(Os TRÊS grandes padres Capadócios) |
Os
Três Grandes Capadócios ou Padres Capadócios foram expoentes típicos em seu
tempo. O principal mérito deles foi o de explicar o dogma da Santíssima
Trindade, colocando-o em formulações teológicas estritas, que levaram à sua
consolidação no II Concílio Ecumênico de Constantinopla (381) e à fixação no
Credo de toda a Igreja, chamado “Niceno-Constantinopolitano”. Significativa
foram as suas contribuições para a vida monástica e para aumentar a autoridade
do monasticismo para a Igreja daquele tempo.
Os pontos de sua doutrina que mais
influenciaram o desenvolvimento da filosofia cristã foram:
1)-
A Teodiceia de Gregório Nazianzeno.
2)-
A Cosmologia de Basílio de Cesareia.
3)-
A Antropologia de Gregório de Nissa.
Eles
também foram de grande importância para a teologia e pertenciam a uma classe dirigente
da Igreja durante o século IV, além de serem provenientes de famílias abastadas
que dispunham de recursos e influência social. Motivo, pelo qual, propiciou uma
boa formação escolar, o que os predestinava às carreiras públicas mais
importantes, como mestres de retórica, advogados ou estadistas.Gregório de Nissa era o irmão mais novo de Basílio de
Cesareia e este, por sua vez, era amigo e colega de estudos de Gregório
Nazianzeno.
O avô materno de Basílio e Gregório de Nissa havia sofrido o martírio na
perseguição de Diocleciano. Sua avó paterna, Santa Macrina, a Velha, foi
discípula do célebre bispo de Neocesareia, Gregório Taumaturgo, a quem seu neto
Gregório de Nissa, ergueu um monumento em uma pregação. Durante a perseguição
Macrina tivera que fugir com o marido para as montanhas por sete anos. O pai
dela, São Basílio, o Velho, como rico proprietário de terras, pertencia à
nobreza senatorial, e sua mãe Santa Emélia provinha também de uma família
capadócia rica; seu irmão era bispo.Além
de Basílio e de Gregório, mais três irmãos, de um total de dez, dedicaram-se à
vida eclesiástica ou ascética: sua irmã mais velha Santa Macrina, a Jovem, que
exerceu permanente influência sobre o currículo dos irmãos, Naucrácio, que
morreu ainda jovem, e São Pedro de Sebaste, bispo.A família de Gregório de
Nazianzo, por parte de mãe, também havia abraçado a fé cristã desde pelo menos
três gerações. Possuía bens na vizinhança Arianzo, e o pai de Gregório, São
Gregório, o Velho, foi seu antecessor como bispo de Nazianzo. Sua mãe Nona,
assim como dois de seus três irmãos, Gorgônia e Cesário, também são venerados
como santos na Igreja. Seu primo Santo Anfilóquio foi bispo de Icônio, sendo
por muitos considerado como o “quarto grande Capadócio”. Os
Padres Capadócios deixaram todos suas carreiras seculares, não com a intenção
de trocá-las por uma carreira eclesiástica, mas sim para seguir radicalmente a
Cristo. Todos os três receberam o chamado para o episcopado, porque sua origem
e formação conferia-lhes aptidão para cargos de direção, não só políticos como
também eclesiásticos – ainda mais quando se leva em conta que a partir da
segunda metade do século IV os bispos também assumiam cada vez mais tarefas
administrativas. Dos três, cada um adquiriu uma importância própria e
característica:
a)-
Basílio como eminente político eclesiástico.
b)-
Gregório de Nazianzo como orador e teólogo.
c)-
Gregório de Nissa mais como pensador e filósofo.
Os
dois primeiros, ao lado de Atanásio e João Crisóstomo, são desde o breviário de Pio V
de 1568 considerados como os “quatro grandes doutores da Igreja do Oriente”, e
pela Igreja Oriental, juntamente com João Crisóstomo, considerados os
“três hierarcas”.
Os Padres
Capadócios e a Consubstancialidade do Espírito Santo
A vida monástica e os
Padres Capadócios.
A
vida dos três grandes padres capadócios, São Basílio, São Gregório de Nazianzo
e São Gregório de Nissa foi profundamente marcada pela vida
monástica florescente naquela época. A vida monástica começou a
florescer na Igreja pouco antes do Concílio de Nicéia, quando Santo Antão
resolveu dedicar-se a uma vida de oração como eremita no deserto do Egito. Seu exemplo foi tão edificante que, ao falecer, com mais de cem anos de
idade,
um terço da população do Egito era constituído por monges. Do
Egito o monasticismo espalhou-se rapidamente pela Ásia e chegou também ao
Ocidente. Inicialmente
os monges eram eremitas, mas aos poucos passaram a viver em comunidades sob a
disciplina de regras que foram progressivamente se aperfeiçoando, vindo a
alcançar a sua forma mais madura no Oriente com as regras monásticas de São
Basílio e no Ocidente com a regra de São Bento. Os três padres capadócios eram bispos; antes
disso, porém, tinham sido monges.
Os Principais Padres
Capadócios
1)-
São
Basílio nasceu na cidade de Cesaréia, capital da Capadócia, região situada no
centro da atual Turquia, no ano 330. Jovem, foi estudar em
Constantinopla e Atenas, onde fêz amizade com um rapaz da sua idade, Gregório,
filho do bispo de Nazianzo da Capadócia, que para lá tinha ido estudar. Aos
vinte e cinco anos ambos voltaram para a sua terra. Dois anos depois Basílio, movido pelo exemplo
de sua mãe e sua irmã, que haviam entrado para a vida monástica, recebeu o
Batismo e pôs-se a viajar pelo Egito, Palestina e Síria para conhecer a vida
dos monges. Ao voltar, vendeu seus bens e fundou uma comunidade monástica.
2)-
Quanto
ao seu amigo Gregório de Nazianzo, recebeu também o Batismo e foi
ordenado presbítero pelo seu pai, bispo de Nazianzo. Depois disso viveu ainda
alguns períodos de tempo como monge.
3)-
O
outro Gregório (de Nissa), era o irmão caçula de São Basílio. Tinha
estudado retórica e contraído matrimônio; influenciado mais tarde por Gregório
de Nazianzo, abandonou o mundo e foi viver como monge na comunidade fundada
pelo seu irmão. Posteriormente o bispo
de Cesaréia ordenou sacerdote a Basílio e este, seis anos depois, o sucedeu na
sede episcopal de Cesaréia. São Basílio,
depois de bispo, ordenou bispo a seu amigo Gregório de Nazianzo e a seu irmão
Gregório a quem confiou os cuidados pastorais da cidade de Nissa. Em contraste com a maioria dos padres da
Igreja Oriental, que pendem para o lado especulativo, Basílio revela em seus
escritos um acentuado interesse pelas questões éticas e práticas da vida
cristã. Semelhante
é o caso de Gregório de Nazianzo, o qual não tinha propensões para especulações
mais profundas, atendo-se rigorosamente, em suas exposições teológicas, à
Sagrada Escritura e à tradição da Igreja; é tido como testemunha fidedigna da
situação da fé na Igreja Oriental da época.
Totalmente diferente foi, porém, Gregório de Nissa. Mal soube enfrentar
as dificuldades dos negócios eclesiásticos de uma cidade insignificante, mas
foi um dos teólogos mais profundos.
As
colocações na época dos Capadócios acerca do Espírito Santo:
Em
um sermão datado do ano 380, São Gregório de Nazianzo comenta os diversos
pontos de vista que eram sustentados na época acerca do Espírito Santo. Alguns
consideram o Espírito Santo como uma força, outros uma criatura, outros Deus;
outros ainda desculpam-se alegando que a Sagrada Escritura não é clara a
respeito e não tomam posição. Dentre aqueles que reconhecem a divindade do
Espírito Santo, alguns têm esta afirmação apenas como uma opinião pessoal,
outros a proclamam abertamente, enquanto que outros, finalmente, afirmam que as
três Pessoas possuem a divindade em graus diferentes. Dos que negavam a divindade do Espírito
Santo, sabemos de outras fontes que alguns afirmavam que "não chamariam o Espírito Santo de Deus,
mas também não presumiriam chamá-lo de criatura"; outros afirmavam que o Espírito Santo
ocupa "uma posição intermediária,
nem sendo Deus, nem sendo uma das outras criaturas". Citavam uma multidão de textos da Escritura
sugerindo a inferioridade do Espírito Santo e apontavam o silêncio da Bíblia a
respeito de sua divindade.
Aqueles que negavam a divindade do Espírito Santo também diziam que
somente é concebível em Deus uma relação como a existente entre Pai e Filho. Portanto,
se o Espírito Santo fosse Deus, teria que ser ou um princípio não gerado
paralelo ao Pai ou o irmão do Filho, e nenhuma destas alternativas seria
aceitável.(Referências:S. Gregório Nazianzo
: Oratio 31,8; 31,23-28; 31,7; Sócrates : Historia Ecclesiastica 2,45; Didymus
:De Trinitate 2,8; 2,5; 3,30-40; 2,10; (PG 39,617); Pseudo Athanasius : Dial.
contra Maced. 1,1)
São Basílio de
Cesaréia
Gregório
de Nazianzo descreve como São Basílio, ao pregar no ano 372, absteve-se
propositalmente de falar de modo aberto sobre a divindade do Espírito Santo,
contentando-se com o critério negativo de aceitar que o Espírito Santo não é
criatura. Segundo Gregório, Basílio tinha razão em agir com prudência, para não
exaltar os arianos, então muito poderosos; do contrário, Basílio teria
sido expulso e sua sede metropolitana, importante para a Igreja, ficaria
perdida para a ortodoxia.
Posteriormente, porém, os fatos o obrigaram a ser mais claro. Numa
profissão de fé que no ano seguinte submeteu ao bispo Eustatius, afirmava
Basílio que o Espírito Santo deve ser reconhecido como intrinsecamente sagrado,
uno com a "natureza divina e bendita" e inseparável, como a fórmula
batismal implica, do Pai e do Filho.
Dois anos depois, no tratado `De Spiritu Sancto', deu um passo a mais,
afirmando que ao Espírito Santo deve ser concedida a mesma glória, honra e
culto que ao Pai e ao Filho, e que Ele deve ser "estimado com" e não
"estimado abaixo" dEles.
Basílio não foi mais longe do que isso. Em nenhum lugar chama Deus ao
Espírito Santo, embora coloque claro que
"nós glorificamos o Espírito com o Pai e o Filho porque nós
acreditamos que Ele não é alheio à natureza divina". (Referências: S. Gregório Nazianzo :Epistola 58.
São Basílio :Epistola 113; 114; 125,3; 159,2).
S. Gregório de
Nazianzo e de Nissa:
São
Gregório de Nazianzo repete e estende a doutrina de São Basílio,
assim como São Gregório de Nissa.
Gregório Nazianzeno fala claramente:
"O Espírito Santo é Deus?
Sim, é. Então,
será consubstancial? É claro, já que é Deus". Para fundamentar esta colocação, Gregório fala
do caráter do Espírito Santo enquanto Espírito de Deus e de Cristo, de Sua
associação com Cristo na obra da Redenção, e da prática devocional da Igreja. (Referências: S. Gregório Nazianzo :Oratio 31,10; 34,11)
A processão
do Espírito Santo: colocação do problema pelos Padres Capadócios:
Um
problema que os Padres Capadócios tinham que enfrentar consistia em explicar em que
diferiria o modo de origem do Filho e do Espírito Santo, pois os arianos objetavam
que a consubstancialidade do Espírito Santo significaria que o Pai teria dois
Filhos. São Basílio e São
Gregório de Nazianzo abordaram o problema, mas foi São Gregório de Nissa que
deu a resposta que viria a ser a palavra definitiva.
1)- A processão do
Espírito Santo conforme São Basílio de Cesaréia
São
Basílio apenas afirma que o Espírito Santo procede de Deus, não por modo de
geração, mas "como respiro de sua
boca". Assim, sua
"maneira de vir a ser" permanece
"inefável". Além disso
ele afirma que um único Espírito está
"ligado a um único Pai
através de um único Filho",
e é "através do Unigênito" que as qualidades divinas chegam ao
Espírito provenientes do Pai. (Referências: S. Basílio :De Spiritu Sancto 45; 46; 47)
2)- A processão do
Espírito Santo conforme Gregório de Nazianzo.
Gregório
de Nazianzo contenta-se com a afirmação do Evangelho de São João de que o Espírito
Santo "procede do Pai"
(conf.João 15, 26). O que
significa "processão" ele não o pode explicar mais do que os seus
adversários pode explicar o que é a "geração" do Filho ou o "não
ser gerado" do Pai. (Referências:S. Gregório Nazianzo : Oratio 31, 7)
3)- A processão do
Espírito Santo: Gregório de Nissa.
São Gregório de Nissa ensina que o Espírito Santo é de
Deus e é de Cristo; Ele procede do Pai e recebe do Filho; o
Espírito não pode ser separado do Verbo. Daqui para a colocação de uma
dupla processão do Espírito Santo é apenas um pequeno passo. De acordo com S. Gregório Nisseno, as três
Pessoas devem ser distingüidas pela sua origem, o Pai sendo causa, e os outros
dois causados. As duas Pessoas que são causadas podem ser posteriormente
distingüidas porque o Filho é diretamente gerado pelo Pai, enquanto que o
Espírito Santo procede do Pai através de um intermediário. É evidente que a doutrina de São Gregório é
que o Filho atua como um agente em subordinação ao Pai que é a fonte da
Trindade, na processão do Espírito Santo.Após São Gregório de Nissa a
doutrina regular da Igreja Oriental será que o Espírito Santo "procede do Pai através do Filho". Mais
de um século antes Orígenes, baseando-se no princípio do Evangelho de São João
que afirma que: "No princípio era o Verbo... todas
as coisas foram feitas por meio dEle e sem Ele coisa alguma foi feita de
quanto existe...” Gregório
de Nissa ensinou que o Espírito Santo deve ser incluído entre as
coisas que vieram à existência através do Verbo. Entretanto, do
modo como foi colocada pelos Padres Capadócios, a idéia da dupla processão do
Espírito Santo do Pai através do Filho perde todo o traço de subordinacionismo,
pois sua exposição é um reconhecimento sincero da consubstancialidade do
Espírito Santo. (Referências: S. Gregório Nisseno : Contra Macedones 2;
10; 12; 24; Idem : Quod non sint, final. Origenes : In Johan. 2, 10, 75)
4)- A processão do
Espírito Santo conforme Epifânio
Epifânio,
bispo de Salamina, nasceu na Judéia em 315. Depois de passar algum tempo
entre os monges do Egito, fundou na sua terra um mosteiro que governou durante
cerca de trinta anos, quando foi escolhido pelo episcopado da ilha de
Chipre para ser bispo de Salamina. Epifânio
mostra possuir uma razoável cultura, mas esta, adquirida mais através de
viagens, não era muito profunda. Suas obras se revestem de importância mais
por causa das muitas fontes que ele cita, as quais atualmente só nos
são conhecidas pelas suas citações.
Influenciado talvez pelos seus contatos com o Ocidente, Epifânio
comenta a processão do Espírito Santo mas omite a proposição
"através". Em suas palavras, o Espírito Santo é
"Espírito do Pai" e "Espírito do Filho". Ele é "de ambos, um Espírito derivado de
espírito, porque Deus é espírito". (Referências: Epifânio : Amaratus 7, 7; 70)
TRINDADE E
PESSOA: Considerações sobre a
contribuição dos Padres capadócios
(Trad.:
Pe. André Sperandio)
A região
da Capadócia, situada no coração da Ásia menor, tornou-se, no século IV, num
importante centro da teologia cristã. Já na época do a póstolo Paulo, existiu uma
pequena comunidade cristã na Capadócia, onde o cristianismo se estendeu com
tanta rapidez que deu lugar a um importante número de mártires e conversores,
no II século, enviando sete bispos ao Concílio de Niceia no ano 325.Porém,
fui sobretudo na segunda metade do século IV que a Capadócia se tornou famosa
por seu pensamento teológico. E isto se deve a quatro figuras destacadas, cuja
originalidade teológica e filosófica marcou profundamente a história do
pensamento cristão:
1)-
São Basílio, o Grande, bispo de cesareia da Capadócia (330-379).
2)-
São Gregório nazianzeno, conhecido como o Teólogo (330-389/90), que foi
primeiro, durante um breve período, bispo de Sássima da Capadócia, e mais
tarde, também por pouco tempo, arcebispo de Constantinopla.
3)-
São Gregório, irmão mais novo de São Basílio e bispo de Nissa (335-394?).
4)-
E finalmente, Santo Anfilóquio (340/345) bispo de Icônio.
Os
três primeiros deixaram nos um número considerável de inscritos (tratados dogmáticos,
obras exegéticas, escritos ascéticos, orações, sermões e cartas) que nos
permitem conhecer seu pensamento, enquanto que a obra de Anfilóquio nos chegou
somente através de umas poucas homilias e cartas, algumas das quais, só
fragmentos. Ainda que a contribuição teológica desses Padres capadócios
seja universalmente sabida e reconhecida, sua importância não se limita
absolutamente à teologia. Supõe uma reorientação radical do humanismo grego
clássico, uma concepção do homem e uma visão da existência que o pensamento
antigo foi incapaz de produzir, apesar das suas muitas realizações no terreno
da filosofia. Por oportuno, tudo isso se
apresenta a propósito das atuais controvérsias teológicas; o alcance,
porém da contribuição dos Padres capadócios reembasa o campo da teologia
no sentido doutrinal estrito e afeta a inteira cultura da antiguidade tardia a
ponto de, sem o conhecimento desta contribuição, o conjunto do pensamento
bizantino e europeu permanecer incompreensível. Como se
revela a doutrina sobre Deus à luz da teologia capadócia? Que
problemáticas referentes a teologia trinitária e sua integridade filosófica
poderiam ser superadas com ajuda desta teologia? Quais as consequências
desta teologia para nossa compreensão do ser humano e a existência em
geral? Destas questões ocupa-se o presente texto: Não é necessário dizer, no entanto, que
questões tão vastas e complexas não podem ser afrontadas com exaustividade em
tão limitado espaço. Serão feitas aqui algumas sugestões, sublinhando algumas
ideias centrais. A contribuição
Capadócia ainda permanece em aberto a espera de um tratamento compreensivo
exaustivo por parte da investigação teológica e filosófica, apesar do grande
número de trabalhos que se tem dedicado a cada um de seus representantes em
separado. Para compreender e apreciar a corretamente a
contribuição dos capadócios à doutrina da Trindade temos de conhecer primeiro o
contexto histórico: Contra quem reagiam? Por que assumiram as posições que adotaram e como
tentaram responder aos desafios e seus contemporâneos? Depois de
tentar responder a estas questões, teremos de considerar a transcendência da
teologia destes Padres para todo tempo.
O
contexto histórico dos padres Capadócios:
Individualizando as diversas sensibilidades, que
poderíamos denominar obsessões dos Padres capadócios, frente aos seus
contemporâneos, podemos localiza-las nas seguintes áreas:
1)- Sabelianismo
O sabelianismo representava uma interpretação da
doutrina trinitária que defendia uma visão segundo a qual o Pai, o Filho e o
Espírito não são pessoas em sentido ontológico pleno, mas modos assumidos pelo Deus Uno. Parece que Sabélio
fez uso do termo «pessoa» no singular afirmando que em Deus só existe uma pessoa [1]. Tal interpretação
moralista tornava impossível compreender como o Filho, tanto eternamente como
na encarnação, pode manter uma relação de diálogo recíproco com o Pai, ao que
se dirige em oração etc., como mostram os diversos episódios do evangelho que
reclamam nossa fé. Do mesmo modo, impossibilitava que o cristão estabelecesse um diálogo e
relação plena com cada uma das três pessoas da Trindade. Mais ainda,
pareceria que Deus estava, de alguma maneira, «atuando» na economia,
aparentando ser aquilo que se nos mostra sem revelar-nos ou conceder-nos sua
verdadeira identidade, seu próprio ser.Por esta e outras razões, a doutrina da
Trindade tinha de ser interpretada de tal modo a excluir qualquer compreensão
sabeliana ou cripto-sabeliana; e o único modo era o acento da compleição e
integridade ontológica de cada uma das pessoas da Trindade.Os padres capadócios estavam tão preocupados
com isto que chegaram a recusar o uso do termo prósopon ou pessoa para
descrever a Trindade [2] - uma
noção que passou a fazer parte da teologia a partir de Tertuliano no Ocidente,
e que se introduziu no Oriente provavelmente pelas mãos de Hipólito -
sobretudo ao carregar se este termo, por ser usado no mundo greco-romano, de
conotações associadas a atuação de um personagem no teatro ou o desempenho de
um papel na sociedade. E em seu intento de
proteger a doutrina de tais conotações, os capadócios falaram de «três seres»
para referir-se à Trindade. Pela mesma razão preferiram o uso de imagens («três
sois», «três tochas» etc.) da Trindade, que refletisse a plenitude ontológica
de cada pessoa, introduzindo assim uma mudança fundamental na terminologia
nicena mais inclinada ao uso de imagens referidas a uma realidade original que
se estende aos três («luz de luz» etc.).Assim, os capadócios se tornaram conhecidos
como estando mais interessados na Trindade que na Unidade de Deus (Vale
lembrar a tão conhecida tese acadêmica segundo qual no Ocidente parte-se da
Unidade de Deus avançando depois para a Trindade; enquanto que no Oriente se
seguiu o caminho inverso). Esta insistência na integridade e plenitude
das pessoas estava repleta de importantes implicações filosóficas como veremos. Desta preocupação pela integridade ontológica
de cada pessoa da Trindade procede uma autêntica revolução,
como eu gosto de chamar, na história da filosofia, que consiste na
identificação da ideia de pessoa com a de hipóstasis. Repassar a história
destes termos nos levaria demasiado longe; é suficiente dizer que na geração anterior a
dos capadócios, o termo «hypóstasis» identificava-se
totalmente com ousía ou substância [4] (de
fato o termo latino substantia traduzia-se
literalmente ao grego como hypóstasis). Santo Atanásio
esclarece que não vê distinção entre hypóstasis e ousia, pois ambos os termos indicam «ser» ou «existência». Os capadócios
mudaram esta consideração ao dissociar hypóstasis de ousia e assimila-lá a prosopon. Com isto buscava-se liberar a expressão «três
pessoas» de interpretações sabelianas para torná-las mais aceitável aos
próprios capadócios. A isto é ao que denomino uma autêntica
revolução na história da filosofia, a qual voltarei a referir-me mais
adiante ao apresentar o alcance filosófico da contribuição capadócia.Os capadócios fizeram
bem em apontar e defender a integridade de cada pessoa; porém, o que acontece
com a unidade ou unicidade de Deus? Não poderiam incorrer em um TRITEÍSMO? Para evitar este perigo, os capadócios sugeriram que a ousia (substância) ou physis (natureza) de Deus
deveria ser considerada no sentido de categoria geral que se aplica a mais de
uma pessoa.
Com a ajuda da filosofia aristotélica isto foi ilustrado
mediante referência à única natureza humana ou substância que possui caráter
geral e que se aplica à totalidade dos seres humanos e a cada um deles em
particular (por Ex.: João, Jorge,
Basílio), aos quais há que se denominar hypóstasis (plural), não
naturezas ou substâncias [5]. Deste modo
eliminaram qualquer indício de irracionalidade de sua postura, pois é lógico
falar e uma substância e três hipóstases (ou pessoas), Como se mostra no
exemplo anterior.No entanto, permanece
a dimensão teológica do problema, pois no caso da natureza humana e os três (ou
mais) seres humanos nos referimos a três homens, enquanto que na Trindade
não falamos de três Deuses, mas de um.Para superar este obstáculo, os Padres
capadócios colocaram a questão em torno da dificuldade de conciliar o um e os três na
existência humana. Isto era de suma importância antropológica, como teremos
ocasião de ver mais adiante. A razão pela qual os seres humanos não
podem ser um e vários ao mesmo tempo encerra as seguintes considerações gerais,
inspiradas numa ampla panorâmica do pensamento capadócio:
a) Na existência humana, a natureza precede a
pessoa. Quando João, Jorge ou Basílio nascem, precede-lhes a única natureza
humana;
logo, eles representam e encarnam apenas parte da natureza humana. Mediante
a procriação a humanidade está dividida,
de modo
que não se pode afirmar de nenhuma pessoa que seja ela portadora da totalidade
da natureza humana. Por isso, a morte de uma pessoa não supõe automaticamente a
morte do resto - ou vice-versa: a vida daquela não implica a vida do resto.
b) Por esta razão, cada pessoa humana pode
ser concebida como individual, Isto é, como
entidade ontologicamente independente de outros seres humanos. A unidade entre
os seres humanos não é ontologicamente idêntica à sua diversidade ou
multiplicidade. O um e os vários não coincidem. Esta é a dificuldade existencial
que suscita o problema lógico de afirmar «um» e «vários» ao mesmo tempo.Se
comparamos isto com existência de Deus, advertimos imediatamente que esta
dificuldade existencial e, consequentemente, lógica não afeta a Deus. Pois Deus,
por definição, carece de uma origem; o espaço e o tempo não entram em sua
existência; as três pessoas da Trindade não compartilham uma natureza divina
pré-existente ou logicamente anterior a elas. A multiplicidade em Deus não
supõe a divisão de sua natureza e energia como sucede com o homem. Consequentemente, é impossível dizer que em Deus,
como sucede com os homens, a natureza precede à pessoa. Igualmente,
e pelas mesmas razões, é impossível dizer que em Deus qualquer das três pessoas
existe ou pode existir à margem das demais. As três constituem uma
unidade tal que o individualismo fica absolutamente desterrado. As
três pessoas da Trindade são um só Deus, pois estão tão unidas e mantêm entre
si uma comunhão (koinonia) tão sólida que
nenhuma delas pode ser concebida à margem das outras. O mistério do Deus
uno em três pessoas aponta um modo de ser que exclui todo individualismo e
separação (ou auto-suficiência e auto-existência) como critério de
multiplicidade. O «uno» não só não precede - seja logicamente ou de qualquer
outro modo - ao «vários», senão que, ao contrário, requer o «vários» desde seu
início para poder existir.Assim pois, esta parece ser a grande inovação no
pensamento filosófico elaborada pela teologia trinitária dos capadócios, aporte
que traz consigo um novo modo de entender a existência humana, como teremos
oportunidade de ver mais adiante.
2)- Eunomianismo
O eunomianismo deu lugar a uma problemática
desconhecida para Atanásio e Niceia ao introduzir uma tese filosófica muito mais
sofisticada que a do arianismo original. Eunômio, procedente da própria
Capadócia, foi nomeado bispo de Cízico pelos arianos, chegando a ser mais
radical e provavelmente o mais sutil dos extremistas arianos conhecidos como
anomeos. Para provar mediante a dialética aristotélica que o Filho é
totalmente diferente do Pai, os eunomianos situaram a substância de Deus em seu
ser ingênito (agênnetos) concluindo que, posto que o Filho é «engendrado»
(Niceia usa esta denominação), este se situa fora do ser ou substância de Deus.
A
refutação deste argumento requer uma nítida distinção em Deus entre substância
e pessoa:
Como pessoa, há que se distinguir o Pai da
substância divina, de modo que seria errôneo concluir que o Filho não é Deus ou
homoousios
com
o Pai. Quando Deus é chamado de Pai ou «ingênito», é assim denominado não em
referência à sua substância, mas a seu ser pessoal. De fato, não se pode
afirmar absolutamente nada da substância de Deus: não se lhe atribui
propriedade ou qualidade alguma, exceto que é una, indivisível e absolutamente
simples; tal descrição aponta melhor à total incognoscibilidade que ao
conhecimento da mesma. As propriedades (idiomata) de ingeração ou
paternidade a respeito do Pai; geração ou filiação no caso do filho e ekporeusis (expiração) em
referência ao Espírito, são propriedades pessoais ou hipostáticas
incomunicáveis - a ingeração é precisamente uma delas - enquanto que a substância se
comunica entre as três pessoas. Assim pois, a pessoa se define mediante
propriedades que são absolutamente únicas, de maneira que
difere fundamentalmente da natureza ou da substância.A reação frente ao
eunomianismo produziu, de um lado uma distinção clara e fundamental entre
pessoa e natureza, permitindo que o conceito «pessoa» surgisse de forma nítida como uma categoria distintiva em ontologia; e
por outro, sublinhou a ideia de que a pessoa pode ser conhecida e identificada
mediante sua absoluta unicidade e Insubstituibilidade, o que não deixou de ter
relevância existencial em filosofia. Contudo, a incomunicabilidade das
propriedades hipostáticas não significa compreender as pessoas da Trindade como
indivíduos autônomos. Devemos evitar converter esta incomunicabilidade na
definição de pessoa por excelência, como parece fazer Ricardo de São Victor;
pois, ainda que as propriedades hipostáticas não sejam comunicáveis, a noção de
pessoa torna-se inconcebível à margem de uma relação.Os capadócios chamaram as pessoas por seus nomes para indicar schesis (relação) [7]: nenhuma das três pessoas pode ser concebida sem referência às outras
duas, seja lógica ou ontologicamente. O problema que se coloca é o de
reconciliar incomunicabilidade e relação, o que de novo tem a ver com libertar
a existência divina da servidão da pessoa à substância; tal servidão é própria
da existência criada. As três pessoas, enquanto incriadas, não se enfrentam
a uma substância dada, mas existem em liberdade.O ser é simultaneamente relacional e
hipostático. Isto nos conduz a consideração das consequências filosóficas da
teologia capadócia.
Implicações filosóficas
A história nos proporciona novamente o ponto
de partida. Presume-se, normalmente, que os Padres gregos eram platônicos ou
aristotélicos em seu pensamento; mais que isso: um exame mais exaustivo
sobre eles revela que estavam tão interessados na filosofia grega como nas
diversas ideias heréticas de seu tempo. Vale retomar aqui uma referência de
Gregório nazianzeno a Platão:Num determinado momento, diz que o filósofo identifica Deus com um
vulcão que transborda bondade e amor; e recusa essa imagem porque implica um
processo de geração da existência natural ou substancial e, portanto,
necessário. Gregório não desejava contemplar nesses termos a geração do Filho
ou a inspiração do Espírito, isto é, como se ambas fizessem referência a algum
tipo de crescimento substancial (quiçá pudéssemos aqui observar o abandono da
ideia de Atanásio de uma «substância fértil de Deus»). Gregório insiste, como o
resto dos capadócios, em que a causa ou αἴτιον da existência divina é o Pai, isto é, uma pessoa, o que faz da Trindade
um assunto de liberdade ontológica.De fato, numa de suas orações teológicas
Gregório assume a defesa de Nicéia diante da acusação ariana de que o homoousios supõe necessidade no ser de Deus, e vai mais
longe que Atanásio, que, na realidade, não disse muito a respeito - ao acentuar
o papel do Pai
como
causa do ser divino.
Geração (e expiração) não são necessárias, mas livres, pois ainda que se trate
de uma vontade de «concorrente» (como diria são Cirilo de Alexandria) [8],
com a substância divina há «um que quer» (ho thelon) [9], e esse é o
Pai.Ao fazer do Pai a causa única da existência divina, os capadócios introduziram a
liberdade no campo da antologia, algo que a filosofia grega nunca antes havia
feito.À luz
desta observação vejamos mais dois elementos que surgem do estudo das fontes:
1)- O primeiro é um «detalhe» que se observa
no símbolo niceno-constantinopolitano, um detalhe que é normalmente
esquecido pelos historiadores do dogma, (por exemplo Kelly) [10] por considerá-lo
insignificante. Refiro-me ao fato de que o Concílio de Constantinopla, do ano
381, atuando claramente sob a influência dos capadócios - Gregório Nazianzeno, então arcebispo de Constantinopla, foi
seu presidente durante um tempo -, tomou a decisão audaz de alterar o símbolo
de Nicéia na cláusula que faz referência ao Filho como aquele que é «da
substância do Pai» (ek tes ousías tou patros) para simplificar a
leitura dizendo «do Pai» (ek tou patros). Esta
mudança, no momento em que a luta se dava no terreno das palavras, não foi
acidental. Representa uma clara expressão do interesse dos capadócios em
sublinhar que é a pessoa do Pai, e não a substância
divina, a origem e a causa da Trindade.
2)- O segundo elemento tem a ver com o conteúdo
do termo monarquia, finalmente aceito
pelos Padres gregos. O único arché em Deus acabou sendo compreendido
ontologicamente, isto é, em termos de surgimento do ser, e foi atribuído à
pessoa do Pai [11], e não
a substância única, como apontavam Agostinho e a escolástica medieval. O Pai
fica situado no lugar do Deus uno, sugerindo um tipo de monoteismo que não é só
bíblico, como também mais próximo da teologia trintária. Assim, se
quisermos seguir os capadócios em sua compreensão da Trindade no que diz
respeito ao monoteismo, precisamos adotar uma ontologia baseada na
pessoa, ou seja, na unidade ou alteridade que surge das relações, e não da
substância, isto é, da autoexistência ou, em última instância, de um ser
individualista.O escândalo
filosófico que representa a Trindade só pode ser resolvido ou aceito se a
substância ceder diante da pessoa como princípio causal ou arché do ponto de vista ontológico.Tenho me referido aos capadócios como
pensadores revolucionários na história da filosofia. Para adverti-lo, basta um simples
olhar ao pensamento antigo grego em relação com o destes padres:O pensamento grego antigo em todas as suas
variantes, desde os pré-socráticos até os neoplatônicos inclusive, tende
a priorizar a «unidade» sobre a «pluralidade». Na época dos Padres
gregos essa tendência adotava várias formas, algumas mais filosóficas e outras
mais teológicas.A nível teológico, a
filosofia grega pagã dominante no tempo dos Padres capadócios, denominada neoplatonismo, havia identificado a «unidade» com o próprio Deus, considerando a
pluralidade de seres basicamente como emanação de uma natureza degradada, de
modo que o retorno ao «Uno» mediante a recordação presente na alma se
identificavam com o propósito e objetivo de toda a existência.Já no século I, Filón, cujo papel como
vínculo entre o platonismo clássico e o neoplatonismo foi decisivo, defendia
que Deus é o autêntico «Uno», posto que ele é o único que permanece
verdadeiramente «só». A doutrina da Santíssima Trindade, tal e
como é desenvolvida pelos capadócios, ia de encontro a prioridade e exaltação
filosófica do «Uno» sobre o «Muitos».No que diz respeito a existência do homem,
também a filosofia clássica da época havia dado prioridade à natureza sobre as
pessoas concretas. As visões que circulavam na época dos Padres capadócios eram tanto do
tipo o platônico como aristotélico. As primeiras entendiam a natureza
humana como um ideal de humanidade, um genos hyperkeimenon, do qual todo ser
humano é imagem, enquanto que as segundas preferiam dar prioridade a um
substrato da espécie humana, um genos hypokeimenon, do qual surgem os
seres humanos [12]. Em ambos os casos,
o humano, em sua diversidade e pluralidade de pessoas, estava sujeito à
necessidade - ou prioridade - de sua natureza. A
natureza ou substância sempre precede a pessoa, no pensamento grego clássico. Os Padres capadócios desafiaram com sua
teologia trinitária esta visão estabelecida pela filosofia. Puseram de
manifesto que a prioridade da natureza sobre a pessoa ou do «Uno» sobre o
«muitos», deve-se ao fato de que a existência humana é criada, ou seja, trata-se
de uma existência com origem, que não deveria tornar-se princípio metafísico. O
verdadeiro ser, em seu genuíno estado metafísico, do qual se ocupa a filosofia
por excelência, deverá ser buscado em Deus, cuja existência incriada não supõe
a primazia do «Uno» ou da natureza sobre os «Muitos» ou as pessoas. O modo de existência de Deus inclui
simultaneamente o «Uno» e os «Muitos», o que significa que, em filosofia, deve
se dar às pessoas a primazia ontológica. Isto seria o mesmo
que descartar os princípios fundamentais com os quais a filosofia grega operou
desde as suas origens. A pessoa particular nunca desempenhou um papel
ontológico no pensamento grego clássico.
O que realmente importava era a unidade ou totalidade do ser, do qual o
homem não era senão uma parte. Platão, em referência ao ser particular,
deixou claro que «o todo não foi criado para teu bem, mas que tú é que foste
criado para o seu bem». Com notável insistência, a tragédia grega convidava ao
homem, e inclusive aos deuses, a submeter-se à ordem e à justiça que mantém
unido o universo, de modo que o Kosmos (que significa tanto ordem natural
como moral) pudesse prevalecer. Sob a variedade dos seres («muitos») existe uma
Razão (Logos) que lhes
proporciona seu sentido na existência. Não se pode permitir que os «muitos» ou
os seres particulares se separem desta única Razão sem que se produza uma interrupção do
ser, inclusive do próprio ser desses seres particulares.A teologia trinitária dos Padres capadócios estava aparelhada a uma
Filosofia na qual o particular não era secundário com respeito ao ser ou a
natureza; era livre em sentido absoluto. No
pensamento clássico, a liberdade era considerada uma qualidade do indivíduo,
mas não no sentido ontológico. A pessoa era livre para expressar suas opiniões,
mas estava obrigada, em última instância, a submeter-se à Razão comum, o xunos logos de Heráclito. Mais ainda, a possibilidade de que a pessoa pudesse
colocar a questão de sua liberdade, a partir de
sua própria existência era totalmente inconcebível na filosofia antiga. De fato, isto foi sublinhado em tempos recentes por Dostoiévski e por
outros filósofos existencialistas modernos. A liberdade sempre teve na
Antiguidade um estrito sentido moral, sem implicar a questão do ser do mundo que, para os gregos, era uma realidade «dada» e externa.Pelo contrário, para
os Padres, o ser do mundo se devia à liberdade de uma pessoa, Deus. A liberdade é a «causa» do ser para a patrística [13].A teologia capadócia sublinhou este princípio
de liberdade como pressuposto do ser estendendo-o ao ser do próprio Deus. Isto
constituiu uma grande inovação dos Padres capadócios, inclusive a respeito de
seus predecessores cristãos. Os padres capadócios, pela
primeira vez na história, introduziram no ser de Deus o conceito de causa (aition) para atribuí-lo significativamente, não ao «uno» (à natureza de Deus)
mas a uma pessoa, o Pai. Distinguindo cuidadosa e
persistentemente entre a natureza de Deus e Deus como Pai, pensaram que, o que causa que Deus seja é
a pessoa do Pai, não a substância
divina. Atuando assim, deram
prioridade ontológica à pessoa e libertaram a existência da necessidade lógica da substância, da «auto
existência». Um passo revolucionário em filosofia, cujas consequências
antropológicas não passam despercebidas.
Consequências
antropológicas
O homem é para os Padres «imagem de Deus».
Não é Deus por natureza, já que é criado, ou seja, teve uma origem e, portanto,
acha-se sujeito aos limites de espaço e tempo, que trazem consigo a
individuação e, finalmente, a morte. Não obstante, é chamado a existir do mesmo
modo em que Deus existe.Para compreender isto, temos de considerar a distinção
que fazem os padres capadócios entre natureza e pessoa ou «modo de existência» (tropos hyparxeos), como eles a chamam:A natureza ou substância aponta para o mero
fato de que algo existe, ao que (ti) de algo. E pode predicar-se de mais
de uma coisa. Pessoa ou hipóstase, por sua vez, aponta ao como (hopos ou pos), e somente se
predica de um ser, e isto em sentido
absoluto. Quando consideramos a natureza humana (ou a substância: ousia) o fazemos em
referência a todos os seres humanos; não tem nada de particular o possuir
natureza humana. É mais, todas as características «naturais» da natureza humana
tais como a divisibilidade – e, consequentemente, o processo de individuação,
que finaliza na decomposição e na morte - são aspectos da «substância» humana e
determinam o homem em tudo aquilo que afeta a sua natureza. É o como da natureza humana, isto é, a pessoa, a que, assumindo o
papel de causa ontológica (como ocorre no caso do ser de Deus) determina se as
limitações da natureza serão finalmente superadas ou não. A «imagem de Deus» no
homem tem a ver precisamente com o como, não com o que do homem; guarda relação não com a natureza - o homem
nunca pode ser Deus por natureza -, senão com a pessoa. O qual significa que
o homem é livre para orientar o como de sua existência, bem na direção do
modo de ser (o como
)
de Deus, bem na direção de que é
sua própria natureza. Viver de acordo com a natureza (kata physin) conduz ao
individualismo, à mortalidade etc., pois o homem não é imortal kata physin. Viver de acordo com a
imagem de Deus significa viver ao modo em que Deus existe, ou seja, como imagem
da pessoalidade de Deus o qual conduz a «converter-se em Deus». Isto é o
que significa a theosis do homem no
pensamento dos Padres gregos.Daí que, ainda que a
natureza do homem seja ontologicamente anterior a sua pessoalidade, como temos
dito, o homem é chamado a fazer um esforço para livrar-se da necessidade de sua
natureza e atuar em todos os sentidos como se a pessoa fosse livre das leis da
natureza. Do ponto de vista prático, isto é o que os Padres viram no esforço ascético; o consideraram essencial para a existência do homem, com a independência
do monge ou como se vivesse no meio do mundo. Sem o intento de liberar a pessoa
da necessidade da natureza não se pode ser «imagem de Deus», pois em Deus, como já dissemos, a pessoa, e não a natureza, é
a causa de seu modo de ser.Assim, pois, a
essência da antropologia resultante da teologia trinitária dos Padres
capadócios reside na significação do pessoal na existência humana. Estes Padres
deram ao mundo o conceito mais precioso que este possui: o de pessoa como conceito ontológico, em sentido
último.
Enquanto
este conceito tornou-se parte, ao menos em princípio, não só de nosso
patrimônio cristão, mas também dos ideais da cultura em geral, seria útil
recordar seu conteúdo e significado exato tal e como surge do estudo da
teologia dos capadócios:Tal como se depreende do modo em que os
Padres capadócios entenderam a pessoalidade em referência a Deus, a
pessoa não é uma noção secundária da existência, mas primária e absoluta. Nada
é mais sagrado que a pessoa ao constituir o «modo de ser» do próprio Deus. A
pessoa não pode ser sacrificada ou estar sujeita a nenhum ideal, a nenhuma
ordem natural ou moral, a nenhum interesse ou objetivo, por mais sagrado que
seja.Para ser em
verdade e ser si mesmo, se há de ser pessoa, isto é, libertar-se ou
situar-se acima de qualquer necessidade ou objetivo - natural, moral, religioso
ou ideológico. O que dá sentido e valor à
existência é a pessoa como liberdade absoluta.
A pessoa
não pode existir isolada - Deus não está só; é comunhão:
O amor não é um sentimento, uma percepção que brote da natureza como a
folha de uma árvore. O amor é relação; supõe a saída em liberdade de si mesmo, a ruptura com a própria
vontade, uma submissão livre à vontade do outro. É o outro e a nossa relação com
ele o que nos proporciona nossa identidade, nossa
alteridade, possibilitando que sejamos «quem somos», ou seja, pessoas;
pois, ao formar parte inseparável de uma relação de alcance ontológico,
mostramo-nos como entidades únicas e insubstituíveis. É isto, portanto, o que
nos conduz ao ser, a ser nós mesmos e não outros: nossa pessoalidade. É aqui
onde está a «razão», o logos de nosso ser; na relação de amor
que nos faz únicos e insubstituíveis aos olhos do outro.O logos que dá conta do ser de Deus é o Filho
único amado, e mediante esta relação de amor também Deus, ou melhor, Deus, por
excelência, surge como único e insubstituível sendo o Pai eterno do Filho único
(monogenes). Esta é a grande
mensagem da ideia patrística de pessoa, a raison d'être, o logos tou einai de todo ser, buscado desde sempre
pelo pensamento grego, não se acha na natureza deste ser, mas na pessoa, isto
é, na identidade livremente criada por amor e não por necessidade de sua
autoexistência. Existo como pessoa na medida em que amo e sou amado. Quando sou tratado
como natureza, como uma coisa, morro como identidade particular. E se minha alma é imortal, de que serve? Existirei,
mas sem identidade pessoal; estarei eternamente morrendo no inferno do
anonimato, no Hades das almas imortais.Será assim porque a natureza em si mesma não
pode conceder-me existência e ser como entidade absolutamente única e
particular. A natureza aponta sempre para o geral; é a pessoa que salvaguarda a
unicidade e a particularidade absolutas. Portanto, a imortalidade da alma,
mesmo quando aponte para a existência, não supõe identidade pessoal no
verdadeiro sentido. Agora que sabemos, graças a teologia patrística da pessoa,
como existe Deus, conhecemos o que significa a existência verdadeira como ser
particular. Como imagens de Deus somos pessoas, não naturezas: Não pode haver uma imagem da natureza de
Deus, como tampouco agradaria à humanidade sua dissolução da natureza divina.
Somente quando existimos nesta vida como pessoas é que podemos esperar viver
eternamente, no sentido pessoal. O mesmo que ocorre no caso de Deus dá-se
também conosco: a identidade pessoal só surge do amor como liberdade
e da liberdade como amor.A pessoa é algo único e irrepetível. A natureza e as espécies são substituíveis. Os indivíduos,
considerados como natureza ou parte de uma espécie, nunca são plenamente
únicos. Podem assemelhar-se; podem ser compostos ou simples; podem combinar-se
com outros para produzir resultados ou mesmo novas espécies; podem servir a
diversos propósitos (sagrados ou não, pouco importa). Pelo
contrário, as pessoas não podem ser reproduzidas ou perpetuadas como
espécies; não podem compor-se ou decompor-se; combinar-se ou ser
utilizadas para alcançar qualquer objetivo (ainda o mais sagrado). Todo aquele que trate a pessoa
assim, automaticamente a converte numa coisa, a dissolve e faz desaparecer sua particularidade pessoal.Se não se percebe o próximo como imagem de
Deus neste
sentido,
ou seja, como pessoa, então não se poderá percebe-lo como uma verdadeira
identidade eterna.Isto se deve a que a morte nos mergulha a todos em uma natureza
indistinta, convertendo-nos em «substância» ou coisas. O que nos proporciona uma identidade que não morre não é nossa
natureza, mas nossa relação pessoal com a identidade pessoal e imperecível de
Deus. Somente quando a natureza é hipostática ou pessoal, como ocorre com
Deus, existe verdadeira e eternamente.Porque só então possui unicidade e passa a
ser uma particularidade irrrepetível e insubstituível segundo o «modo de
ser» que encontramos na Trindade.
Conclusão
Se a cultura atual se permite conceber ou aspira alcançar o verdadeiro
modo em que o homem pode ser pessoa, deve-se, antes de tudo, ao pensamento
cristão elaborado na Capadócia no século IV. Os Padres da Igreja Capadócia desenvolveram e nos legaram uma concepção
de Deus: Aquele que existe como comunhão de amor em liberdade de identidades
insubstituíveis e irrepetíveis, isto é, de verdadeiras pessoas no sentido
ontológico absoluto. Este é o Deus de quem o homem é chamado a ser «imagem».
Não existe uma antropologia mais plena e elevada que aquela que apela ao modo
de ser pessoa verdadeiro e pleno. O homem moderno tende, em geral, a mostrar
uma grande estima por uma antropologia assim, porém as concepções mais comuns e
estendidas do que se costuma entender por pessoa não estão em consonância com o
que temos dito a partir do estudo dos Padres capadócios.Na atualidade, a maioria de nós quando
dizemos « pessoa » entendemos indivíduo . Isto nos faz voltar a Santo
Agostinho ou a Boécio, lá pelo século V, que definia a pessoa como
natureza individual dotada de racionalidade e consciência. A concepção de
pessoa como pensamento o indivíduo autoconsciente, presente em toda a história
do pensamento ocidental, desembocou em uma cultura onde o indivíduo pensante se
converteu na noção chave da antropologia. Esta não é a conclusão a que chega o
pensamento dos capadócios. Muito pelo contrário, o resultado é o oposto. De acordo com eles, o verdadeiro
ser pessoal não provém do isolamento individualista do eu com respeito aos
demais, mas do amor e da relação com os outros, da comunhão.Somente o amor, o amor realmente livre,
despojado de necessidades naturais, pode gerar seres pessoais. Isto é realidade
em Deus, cujo ser, como observaram os Padres capadócios, constitui-se e «
hipostatiza » mediante um evento de livre amor protagonizado por uma pessoa
livre e amante, o Pai, e não pela necessidade da natureza divina. Isto também é
válido para o homem, chamado a exercer sua liberdade como amor e seu amor como
liberdade, de modo que possa mostrar-se como «imagem de Deus».Em nossos dias, e a
partir da filosofia ocidental, houve diversas tentativas de corrigir a
equiparação da «pessoa» com o «indivíduo»[14]. O Encontro do cristianismo com
outras religiões, como o budismo, levou a reconsiderar esta tradicional visão
individualista da pessoa. Por isso, estamos no momento mais propício para
retomar uma avaliação mais profunda dos frutos dados pelo pensamento cristão na
Capadócia do século IV; o mais importante deles é, sem dúvida alguma, a ideia
de pessoa tal e como foi apresentada pelos Padres capadócios.Esta é,
por conseguinte, a significação existencial — em sentido amplo — da
contribuição capadócia à teologia trinitária:Propiciar que vejamos em Deus o modo de existência que todo homem deseja encarnar; trata-se
basicamente de uma teologia soteriológica. Entretanto, creio que
os capadócios têm também uma palavra a dizer em alguma das questões atuais
presentes na teologia trinitária. Refiro-me particularmente à reflexão
procedente da teologia feminista, sobretudo no que concerne ao emprego dos
nomes dados a Deus. Os padres capadócios, em correspondência com a tradição
apofática oriental, apontam que toda a linguagem utilizada para descrever a
substância de Deus e suas qualidades ou energias está destinada a ser
inadequada. Não obstante, também no nível do discurso humano há de se levar a
cabo uma distinção entre natureza e pessoa. Os nomes «Pai», «Filho» e «Espírito»
são indicativos de identidade pessoal. E como são os únicos que encerram tal
indicação, não podem modificar-se.Os nomes que se referem às energias podem mudar (por exemplo: Deus é
bom, é poderoso...), porque provém de nossa experiência que, em nenhum caso
descreve adequadamente quem é Deus. Contudo,
o que ocorre com Pai, Filho e Espírito? Por acaso não são denominações tomadas
de nossa experiência? É possível alguma analogia entre a paternidade divina e a
humana? Esta analogia pode se dar no que diz respeito às qualidades morais
que se atribuem ao Pai (Criador, pessoa que ama etc.). Porém, estas não são
propriedades pessoais: aplicam-se às três pessoas da Trindade, isto é, à substância comum ou
energia. Pai, Filho e Espírito denominam identidades pessoais, nomes mediante
os quais o próprio Deus se nos revelou em Cristo.Esta é a grande diferença entre a linguagem
trinitária e a denominação «Deus» , que no sentido de divinitas não é um nome de
Deus. Este somente é nomeável como pessoa. Porém, seu nome somente nos é
conhecido e revelado por Cristo, isto é, somente em e mediante a relação Pai-Filho.
Logo, a Ele somente se lhe conhece como Pai. Consequentemente, a distinção
entre natureza e pessoa resulta fundamental também no que diz respeito ao tema
do que se convencionou chamar « linguagem compreensiva » . Do mesmo modo, é crucial
se identificamos o Deus Uno com o Pai ou o identificamos com a substância. Se é
Pai, só o é secundariamente, e não em sua identidade pessoal última, a
paternidade não é o nome de Deus, mas uma denominação sobre Deus. Em tal caso
pode mudar-se para transmitir melhor a mensagem que desejamos comunicar sobre o
ser de Deus.Os capadócios nos
ensinam que a Trindade não é matéria de especulação acadêmica, mas de relação
pessoal.Do mesmo modo, é uma verdade que se nos dá a
conhecer somente mediante a participação na relação do Pai com o Filho,
mediante o Espírito que grita em nós « Abba, Pai » (Rom 8,15; Gal 4, 6). Logo, a Trindade só
se manifesta na Igreja, na comunidade na qual chegamos a ser filhos do Pai de
Jesus Cristo. Fora desta, não é mais que um obstáculo e um escândalo.
Notas:
[7] Por exemplo, Gregório Nazianzeno, Or . 29 (PG 36, 96):
«Pai não é nome nem de substância nem de energia mas de schesis».
[11] Cf., por
exemplo, Gregório Nazianzeno, Or. 42, 15, Cf. G. L. Prestige, God in
Patristic Thought,
254: «o fundamento de sua fé (das três pessoas) unidade (henosis) reside no Pai, fora
dele e para ele são consideradas as demais pessoas. não para confundi-las, mas
para uni-las. A doutrina da monarquia tem seu ponto de partida na fundação da
unidade de Deus na Pessoa singular do Pai...»
[12] Cf. Basílio, Ep. 361 e 362. Para uma
discussão destas cartas e seu significado filosófico, cf. supra, o capítulo 2.
[14] Cf. J. Macmurray, El yo como agente:
la forma de lo personal, Barcelona 1974 (orig.
inglês: 1957) e Personas en relación, Madrid 2007 (orig. inglês: 1961) .
BIBLIOGRAFIA:
-BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. 13. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2017, 592 p.
-DROBNER, Hubertus R. Manual de patrologia. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008, 653 p.
-ZIZIOULAS, Ioannis D. Trinidad y
Persona: Valoración de la contribuición de los Padres capadócios. In:
ZIZIOULAS, Ioannis D. Comunión Alteridad. 1ª. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme,
2009. p. 197-223.
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