Os cristãos se reconhecem também nessa direção, ou, melhor, nessa direção, sua reflexão floresce esplendidamente. Os Padres sublinham que “a fé corresponde às exigências da razão em busca da verdade (...) é o ‘sim’ à verdade, em relação às religiões míticas”. Assim, a dissolução da religião mitológica dá lugar “à descoberta daquele Deus que é Razão criadora e, ao mesmo tempo, Razão-Amor”. A fé cristã é profundamente “otimista” – observa Ratzinger – “porque a ela foi concedida a visão do Logos, da Razão criadora, que, na encarnação de Deus, revelou-se ao mesmo tempo como o Bem, a própria Bondade”. Bento XVI está convencido de que, pelo fato de a busca da razão fazer parte da própria identidade cristã, a universidade “podia ou, melhor, devia nascer no âmbito da fé cristã, no mundo cristão”. Nesse ponto, o discurso se desloca, então, para a estrutura da universidade medieval e para como a busca do conhecimento e da verdade se desenvolve nas suas quatro faculdades fundamentais: Medicina, Jurisprudência, Filosofia e Teologia. Sobre a Medicina, Ratzinger não diz muito: limita-se a destacar que, na época, a medicina não era concebida tanto como “ciência”, mas como “arte de curar”, mas sua inserção na universidade significa que ela é “subtraída do âmbito da magia” para entrar cada vez mais no âmbito e sob a orientação da racionalidade. Muito mais amplo é o discurso sobre a Jurisprudência, porque nela “se trata de dar forma justa à liberdade humana”. Aqui, Ratzinger dá um “salto ao presente” para levantar uma das questões debatidas hoje e que mais estão em seu coração: “É a questão de como pode ser encontrada uma normativa jurídica que constitua um ordenamento da liberdade, da dignidade humana e dos direitos humanos”. Ratzinger a considera como uma questão crucial para a democracia moderna e para o futuro da humanidade, estando totalmente ciente dos problemas que nascem da contínua multiplicação dos “direitos humanos” e dos conflitos que surgem entre eles, e dos fundamentalismos ideológicos e religiosos (não foi à toa que Bento XVI abordou isso em várias ocasiões, como os grandes discursos públicos de Westminster Hall em Londres ou do Reichstag em Berlim). Sobre tal questão, portanto, ele quis dialogar de modo construtivo com grandes pensadores atuais. No discurso de que estamos falando, ele indica como seu interlocutor significativo Jürgen Habermas (com quem – como sabemos – ele tivera, em 2004, um famoso diálogo público na Katholische Akademie de München). Ratzinger aprecia o fato de Habermas ver os fundamentos da legitimidade de um ordenamento estatal não só “na participação política igualitária de todos os cidadãos”, mas também na “forma razoável em que os contrastes políticos são resolvidos”. Ele aprecia sobretudo que essa “forma razoável” não é identificada por Habermas apenas com o cálculo aritmético das maiorias, mas como “um processo de argumentação sensível à verdade” (wahrheitssensibles Argumentationsverfahren).






Ratzinger conclui a parte do discurso dedicada a esse assunto com duas observações importantes:




-Por um lado, destaca com grande realismo que, na realidade do debate político, “a sensibilidade à verdade é sempre de novo subjugada pela sensibilidade aos interesses”.





-Por outro lado, considera significativo que Habermas, ao falar da “sensibilidade à verdade como elemento necessário no processo de argumentação política, insere novamente o conceito de verdade no debate filosófico e no político”.






No decorrer do diálogo – primeiro com Rawls, depois com Habermas, dois dos maiores filósofos políticos contemporâneos – são reacendidos, portanto, os conceitos de “razoabilidade” e de “verdade”, como conceitos inevitáveis se quisermos tentar fundamentar a legitimidade da convivência humana, o direito da liberdade, além de uma mera composição dos interesses graças às regras da maioria. Mas o que são a razoabilidade e a verdade? Aqui, Ratzinger retorna à estrutura da universidade medieval e à função das outras duas faculdades: a filosofia e a teologia, às quais “era confiada a pesquisa sobre o ser humano na sua totalidade e, com isso, a tarefa de manter viva a sensibilidade pela verdade”. Isso ainda vale; porque não só naquela época, mas hoje também esse é “o sentido permanente de ambas as faculdades: serem guardiães da sensibilidade pela verdade, não permitir que o ser humano seja desviado da busca da verdade”. Mas o que me parece particularmente significativo é aquilo que o Papa Bento diz logo depois, manifestando um espírito extraordinariamente humilde e respeitoso, verdadeiramente aberto ao diálogo com a grande cultura da história e do mundo. De fato, após dizer que as faculdades de filosofia e teologia “não devem permitir que o ser humano se desvie da busca da verdade”, ele faz uma das afirmações mais emocionantes e impressionantes para mim de todo o discurso: “Como elas podem corresponder a essa tarefa? Essa é uma pergunta para a qual é preciso, sempre de novo, se esforçar e que nunca é posta e resolvida definitivamente. Assim, nesse ponto, nem eu posso oferecer propriamente uma resposta, mas sim um convite para permanecer a caminho com essa pergunta – a caminho com os grandes que, ao longo de toda a história, lutaram e buscaram, com as suas respostas e com a sua inquietação pela verdade, que continuamente remete para além de cada resposta individual”. O título desta conferência diz: “Em busca da verdade: de Nicolau Copérnico a Bento XVI”. Com efeito, Bento XVI absolutamente não é – como afirmavam aqueles que o impediram de proferir essas palavras – uma pessoa que impõe aos outros com prepotência a sua posse da verdade, mas sim uma pessoa que se sente solidária com todos os grandes apaixonados buscadores da verdade, sabendo que, nesta terra, ninguém jamais a possuirá. À universidade medieval da Europa cristã e, em particular, a São Tomás de Aquino, Ratzinger reconhece o mérito de ter destacado a autonomia da filosofia, isto é, “o direito e a responsabilidade próprios da razão que se interroga com base nas suas forças”. As religiões míticas haviam desaparecido, e, ao contrário, os escritos filosóficos de Aristóteles haviam se tornado acessíveis integralmente, e as filosofias judaicas e árabes haviam se apropriado deles. Nesse contexto, “o cristianismo, em um novo diálogo com a razão dos outros, que vinha encontrando, teve que lutar pela própria razoabilidade”. A filosofia, portanto, torna-se uma verdadeira faculdade, “uma parceira autônoma da teologia e da fé nela refletida”. A relação entre filosofia e teologia é apresentada por Ratzinger em analogia com a famosa fórmula de Calcedônia sobre as duas naturezas de Cristo: “sem confusão e sem separação”: 




-Sem confusão. “A filosofia deve permanecer verdadeiramente como uma busca da razão na própria liberdade e responsabilidade (...)deve ver seus limites e sua grandeza”. “A teologia deve continuar recorrendo a um tesouro de conhecimento que não foi inventado por ela mesma”, mas que recebeu e que a supera, e, sendo inesgotável, sempre a coloca novamente em movimento.




-Sem separação. Porque a filosofia não deve se isolar, mas se mover no grande diálogo da sabedoria histórica, que inclui também a riqueza trazida pelas religiões e, particularmente, pelo cristianismo. Enquanto a teologia – e também as autoridades eclesiais – deve aceitar a purificação da crítica da razão e, ao mesmo tempo, constituir uma força purificadora da própria razão, em particular libertando-a das pressões do poder e dos interesses. (Esse tema da purificação recíproca entre fé e razão voltou com força em outros grandes discursos de Ratzinger, como o da Westminster Hall, em Londres, onde era aplicado à contribuição positiva da fé cristã e das religiões na vida pública e na sociedade moderna).





Naturalmente, Ratzinger sabe muito bem que a universidade moderna abraça outras dimensões do saber que cresceram de modo extraordinário e maravilhoso. Ele fala sobretudo de dois âmbitos, o das ciências naturais e o das ciências históricas e humanísticas.O discurso aqui se torna muito mais sintético, mas continua sendo rico em intuições de reflexão fundamentais. “Abriu-se à humanidade uma medida imensa de saber e de poder; cresceram também o conhecimento e o reconhecimento dos direitos e da dignidade do ser humano.” Bento vê e admira o positivo, mas adverte com lucidez e coragem as ambiguidades e os riscos, algo que, aliás, é evidente nos eventos dramáticos da história atual. Como o discurso de que estamos falando se dirige ao mundo da universidade, ou seja, daqueles que estão envolvidos plenamente no estudo, no alargamento e no aprofundamento do saber, Ratzinger se encaminha à conclusão se concentrando nos riscos relacionados com essa dimensão da nossa vida histórica. “O perigo do mundo ocidental – para falar apenas dele – é hoje que o ser humano, precisamente em consideração da grandeza do seu saber e poder, se rende perante a questão da verdade. E isso significa, ao mesmo tempo, que a razão, no fim, se curva diante da pressão dos interesses e da atratividade da utilidade, forçada a reconhecê-la como critério último.” 




-Do ponto de vista da vida da universidade, para Ratzinger, isso significa que a filosofia se degrada em positivismo e que a teologia se confine à esfera privada de um pequeno grupo. Significa que a razão se torna surda à sabedoria que lhe é oferecida pela fé cristã e se empobrece e seca. Perde a coragem da verdade e se apequena nas tarefas e nos horizontes.




-Do ponto de vista da cultura europeia, para Ratzinger, isso significa que, “se quiser apenas se autoconstruir com base no círculo das próprias argumentações e – preocupada com a sua laicidade – se afasta das raízes das quais vive, então não se torna mais razoável e mais pura, mas se decompõe e se despedaça”.






A conclusão do discurso, nesse ponto, é clara: 






O papa não vai à universidade para impor de modo autoritário a fé, que só pode ser dada, mas para “manter desperta a sensibilidade pela verdade; convidar sempre de novo a razão a se pôr em busca do verdadeiro, do bem, de Deus” e a entrever ao longo da história as luzes que surgiram a partir da fé cristã, de modo a poder perceber Jesus Cristo como a Luz que ilumina a história e o caminho rumo ao futuro. Quem conhece o pensamento de Joseph Ratzinger e os grandes discursos do pontificado de Bento XVI facilmente reconhecerá reflexões e temas familiares e característicos. O discurso poderia ser facilmente enriquecido e ampliado com inúmeras citações e referências. Evidentemente, não é o que pretendo fazer. Em vez disso, como mencionei no início, no rastro do que recordei, quero explicar brevemente o espírito no qual a nossa Fundação está se movendo e se propõe a operar. Simplificando de maneira extrema, pode-se dizer que o grande pensamento de Joseph Ratzinger se desenvolveu ao longo de duas diretrizes principais complementares: Uma que podemos chamar de vertical: o chamado do primado de Deus, do Deus revelado por Jesus Cristo e aquilo que se segue para a vida cristã e da Igreja. E uma que podemos chamar de horizontal ou transversal: o diálogo com a cultura contemporânea, fundamentado na confiança na razão, considerada capaz de buscar e encontrar respostas razoáveis e verdadeiras para as suas perguntas.














O discurso que evoquei é típico dessa linha do diálogo, do exercício confiante da razão, que olha com otimismo e com gosto ao enriquecimento recíproco das diversas dimensões do saber, das ciências naturais às humanas, à filosofia, à teologia. Para isso, porém, a razão não deve se fechar nos estreitos limites do positivismo, deve se manter aberta à questão da verdade, do bem, do sentido da vida, de Deus. Também deve se manter aberta àquele fascinante diálogo com os grandes da história de que Ratzinger nos falou por referências, de Sócrates e a filosofia grega, às testemunhas da sabedoria do Antigo Testamento e das grandes religiões, ao Evangelho e aos Padres da Igreja, aos filósofos e aos teólogos medievais, a Copérnico e aos cientistas modernos, até Rawls e Habermas, filósofos políticos dos nossos dias... Ainda no discurso evocado, vieram à tona alguns nós problemáticos cruciais para a humanidade do nosso tempo, aos quais Ratzinger dedicou muitíssima atenção. Cito dois em particular: os fundamentos do direito e de um ordenamento jurídico e político legítimo no mundo atual; os fundamentos de um uso responsável do imenso saber e poder dado ao ser humano pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Não se trata, de modo algum, de problemas abstratos. São de interesse comum evidente, estão no centro da preocupação da Igreja, como ficou claro a partir das últimas duas grandes encíclicas sociais, a Caritas in veritate de Bento XVI e a Laudato si’ do Papa Francisco. São também nós problemáticos que, para serem enfrentados na sua complexidade, requerem naturalmente abordagens interdisciplinares e, portanto, chamam ao apelo o mundo que, por sua vocação, é chamado ao diálogo interdisciplinar: o mundo universitário. Por todos esses motivos, a nossa Fundação, embora se conservando em suas finalidades institucionais atenta a encorajar muitas iniciativas e direções do trabalho teológico e, mais amplamente, cultural, sente-se chamada hoje a promover em particular os esforços que se orientam ao exercício da “razão aberta”, do diálogo interdisciplinar que se ocupa de responder aos grandes desafios da humanidade atual.Em certo sentido, queremos continuar o compromisso de Bento XVI com o diálogo com a cultura moderna, como um dos grandes serviços pela humanidade hoje, mesmo que se trate, às vezes, de um diálogo difícil, que pode se encontrar diante de fechamentos ou preconceitos, como nos recorda a recusa encontrada por Bento na Universidade de Roma. Assim, o Simpósio Anual realizado no ano passado na Costa Rica, com a nossa contribuição e apoio, ocupou-se dos desafios da ecologia humana já enfocados pelo Papa Ratzinger e aprofundados mais ainda na encíclica Laudato si’. Por sua vez, o Simpósio em preparação para o próximo outono [europeu] se ocupará especificamente dos problemas dos fundamentos do direito e dos direitos humanos, no 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Depois, em colaboração com a Universidade Francisco de Vitoria de Madri, está sendo desenvolvida a segunda edição do Prêmio Razão Aberta, que pretende promover pesquisas específicas e iniciativas de docência universitária que traduzam concretamente em ações aquele diálogo entre as diversas disciplinas – ciências naturais, humanas, da comunicação, artes, filosofia, teologia... –, diálogo no espírito comum da busca da verdade que Ratzinger deseja para que o saber não se despedace e se decomponha em setores não comunicantes, mas conserve a coragem e o gosto de responder às grandes perguntas do ser humano e da sociedade, sem excluir aquelas últimas sobre a origem e o fim, sobre o sentido e sobre Deus.Se, nessas perspectivas, conseguirmos identificar linhas realistas de colaboração e de promoção na pesquisa, a nossa Fundação terá muita alegria em colaborar e dar a contribuição possível a ela.





Obrigado pela atenção!







QUAL O MAIOR DESAFIO DA IGREJA HOJE ?













“Certamente, a Igreja já fez, está fazendo muito no campo social, e precisará fazer mais ainda. Mas, é preciso que fique claro: não é essa a missão originária, "própria” da Igreja, como repete expressamente o Vaticano II (cf. GS 42,2; e ainda 40,2-3 e 45,1). A missão social é, antes, uma missão segunda, embora derivada, necessariamente, da primeira, que é de natureza "religiosa”. Essa lição nunca foi bem compreendida pelo pensamento laico. Foram os Iluministas que queriam reduzir a missão da Igreja à mera função social. Daí terem cometido o crime, inclusive cultural, de destruírem celebres mosteiros e proibido a existência de ordens religiosas, por acharem tudo isso coisa completamente inútil, mentalidade essa ainda forte na sociedade e até mesmo dentro da Igreja. Agora, se perguntamos: Qual é o maior desafio da Igreja?, Devemos responder: É o maior desafio do homem: o sentido de sua vida. Essa é uma questão que transcende tanto as sociedades como os tempos. É uma questão eterna, que, porém, hoje, nos pós-moderno, tornou-se, particularmente angustiante e generalizada. É, em primeiríssimo lugar, a essa questão, profundamente existencial e hoje caracterizadamente cultural, que a Igreja precisa responder, como, aliás, todas as religiões, pois são elas, a partir de sua essência, as "especialistas do sentido”. Quem não viu a gravidade desse desafio, ao mesmo tempo existencial e histórico, e insiste em ver na questão social "a grande questão”, está "desantenado” não só da teologia, mas também da história.”- ( Frei Clodovis M. Boff).







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Neste Apostolado APOLOGÉTICO (de defesa da fé, conforme 1 Ped.3,15) promovemos a “EVANGELIZAÇÃO ANÔNIMA", pois neste serviço somos apenas o Jumentinho que leva Jesus e sua verdade aos Povos. Portanto toda honra e Glória é para Ele.Cristo disse-nos:Eu sou o caminho, a verdade e a vida e “ NINGUEM” vem ao Pai senão por mim" (João14, 6).Defendemos as verdade da fé contra os erros que, de fato, são sempre contra Deus.Cristo não tinha opiniões, tinha a verdade, a qual confiou a sua Igreja, ( Coluna e sustentáculo da verdade – Conf. I Tim 3,15) que deve zelar por ela até que Ele volte(1Tim 6,14).Deus é amor, e quem ama corrige, e a verdade é um exercício da caridade. Este Deus adocicado, meloso, ingênuo, e sentimentalóide, é invenção dos homens tementes da verdade, não é o Deus revelado por seu filho: Jesus Cristo.Por fim: “Não se opor ao erro é aprová-lo, não defender a verdade é nega-la” - ( Sto. Tomás de Aquino).Este apostolado tem interesse especial em Teologia, Política e Economia. A Economia e a Política são filhas da Filosofia que por sua vez é filha da Teologia que é a mãe de todas as ciências. “Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao vosso nome dai glória...” (Salmo 115,1)

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