Quem foi o demagogo e contraditório Voltaire?
Como conquistar fama rápida, aplausos garantidos nos salões mundanos e ainda embolsar boas quantias — tudo isso enquanto se ostenta a imagem de gênio espirituoso, artista ousado ou pensador “iluminado”? Voltaire descobriu essa fórmula há mais de 250 anos, e seu método continua sendo imitado, com impressionante docilidade, até hoje. O segredo? Atirar lama na Igreja Católica. Nada mais simples, nada mais lucrativo — e nada mais repetitivo. A estratégia nunca falha, mesmo após séculos de uso exaustivo, sempre com a mesma monotonia previsível, sobretudo nos países do Ocidente: justamente aqueles que receberam da Igreja Católica os alicerces de sua própria cultura. A prática tornou-se tão comum que, já na esfera teatral, figuras como Bertolt Brecht e Rolf Hochhuth elevaram essa tendência ao grau de fraude artística: suas obras “Galileo Galilei” e “O Vigário” transformaram distorções históricas em espetáculos morais, que, repetidos insistentemente, acabaram entrando na mentalidade coletiva — e até em livros de História — como se fossem verdades documentais.
“A mentira, mil vezes repetida, torna-se verdade.”
A frase é de Goebbels, mas o princípio é muito mais antigo, ecoando desde sempre a astúcia do próprio “Pai da Mentira”.
QUEM FOI O DEMAGOGO E CONTRADITÓRIO VOLTAIRE ?
François-Marie Arouet — mais tarde conhecido como Voltaire — nasceu em 21 de novembro de 1694, em Paris, no seio de uma família burguesa abastada e com pretensões aristocráticas. Sua mãe faleceu pouco depois de seu nascimento. Educado pelos jesuítas no tradicional Collège Louis-le-Grand — instituição à qual, mais tarde, não hesitaria em lançar suas costumeiras ironias, cuspindo no prato que o formou — destacou-se desde cedo como aluno brilhante, de aguda inteligência e grande talento literário. Na juventude, frequentou a Société du Temple, círculo de libertinos e livres-pensadores, ambiente que moldou seu estilo mordaz e sua inclinação para a sátira. Tornou-se célebre por sua perspicácia e sua defesa das liberdades civis — pasmem: até mesmo da liberdade religiosa e do livre comércio. É uma das figuras mais emblemáticas do Iluminismo, e suas ideias exerceram forte influência sobre intelectuais tanto da Revolução Francesa quanto da Americana. Autor incansável, Voltaire deixou cerca de setenta obras em praticamente todos os gêneros literários: peças de teatro, poemas, romances, ensaios, tratados científicos e históricos, além de mais de vinte mil cartas e mais de dois mil livros e panfletos.
A torrente de sua escrita foi tão poderosa quanto sua habilidade de moldar a opinião pública. Defendia abertamente reformas sociais, apesar das rígidas leis de censura de sua época — leis que, quando violadas, podiam custar não apenas a liberdade, mas a vida, sobretudo após a instituição da nada “iluminada” guilhotina.
Voltaire foi um polemista satírico por excelência. Em suas obras, a crítica — nem sempre tão “tolerante” quanto ele gostava de pregar — recaía sobretudo sobre a Igreja Católica e sobre as instituições francesas de seu tempo. O conjunto de suas ideias representa uma vertente do pensamento iluminista que viria a alimentar o Liberalismo.
Em grande parte de seus textos, manifesta-se a defesa da liberdade, principalmente da liberdade de pensar, com ataques constantes à censura e à escolástica. No entanto, essa defesa da liberdade vinha acompanhada de uma contradição flagrante: Voltaire jamais estendeu essas liberdades àqueles que discordavam dele — especialmente aos membros da Igreja que ele perseguia com implacável virulência.
Sua atuação panfletária contribuiu para difamar clérigos, muitos dos quais acabaram entregues à guilhotina durante o furor revolucionário, vítimas de um ódio quase patológico à Igreja Católica. A frase atribuída a ele — embora não exista prova documental de que seja sua — tornou-se símbolo da tolerância que ele próprio não praticava:
“Não concordo com nenhuma das palavras que dizes, mas lutarei até a morte para que tenhas o direito de dizê-las.” Paradoxo perfeito para um homem que, na prática, negou tal liberdade aos seus adversários.
Voltaire também se destacou como conselheiro de reis, entre eles Frederico II da Prússia, o célebre déspota esclarecido. Após um conflito com o monarca, retirou-se em 1753 para uma propriedade perto de Genebra.
Ali, conseguiu a proeza de desagradar simultaneamente a todos: escandalizou católicos com A Donzela de Orléans (1755), irritou protestantes com o Ensaio sobre os Costumes (1756) e atacou o pensamento de Rousseau em seu Poema sobre os Desastres de Lisboa (1756). Voltaire não foi um teórico sistemático, mas sim um propagandista brilhante e um polemista combativo.
Denunciou com veemência abusos do Antigo Regime e defendia que nenhum soberano deveria punir um súdito sem passar pelos devidos processos legais. Contudo, como se vê repetidas vezes em sua vida e obra, sua régua moral variava conforme o alvo: quando se tratava da Igreja ou de quem se opunha às suas ideias “tolerantes”, Voltaire aplicava a mais clássica das incoerências — um peso e duas medidas.
As ideias presentes nos escritos de Voltaire compõem uma teoria aparentemente coerente, mas marcada por contradições que revelam bem o espírito do Iluminismo do qual foi um dos principais porta-vozes. Defendia a submissão irrestrita à lei e sustentava que o poder deveria ser exercido de forma liberal e racional, sem considerar tradições, costumes ou instituições históricas — especialmente as religiosas.
Sua convivência com a atmosfera de liberdade inglesa reforçou sua convicção de que um Estado tolerante e relativamente liberal não era uma utopia. Contudo, Voltaire estava longe de ser um democrata. Via o povo comum, sobretudo os religiosos, como massa facilmente inclinada ao fanatismo e à superstição. Dessa postura elitista derivou sua hostilidade persistente aos dogmas, notadamente os da Igreja Católica, que acusava de sufocar o progresso e contradizer a ciência. Ironicamente, ignorava — ou preferia ignorar — que muitos dos maiores cientistas de sua época eram justamente padres jesuítas. Sobre essa contradição fundamental, o catedrático de filosofia Carlos Valverde registra um curioso episódio: um aparente abrandamento de Voltaire em relação à fé cristã, documentado no tomo XII da célebre revista francesa Correspondance Littéraire, Philosophique et Critique (1753–1793). Ali, segundo Valverde, encontram-se indícios de uma mudança de postura do filósofo em seus últimos anos — mudança que, por si só, já seria uma confissão involuntária da insuficiência de suas próprias certezas anteriores.
Tal texto traz, no número de abril de 1778,
páginas 87-88, o seguinte relato literal de Voltaire:
"Eu, o que escreve, declaro que havendo sofrido um
vômito de sangue faz quatro dias, na idade de oitenta e quatro anos e não
havendo podido ir à igreja, o pároco de São Suplício quis de bom grado me
enviar a M. Gautier, sacerdote. Eu me confessei com ele, se Deus me perdoava,
morro na Santa Religião Católica em que nasci esperando a misericórdia divina
que se dignará a perdoar todas minhas faltas, e que se tenho escandalizado a
Igreja, peço perdão a Deus e a ela. Assinado: Voltaire, 2 de março de 1778 na casa do marqués de
Villete, na presença do senhor abade Mignot, meu sobrinho e do senhor marqués
de Villevielle. Meu amigo."
Este relato
foi reconhecido como autêntico por alguns, pois seria confirmado por outros
documentos que se encontram no número de junho da mesma revista, esta de cunho
laico, decerto, uma vez que editada por Grimm, Diderot e outros
enciclopedistas.
O QUE POUCA GENTE SABE SOBRE O polêmico e CONTRADITÓRIO
VOLTAIRE?
1)- De fato,
Voltaire se confessou, como conta esse documento. Só que, depois, ele melhorou
de saúde e voltou a atacar a Igreja.Há uma tendência sentimental em pretender
que todos os inimigos da Igreja, na ultima hora, se salvem.Creio bem que grande
número de pessoas se salva na hora da morte, pela misericórdia de Deus, que é
infinita. Tendo até a considerar que o número dos que se salvam é bem maior do
que normalmente se pensa. Mas, no caso de Voltaire, isso não foi tão piedoso
como diz o documento citado.Quando Voltaire melhorou de saúde, após a sua
confissão, ele voltou a todas as suas infâmias. Estando de
novo à morte, os seus companheiros de sacrilégios impediram que ele se
confessasse de novo. Consta então que ele teve morte desesperada. Oxalá que ele, de fato, tenha se arrependido e que Deus o tenha salvo.
2)-
3)- VOLTAITE
ESCREVEU: "Descendo sobre este montículo de lama e não tendo maiores noções
a respeito do homem, como este não tem a respeito dos habitantes de Marte ou de
Júpiter, desembarco às margens do oceano, no país da Cafraria, e começo a
procurar um homem. Vejo macacos, elefantes e negros. Todos parecem ter algum
lampejo de uma razão imperfeita. Uns e outros possuem uma linguagem que não
compreendo e todas as suas ações parecem igualmente relacionar-se com um certo
fim. Se julgasse as coisas pelo primeiro efeito que me causam, inclinar-me-ia a
crer, inicialmente, que de todos esses seres o elefante é o animal racional.
Contudo, para nada decidir levianamente tomo filhotes dessas várias bestas. Examino
um filhote de negro de seis meses, um elefantezinho, um macaquinho, um leãozinho,
e um cachorrinho. Vejo, sem poder duvidar, que esses jovens animais possuem
incomparavelmente mais força e destreza, mais idéias, mais paixões, mais
memória do que o negrinho e que exprimem muito mais sensivelmente todos os seus
desejos do que ele. Entretanto, ao cabo de certo tempo, o negrinho
possui tantas idéias quanto todos eles. Chego mesmo a perceber que os animais
negros possuem entre si uma linguagem bem mais articulada e variada do que a
dos outros animais. Tive tempo de aprender tal linguagem e, enfim, de tanto
observar o pequeno grau de superioridade que a longo prazo apresentam em
relação aos macacos e aos elefantes, arrisco-me a julgar que efetivamente ali
está o homem. E forneço a mim mesmo esta definição: O homem é um
animal preto que possui lã sobre a cabeça, caminha sobre duas patas, é quase
tão destro quanto um símio, é menos forte do que outros animais de seu tamanho,
provido de um pouco mais de idéias do que eles e dotado de maior facilidade de
expressão. Ademais, está submetido igualmente às mesmas necessidades que os
outros, nascendo, vivendo e morrendo exatamente como eles. Após ter
passado certo tempo entre essa espécie, desloco-me rumo às regiões marítimas
das Índias Orientais. Surpreendo-me com o que vejo: os elefantes, os leões, os
macacos e os papagaios não são exatamente como eram na Cafraria; mas o homem,
esse parece-me absolutamente diferente. Agora são homens de um belo tom
amarelo, não possuem lã, mas têm a cabeça coberta de grandes crinas negras.
Parecem ter sobre as coisas idéias totalmente contrárias às dos negros. Sou,
portanto, forçado a mudar minha definição e a classificar a natureza humana sob
duas espécies: a negra com lã e a amarela com crina. Mas, na
Batávia, em Goa e em Surata, ponto de encontro de todas as nações, vejo uma
grande multidão de europeus. São brancos, não possuem lã ou crina, mas cabelos
louros bem soltos e barba no queixo. Mostram-me também muitos americanos, que
não possuem barba. Eis minha definição e minhas espécies de homem bastante
ampliadas. Em Goa
encontro uma espécie ainda mais singular do que todas essas. Trata-se de um
homem vestido com uma longa batina negra, dizendo-se feito para instruir os
outros. Todos esses homens que vedes, diz-me ele, nasceram de um mesmo pai. E,
então, conta-me uma longa história. No entanto, o que diz esse animal soa-me
bastante suspeito. Informo-me se um negro e uma negra, de lã negra e nariz
chato, engendram algumas vezes crianças brancas, de cabelos louros, nariz
aquilino e olhos azuis, se nações imberbes vieram de povos barbados e se os
brancos e as brancas engendraram povos amarelos. Respondem-me que não, que os
negros transplantados, por exemplo, para a Alemanha continuam produzindo
negros, a menos que os alemães se encarreguem de mudar a espécie, e assim por
diante. Acrescentam que um homem instruído nunca diria que as espécies não
misturadas degeneram, a não ser o Padre Dubos, que disse tal besteira num livro
intitulado Reflexões sobre a Pintura e sobre a Forma etc. Quer me parecer que
agora estou muito bem fundamentado para crer que os homens são como as árvores:
assim como as pereiras, os ciprestes, os carvalhos e os abricoteiros não vêm de
uma mesma árvore, assim também os brancos barbados, os negros de lã, os
amarelos com crina e os homens imberbes não vêm do mesmo homem... " (Voltaire,
Tratado de Metafísica, cap. I (Os Pensadores). São Paulo: Abril, 1978, p.62,63).
Eis aí,
uma "boa" contribuição do Iluminismo ao racismo...SQN!
CONCLUSÃO
A figura de Voltaire permanece, até hoje, envolta em um brilho cuidadosamente construído — o brilho do “espírito iluminado”, do defensor da liberdade, do gênio irreverente que desafiou o obscurantismo. Mas, ao observarmos mais de perto sua obra e sua vida, percebemos que esse brilho é menos luminoso do que parece: trata-se muitas vezes de uma luz artificial, sustentada por contradições profundas, preconceitos disfarçados de razão e uma intolerância seletiva dirigida àqueles que não se dobravam à sua visão de mundo.
Voltaire é, sem dúvida, um nome importante do Iluminismo; mas é também um símbolo claro de seus limites: a defesa apaixonada da liberdade acompanhada do desprezo pelos que pensam diferente; o elogio da razão misturado à caricatura de tudo o que foge ao seu esquema; o combate ao fanatismo praticado com métodos igualmente fanáticos.
Se, como sugerem alguns documentos, o filósofo tenha experimentado um abrandamento em sua postura anticristã nos últimos anos, isso apenas reforça a ideia de que nem mesmo ele escapou às fissuras internas de seu pensamento. Talvez porque, ao final, a razão humana — por mais brilhante que seja — não é suficiente para responder a tudo; talvez porque as certezas tão proclamadas nem sempre resistem ao peso da própria vida. Conclui-se, portanto, que Voltaire deve ser estudado, sim, mas sem mitos. Deve ser lido, mas sem a reverência automática que a modernidade lhe atribuiu. E sobretudo deve ser compreendido em toda a sua complexidade: genial em muitos aspectos, contraditório em tantos outros, e profundamente marcado por um anticlericalismo que, longe de promover a tolerância, muitas vezes serviu para justificar perseguições. Em suma, Voltaire permanece como uma figura cuja influência é inegável — mas cujo legado exige discernimento, crítica e distância histórica para ser verdadeiramente compreendido.
BIBLIOGRAFIA
-JOHNSON, Paul. Intelectuais. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
-ROUGIER, Louis. Voltaire e a religião. São Paulo: Paulinas, 1957.
-DUMONT, Jean. A Igreja na História. Porto: Lello & Irmão, 1997.
-CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. São Paulo: Editora UNESP, 1997.
-HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970.
-FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O Espírito das Luzes. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
-ANDERSON, Perry. Linhas de longa duração: ensaios sobre história e teoria. São Paulo: Boitempo, 1999.
-RUSSELL, Bertrand. História do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
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