Na experiência da consciência, a pessoa livre percebe sua capacidade de discernir entre o bem e o mal para decidir de forma responsável. Na consciência cristã se juntam a experiência moral humana da responsabilidade e a experiência espiritual cristã de viver a fé e caminhar no Espírito. “Consciência de si” (em inglês consciousness, em alemão Bewusstsein) e “consciência” (inglês, Conscience, alemão, Gewissen) referem-se à etimologia latina da conscientia: cum scientia, simul scire e à grega de syn-eidesis : “conhecer-com” ou conhecimento autorreflexo, concomitante ao conhecimento de algo ou de alguém. A “consciência de si” é dita em um sentido fisiológico e psicológico de estar em um estado consciente, desperto e capaz de reconhecer-se em suas ações e no meio ambiente.
“Consciência” se diz, em sentido moral ou religioso, da
apreensão responsável do valor moral e espiritual
Desde os tempos
antigos, em culturas distantes uma da outra no espaço e no tempo, há expressões
da vida diária sobre a satisfação pelo bem e remorso pelo mal, como mostram,
por exemplo, essas inscrições:
-“O coração é
testemunha; você não deve agir contra ele” (cultura egípcia);
-“Um Deus invisível
habita dentro de nós” (cultura hindu);
-“O melhor de cada
humano, seu coração bom e firme, para ter Deus em seu coração” (cultura
náuatle).
Segundo o Dicionário Aurélio em sua 4.ª edição,
consciência é:
“Atributo altamente desenvolvido na espécie humana e que se define por uma
oposição básica: é o atributo pelo qual
o homem toma em relação ao mundo (e, posteriormente, em relação aos chamados
estados interiores, subjetivos) aquela distância em que se cria a possibilidade
de níveis mais altos de integração”; “conhecimento desse atributo”; “faculdade de estabelecer julgamentos morais dos atos
realizados”; “conhecimento imediato
da sua própria atividade psíquica ou física”; “conhecimento, noção, ideia”; “cuidado com que se executa um trabalho, se
cumpre um dever, senso de responsabilidade”; “honradez, retidão, probidade”;
“consciência
coletiva: conjunto de representações, de sentimentos ou de tendências não
explicáveis pela psicologia do indivíduo, mas pelo fato do agrupamento dos
indivíduos em sociedade”; “consciência de si: autoconsciência”;
“consciência moral: a faculdade de distinguir o bem do mal, de que resulta o sentimento do dever ou da
interdição de se praticarem determinados atos, e a aprovação ou o remorso por
havê-los praticado”.
TIPOLOGIA DA CONSCIÊNCIA:
-Na consciência
psicológica, a pessoa, que não é uma coisa a mais entre as coisas, percebe seus
próprios estados anímicos e retorna reflexivamente sobre si mesma, reconhecendo-se
conscientemente como sujeito de sua vida psíquica no mundo, no tempo e em
relação a outras pessoas.
-A consciência moral
percebe o chamado para realizar os valores morais e cumprir as normas; julga, exercendo com
prudência a razão prática, sobre o que deve ou não ser feito para realizar
esses valores e aplicar as normas nas circunstâncias concretas da vida diária. Sócrates se refere à voz do daimon que o aconselha. Sêneca
a chama de “observador vigilante do bem e do mal no nosso interior”. Confúcio
disse que sempre viveu “ouvindo a voz do céu”. Para Kant é o “tribunal da
justiça no interior do homem”. Considerada
a partir do objeto do juízo, a consciência é verdadeira ou errônea. Considerada
a partir do sujeito, é sincera ou insincera. Somos chamados a seguir o
chamado da consciência e, ao mesmo tempo, reconhecer a
possibilidade do erro e a necessidade de formar ou corrigir a consciência.
A consciência antecedente convida a fazer o bem e a evitar o
mal. A consciência consequente confirma a satisfação pelo bem feito e
reprova o mal cometido.
-A consciência moral
crente é identificada com a fé que internaliza o chamado divino e expressa a
resposta responsável para viver praticando o amor da caridade (ágape) com a ajuda
da graça.
A consciência é voz, luz e força para responder à realidade a partir da fé;
capacita, guia e apoia o julgamento prudencial e a decisão responsável (CURRAN,
2004, p.7). É voz que chama a deixar-se conduzir pelo Espírito. É luz que acompanha
os processos de discernimento e deliberação sobre valores, normas e
circunstâncias. É força para decidir e curar, ou reconciliar depois de
reconhecer os erros na decisão.
A formação da Consciência (vós interior) na Perspectiva
bíblica
No Antigo Testamento
Na Bíblia hebraica, “coração e entranhas” são metáforas
da consciência.
-Na profundidade da interioridade, a fé reconhece se “o
coração não a reprova” (Jó 27,6).
-Davi “sentiu bater-lhe o coração” de remorso por um
comportamento injusto (1Sm 24,6; 2Sm 24,10). O salmista arrependido clama:
“Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova em mim um espírito reto (…) um
coração arrependido e humilhado, não o desprezas, ó Deus” (Sl 51,12-18).
-Aí Deus promete gravar sua palavra: “Porei a minha lei
no seu interior, e a escreverei no seu coração” (Jr 31,33, cf. Dt 4,39).
-Jeremias anuncia que “o pecado está gravado na tábua do
coração” (Jr 17,1).
-Jó se defende: “meu
coração não me reprova nenhum de meus dias” (Jó 27,6).
-A promessa do Espírito é: “Eu lhes darei um coração novo
e lhes infundirei um espírito novo. Arrancarei
o coração de pedra e lhes darei um coração de carne” (Ez 11,19; 18,31;
36,26).
-O Criador, que “vê o coração” (1Sm 16,7), é o “Deus
justo que sonda o coração e as entranhas” (Sl 7,10; Sl 139,1-7; cf. Sl 26,2; Jr
11,20; 17,10; 20,12).
Novo Testamento
Jesus prega a disposição interior do bom coração, em vez
da exterioridade da consciência moral farisaica (Mt 15,7-20, Lc 11,37-42).
-“O que sai de dentro
do coração humano é o que mancha” (Mc 7,21-23).
-“O homem bom tira
coisas boas do bom tesouro que está em seu coração” (Lc 6,45).
-Chegou o tempo a
viver com um coração novo: Deus o transformará, derramando sem limites seu
Espírito (Lc 4,14-21; Jo 7,39, cf. Jl, 3,1-2).
-Paulo integrou a
tradição helênica sobre a consciência (syneidesis) com a presença interior e
ativa do Espírito. “Aqueles que se deixam guiar pela sabedoria do Espírito
tendem ao que é próprio do Espírito” (Rm 8,5), que ilumina o discernimento (Rm
14,16-23; 1Tm 1,5; 1Cor 2,6-16).
-A autonomia da
consciência moral do homem consiste em ser uma lei (nomos) para si mesmo
(autos): uma lei não escrita, gravada nos corações (Rm 2,14-15), que se
explicita na consciência moral cristã como autonomia teonômica, que coincide
com o sentido de viver e caminhar no Espírito.
-Paulo levanta as
questões morais para uma fé e consciência adultas, em contraste com o modo de
agir da criança por medo de castigo ou esperança de recompensa (Rm 14,1-4), e
enfatiza a coerência da ação com a própria convicção, acentuando o aspecto
comunitário e a repercussão de nossa maneira de agir em outros membros da
comunidade (Rm 14,12). Nesse texto, a palavra-chave é “convicção interna de fé”
(pistis).
-Paulo integrou a
noção popular e filosófica de consciência (syneidesis) na era helênica com a da
fé cristã, centrada na atividade do Espírito que ilumina o discernimento e
fortalece a decisão. Mas, o direito e o dever de agir em consciência se conjugam
com o respeito pela consciência dos outros (1Cor 8,1-13 e 10,23-33).
-A consciência é a
voz, guia e força do Espírito: uma voz que não vem de fora, mas é ouvida na
interioridade; guia para discernir com prudência. “Bem-aventurado aquele que
examina as coisas e faz um juízo (…) o que não vem da convicção é pecado” (Rm
14,23); força para decidir de forma responsável, denunciar profeticamente e testemunhar
bravamente (Mt 10,19-20).
A ideia de consciência está ligada a uma separação, o pensamento
separando-se do pensado e do pensante, e a superação dessa separação, por uma
integração, numa unidade complexa e abstrata, mas real. A unidade é transcendente,
o que se diz de Deus, mas se conecta a todas as coisas em suas conexões
essenciais, e assim também imanente.
Para a filosofia materialista, a consciência é:
Simplesmente um
produto da complexidade do cérebro, que surgiu com a espécie humana, em
decorrência de pura sorte, pelo movimento aleatório do universo que em
determinado momento, depois do desenvolvimento da vida (não se sabe como) e sua
evolução, o homem adquiriu consciência.
De outro lado, para o espiritualismo, ou para o
idealismo:
A consciência é preexistente ao homem, sendo inerente ao Cosmos, é atributo de Deus, da Razão, que foi alcançada pela humanidade como dádiva do Altíssimo, ao conceder ao homem seu Espírito e Liberdade. No princípio era o Verbo, o Logos, a Consciência.“Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou” (Gn 1, 27). Deus é Espírito, e colocou no homem um espírito capaz de alcançar o Espírito de Deus, fazendo-o à Sua imagem, como um reflexo, também, somos dotados de inteligência, vontade e liberdade.Consciência é conhecimento, manifestação do Espírito, mas um conhecimento especial, que reflete uma ordem, uma razão; e o homem, pela liberdade concedida por Deus, pode optar por fazer de sua consciência o reflexo de uma natureza materialista caótica e aleatória ou de uma natureza com um princípio espiritual, ordenado e organizado.Segundo o conhecimento bíblico, a criatura, pelo homem, seguiu a influência de Satã, o Diabo, que significa o que desune, o que separa, rompendo sua ligação com Deus, episódio conhecido como Queda. Desde então, a história da humanidade é a da busca pela reconexão com Deus, com o Cosmos, que foi alcançada individualmente com Jesus Cristo, que tinha consciência de sua Unidade com o Pai, o Criador, pelo que Jesus Cristo é a encarnação da própria Consciência, a manifestação do Logos.
UMA ANÁLISE FILOSÓFICO-MATERIALISTA DA FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA
A consciência decorre de ciência conjunta, é um saber compartilhado, pelo qual o pensamento humano se conecta idealmente a uma ordem (ou desordem, para os materialistas) que lhe é alheia, ligando eventos materiais e espirituais em uma cadeia relacional, causal, vinculando-se ao conceito de movimento: físico, psíquico e intelectual. Todavia, o homem, por seu espírito, entende que ele integra essa ordem “alheia”, compreendendo que sua consciência, enquanto Consciência, é a própria Ordem cósmica se percebendo.Nesse ponto, a melhor proposta científica sobre a realidade e seu movimento é a desenvolvida por David Bohm, descrevendo o cosmos como um holomovimento contínuo, pelo qual a verdadeira realidade é indivisível, inseparável, indefinível e incomensurável.O movimento do todo é ordenado, mas a ordem mais ampla e profunda é implícita, está dobrada para dentro, é implicada, e nós percebemos por nossos sentidos apenas a ordem dobrada para fora, que é superficial, explicada, manifesta.A ciência, assim, a partir da noção interna de ordem, presente no espírito humano, procura nas manifestações exteriores os sinais que apontam para a citada ordem implicada, que pode ser entendida como imanente e transcendente, além do espaço-tempo. Wolfgang Smith afirma que:Mesmo “o mais simples ato de percepção é consumado pelo intelecto, transcendendo assim os limites do espaço e do tempo” (In O Enigma Quântico: Desvendando a Chave Oculta. Tradução de Raphael de Paola. Campinas: Vide Editoral, 2011, p. 195); ou seja, é o intelecto, imaterial e atemporal, que percebe a ordem.Portanto, como a consciência se refere ao reflexo, a uma cópia, do movimento alheio ordenado, o objeto da consciência consiste em fazer de si mesma uma continuação do holomovimento, da ordem do todo, tendo ciência do que move o todo e o que move as partes que compõem esse todo, tanto a natureza física e os animais como a humanidade, individual e coletivamente.
O objetivo da consciência é fazer do comportamento humano uma cópia do
movimento cósmico, restabelecendo o homem como imagem de Deus, inclusive na
vida social.
Nosso cérebro está preparado para essa atitude, pois os “neurônios espelhos” agem para repetir o movimento, neurônios que funcionam até mesmo inconscientemente, e essa repetição deve ser levada à consciência pelo exercício mental até atingir a abstração, repetindo a ordem racional por trás dos fenômenos, o Logos, com utilização dos neurônios do córtex pré-frontal, região do cérebro responsável pelo planejamento das ações e pensamentos complexos. Do movimento repetitivo inconsciente devemos passar à ação consciente segundo a ordem universal, o Cosmos.A natureza espiritual do homem o leva à especulação, na busca pelo espelhamento da ordem cósmica, e o comportamento conforme essa ordem é o caminho, e a finalidade, do desenvolvimento da consciência.Consciência é percepção inteligente do holomovimento, o conhecimento das causas dos movimentos individuais e suas conexões com o movimento coletivo, incluindo a Causa Primeira, o Princípio de Todas as Coisas, Deus.A consciência é percebida pelo cérebro, mas não está no cérebro, como pretendem fazer crer os materialistas. As ondas eletromagnéticas estão por toda parte, sendo o cérebro apenas o instrumento corporal da percepção, pelo qual podemos alcançar a mente coletiva, o Logos.As ideias de alguma forma interferem no funcionamento do cérebro. Grandes ideias se conectam a grandes movimentos, como as religiosas, científicas, ligadas à Justiça Social; e pequenas ideias são limitadas a pequenos movimentos, como a ideia egoísta que se restringe aos movimentos e interesses da própria pessoa.Ideias interagem com os campos a ela pertinentes, mais amplos e abstratos ou estritos e concretos. A física quântica e a relatividade nos dizem que tudo pode ser convertido em energia, pelo que as ideias e as palavras também são energia, ligadas ao movimento.Os resultados do trabalho do pesquisador japonês Masaru Emoto são uma prova desse fato, demonstrando que cristais de água têm sua forma alterada por palavras boas ou más coladas nos potes que continham o líquido, antes de ser congelado. (Segue link sobre o citado estudo: https://www.youtube.com/watch?v=epoTVejvpEI).Consciência é o movimento percebendo a si próprio, o Todo se percebendo na parte e a parte se percebendo no Todo. Para aqueles que entendem que o Todo é Deus, o Espírito infinito, a consciência é essa percepção. Já para o materialismo, o todo é o caos material, e sua consciência se torna igualmente caótica e aleatória, além de limitada.Para se ter consciência é preciso conhecimento histórico da percepção da mudança ocorrida, incluindo como a consciência chegou até aquele ponto, física e intelectualmente, e a direção a seguir, analisando as respectivas causas, motivações e movimentos necessários à realização do movimento.A revisão da história, a crítica da investigação científica pode ser necessária para correção da consciência individual e coletiva, como ocorre na terapia. A partir do conhecimento adquirido e refletido, a história pode e deve ser reescrita, não modificando o passado, que deve ficar intacto, mas modificando o presente e o futuro.
Somente existe consciência na liberdade, somente a liberdade espiritual pode levar à consciência
Deus não criou o homem como um
autômato. E por isso a liberdade pode
levar a consciência ao materialismo, que, por considerar não haver nada além do
corpo, inevitavelmente é individualista e egoísta, com os efeitos nocivos que
vemos por todos os lados, em todos os noticiários; ou pode levar ao Reino de Deus, pelo uso
verdadeiro da liberdade, em que a consciência age conforme a ordem coletiva,
que transcende o indivíduo, possuindo natureza racional, Espiritual.Ter consciência portanto, é mover-se voluntariamente como objeto do Sujeito universal,
da Razão, fazendo com que a consciência se desenvolva para fora do ego até
atingir a Razão Universal, manifestando o Cristo, na docilidade ao
Espírito Santo, a Razão Santa, na vida individual e social.
Consciência é livre submissão ao Logos, a Razão Absoluta
Mas para se submeter
ao Logos
é preciso buscá-lo, conhecê-lo, o que pode ser feito tanto pelas pessoas
simples como pelas eruditas. Segundo o Evangelho, os pobres de espírito
têm preferência natural nesse conhecimento, pela humildade, sendo deles o Reino
de Deus, porque aceitam a ordem divina.David Bohm, na entrevista com Renée
Weber, constante do livro “O Paradigma Holográfico e outros paradoxos”, da
editora Cultrix (obra esgotada mas que pode ser encontrada em sebos como a
Estante Virtual), afirma que:
“A consciência está, basicamente, na ordem implicada, assim como toda
matéria o está; portanto, não é que a consciência seja
uma coisa e a matéria seja outra, mas sim que a consciência é um processo
material e que ela própria se encontra na ordem implicada, como toda matéria,
e que a consciência se manifesta em alguma ordem explicada, como também o faz a
matéria em geral”.
“E, quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio
Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para
que Deus seja tudo em todos” (1Co 15, 28).
E esse é um dos pedidos da oração de Jesus Cristo na
última ceia:
“Não rogo somente por eles, mas
pelos que, por meio de sua palavra, crerão em mim: a fim de que todos sejam um.
Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti,
que eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. Eu lhes dei
a glória que me deste para que sejam um, como nós somos um: Eu neles e tu
em mim, para que sejam perfeitos na unidade e para que o mundo reconheça que me
enviaste e os amaste como amaste a mim” (Jo 17, 20-23).
A CONSCIÊNCIA NA TRADIÇÃO DA IGREJA
-A tradição patrística pregava a resposta fiel ao chamado de
uma consciência que era, ao mesmo tempo, humana ou natural e cristã ou
espiritual; mas os latinos acentuaram mais as imagens da consciência como tribunal, juiz ou testemunho interior, enquanto os
gregos preferiam a comparação com o pedagogo, guia e acompanhante.
-A tradição monástica e mística cultivou o
discernimento segundo a consciência que se
deixa guiar pelo Espírito; mas, nas controvérsias medievais
sobre fé e razão, discorre, por razões diferentes, sobre a moral vivida a
partir da fé pelo caminho ascético-místico e a moral pensada nas disputas
escolásticas. O exemplo disso é a controvérsia sobre os aspectos subjetivo e objetivo
da consciência (Bernardo vs. Abelardo), que desembocou na síntese tomista de
uma consciência iluminada pela lei nova e interior do Espírito, para
viver a primeira virtude teologal da caridade, através do discernimento prático
de acordo com a primeira virtude cardinal da prudência.
-A tradição
escolástica
distinguiu a consciência como capacidade de discernir o bem e o mal
(synderesis) e como aplicação concreta (syneidesis, conscientia). Tomás de
Aquino (In 2 Sent., disp. 24, q.2, a.4) expôs isso em forma silogística: a
premissa maior, fruto da synderesis; a menor, da ratio, que determina o motivo
de tal ação ser má; a conclusão, fruto do julgamento da conscientia.
-Na época dos manuais
de teologia moral, a partir do séc. XVII, tendeu-se a reduzir o papel da
consciência para aplicar princípios de forma dedutiva, com clareza e certeza
para impor normas e censurar falhas. Nas controvérsias sobre sistemas
morais laxistas, rigoristas ou equilibrados (probabilismo, probabiliorismo,
equiprobabilismo) para superar dúvidas no julgamento e na decisão moral, a
consciência parecia ser reduzida a um instrumento para captar a lei moral e
aplicá-la. Este enfoque começou no século XIV (Ockham), pela mentalidade
voluntarista, legalista e extrinsecista, que via a consciência como um simples
árbitro do encontro entre lei objetiva e decisão subjetiva.
-Os debates do séc.
XX, sobre a ética da situação, provocaram a reação autoritária do
magistério eclesiástico, mas redescobriram o discernimento espiritual,
esquecido após o divórcio entre teologia moral e teologia mística.
A CONSCIÊNCIA APÓS CONCÍLIO VATICANO II
O Concílio Vaticano II reafirmou a tradição do discernimento e assumiu a autonomia de uma consciência madura, que não deve ser confundida com um superego ou um impulso inconsciente freudiano (Gaudium et spes n.16-17, Dignitatis humanae, n.3 e 14).O desenvolvimento renovador da moral teológica pós-conciliar avançou paralelamente à crise de consciência suscitada pela rejeição de métodos anticoncepcionais considerados “não naturais” na encíclica Humanae vitae. Muitos dos bispos e teólogos questionaram a ênfase excessiva no relacionamento entre o magistério eclesiástico e a consciência obediente (HÄRING, 1981; MCCORMICK, 1989, p.38-41). Mas essa crise favoreceu a reflexão sobre a função da consciência capaz de dissentir de forma responsável: não dissentir “da” igreja, mas dissentir “na” igreja, sentindo-se igreja, para colaborar dessa maneira com a evolução da compreensão da fé e de sua prática. Por outro lado, desenvolveu-se, nas décadas seguintes, uma reação oposta, de tendência restauracionista, para retornar ao modo de entender a consciência na teologia pós-tridentina, como foi exposto pelo esquema De ordine morali, escrito pela comissão preparatória, mas rejeitado pelo Concílio.
A encíclica de João Paulo II, Veritatis Splendor (VS, 1993), estava preocupada em evitar a crescente oposição entre as abordagens renovadoras, que buscavam recuperar a melhor tradição da consciência (cf. VS n.38, 41, 42) e as tendências antirrenovadoras, que enfatizavam o autoritarismo do magistério eclesiástico (ver VS n.53, 59, 82). Mas, afetada pelo medo do relativismo e do subjetivismo dessas duas décadas, essa encíclica colocou, de fato, um freio à renovação pós-conciliar, criticando as correntes teológicas dessa linha (VS n.4, 5, 67, 90, 115). As exortações pós-sinodais do Papa Francisco (Evangelii gaudium – EG e Amoris laetitia – AL) recuperaram a mudança de paradigma pós-conciliar reafirmando uma moral de discernimento (AL n.300-312), que fala mais de graça do que de lei (EG n.38), focada na caridade e na misericórdia (EG n.37), respeitando a gradualidade e as limitações no crescimento e maturação da consciência (EG n.44-45), acompanhando o discernimento e ajudando a formar as consciências, mas sem pretender substituí-las (AL n.37) nem proibi-las de pensar, decidir e amar por e a partir de si mesmas.
Desenvolvimento e maturidade da consciência
A psicologia
evolutiva e a psicopedagogia (Piaget, Kohlberg) exploraram o desenvolvimento da
consciência moral no indivíduo. A antropologia
cultural, a sociologia e a psicanálise (Durkheim, Freud) estudaram a evolução
do sentido moral na diversidade de épocas e culturas. Essas abordagens
sugeriram estágios de crescimento, tanto na consciência individual como na
história da espécie: prenomia, tabus, condicionamentos heteronômicos,
subjetividade autonômica, reciprocidade e objetividade universalizadoras.
Mas, tanto biográfica quanto historicamente, a complexidade dos avanços e
retrocessos impede a organização desses estágios de crescimento de acordo com
uma sequência ideal homogênea. Em vez disso, eles expressam a aspiração à
maturidade de uma consciência moral vista a partir do auge de reflexões atuais.
A psicoterapia aplicada à espiritualidade apresentou o
desenvolvimento para a maturação em “cinco níveis de consciência” (SÁNCHEZ-RIVERA, 1981):
1)-Sensorial (um ego
indiferenciado e dependente).
2)-Individual (um ego
autocentrado independente).
3)-Pessoal (um sujeito
interdependente, um “nós”).
4)-Cósmica
(interdependente com solidariedade universal).
5)-Eterna (em
comunhão com o absoluto).
Essas propostas
diversas sobre a gênese e o desenvolvimento da consciência convergem em uma noção dinâmica e
holística de consciência moral, que concebe a tarefa e o método de educá-la.
Em vez de reduzir a consciência moral a reconhecer mandatos ou proibições e
recompensar o cumprimento ou reprovar a infração, ela se revela como a semente
da capacidade de captar valores morais pessoais e transcendentes. Se a
voz da consciência diz: torne-se o que você é e está chamado a ser, a educação
moral terá de facilitar o dinamismo do crescimento humano para compreender e
responder aos valores pessoais, espirituais e totais como, por exemplo, amar e
se deixar amar, perdoar e se deixar perdoar, agradecer e se deixar agradecer.
A consciência em uma chave pessoal, comunitária e
profética
A teologia moral pós-tridentina, até meados do séc. XX, além de continuar distanciando-se da teologia espiritual, também permaneceu isolada das correntes filosóficas da consciência na modernidade e na pós-modernidade, não dialogando com o pensamento moderno sobre a autoconsciência (Descartes), nem com a autonomia, a categorização e a universalidade da moral crítica (Kant); nem com as suspeitas pós-modernas contra a consciência (Nietsche e Freud); nem com a abordagem sobre a voz da consciência na fenomenologia existencial e hermenêutica (Sartre, Heidegger).Esses esquecimentos e distanciamentos foram recuperados nas reflexões sobre a consciência feitas por aqueles que têm relido a tradição bíblica, espiritual e o melhor de Santo Tomás e Kant, articulando-a com as contribuições da fenomenologia existencial (Rahner, Fuchs, Lonergan), a antropologia hermenêutica (Ricoeur) e as teorias críticas da sociedade (Metz, Gutiérrez, Boff), dando origem à abordagem personalista, comunitária e libertadora para a qual se encaminha o atual modo de entender a consciência. Esta concepção de consciência amadureceu ao longo das controvérsias pós-conciliares: moral da fé vs. autonomia (GAZIAUX, 1995), o magistério eclesiástico vs. assentimento e dissenso individual (MIETH, 1994) e sobre as teorias da libertação (VIDAL, 2000).
Consciência moral autônoma e autotranscendente
A consciência é expressão do melhor de si mesmo no núcleo íntimo da pessoa, chave de sua dignidade. Para a teologia, a consciência somos nós mesmos, ultimamente vinculados a Deus pela fé em atitude de escuta. Para a antropologia moral, a consciência é a voz da autenticidade que nos chama a sermos nós mesmos.A voz que escutamos como chamado à autenticidade de nossa autonomia é, em última análise, voz de Deus (teonomia), mas de um Deus que, por seu Espírito, está em nossa intimidade, não para se impor de maneira heterônoma, mas para fazer com que sejamos autônomos (autonomia teonômica) (CAFFARENA, 1983, p.244). Se a consciência moral capta o bem e o mal nos atos livres como imperativo de autorrealização, a questão radical de “quem eu quero ser” será mais importante do que a pergunta “o que devo fazer”; ao optar em consciência pelo bem, eu me escolho como um projeto de personalização e humanização (LÓPEZ AZPITARTE, 1994, p.52-54).A consciência, à escuta do chamado do Espírito que a capacita para responder, é a percepção pessoal da resposta apropriada. A profundidade na resposta seria a opção fundamental, e a falha na resposta seria o pecado. A consciência é o centro da nossa interioridade, o pano de fundo dos julgamentos e decisões que exercitam a prudência. É assim que o senso de consciência esteve intimamente relacionado com o fato de perceber explicitamente suas próprias atitudes básicas e opções fundamentais, chave para a coerência e continuidade da vida moral do sujeito. “O sujeito autenticamente pessoal, convertido intelectual, moral, emocional e religiosamente, atua no mais alto nível de consciência existencial, moral e responsável” (LONERGAN, 1973, p.5).
Consciência moral comunitária e eclesial
Outro significado do
prefixo con de “cons-ciência”, sugere o aspecto social do discernimento moral. Embora o último passo de um processo de discernimento seja um
juízo e decisão, cuja responsabilidade é pessoal e intransferível, a
contribuição comunitária é inevitável ao longo do caminho para a tomada de
decisões, assim como na formação da consciência. As faces do poliedro da consciência que discerne são:
a) atitudes básicas, b) dados sobre as circunstâncias, c)
interpretação-reflexão, d) contraste-conselho, e e) decisão pessoal, prudente e
responsável (MASIÁ, 2015).
Nos passos prévios à decisão, o ponto de vista
comunitário desempenha um papel importante:
a) A comunidade
eclesial ajuda a configurar atitudes básicas da fé, influenciando a maneira de
perceber a realidade, gerando hábitos de pensar, valorizar e agir, influenciando,
assim, nos juízos morais e nas decisões. Aquele que crê foi educado em uma tradição
na qual recebeu algumas orientações e critérios. As normas transmitidas
tradicionalmente são referência importante; mas não excluem a necessidade de
pensar e decidir por si mesmo. A comunidade ajuda a formar a
consciência e a acompanha no discernimento, mas não a substitui.
b) A consciência não
funciona bem sem bons dados de experiência de vida e das ciências. Ao manter os mesmos
valores e princípios, diferentes conclusões podem ser deduzidas de acordo com a
mudança nos dados. Somente com dados não podemos discernir, mas sem eles não podemos fazer
um bom discernimento. A comunidade de informação e comunicação, tanto
dentro como fora da Igreja, ajuda a garantir esses dados.
c) A partir das
atitudes básicas diante dos valores e com dados suficientes, um julgamento deve
ser emitido em cada caso. Aqui entra em jogo o papel de um pensar
honesto que pergunta, analisa os dados, interpreta e não cessa de buscar
criativa e criticamente as respostas. Esse pensar não evita nem substitui a fé,
nem a ciência ou a experiência.
d) Não estamos
sozinhos diante da urgência da decisão. Precisamos da ajuda
de outras pessoas para contrastar as interpretações. Diversas
comunidades de pessoas podem ajudar: por exemplo, a comunidade de pesquisadores
científicos; a comunidade do diálogo de pensamento; a comunidade de relações
humanas dentro de uma sociedade plural; as comunidades que compartilham convicções
religiosas etc. No âmbito destas ajudas, se enquadra o papel orientador
destas últimas – que nunca deve ser dominante ou autoritário – a partir das
respectivas tradições comunitárias, culturais ou religiosas. Ajuda-nos a
corrigir a passagem do tempo e a relação com as outras pessoas. Os
debates, no final do século passado, na Igreja, sobre o sentir e dissentir
ajudaram a amadurecer a consciência eclesial, para além das velhas oposições
entre consciência individual e
magistério eclesiástico, na compreensão do papel do acompanhamento
pastoral como auxílio ao discernimento da consciência, mas sem substituí-la
para decidir em seu lugar. É papel da comunidade eclesial ajudar a
educar o juízo moral e a formação da consciência dos fiéis. Como portadora de
uma tradição em questões morais, a Igreja acumulou, ao longo dos séculos, uma
riqueza de sabedoria prática que fornece importantes orientações na hora de
discernir. A consciência as respeitará de forma crítica, mas sem considerá-las
como um armazém de respostas pré-fabricadas. A comunidade de fé torna-se o
lugar onde seus membros podem dialogar, estudar e discernir em comum os problemas
morais. O papel da igreja, mais do que o de legislar, é
o de iluminar, a partir de uma dimensão elevada, com propostas de valores. Às
vezes, terá que assumir uma posição oficial sobre problemas concretos,
cumprindo, perante a sociedade, uma função que pode ser, de acordo com os
casos, terapêutica ou profética. Quanto mais concretos forem os
problemas, menos radicalmente assertivas poderão ser as tomadas de posição. Respeitar
essas tomadas de posição oficiais da igreja não significa segui-las cegamente,
como se elas eximissem de pensar e decidir conscientemente.
e) Uma decisão
responsável (que não é o mesmo que correta ou com cem por cento de certeza)
seria a que levasse devidamente em consideração as quatro etapas anteriores. Talvez, depois de
algum tempo, analisemos a decisão e descubramos que estava errada; mas isso não
significa que tenha sido irresponsável. Nesse sentido, foi uma decisão
eticamente correta. A consciência antecedente terá que pressupor atitudes básicas de
resposta aos valores, antes do mencionado processo de informar-se, pensar e
debater. Durante o processo, a consciência também deve ser uma consciência
acompanhada comunitária e eclesialmente. Depois de passar pelo
processo, é necessário responsabilidade para adotar resoluções prudentes conscientes,
que não precisam depender cem por cento de certezas, nem podem ser impostas a
outras pessoas. Quando queremos conjugar o respeito às pessoas
com a fidelidade às normas, os conflitos são inevitáveis. Nessas ocasiões, a sabedoria prática deve intervir
como mediadora. “A sabedoria prática”, diz Ricoeur, “consiste em inventar as
condutas que melhor satisfaçam às exceções exigidas pela nossa solicitude para
com as pessoas, traindo o menos possível as normas” (RICOEUR, 1990, p.312).
Consciência moral profética e libertadora
A teologia da
libertação mesmo com suas inúmeras falhas, e necessárias correções que toda
teologia precisa, pois nenhuma é integral, universal, suficiente, e perfeita em si mesma,
tem revalorizado o papel profético e libertador da consciência oprimida e opressora.
Erra ao tentar despertar apenas a consciência oprimida via
revolução, com uma pastoral dos oprimidos, sem trabalhar os opressores pela via
da conversão, ou uma pastoral das elites, mas faz sua teologia libertadora
apenas através da denúncia e o clamor revolucionário, inclusive armado, de
caráter marxista. A TL ao mesmo tempo em que promove o chamado à
comunidade crente para converter-se em voz dos sem voz e consciência social que
denuncie a manipulação ideológica das consciências, a opressão e exclusão das
pessoas, além fomentar a conscientização sobre tal situação. O clamor do povo
injustiçado (Ex 3,7), as denúncias de injustiça pelos profetas (Am 5,18-24) e a
mensagem evangélica de proximidade e misericórdia (Lc 10 e Mt 25) se atualizam
no contexto de teologias libertadoras como responsabilidade da consciência
profética, para reconhecer as injustiças sistêmicas e males estruturais que
exigem ser denunciados pela comunidade solidária com as vítimas. Esta
consciência profética chama não só aliviar a dor e a pobreza, mas a quebrar as
suas causas sociais, estruturais, políticas e econômicas. Essa consciência de uma TL justa
e necessária, atualiza, a partir da fé, o amor ao próximo na luta contra toda
violência, racismo, exclusão, injusta discriminação, etc.Esta
consciência ouve Deus escutando o clamor do pobre, o que a levará a orientar
seu discernimento e motivará suas decisões.
Encontro de moralidade e espiritualidade na consciência
A teologia mística de Boaventura viu na consciência, capaz de captar o bem, um movimento amoroso da vontade, ao invés de um julgamento cognitivo.Mas a conjugação da deliberação ética e do discernimento espiritual enfraqueceu-se à medida que se acentuava a desconexão entre a moralidade e a espiritualidade. Do séc. XVII ao séc. XIX cresceu a distância entre moral de preceitos e espiritualidade dos conselhos evangélicos. Em meados do século XX, chegam com atraso as tentativas de recuperar o diálogo da moral teológica com a espiritualidade. A recuperação da tradição bíblica de discernimento e da tradição filosófica reflexiva ajudam a relacionar, ao mesmo tempo em que as diferenciam, as funções respectivas da experiência moral e da experiência religiosa.A experiência metafísico-religiosa da religação e a experiência moral da obrigação são diversas, mas relacionadas. “Estamos obrigados a algo porque anteriormente estamos religados ao poder que nos faz ser”. (ZUBIRI, 2007, p.93).
A experiência da religação é o fundamento da consciência
moral da obrigação
O fenômeno da consciência não se reduz a uma obrigação moral. A consciência não se reduz a um fenômeno moral. Nela, duas experiências diferentes, a moral e a religiosa, estão intimamente relacionadas.“A voz da consciência é a palpitação e a batida da divindade no seio do espírito humano” (ZUBIRI, 1997, p.66-67).A experiência filosófico-religiosa da “religação” fundamenta a experiência moral da obrigação. “Deus está manifesto nas profundezas de cada homem, na voz absoluta da consciência” (ZUBIRI, 1997, p.72-73). A dimensão religiosa da realidade pessoal se desvela na consciência, lugar de encontro de moralidade e espiritualidade.
Não podemos esquecer o grande ensinamento de Jesus que
resume toda esta problemática:
“Respondeu Jesus: Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: Ame o seu próximo como a si mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas". (Mateus 22,37-40). Este ensino é a espinha dorsal das escrituras, todo o resto é enxerto. Ele re-significa e recapitula, que ter essa consciência máxima de amar a Deus com todas nossas capacidades dadas por Ele mesmo e ao próximo como a nós mesmos, é a regra de ouro de não fazer ao próximo o que não gostaríamos que fizessem conosco, é cumprir toda a Lei e estar em paz com nossa consciência.
CONSCIÊNCIA E MAGISTÉRIO DA IGREJA:
1. As palavras do Apóstolo, há pouco escutadas, descrevem-nos qual é o dever ao qual é chamada a consciência moral do homem "de discernir a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe é agradável e o que é perfeito". A nossa reflexão sobre o ethos da Redenção detém-se hoje a considerar "o núcleo mais secreto do homem, o santuário onde ele está a sós com Deus", como o Concilio Vaticano II define a consciência moral (Const. Past. Gaudium et spes, n.16).Que entende o Apóstolo quando fala de "discernimento" neste campo? Se prestarmos atenção à nossa experiência interior, constatamos a presença dentro de nós de uma atividade espiritual, que podemos chamar de atividade de avaliação. Não é talvez verdade que muitas vezes nos ocorre dizer, ou pensar: "isto é justo, isto não é justo?". Existe, a saber, em cada um de nós uma espécie de "senso moral" que nos leva a discernir o que é bom e o que é mau, tal como existe uma espécie de "senso estético" que nos leva a discernir o que é belo daquilo que é feio. É como um olho interior, uma capacidade visiva do espírito, capaz de guiar os nossos passos no caminho do bem.Mas as palavras do Apóstolo têm um significado mais profundo. A atividade da consciência moral não diz respeito apenas ao que é bom e ao que é mau universalmente. O seu discernimento refere-se em particular à individual e concreta acção livre que estamos por fazer ou realizámos. É desta que a consciência nos fala, é ela que a consciência avalia: esta ação, diz-nos a consciência, que tu, na tua irrepetível singularidade, estás a realizar (ou realizastes) é boa, ou é má.
2. De onde a consciência tira os seus critérios de juízo? Baseada em que a nossa consciência moral julga as acções que estamos por realizar ou que realizámos? Escutemos com atenção o ensinamento do Concílio Vaticano II: "A norma suprema da vida humana é a própria lei divina, eterna, objetiva e universal, com a qual Deus, no desígnio da sua sabedoria e amor, ordena, dirige e governa o universo inteiro e os caminhos da comunidade humana...; o homem percebe e reconhece os ditames da lei divina por meio da consciência, que ele deve seguir fielmente em toda a sua actividade, para chegar ao seu fim, que é Deus" (Dignitatis humanae, 3).Reflitamos com atenção nestas palavras tão densas e esclarecedoras. A consciência moral não é um juiz autónomo das nossas ações. Ela tira os critérios dos seus juízos daquela "lei divina, eterna, objetiva e universal", daquela "verdade imutável" de que fala o texto, conciliar; aquela lei, aquela verdade que a inteligência do homem pode descobrir na ordem do ser. É por esta razão que o Concílio diz que o homem, na sua consciência, está "a sós com Deus".Note-se: o texto não se limita a afirmar: "está a sós", mas acrescenta "com Deus". A consciência moral não encerra o homem dentro de uma intransponível e impenetrável solidão, mas abre-o ao chamamento, à voz de Deus.Nisto, não noutra coisa, está todo o mistério e a dignidade da consciência moral: isto é, em ser o lugar, o espaço santo em que Deus fala ao homem. Por conseguinte, se o homem não ouve a própria consciência, consente-se que venha alojar-se nela o erro, ele rompe o vínculo mais profundo que o une em aliança com o seu Criador.
3. Se a consciência moral não é a instância última que decide o que é bom e o que é mau, mas deve conformar-se com a verdade imutável da lei moral, segue-se daí que ela não é um juiz infalível: pode errar. Este ponto merece hoje tuna particular atenção. "Não vos conformeis", ensina o Apóstolo, "com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente" (Rom. 12,2). Nos juízos da nossa consciência encontra sempre lugar a possibilidade do erro.A consciência que deriva deste erro é muito séria: quando o homem segue; a própria consciência errada, a sua ação não é reta, não realiza objetivamente o que é bom para a pessoa humana. E isto, pelo simples fato que o juízo da consciência não é a última instância moral.Sem dúvida, "sucede frequentemente ― como o Concílio indica em seguida — que a consciência seja errónea por ignorância invencível" (ibid.). Neste caso ela "não perde a sua dignidade" (cf. ibid.), e o homem que segue o seu juízo não peca. O mesmo texto conciliar, porém, prossegue observando: "Mas isto não se pode dizer quando o homem pouco se interessa em procurar a verdade e o bem, e quando a consciência se torna quase cega pelo hábito do pecado" (ibid.).Portanto, não é suficiente dizer ao homem: "segue sempre a tua consciência". É necessário acrescentar logo e sempre: "pergunta-te se a tua consciência diz o que é verdadeiro ou o que é falso, e procura com denodo conhecer a verdade". Se não se fizesse esta necessária precisação, o homem correria o perigo de encontrar na sua consciência uma força destruidora da sua verdadeira humanidade, em vez de um lugar santo onde Deus lhe revela o seu verdadeiro bem.É necessário "formar" a própria consciência. Neste empenho, o crente sabe que tem um particular auxílio da doutrina da Igreja. "Com efeito, por vontade de Cristo, a igreja Católica é a Mestra, da verdade, e a sua missão é anunciar e ensinar autenticamente a Verdade que é Cristo, e ao mesmo tempo declarar e confirmar, com a sua autoridade, os princípios da ordem moral que fluem da própria natureza humana”(Dignitatis humanae, 14).Peçamos insistentemente a Cristo, nosso Redentor, a graça de podermos discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe é agradável e o que é perfeito. O dom, a saber, de estarmos na verdade, para realizarmos a verdade.
PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA GERAL - Quarta-feira, 17 de Agosto de 1983
Bibliografia:
-DAMASIO, Antônio. O
mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
-GUARDINI, Romano. La coscienza. 4.ed. Brescia: Morcelliana, 1977.
-GURWITSCH, Aron. El campo de la conciencia: un análisis fenomenológico. Madrid: Alianza, 1979.
-HÄRING, B. Libertad y fidelidad en Cristo. Barcelona: Herder, 1981.
-WEBB, Eugene. Filósofos da consciência: Polanyi, Lonergan, Voegelin, Ricoeur, Girard, Kierkegaard. São Paulo: É Realizações, 2013.
-KENNETH, Overberg. Consciência em conflito. São Paulo: Paulus, 1999.
-LAIN, Vanderlei. Nova consciência: a autonomia religiosa pós-moderna. Recife: Libertas, 2008.
-LONERGAN, Bernard. La formazione della coscienza. Brescia: La Scuola, 2010.
-VALADIER, Paul. Elogio da consciência. São Leopoldo: Unisinos, 2000.
-JOÃO PAULO II - Carta Encíclica Veritatis Splendor. 2.
ed. São Paulo: Paulinas.
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