Deus é onisciente! E,
como tal, sabe de tudo o que ocorre, o que ocorreu, e o que ainda ocorrerá. Quando a
onisciência se refere a eventos futuros, falamos de presciência. Que Deus seja
onisciente é verdade de fé! Não se pode questionar! Ademais, antes mesmo de ser um dado revelado, é uma questão lógica: a própria
razão nos demonstra que, havendo Deus, é impossível que Ele não seja
onisciente! Se não for o Altíssimo onisciente, não seria Deus! Deus, portanto, sabia
que alguns anjos iriam se rebelar, que Adão e Eva pecariam, e que condenaria alguns por seus pecados, ao inferno etc. (...)
A
pergunta que se faz é: "se Ele sabia e, mesmo assim, fez, no fundo Deus é a
causa da condenação, Deus é o autor do mal?"
Resposta: Não!
Na verdade,se está
cometendo um equívoco na elaboração do raciocínio lógico. Não é o conhecimento
de algo que o determina. Assim, se eu sei que meu avó ficou doente e teve que
ir ao hospital, serei eu a causa de sua doença? Serei eu o autor de sua
enfermidade? Ela foi para o hospital porque eu sei? Ou eu sei porque foi ao hospital?
Claro que irá alegar que a doença e a ida ao hospital são eventos passados, e,
então, minha ciência de tal fato se dá pela própria natureza das coisas. Meu
conhecimento sobre a doença de minha avó e sua ida ao hospital são futuros em
relação à própria doença e à própria ida ao hospital. Assim, eu sei (no futuro)
sobre fatos passados, e, portanto, não sou o responsável por eles.Ocorre que para Deus não há passado, presente ou futuro! Em Deus não há
movimento. Deus é atemporal, até por sua onipresença. Nesse sentido, o
conhecimento que eu tenho sobre fatos passados é análogo ao que Deus tem sobre
qualquer fato, seja passado, presente ou futuro. O símile procede, então. Da
mesma maneira como eu não sou o responsável por algo passado só porque dele
tenho conhecimento, Deus não é o responsável por algo futuro só porque dele tem
igual conhecimento.
Deus cria os anjos e os homens dotados de vontade,
inteligência e livre arbítrio, sabendo que podem se rebelar, mas não os cria
para que se rebelem!
E mais: Ele sempre
soube que se iriam rebelar. Não pôde ter havido um tempo em que Deus não
soubesse. E, portanto, soube da rebelião dos anjos e dos homens justamente
porque iria criá-los. Se Ele não os criasse, não se rebeleriam, e, então, Deus
não teria a presciência desse fato. Compreende? Claro que estamos excluindo a
menção aos futuríveis (as coisas que poderiam acontecer se Deus tivesse agido
de outro modo), mas é que tais pertencem só ao Altíssimo.O conhecimento de Deus quanto ao
futuro, envolve o conhecimento quanto às causas que determinam esse futuro.
Entre elas a liberdade. Assim, não há contradição entre a presciência e a
liberdade.Insinuam-se discordâncias
entre Santo Agostinho e Santo Tomás acerca da predestinação, como se o primeiro
a defendesse à moda calvinista. Ora, nada mais falso. Santo Agostinho e Santo
Tomás ensinam a mesma coisa. E não poderia ser diferente, pois se trata, nesse
assunto, de doutrina católica, não de opinião sobre tema de livre debate. Santo Agostinho nunca defendeu a predestinação como os calvinistas
iriam, mais tarde, ensinar. E, da mesma forma, Santo Tomás nunca defendeu a
liberdade como se a predestinação não existisse. É doutrina católica que há
tanto predestinação quanto livre-arbítrio e ambas não se excluem.
Será a onisciência divina realmente
incompatível com o livre-arbítrio?
Aqui discutiremos o
problema de saber como pode Deus ser onisciente e os seres humanos terem
livre-arbítrio. A posição defendida é a de que se Deus existe, então não sabe
nem influencia previamente que escolhas faremos e que, portanto, a sua
onisciência não é incompatível com o livre-arbítrio (que neste trabalho é usado
como sinônimo de liberdade de escolha).Após esclarecer os
conceitos de Deus, presciência, livre-arbítrio e eternidade, apresentaremos
duas concepções mais fracas de onisciência a fim de mostrar que o fato de Deus
saber tudo não afeta nossa liberdade de escolha.Antes de explorar os aspectos
aludidos acima é importante esclarecer que, ao usar o termo "Deus", estamos nos referindo ao Deus das tradições judaica,
islâmica e cristã, o qual é chamado comumente de teísta. O Deus teísta possui
algumas propriedades essenciais, como: a onipotência, onipresença, onisciência,
onibenevolência e eternidade.Uma propriedade
essencial é algo que um objeto tem e não poderia não ter, ou seja, é aquilo sem
o qual o objeto deixa de ser o que é. Por exemplo: o número 2 tem a propriedade
essencial de ser um número par primo. Se fosse possível retirar-lhe essa
propriedade este simplesmente deixaria de ser o número 2 e seria outra coisa
qualquer. Da mesma forma, se retirarmos do Deus teísta alguma de suas
propriedades essenciais, este deixará de ser o Deus acima mencionado — e
cultuado pelas respectivas tradições — e passará a ser outro Deus, o que, para
debate no qual estamos inseridos, não é relevante.
Ao problema mencionado no início chamaremos problema da
presciência. Este poderá ser mais bem compreendido através da formulação da
seguinte questão:
“Como pode Deus saber previamente que escolha faremos dado que, segundo
a crença teísta, temos livre-arbítrio?”
Este problema, que é
o foco deste ensaio, não deve ser confundido com o problema da predestinação,
que é o problema de saber se poderemos ter livre-arbítrio sob a hipótese de
Deus ter determinado as nossas escolhas. Assim, percebemos que se trata de
problemas distintos; entretanto, ambos dizem respeito às dificuldades que os
defensores do teísmo enfrentam quando tentam compatibilizar o livre-arbítrio
com os conceitos aludidos.
Mas será que a predestinação se segue da presciência
divina?
Parece-nos mais
plausível afirmar que não, pois, pelo menos à primeira vista, saber que P não
significa predeterminar P. Desse modo, verifica-se que é mais fácil
compatibilizar o livre-arbítrio com a presciência do que compatibilizá-lo com a
predestinação, porque a primeira é uma tese mais fraca do que a segunda. Logo,
se a predestinação for compatível com o livre-arbítrio, então a presciência
também o será.
Entretanto, pode dar-se o caso de a presciência ser compatível com o
livre-arbítrio e a predestinação não. Ao fazer esta distinção surge-nos a seguinte
pergunta: se o teísta optar por resolver primeiramente o problema da
predestinação ainda restará o problema da presciência? Não necessariamente,
pois se ele apresentar uma tese forte poderá resolver a um só tempo os dois
problemas.
Neste trabalho,
"livre-arbítrio" significa a capacidade que uma pessoa tem de agir de
determinada maneira — respeitando-se as circunstâncias naturais do mundo —
consoante a sua vontade. Pré-teoricamente, parece defensável que o conceito de
livre-arbítrio é mais problemático do que o de onisciência, pelo seguinte:
“mesmo que se prove apodicticamente a inexistência do Deus teísta e não
mais precisemos tentar compatibilizar o livre-arbítrio com algumas de suas
propriedades, teremos de examinar a questão de termos ou não liberdade de
escolha, dadas as condições naturais do universo que, por vezes, parecem-nos
estarem determinadas.”
Claro que ao pensar na onisciência, nos ocorrem várias
questões:
- O que significa
precisamente dizer que Deus sabe tudo?
- Será a
onisciência a capacidade de saber o que quer que seja, mesmo que, por vezes,
essa sapiência implique algumas contradições?
- Ou será que a
onisciência de Deus, tal como sua onipotência, apresenta problemas que só podem
ser resolvidos à custa de uma revisão conceitual e algumas concessões teóricas
que o teísta teria relutância em conceder?
Apesar de ser
argumentável que questões semelhantes são suscitadas quando nos inclinamos a
pensar cuidadosamente no conceito de livre-arbítrio, trata-se de um conceito
mais central que o de onisciência, pois este último está tipicamente associado
a uma discussão de cunho religioso, ou seja, é discutido em menos contextos.
Em contraste, o problema do livre-arbítrio "não se restringe somente à filosofia
da religião!" Sabiam disso?
Assim, feitas estas
considerações acerca dos conceitos com os quais estamos trabalhando, podemos
avançar no nosso percurso argumentativo. A seguir, apresentamos duas concepções
de onisciência que pretendem ser alternativas teóricas para a resolução do
problema da presciência. Porém, antes de apresentá-las é importante esclarecer
o conceito de eternidade com o qual iremos trabalhar:
A concepção de
eternidade que assumiremos é aquela segundo a qual Deus existe com o tempo, mas
não é corruptível tal como o são as outras coisas. A título informativo cabe-nos
ressaltar que há filósofos que defendem outra concepção de eternidade,
nomeadamente a eternidade atemporal. Segundo esta concepção, Deus existe fora
do tempo e, portanto, nunca está temporalmente localizado no passado, no
presente ou no futuro. Aquele que defende que Deus é onisciente e atemporal
afirma que saber algo não implica uma dimensão temporal.
Uma objeção óbvia que nos ocorre é a seguinte: se Deus nos dando o livre arbítrio, logicamente, não teria como saber de nossas escolhas no presente, ou no futuro (pois se soubesse seríamos predestinados), saberia quando então?
Provavelmente a
resposta do defensor desta concepção seria que Deus simplesmente sabe e não faz
sentido perguntar quando. Prima facie parece-nos uma posição demasiado difícil
de explorar, pois quem a quiser sustentar terá de mostrar como é possível
conhecer algo atemporalmente, ou seja, como Deus pode saber o que se passa numa
dimensão temporal sem estar inserido em alguma, e como é possível termos
liberdade de escolha no tempo sem que um ser que está fora do tempo saiba ou
determine que escolha faremos efetivamente.Munidos destas
informações cumpre assinalar que não iremos adentrar nesse ponto, pois a
questão de saber qual é a natureza da eternidade de Deus constitui um tema para
outro ensaio. Após este esclarecimento podemos nos debruçar sobre as duas concepções
de onisciência anunciadas anteriormente. Chamar-lhes-ei concepção
probabilística e concepção restrita ao âmbito de possibilidades:
1ª)-Concepção probabilística:
A concepção
probabilística de onisciência pode ser compreendida na medida em que pensamos
que Deus não nos obriga a ter os propósitos que temos, mas sabe
probabilisticamente as escolhas que resultarão destes propósitos. Portanto, do
fato de Deus ter um grande percentual de acerto acerca de qual será nossa
escolha, não se segue que a determina ou influencia diretamente. Segue-se apenas
que, dada a sua enorme sapiência, Deus consegue vislumbrar as nossas intenções,
inclinações e preferências. Ou seja, Deus conhece todos os fatores que podem
motivar nossas possíveis escolhas.
Mas como Deus consegue saber tais coisas?
Consegue saber tais coisas
porque estas têm a natureza de coisas possíveis, ou seja, não implicam
contradição nem com a estrutura da realidade nem com suas propriedades
essenciais. Ao passo que ,saber quem será o presidente do Brasil em 2.099 ou
saber precisamente que escolha faremos amanhã não tem a natureza de coisas
possíveis dado que, para um ser que existe com o tempo, embora não sendo corruptível pelo
mesmo, não é possível saber o futuro se este não é predestinado, mas sustentado no livre arbítrio. No entanto, saber as
características psicológicas e comportamentais acima mencionadas são coisas
perfeitamente possíveis para um ser onisciente. Se probabilidades são possível tanto pela matemática, como por especialistas, quanto mais Deus. Logo, este conhecimento
pormenorizado de nossos estados mentais permite-lhe saber com alto grau
probabilístico as escolhas que faremos.
Podemos clarificar a nossa primeira concepção de
onisciência através da seguinte analogia:
Imaginemos, em condições normais,
um pai cuidadoso e seu filho ainda criança. Relativamente à estrutura cognitiva
do pai, a do filho é demasiado simples e, por essa razão, suas ações são
previsíveis. Suponhamos que este pai decide comprar um brinquedo para o seu
filho mas, ao invés de comprá-lo diretamente e levá-lo para casa, decide levar
o filho até à loja de brinquedos para que o mesmo o escolha. E, como já era
muito provável, o filho escolhe exatamente o brinquedo que o pai pensara antes
em levar para casa. Por outras palavras, dada a previsibilidade das ações do
seu filho, o pai já sabia probabilisticamente que escolha ele faria, mas de
modo algum a influenciou ou a previu inequivocamente. Mas se o pai em questão
já sabia com alto grau de probabilidade que escolha o seu filho faria, por que
razão o levou à loja de brinquedos ao invés de comprá-lo antes e levá-lo para
casa? Pela mesma razão que Deus não influencia nem determina as nossas
escolhas. Numa palavra: para termos a experiência do livre-arbítrio. Portanto,
tal como o pai de nosso exemplo sabia probabilisticamente que brinquedo o seu
filho escolheria, Deus sabe probabilisticamente as escolhas que faremos, embora
não as possa prever inequivocamente.
Será realmente procedente a analogia feita acima? Será
Deus realmente comparável a um pai cuidadoso e nós realmente comparáveis a uma
criança?
Um possível objetor
poderia dizer que não, afirmando que a analogia não se segue já que uma
criança, dada a sua estrutura cognitiva que não está plenamente desenvolvida,
não possui livre-arbítrio. Ou seja, poderia argumentar que o livre-arbítrio só
é possível para seres com a racionalidade desenvolvida num determinado ponto. E
que, portanto, uma criança não pode ter a liberdade de escolha tal como nós a
temos.Dadas as dificuldades
colocadas pela objeção feita acima, talvez seja importante tentar estabelecer
critérios que sirvam como condições necessárias e suficientes para que uma
pessoa possa ter livre-arbítrio. O uso de condições necessárias e suficientes é
um modo bastante preciso para definirmos os termos e os conceitos com os quais
estamos a trabalhar, pois estabelecem de modo claro as condições de verdade de
uma determinada proposição.
Por exemplo: uma
pessoa tem livre-arbítrio se, e somente se, tem uma racionalidade desenvolvida.
Se formos responder ao nosso objetor seguindo por este caminho entraremos numa
tarefa demasiado difícil, pois teríamos de definir o que é ter uma racionalidade
desenvolvida de tal modo que possa ter realmente liberdade de escolha.
Mas será esta a única alternativa possível para responder ao nosso objetor?
Não me parece. Não
precisamos seguir esse caminho para responder à objeção ventilada acima.
Basta-nos pensar que o livre-arbítrio, como já o definimos, significa a
capacidade que uma pessoa tem de agir de certa maneira consoante a sua vontade.
Pois, embora seja argumentável que uma pessoa racional fará melhor uso do seu
livre-arbítrio, não se segue que uma pessoa que não tenha desenvolvido
plenamente sua racionalidade — como a criança do nosso exemplo — não tenha
livre-arbítrio. Assim, a escolha que resulta do livre-arbítrio não é implicada
por uma opção racional previamente pensada, articulada e ponderada. Portanto,
se esta tese estiver correta, então a objeção mencionada não refuta a idéia
central da analogia.
2ª)-Concepção restrita ao âmbito de possibilidades:
Na Suma Teológica,
Tomás de Aquino argumenta que a onipotência de Deus não significa que este
possa fazer toda e qualquer coisa, e sim as coisas que são absolutamente
possíveis. Ou seja, as coisas que não implicam contradição nos termos e que são
tarefas genuínas. Por exemplo: criar um triângulo com cinco lados, é sem lógica, portanto, não é algo possível. Pelo que não faz sentido dizer que Deus tem uma
limitação no seu poder por não poder fazer tal coisa. Por essa razão, Tomás
afirma:
"As coisas que implicam contradição não constituem objeto da divina
onipotência, por não poderem ter a natureza de coisas possíveis" (Aquino,
p. 252).
Desse modo, talvez
seja melhor afirmarmos que esta tarefa não pode ser executada. Logo, não é que
Deus não possa fazê-la por alguma deficiência sua. O que ocorre é que essas
coisas simplesmente não podem ser feitas, por serem racionalmente ilógicas. Podemos alargar a noção de onipotência
referida acima à nossa segunda concepção de onisciência.Assim, tal como a onipotência é a capacidade de fazer tudo o que é
possível fazer, a onisciência é a capacidade de saber tudo o que é possível
saber. Portanto, dizer que Deus é onisciente é dizer que sabe tudo aquilo que é
possível saber, ou seja, tudo aquilo que está no âmbito das possibilidades.
E quanto às escolhas que fazemos?
Como é evidente, não
é possível para Deus saber previamente que escolhas fizemos, pois — pelo menos
num sentido mais forte com relação às ações humanas — saber algo que ainda não
fizemos não é possível, ou seja, não está no âmbito de possibilidades. Não
obstante, poder-se-ia argumentar que num sentido mais fraco é possível prever
acertadamente algo que não ocorreu com base nas regularidades da natureza. Embora
esta concepção seja motivo de disputa, se tomarmos a definição canônica de
conhecimento (crença verdadeira justificada) e aceitarmos a tese atribuída a
Aristóteles segundo a qual as proposições referentes ao futuro não têm valor de
verdade, teremos de afirmar que saber o que não aconteceu ainda (tanto num
sentido fraco quanto num sentido forte) não é possível.
E também, como vimos, Deus não poderia saber o futuro
devido à sua coexistência com o tempo e ao livre arbítrio!
Porém, dada a sua
onisciência, ele sabe todas as possíveis escolhas que podemos eleger para
realizar efetivamente. Assim, qualquer que seja a escolha que fizermos não
haverá surpresa para Deus no sentido dos possíveis caminhos que temos para
escolher; porém, haverá quanto à nossa escolha efetiva. Assim, Deus só saberá
efetivamente que escolha faremos no exato momento em que a fizermos. Portanto,
feitas estas distinções, temos razões para pensar que, se a concepção exposta
for verdadeira, então a onisciência de Deus não é incompatível com o
livre-arbítrio.
O seguinte exemplo pode ajudar a clarificar esta questão:
“Suponha-se que desejamos ir ao
lugar x e conhecemos três caminhos para chegar até ele. Imaginemos também que
na verdade existem dez caminhos para chegar ao lugar x e que, dada a nossa
limitação cognoscitiva, conhecemos apenas os caminhos 1, 2 e 3. Do nosso ponto
de vista, temos de escolher entre estes três caminhos para chegar ao lugar x;
mas do ponto de vista de Deus não, pois este conhece todos os caminhos (os três
que conhecemos e os outros sete que não conhecemos). Imaginemos também que, por
uma razão qualquer, ao tentar ir ao lugar x, nos desviamos dos caminhos
conhecidos (1, 2 e 3) e chegamos ao lugar x através do caminho 5. Para nós,
será uma grande surpresa pois o caminho 5 não estava no âmbito das possibilidades
que conhecíamos. Porém, para Deus, não há surpresa neste sentido, pois, sendo
onisciente, já conhecia realmente (ao contrário de nós) todo o âmbito das
possibilidades. Por outras palavras, Deus sabia que iríamos escolher entre os
dez caminhos possíveis, porém só soube qual foi o caminho escolhido no exato
momento em que o escolhemos. Desse modo, verifica-se que a onisciência de Deus
não implica que conhece o futuro ou determina nossas escolhas. Significa apenas
que, dado um conjunto qualquer de situações, Deus conhece as implicações e as
possibilidades de escolha que temos, estando nós cientes ou não delas. Logo,
podemos afirmar que a onisciência de Deus não interfere no nosso
livre-arbítrio; apenas abarca um âmbito de possibilidades que, para nós, devido
às nossas limitações, são inescrutáveis.”
Poder-se-ia objetar
que essa posição é desconfortável para o teísta tradicional, pois este acha
inconcebível supor que Deus não conhece o futuro; ou seja, não aceita que Deus
possa ter algum tipo de ignorância. Embora a posição defendida neste ensaio
possa desagradar ao teísta, constitui uma alternativa possível e paralela da
concepção tradicional.
Segundo a concepção tradicional, Deus é atemporal e conhece
previamente nossas escolhas...
Pode ser que
estejamos enganados, mas, pelo menos à primeira vista, não se vê como se pode
fazer uma defesa do livre-arbítrio partindo desta concepção sem distorcer
fortemente a noção de livre-arbítrio. Por essa razão, um teísta não dogmático
em busca de uma base racional para sua crença poderia aceitar as concepções
mais fracas de onisciência apresentadas anteriormente, pois não apresentam esse
tipo de problema.O problema da
presciência constitui um dos maiores desafios a que o teísta tem de responder.
Apesar de, obviamente, não termos resolvido decisivamente a questão parece que
— ao aceitarmos as concepções de onisciência defendidas neste trabalho (a
probabilística e a restrita ao âmbito de possibilidades) — temos uma alternativa teórica
plausível a favor da tese segundo a qual a onisciência de Deus não impede o uso
da nossa genuína liberdade de escolha e, portanto, não é incompatível com o livre-arbítrio.
O Livre-Arbítrio e Presciência Divina - O problema:
Grandes debates
surgem quando se discute como Deus, único causador de todas as coisas, sendo
por isso senhor de todas elas, sabedor não só do passado, mas também do
presente e do futuro, ainda assim pôde dar aos homens a faculdade do
livre-arbítrio. Se mesmo as coisas que ainda não ocorreram somos tentados a concebê-las
como necessárias, no sentido de que tenham de ocorrer como Deus as sabe que vão
ocorrer, como poderíamos nós humanos ter a livre vontade para decidir sobre
nossos atos? Portanto, se Deus já tem traçado o destino de uns e de outros, não
é fácil compreender como haveria de existir em nós qualquer liberdade de ação.
O livre-arbítrio presume, de acordo com a doutrina cristã: somos nós
que decidimos, livremente, nosso caminho a percorrer! Desde a queda de Adão, passamos a ter sob nossa
responsabilidade o destino que nos espera.
Trilhar o caminho do
Bem se desejar o reencontro com Deus; afastar-se dele por nossa própria vontade
levar-nos-á em direção ao Mal. A decisão por nós tomada, no entanto, já é
do conhecimento de Deus mesmo antes de a tomarmos? A presciência divina,
presume-se, permite que Deus já saiba não só da decisão, mas também do fim que
nos aguarda como conseqüência de nossos atos "voluntários". Tudo, a
princípio, parece ocorrer por necessidade, uma vez que, não só as causas, mas
também todos os efeitos já são do conhecimento de Deus. A dificuldade que se nos apresenta não se restringe
apenas à discussão sobre a presciência divina. Torna-se ainda maior quando é
levantada a questão da predestinação:
1)- Estaria nosso
destino já previamente traçado?
2)- Em caso
afirmativo, qual seria então a noção de justiça?
3)- Como justificar
as recompensas aos bons e os castigos aos maus?
4)- Se a uns já está
predestinado cometer ato mal, como pode ele ser castigado a cumprir as penas de
Deus, se dele não partiu a decisão de agir erradamente?
5)- Da mesma forma,
por que premiar alguns ou por que Deus contemplá-los com a graça eterna se de
alguma forma já estava determinado que assim seria e ocorreria?
Deus, ao determinar destinos diferentes aos homens, poderia ter cometido
uma falha, um ato de injustiça, pois já determinaria de antemão os escolhidos
para a salvação e para a danação...
Não sendo assim, mesmo não havendo desejado e
determinado isso, mas, sabendo de como tudo ocorrerá (volta a questão da
presciência), mostra-se impotente para modificar os rumos daqueles que não
serão agraciados com a Sua companhia. Construído então o
pensamento dessa forma, faz-nos irremediavelmente prisioneiros dos mais fortes
dos grilhões que são a presciência e a própria vontade divinas.
Como conciliar aspectos que a princípio parecem
inconciliáveis ?
1)-Santo Agostinho (354 - 430) foi um dos que aceitaram
o desafio e tentou desfazer o enigma. Muito embora tenha vivido e florescido em
uma época na qual oficialmente ainda não havia se iniciada a Idade Média (476 -
1492 d.C.), não se pode deixar de mencioná-lo quando se discute o pensamento
filosófico da época medieval, notadamente porque suas idéias repercutiram e
influenciaram sobremaneira muitos daqueles que o sucederam e foram muitas vezes
tomadas como base para os próprios pensamentos dos denominados Santos Padres da
época cristã chamada de Patrística.Agostinho não se
limita a discutir apenas o livre-arbítrio. Defende também a existência da graça
divina e da predestinação. Afirma que os homens têm a faculdade da livre
vontade, mas, ao mesmo tempo, estão sujeitos à vontade e à predestinação divinas
e à concessão de Sua graça para que sejam salvos. Alguns são escolhidos para a
salvação; dentre estes, porém há os que por livre vontade, buscam o bem, e os
que dele se afastam. A predestinação não é para Agostinho, portanto, uma
necessidade. Transcrevemos aqui trecho de comentário presente na coleção
"Os Pensadores", edição de 1973:
"Ao definir as três
faculdades da alma - memória, inteligência e vontade – tem nessa última a mais
importante. A vontade para Agostinho seria essencialmente criadora e livre, e
nela tem raízes a possibilidade de o homem afastar-se de Deus. Reside aí a
essência do pecado, que de maneira alguma é necessário e cujo único responsável
seria o próprio livre-arbítrio da vontade humana. A queda do homem é de inteira responsabilidade do livre-arbítrio
humano, mas este não é suficiente para fazê-lo retornar às origens divinas. A
salvação não é apenas uma questão de querer, mas de poder. E esse poder é
privilégio de Deus. Chega-se, assim, à doutrina da predestinação e da
graça, uma das pedras de toque do agostinismo. Sem a graça, o livre-arbítrio
pode distinguir o certo do errado, mas não pode tornar o bem um fato concreto.
A graça ajunta-se ao livre-arbítrio sem, entretanto, negá-lo. Sem o auxílio da graça, o livre-arbítrio
elegeria o mal; com ela, dirige-se para o bem eterno. Mas, segundo
Agostinho, nem todos os homens recebem a graça das mãos de Deus; apenas alguns
eleitos, que estão, portanto, predestinados à salvação."
Mais tarde, Santo
Agostinho retoma o assunto na "A Cidade de Deus", obra escrita entre
os anos 413 e 426
No capítulo IX do livro quinto, que tem como título "A
presciência de Deus e a livre vontade do homem contra a definição de
Cícero", Agostinho contesta veementemente Cícero, o qual diz não ser possível
a predição de coisas, nem mesmo em Deus.O bispo de Hipona
argumenta inicialmente que não se pode admitir a existência de Deus e, ao mesmo
tempo, negar que Ele é presciente do futuro. Acrescenta ainda que aquele que
sabe de antemão todas as coisas não pode ignorar, entre as causas, nossa
vontade. Nossa vontade, portanto, pode tanto quanto o próprio Deus quis e soube
de antemão que poderia, pois ela não poderia ter mais poder que o concedido por
Ele.
O capítulo X do mesmo livro, Agostinho dá ao título a
forma de pergunta: "Está sujeita a alguma necessidade a vontade
humana?"
A sua resposta é não!
A vontade humana, conclui, não está sujeita a uma necessidade, pois, na
realidade, fazemos muitas coisas que, se não quiséssemos não faríamos. Sujeitar
o livre-arbítrio à necessidade seria suprimir a liberdade. Agostinho refere
ainda que Deus soube das coisas que dependeriam da nossa vontade ("Aquele que de antemão soube o que dependeria de nossa vontade não
soube de antemão nada, mas soube alguma coisa, mesmo que Ele seja presciente,
algo depende de nossa vontade").Quando diz "não
peca o homem precisamente porque Deus soube de antemão que havia de
pecar", e mais além, "se o homem não quer pecar, também isso Deus
soube de antemão", Agostinho tenta dizer que Deus sabe de antemão, mas não
é Ele a causa do homem ir em direção ao pecado. Estaria, portanto, apesar de
sabido com antecedência por Deus (presciência), na total dependência da vontade
humana o pecar (livre-arbítrio).
2)-Boécio:O livre-arbítrio e a presciência divina são
discutidos também por Boécio (480 - 524) no século VI d.C., na obra "A
Consolação da Filosofia". No capítulo V, quando questionada sobre o
tema, a Filosofia responde dizendo inicialmente que o livre-arbítrio existe
sim, e que é uma faculdade dos seres possuidores da razão. Para ela
"nenhum ser dotado de razão poderia existir se não possuísse a liberdade e
a faculdade de julgar".E, diversamente do que possa ser imaginado, a alma humana será tanto
mais livre, quanto mais se mantém na contemplação da inteligência divina, e,
tanto menos livre quanto mais desce a juntar-se às coisas corporais, às que se
ligam à carne, e, finalmente quando levados pelos vícios, perdem a posse da
razão.Boécio utiliza o seu
hipotético diálogo com a Filosofia para tentar responder ao desafio de
conciliar a possibilidade de Deus conhecer previamente todas as coisas com o
livre-arbítrio humano. Desafia-a dizendo tratarem-se de coisas contraditórias e
incompatíveis. O diálogo, a forma que o autor encontra para expor suas
convicções na "Consolação", agora existe para dar corpo à
argumentação de Boécio para explicar a presciência divina, questão que, para
ele, está relacionada à própria natureza das coisas e à hierarquia existente
que as diferencia.Parte do princípio de que as coisas são conhecidas não a partir de suas
próprias propriedades e natureza específicas, mas segundo a natureza de quem as
procura conhecer. Os sentidos conhecem as coisas de uma forma, e dentre estes,
a visão da melhor maneira; a imaginação conhece de outra forma, mais completa;
a razão, mais completa ainda; e a inteligência divina conhece tudo de forma
absoluta.Além disso, as
faculdades superiores podem compreender as subalternas, enquanto estas não
podem jamais elevar-se ao nível das que lhes são superiores. A forma de
conhecimento divino, portanto, não é a forma do conhecimento humano. É a razão
humana, em última instância, que não consegue conceber a presciência daquilo
que não é necessário. Mas isso se deve à limitação que nela existe em relação
ao conhecimento divino supremo e absoluto. Do mesmo modo que os sentidos devem
ceder à imaginação, e esta à razão, é necessário, pois, que "a razão ceda
e reconheça a superioridade da inteligência divina". Somente dessa forma é
que ela poderá entender o que ela não pode ver em si mesma, o que concebe a
presciência divina, com toda a precisão e certeza, mesmo que esses
acontecimentos não se realizem.
O tempo e a eternidade
Um aspecto sempre
presente nas obras dos filósofos medievais quando lidam com o problema da
presciência divina, é a forma como esses pensadores abordaram a questão do
tempo.
Agostinho, por exemplo, dedica o livro XI ("O Homem e o
Tempo") de suas Confissões inteiramente à essa questão que ainda hoje se
mostra obscura e controversa. No capítulo 11 ("O tempo não pode medir a
eternidade"), escreve que quando o pensamento vagueia ao redor das idéias
da sucessão dos tempos passados e futuros, "tudo que excogita é em
vão". Para Deus na eternidade nada passa, tudo é presente; a eternidade
imóvel determina o futuro e o passado, não sendo ela nem passado nem futuro.
Boécio também
relaciona presciência de Deus com a forma limitada como concebemos a dimensão
tempo!
No mesmo capítulo V da "Consolação" tenta definir o que é ser
eterno - propriedade exclusiva de Deus. Define eternidade como a posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada,
tal como podemos concebê-la conforme ao que é temporal. Mais adiante cita
Aristóteles quando o mesmo, ao se referir à lei do tempo, diz que é o que
"sempre começa e jamais cessa, desenrolando-se segundo o ritmo de um tempo
ilimitado". Porém, isso ainda não significa eterno para Boécio. Para ele,
mesmo que a extensão da vida seja ilimitada, esta não a pode apreender e
abarcar totalmente e de uma só vez, já que não possui mais o passado e ainda
não desfrutou do futuro. Somente Deus pode ser considerado como eterno, pois é
o único que pode possuir de uma só vez a totalidade da plenitude de uma vida
sem limites; o único no qual o presente abarca todo o tempo ilimitado.Dessa maneira, Deus
tem uma natureza sempre eterna e presente, também seu saber, permanece imutável
em seu presente e, abarcando os espaços infinitos do passado e do futuro,
considera a todos os acontecimentos com se eles já estivessem se desenrolando.
3)- Santo Anselmo (1033 – 11019), em seu Proslógio,
capítulo XX, faz o seguinte comentário em relação a questão de Deus no tempo:
"Que Deus não está em lugar nenhum, nem no tempo: mas, tudo está em
Deus!"
Diz que os termos
ontem, hoje e amanhã não podem ser aplicados a Deus, pois, só existem no tempo, e Deus existe fora de qualquer tempo!
4)- Santo Tomás (1225 – 1275) tem opinião semelhante. Afirma que em Deus
não há qualquer sucessão temporal, pois esta última só existe nas coisas que
estão sujeitas ao movimento, e Deus é, por definição, imóvel. Por isso, o seu
ser existe na totalidade e simultaneamente.
Confissão das limitações
Clara é a dificuldade
encontrada por todos aqueles pensadores de quinze séculos atrás para tentar
explicar com palavras como Deus pode ter conhecimento dos acontecimentos que
ainda estão por vir?
5)- Ockham (1300 – 1350).Por volta da metade do século
XIV, já no apagar das luzes da Idade Média, ao abordar a questão da presciência
divina, sustenta que se deve admitir sem dúvida que Deus conhece todos os
futuros contigentes.Ressalva, no entanto, que é impossível a todo intelecto expor isso com
evidência e o modo como conhece todos os futuros contigentes. Mais além,
confessa: "não sei exprimir de que maneira". Semelhante assertiva fez
Agostinho em sua "Confissões": "Poderá minha mão que escreve
explicar isso?... Poderá a atividade de minha língua conseguir pela palavra
realizar empresa tão grandiosa?" - Ockham tenta, então,
resolver o problema dizendo que Deus é um conhecimento intuitivo... de todas as
coisas que podem ser feitas ou não,... tão perfeito e tão claro, que constitui
também um conhecimento evidente de tudo que é passado, futuro e presente.
Difícil explicar com palavras, mais difícil ainda fazer-se compreendido. Até àqueles que
comungam do pensamento cristão não lhes é obrigado acatar passivamente o que
disseram os filósofos teólogos ou aceitar as razões que procuraram, não sem
grande esforço, passar adiante. As explicações lógicas aqui levantadas, e todas
aquelas que se levantam sobre qualquer assunto, estão sujeitas a
questionamentos. Tais refutações não
devem ser vistas apenas como acinte ou má vontade para com o pensador, embora o
sejam algumas delas. Exemplo disso temos na própria Idade Média, quando
Gaunillo refuta Santo Anselmo. Mesmo confessando completa e total crença em
Deus, ser supremo que "existe e não pode não existir", o monge de
Marmoutier, nega-se a aceitar a "prova racional" da existência de
Deus que lhe foi oferecida por Anselmo. Vê-se, ao contrário,
em todos esses homens, humildade e auto confissão das próprias limitações as
quais estão submetidos, e mais ainda, das limitações a que são impostas nossas
palavras, melhor forma de expressão de que dispomos.
Concluindo
Em pelo menos três pontos principais podemos ver apoiados
os argumentos aqui referidos que conciliam a presciência divina com a livre
vontade dos homens:
1)-O primeiro deles,
que, por si só já deveria ser suficiente, é a própria crença na existência de
Deus com os atributos de onisciência e onipotência que lhe são atribuídos. Isso
parece ser fundamental para a aceitação da presciência, como deixou claro Santo
Agostinho na "Cidade de Deus", o que é facilmente compreendido na
medida em que, admitindo-se Sua existência, faz-se obrigatória a aceitação de
que Ele pode prever fatos futuros, ou não seria onipotente e onisciente, uma
limitação de sua grandeza que seria absurda. O "ser do qual não se pode
pensar nada maior" de Santo Anselmo, único por definição, não poderia ser
privado da "simples" propriedade da presciência ou não seria o ser do
qual não se pode pensar nada maior. A natureza superior da inteligência de
Deus, referida na "Consolação", de Boécio também leva ao caminho da
necessidade ou vontade da crença para a admissão da presciência divina. Não
aceitar a natureza superior, absoluta e ilimitada de Deus, de certa forma,
inviabiliza toda a empreitada na busca de explicações na razão para Sua
presciência dos acontecimentos.
2)-O segundo ponto a
que se pegam os filósofos medievais é a forma como nós sentimos e nos
relacionamos com o tempo, que é diferente da forma com Deus se relaciona com
ele (se é que podemos usar o termo). Conceber o tempo como uma dimensão
exclusivamente humana e não divina parece tentar contornar o problema.
Entretanto, afigura-se bastante difícil para nós desvincular a noção de tempo
de nosso pensamento. Há que se fazer um enorme esforço (sobre-humano!) para
isso, aceitando o nosso futuro como presente para Deus. E nosso passado também.
Superar isso é uma das maneiras para aceitar que o que está para acontecer só
acontecerá (futuro) para nós humanos. Não importa que decisão tomemos; temos
completa liberdade de tomá-las. Qualquer que seja ela, no entanto, esta
já é do conhecimento de Deus em seu presente eterno. O argumento que põe em
esferas distintas o tempo infinito - o que pode ser pensado por nós - e o
eterno divino - o que abarcaria de uma só vez todo o tempo passado, presente e
futuro - é, apesar de difícil entendimento, de uma construção tão simples
quanto bela, pois deixa a todos que conseguem apreendê-lo impossibilitados de
contra argumentação razoável que o ponha por terra. O simples fato de
vislumbrar a possibilidade de um Deus já presente no nosso futuro que ainda é
desconhecido para nós, é suficiente para aceitar sem refutação cabível a
presciência divina, e esta sem qualquer vinculação com a nossa livre vontade de
escolha.
3)- O terceiro ponto,
por fim, é o que está talvez implícito na afirmação de Ockham referida
anteriormente de que Deus tem "conhecimento intuitivo... de todas as coisas que
podem ser feitas ou não" [grifo meu]. A ressalva final desta assertiva
assume enorme força com profundas conseqüências ao pensamento, uma vez que, com
ela, basta a Deus faculdade de poder saber todas as possibilidades envolvidas
para que Lhe seja conferida a presciência de tudo que existe. Tal afirmação,
portanto, desobrigaria Deus do conhecimento do que acontecerá exatamente.
Conhecendo previamente todas as combinações possíveis, obrigatoriamente saberá
a única que realmente ocorrerá, pois esta estará de qualquer maneira contida no
universo de possibilidades conhecidas. Esse raciocínio pode ser comparado a uma partida de xadrez, na qual o
grande jogador é aquele que sabe o maior número de jogadas futuras (das que
ocorrerão e das que existem somente como possibilidade) e os desdobramentos que
estas e as próximas jogadas levarão; o seu oponente, por seu turno, é livre
para fazer suas jogadas da forma que desejar. Em uma escala infinitamente
menor, o bom enxadrista sabe o que vai ocorrer nas próximas jogadas, muito
embora seu oponente tenha total liberdade de fazer o movimento que desejar nas
pedras sobre o tabuleiro. Deus, em sua potência infinita, saberia, não um grande
número, mas todas as possibilidades e todos os desdobramentos possíveis,
deixando-nos livres para agir em conformidade com nossa vontade, o que, de
forma alguma, impede que o nosso futuro seja do Seu conhecimento.Essas são, portanto,
algumas considerações a respeito de como pensadores da Idade Média,
indubitavelmente amparados em fortes sentimentos de fé, viram, enfrentaram e
opinaram a respeito do grande obstáculo que se interpõe à razão humana que é
tentar conceber a simultaneidade da presciência de Deus e da livre vontade dos
homens, que independente da existência ou não de Deus, sabemos que ela existe.Da forma mais simples
possível para a complexidade e grandeza do assunto tratado, e sob o peso da
flagrante impossibilidade de expressarem com palavras as coisas que estavam
além do plano racional, esses homens vagaram por entre os labirintos das
explicações e argumentações e esforçaram-se de coração para verem transmitidas
às pessoas – mesmo às que não possuem a fé - o que para eles próprios, em
certos momentos, parecia límpido e claro.Decerto, o mérito
maior não deve ser imputado ao convencimento dos argumentos por eles
utilizados. A grandeza desse pensamento que nos é deixado, assim como de toda a
obra desses homens se provam sozinhas, pelos mil e quinhentos anos que se
mantiveram vivas, fazendo verdadeiras as palavras do médico e estudioso
argentino José Ingenieros, no início desse século que acabamos de ver passar:
"A imortalidade é o privilégio dos que fazem suas obras
sobreviverem aos séculos, e só por eles é medida..."
Eclesiastes 11, 4-6: "Quem fica apenas olhando o vento jamais plantará e quem para observando a passagem das nuvens nada colherá. 5Assim como não conheces o caminho do vento, tampouco como o espírito entra no corpo que se forma no ventre de uma mulher, do mesmo modo não podes compreender as obras de Deus, o Criador de tudo o que há! 6Logo ao alvorecer semeia a tua semente e à tarde não repouses a mão, pois não sabes qual das tuas obras vai prosperar, se esta ou aquela, ou ambas serão boas..."
Deus
pode tudo, e não existe nada superior a Deus! Mas Deus em sua perfeição, não
pode pecar e nem ensinar o erro de forma maléfica e proposital. Deus não pode fazer um triângulo de quatro
lados. Deus não pode criar outro Deus igual a Ele. Deus não pode criar a
escuridão, mas a luz.E nada disso interfere em sua onipotência. Pelo fato de
ser Onipotente, não significa que Deus possa fazer qualquer coisa. Deus não
pode por exemplo, fazer diretamente uma injustiça com um homem. A Onipotência
de Deus significa que Ele tem o poder de fazer qualquer bem. E nisto consiste a
absoluta liberdade de Deus, sempre fazer o que é certo, sempre fazer o que é
bom. Nós, por não sermos deuses, e por causa do pecado original, temos uma
falha em nossa liberdade. Nós podemos, e muitas vezes escolhemos o errado. Deus
nos dá sempre força para que façamos o bem, mas por nossos defeitos, e nossas
fraquezas, muitas vezes preferimos fazer o errado. O fato de Deus poder conhecer
o futuro não nos tira a liberdade. Assim, por exemplo, se eu vejo um cego caminhando
para um abismo eu sei que ele irá cair no abismo. Se eu o aviso do abismo, mas
ele insiste em continuar no caminho eu sei que ele cairá, mas ele não cairá por
que eu sei, mas devido a sua obstinação. Assim age Deus conosco ele sabe o que
faremos, mas isto não nos tira a liberdade. Ademais, a Bíblia usa uma linguagem
antropomórfica, assim algumas expressões são imagens para nos fazer compreender
melhor as atitudes de Deus, por exemplo a expressão "a mão de Deus",
ora, Deus não tem corpo e portanto não poderia ter mão. Deus se condoia tanto
com o sofrimento daqueles que Ele punia, que se fosse homem se arrependeria,
tirando o jugo de sua mão. Isto demonstra que o Deus do antigo testamento não é
um Deus carrasco como muitos querem apresentar, na realidade Ele punia para que
os homens se corrigissem.
Bibliografia:
-Grim, Patrick (2007) "Argumentos da
impossibilidade" in Martin (2007).
-Martin, Michael (org.) (2007) Assistente Cambridge de
Ateísmo. Trad. Desidério Murcho. Lisboa: Edições 70, em preparação.
-Rowe, William L. Introdução à Filosofia da Religião, Trad.
Vítor Guerreiro. Revisão científica de Desidério Murcho. Vila Nova de
Famalicão: Quasi, no prelo.
-Tomás de Aquino. Suma Teológica. Trad. Alexandre Correia,
org. Rovílio Costa. Caxias do Sul: Livraria Sulina Editora, 1980.
-Santo Agostinho, "A Cidade de Deus", Livro V,
capítulos IX e X, Editora Vozes, 5ª edição, 2000.
-Boécio, A Consolação da Filosofia, Martins Fontes,
1ª edição, 1998.
-Ockham, Causalidade de Deus e Presciência, em
"Os Pensadores", vol. VIII, editora Abril S.A. Cultural e Industrial,
1ª edição, 1973.
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Eclesiastes 11, 4-6: "Quem fica apenas olhando o vento jamais plantará e quem para observando a passagem das nuvens nada colherá. 5Assim como não conheces o caminho do vento, tampouco como o espírito entra no corpo que se forma no ventre de uma mulher, do mesmo modo não podes compreender as obras de Deus, o Criador de tudo o que há! 6Logo ao alvorecer semeia a tua semente e à tarde não repouses a mão, pois não sabes qual das tuas obras vai prosperar, se esta ou aquela, ou ambas serão boas..."
Maria Goretti - SP
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