A canonização dos Santos: breve histórico e descrição de como transcorre em nossos dias
Doutor em Direito Canônico responde a perguntas de Catolicismo
O Revmo. Pe. Alberto Royo, sacerdote oratoriano espanhol residente em Roma, é doutor em Direito Canônico e divide seu tempo entre a ação pastoral na igreja de Santa Maria in Valicella, onde se encontram os restos mortais de São Felipe Neri, e suas múltiplas ocupações nos processos de canonização.
Pe. Royo |
O Revmo. Pe. Royo atendeu o diretor do Bureau das TFPs em Roma, Sr. Juan Miguel Montes, para conceder uma entrevista a Catolicismo, na qual explica quais são as condições requeridas para que as pessoas falecidas em odor de santidade cheguem às honras dos altares.
Catolicismo -- Padre Royo, V. Revma. pode nos explicar como a Igreja chegou a reconhecer os Santos, através dos séculos?
Pe. Alberto Royo -- Na Igreja primitiva, os primeiros Santos reconhecidos como tais eram os mártires, os quais haviam dado a vida por Cristo ante os olhos de todos, em razão do que, apenas mortos e enterrados, já eram objeto de veneração. Normalmente, os martírios ocorriam publicamente, em circos e praças, de forma diferente dos martírios atuais, como os causados pela perseguição religiosa durante a Guerra Civil espanhola, pelo comunismo e pelo nazismo. Nos primeiros tempos, sem nenhum processo propriamente dito, a veneração popular proclamava Santos os mártires.
Pouco a pouco, o Bispo, enquanto sustentáculo da Fé da Igreja, passou a determinar quem podia ou não ser venerado como santo. Já então se começava a venerar, além dos mártires, aqueles que haviam sobrevivido à perseguição e perseverado. Estes últimos eram chamados confessores.
Catolicismo -- Mas atualmente a denominação de confessor não teria um sentido mais amplo do que nos tempos das perseguições romanas?
Pe. A. Royo -- Sim, efetivamente. Com a liberdade concedida à Igreja pelo Imperador Constantino, mediante o Edito de Milão, em 313 D.C., começou-se a usar a designação deconfessor para uma nova categoria de santos. Eram pessoas que, sem derramar o sangue, mas pelo exercício de suas virtudes, seu esforço, o cumprimento do dever, sua abnegação, suas penitências, estavam efetiva e realmente dando a vida todos os dias por Cristo. Numa palavra,confessores são os Santos aos quais se reconhece terem praticado virtudes heróicas. Foi assim aumentando o número dos Santos monges, anacoretas, pregadores, fundadores e inclusive leigos.
Catolicismo -- Como a Igreja discernia a prática das virtudes heróicas, mais difícil de demonstrar que um martírio público?
Pe. A. Royo -- No início, era muito simples. O Bispo informava-se junto aos que haviam conhecido uma pessoa falecida com fama de santidade. Pedia-lhes que dessem testemunho a respeito de sua vida ou sobre milagres obtidos por sua intercessão, após o falecimento.
Desde os primeiros tempos, os milagres foram requeridos, juntamente com o testemunho do martírio ou da santidade de vida. `A medida que a Igreja foi crescendo, e com o correr dos séculos, começou-se a fazer um verdadeiro processo de canonização. Ainda hoje exige-se o milagre, além do processo em si mesmo, porque o juízo dos teólogos e dos Cardeais é um juízo humano, enquanto o milagre é considerado como a confirmação que Deus faz desse juízo.
Catolicismo -- E como se chegou ao processo de canonização, tal como existe hoje?
Pe. A. Royo -- Por volta do século XII, o Papa reservou-se definitivamente o direito de canonizar. Os Bispos, por sua vez, podiam continuar concedendo o culto restrito, que não era tão solene quanto a canonização.
No início das canonizações efetuadas pelos Papas, estes enviavam um delegado pontifício e alguns auxiliares a diversos lugares para poder comprovar a santidade dos candidatos aos altares. Assim nasceu o primitivo processo, ainda muito simples: o delegado do Papa interrogava as testemunhas que haviam conhecido o Servo de Deus e voltava a Roma, a fim de apresentar os dados coletados ao Sumo Pontífice. Este, então, com base nos dados colhidos, proclamava a santidade do Servo de Deus.
Com o passar do tempo, o processo foi se tornando mais preciso e aumentou o rigor exigido nas investigações. Diante do grande aumento do número de causas nos séculos anteriores e da impossibilidade de enviar delegados a todos os lugares onde havia pessoas falecidas com fama de santidade, o Papa Sixto V -- grande reformador da Cúria Romana, cujo pontificado estendeu-se de 1585 a 1590 -- instituiu um Dicastério romano que teria, entre outras atribuições, a de realizar os processos de canonização. Tal dicastério denominou-se Congregação dos Ritos, que disciplinava o Culto Divino e os Sacramentos, incluindo também, entre outros ritos, o da canonização. Um passo importante na evolução do processo foram os decretos de Urbano VIII e a legislação de Bento XIV.
Recentemente, neste século, a Congregação dos Ritos se dividiu: de um lado a Congregação para o Culto Divino e os Sacramentos; de outro, a Congregação para a Causa dos Santos. O que indica bem a importância conferida a um processo de canonização.
Até há pouco, o Bispo devia avisar Roma da existência em sua diocese de uma pessoa falecida com fama de santidade. A Santa Sé tomava então a iniciativa de realizar o processo. Com as novas leis sobre canonizações e beatificações, a estrutura do processo mudou um tanto: embora seja ainda o Papa quem possui o poder de beatificar ou canonizar, as dioceses desempenham um papel mais importante na realização do processo.
Catolicismo -- Como se desenvolve atualmente tal processo?
Pe. A. Royo -- Como sempre, a partir da fama de santidade. O Bispo decide dar início ao processo de um fiel morto com fama de santidade e cujo renome perdura depois da morte. Em seguida, pede à Santa Sé o Nihil Obstat para a abertura efetiva do processo, após haver comprovado que a fama de santidade é sólida e baseada em fundamento real, está difundida e não foi provocada artificialmente. Também deve pedir o parecer dos demais Bispos de sua província eclesiástica sobre a pessoa falecida nessas condições.
Feito isso, e recebido o Nihil Obstat da Congregação para iniciar e instruir o processo. Este, realizado assim pela autoridade do Bispo, abarca a fama de santidade e a heroicidade das virtudes, ou a fama de santidade e o martírio.
O processo consta das seguintes etapas:
* Interrogam-se as testemunhas, caso ainda estejam vivas. Algumas são apresentadas pelo postulador, enquanto outras são designadas ex oficio pelo tribunal do Bispo.
* Depois, pelo menos dois censores examinam os escritos do Servo de Deus, caso existam.
* Se a causa refere-se a um Servo de Deus que não faleceu recentemente, o Bispo precisa convocar uma comissão histórica que recolhe todo o material existente e julga sua validez.
* Simultaneamente à fase dos interrogatórios e da avaliação dos escritos, é necessário um decreto do Bispo certificando a ausência do culto público, segundo norma promulgada por Urbano VIII.
Tudo isso deverá ser enviado a Roma, onde se estabelece a validade do processo, ou seja, a constatação de que nada falta para o seu prosseguimento.
* Depois, o postulador pede que se nomeie um relator da causa, o qual, junto com o postulador e outros colaboradores, elabora a Positio, que é um livro, às vezes em vários volumes, que resume toda a documentação. Esse resumo será julgado depois pelos Cardeais, Bispos e teólogos membros da Congregação.
* Concluída a Positio, ela deve ser entregue à Congregação, que a coloca na lista de espera. Devido à grande quantidade de causas, podem transcorrer vários anos até que chegue sua vez de ser examinada.
* A Positio será então estudada por oito consultores teólogos e pelo Promotor da Fé, os quais deverão emitir seus votos "afirmativos", "suspensivos" ou "negativos" no "Congresso Peculiar" super virtutibus ou super martyrio. Ou seja, aceita-se ou não o que está relatado sobre as virtudes heróicas ou o martírio. O voto "suspensivo" é dado quando se encontram aspectos não inteiramente esclarecidos, segundo a opinião dos consultores, ou quando falta documentação concludente. Se dois terços dos seus votos forem afirmativos, a causa passa aos Cardeais, Arcebispos e Bispos membros do Dicastério, que a examinam por turnos.
* Também eles deverão aprová-la para que possa ser apresentada de modo resumido ao Romano Pontífice. Normalmente, se os teólogos aprovam uma causa, os Cardeais e Bispos confirmam a decisão. Há casos, porém, em que tal não se dá, pois o parecer destes não está sujeito ao dos teólogos.
* O Papa é, em definitivo, o único juiz da Causa. Os passos prévios são, na realidade, meramente consultivos. Se o Papa confirma o juízo aprobatório descrito previamente, declararávenerável o Servo de Deus, título com o qual se reconhece sua heroicidade de virtudes ou seu martírio.
* O passo seguinte é o reconhecimento do milagre post mortem.
Se se trata de uma Causa de martírio, não é necessário o milagre para a beatificação. O martírio é um fato preciso: o Servo de Deus ter sido morto por ódio à religião, o que é mais fácil de demonstrar do que a heroicidade das virtudes.
O milagre é discutido apenas quando se examina a possibilidade de beatificação quando a causa è devida à heroicidade de virtudes.
* Primeiro submete-se o suposto milagre a uma junta médica de cinco membros (*).
* Se estes o aprovam, passa-se ao voto dos teólogos.
* Em seguida, ao dos Cardeais e Bispos.
* Finalmente, ao Papa, que reconhece ou não o milagre. Se reconhecer, o Venerávelpoderá então ser beatificado.
* Para a canonização, será necessário outro milagre. Também no caso do mártir, é necessário o milagre para sua canonização. Com isso conclui-se o processo.
Catolicismo -- O Papa deve ater-se a esses pareceres de médicos, de teólogos e das autoridades eclesiásticas sobre o Servo de Deus?
Pe. A. Royo -- Dado o seu poder supremo, o Papa não é obrigado a ater-se a tais pareceres. É claro que normalmente respeita escrupulosamente o processo que foi aprovado por ele e por seus predecessores. Porém, na realidade, não está obrigado a tal.
João Paulo II, às vezes, dispensa o milagre nas causas históricas, quando se demonstra que a fama de santidade continua ao longo dos séculos. Tal ocorreu nos casos do Bem-aventurado José de Anchieta e do Bem-aventurado Juan Diego, o vidente de Nossa Senhora de Guadalupe (México). Entretanto, dificilmente assim procede com relação às causas recentes, em razão do que algumas só chegam à declaração de Venerável, permanecendo à espera do milagre.
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(*) Nota:
* O milagre já foi examinado previamente, no processo diocesano, pelos médicos que trataram do caso e por outros nomeados ex oficio. A esses se acrescentam o testemunho de pessoas comuns, que conheceram o caso e podem fornecer dados sobre a enfermidade que propiciou o milagre e a oração dirigida ao Servo de Deus.
* Depois, nomeiam-se dois peritos médicos, diferentes dos que deram testemunho da cura, para corroborar que os efeitos do milagre continuaram ao longo dos anos naquele que recebeu a graça.
* Chegando o caso à Congregação, outros dois médicos nomeados ex oficio que o estudarão.
* Se ambos dão parecer positivo acerca da inexplicabilidade do fenômeno, passa-se à junta médica, composta por esses dois mais outros três médicos.
* Para que o milagre possa ser submetido ao voto dos teólogos e do Promotor da Fé, pelo menos dois terços dos médicos que emitiram pareceres devem tê-lo aprovado.
Fonte:http://www.catolicismo.com.br/materia/materia.cfm?IDmat=0370CE08-3048-560B-1C701A30D09DCEFC&mes=Setembro1997
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