Esse documento tá dando o que falar pela sua “PARCIALIDADE à linha progressista e revolucionária dentro da CNBB”. Evidentemente, não é o documento final, e não é assinado pela presidência da CNBB, portanto, não foi o colégio dos bispos que o elaboraram, mas uma comissão; porém, o que se percebe, é que o documento não está sendo bem aceito pela sua "explícita parcialidade", indo paradoxalmente contra ao que a própria assembleia quer combater: "A POLARIZAÇÃO dentro e fora da igreja".
Parece surreal, mas a CNBB quer combater a polarização com um documento extremamente polarizado, ou seja, favorável ao esquerdismo, demonizando a direita, porém, inocentando e eximindo a esquerda de toda e qualquer falha, ou culpa, enfim, santificando e canonizando todos seus membros, inclusive seu guru-mor: Lula - De duas uma: ou esses "iluminados" da banda podre da CNBB se julgam o supra-sumo da inteligência, ou considera todos os demais que não pensam como eles, completamente burros...
60ª ASSEMBLEIA GERAL - Aparecida – SP, 19 a 28 de abril de 2023.ANÁLISE DE CONJUNTURA ECLESIAL – INAPAZ (19/04/2023)
As ameaças à comunhão eclesial no contexto de polarização sociopolítica, cultural e religiosa1
Introdução
A presente análise de conjuntura eclesial
trará para a reflexão da 60ª Assembleia Geral da CNNB somente a questão das
ameaças à comunhão eclesial representada pela polarização sociopolítica,
cultural e religiosa do Brasil nos últimos anos. Ela está dividida em três
partes: a primeira propõe um diagnóstico das polarizações nos cenários externo
e interno da Igreja; a segunda dedica-se à análise das oportunidades e ameaças
do cenário externo, e das forças e fraquezas do cenário interno, indicando
elementos para um discernimento teológico-pastoral do diagnóstico da primeira
parte; a terceira apresenta um prognóstico, propondo algumas pistas que
contribuam nos processos de reconciliação e paz no interior do corpo eclesial,
que repercutam no seio da sociedade.
Primeira Parte - Diagnóstico
O diagnóstico aqui proposto concentra-se no
tema das polarizações, que tiveram nos atentados aos poderes da República do
dia 08/01/2023 um de seus desfechos mais terríveis (os ataques anteriores da esquerda ao congresso, incluindo incêndios, foram omitidos, por que?), embora suas raízes remontem
a fatos mais antigos, como as manifestações de 2013. Seu impacto no campo
religioso e eclesial é evidente, mostrando a mútua imbricação entre sociedade e
religião, e da força e ambiguidade do que é constitutivo desta última.
1 A redação desta análise esteve a cargo
dos PP. Boris Nef (PUC SP), Marcelo Batalioto (Dehoniana Taubaté), Geraldo De
Mori (FAJE), Danilo Pinto dos Santos (CNBB). Integram a equipe do INAPAZ os
demais membros: Maria Clara Bingemer (PUC Rio), Maria Ines Millen (CES, Juiz de
Fora), P. Waldecir Gonzaga (PUC Rio), Frei Jorge Rocha (Salvador), P. Marcial
Maçaneiro (PUC PR), P. Geraldo Harkman (Pio Brasileiro), Dom Paulo Cezar Costa
(Cardeal Arcebispo de Brasília).
Em várias ocasiões esse tema foi abordado pela
Comissão de Análise de Conjuntura Sociopolítica da CNBB. Não se trata aqui de
repetir o que já foi dito por essa Comissão, mas de retomar certos aspectos
tratados por ela e que ajudam a compreender e a discernir o que está em jogo no
acirramento da polarização na sociedade e na Igreja. Para isso, será
primeiramente trazido o cenário externo, e, em seguida o cenário interno.
1. Cenário
Externo
A Igreja existe no mundo e para o mundo, no
qual ela vive e exerce sua missão e do qual ela recebe impactos e influências.
No caso preciso desta análise, o mundo em questão é o que compõe o contexto
social, econômico, político, cultural e religioso do Brasil nos últimos tempos,
fortemente tensionado por polarizações, objeto central desta análise de
conjuntura eclesial. Rodrigo Nunes, professor de filosofia na PUC Rio e autor
do livro Do transe à vertigem. Ensaios sobre o bolsonarismo e um mundo em
transição, publicado em 2022, oferece uma análise profunda sobre a gênese, o
significado e as dimensões da polarização no Brasil a partir das manifestações
de 2013. A apresentação do cenário externo aqui proposta será em grande parte
tomada dessa obra.
1.1. A polarização como chave de
compreensão do cenário externo
A noção de polarização surgiu nos Estados Unidos na década de 1980. Ela era então utilizada para falar da redução da política a dois campos, o liberal e o conservador, associados respectivamente nos USA aos partidos Democrata e Republicano, o que implicava o desaparecimento progressivo de posições intermediárias. As tensões entre esses dois campos cresciam “por causa da radicalização do campo conservador, que deixava para os liberais a responsabilidade (e o ônus) de buscar compromissos” (tudo é culpa do conservadorismo?) A gênese dessa noção ajuda a entender como ela foi utilizada no Brasil. De fato, somente a partir de 2014 ela se tornou uma das chaves de interpretação do que resultou das manifestações de 2013: o “surgimento de uma nova direita, mais radical e organizada”.
Contribuiu para isso o “ecossistema comunicacional pós- redes sociais”, que reduziu “a economia da informação à caça desesperada de cliques”, favorecendo “declarações extremas e a construção de personagens “polêmicos””, a publicação de “qualquer coisa a quase nenhum custo e o despreparo do público para distinguir fontes confiáveis de suspeitas”, sem contar o modo de produção e consumo das notícias, sem “qualquer pudor em mentir” 2. As questões políticas que deram origem às polarizações estão associadas também a “guerras culturais”, como as que emergiram da “revolução dos costumes” de maio de 1968, fortalecendo as lutas dos movimentos feministas, antirracistas e das minorias. A reação a essa “revolução” iniciou na década de 1980, nos USA, com o “casamento entre evangelistas conservadores em defesa da Family values e o Partido Republicano liderado por Ronald Reagan”. Ela se agudizou após a queda do muro de Berlin, quando os partidos socialdemocratas, “neoliberais quanto à política distributiva e progressistas quanto à política de reconhecimento”, apoiaram movimentos sociais minoritários, deixando a classe branca trabalhadora entregue à própria sorte e à pregação da extrema direita.
Desse “caldo” emergiu, após a crise de 2008, a narrativa da extrema direita contra o “globalismo”, que, mais que responsabilizar os bancos e as corporações que causaram a crise e se beneficiaram das condições que a tornaram possível, acusava o neoliberalismo progressista pelas perdas causadas por três décadas de globalização, os partidos que “deram verniz pluralista ao mercado desregulado e as minorias cujos interesses eles supostamente protegiam”3. No mesmo período eclodiu em vários países um sentimento antissistêmico informe, mas potente, como o do Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, o dos Indignados, na Espanha, o da Primavera Árabe, em vários países do norte da África.As manifestações de 2013 aconteceram no terceiro mandato dos governos petistas, que, ao invés de direcionarem a energia das insatisfações nelas presentes, buscaram desqualificá-las e reprimi-las, pactuando a estabilização do sistema político com as forças à direita, e chantageando a esquerda, numa tentativa de forçar o retorno a uma situação em que a única polarização existente seria entre o PT e os partidos tradicionais de direita.
2 Nunes, R. Do transe à vertigem. Ensaios
sobre o bolsonarismo e um mundo em transição. RJ: Ubu, 2022, p. 96, 97.
3 Nunes, R. Do transe à vertigem, p. 100,
101, 102, 103.
Apesar de reeleger Dilma Rousseff, essa estratégia custou caro ao partido, pois o associou ainda mais ao “sistema” e “deixou a pista livre para que a extrema direita (interessante, não existe extrema esquerda?) se apresentasse como a legítima depositária dos desejos antissistema” dos que foram às ruas em 2013. O movimento secundarista (2016), tendendo à esquerda, e a greve dos caminhoneiros (2018), tendendo à direita, foram tentativas de construção de uma “terceira força”, capaz de abrir novos rumos à política do país, mas não conseguiram a mesma adesão de 2013.
Com a operação Lava Jato, a pauta anticorrupção apresentou-se como narrativa capaz de atuar com independência naquele cenário, mas fracassou. Surgiu então o recurso à polarização entre petismo e antipetismo, que culminou no impeachment de Dilma Rousseff, que é a “expressão de uma polarização assimétrica entre uma oposição rumando para a direita e um PT cada vez mais alinhado ao centro”.
Entre os extremos dessa polarização se situava o “centro”, representado pelos partidos “liberais”, que apoiavam um “neoliberalismo mais progressista ou conservador de acordo com a oportunidade”.
A direita mudou, porém, o centro do lugar que ocupara desde a redemocratização. Esse lugar era definido por um “acordo tácito pela estabilidade institucional” e se baseava em três pontos: alta tolerância à corrupção; existência de um grande partido de esquerda, que gozou de uma popularidade elevada; ganhos produzidos pelos recursos das commodities, que permitiram a promoção de políticas redistributivas sem mexer nos lucros do capital4.
A ausência de uma visão de longo prazo, distinta da economia de mercado e da globalização neoliberal, levou o pensamento e as práticas da esquerda a um deslocamento para o terreno da cultura e dos valores. Esquerda passou então a ser sinônimo de “identidade de quem reconhece os direitos de minorias, acredita no Estado laico e entende sua missão como consistindo em controlar os excessos do mercado e dos conservadores”.
Esse recurso à “identidade como substituto de uma política substancial acentuou-se no Brasil depois das eleições de 2014 e, sobretudo, a partir do processo de impeachment5.
4 Nunes, R. Do transe à vertigem, p. 105,
107, 111, 112.
5 Nunes, R. Do transe à vertigem, p. 115,
116.
O mesmo fenômeno é perceptível nas comunidades online, que passaram a revalorizar figuras tidas como extremas, tanto em grupos de esquerda quanto em grupos de direita. Das manifestações de 2013 importa ainda sublinhar que o aspecto principal segundo o qual elas se apresentavam era o do “antagonismo entre governantes e governados, classe política e população, instituições e aqueles a quem as instituições supostamente deveriam servir”.
A polarização que delas emergiu mostra que foi a direita quem logrou definir a situação pós 2013, pois ela soube “construir uma base social”, não por ter “explicitado o antagonismo entre ricos e pobres como contradição principal”, mas “por ter sido capaz de impor a oposição entre petismo e antipetismo como seu aspecto principal”.
Seu discurso consistiu em afirmar que as manifestações tinham sido um “movimento de pessoas comuns contra um “sistema” que podia ser facilmente identificado ao governo”. O petismo, “interessado em reassegurar sua hegemonia sobre a esquerda, sustentava a tese de que o “movimento fora desde o começo univocamente reacionário”.
A eclosão da crise econômica em 2015 e a Operação Lava Jato levaram a nova direita a “acionar as ruas novamente”, apoiada pelos meios de comunicação, por parlamentares e empresários, conquistando as massas que ela “nunca lograra construir” 6.
Às “margens” do processo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, algo novo, porém, “começava a tomar forma”, com os discípulos de Olavo de Carvalho, adeptos da intervenção militar, “conservadores” e “patriotas” radicalizados (generalizações são sempre injustas e inverídicas, nem todos "OLAVISTAS" são adeptos da intervenção militar, incluindo o próprio Olavo). As reformas que os partidos conservadores tradicionais realizaram, “repactuavam unilateralmente o “contrato social da redemocratização”, blindando os que a realizaram do “torvelinho de denúncias e investigações que os rondavam”, mas também desmoralizando-os e às instituições, “favorecendo quem se apresentava como alternativa à “velha política”.
Ao invés do retorno ao status quo anterior às manifestações, eles
foram “surpreendidos pela força eleitoral de uma nova (e extrema) direita, pela
qual se deixaram levar a reboque.
6 Nunes, R. Do transe à vertigem, p. 158,
160, 164, 165.
A maior “oportunidade pedagógica” que a política brasileira conheceu depois da redemocratização acabou “sendo aproveitada predominantemente pela direita, que contou com o apoio da mídia e de interlocutores institucionais para impulsionar sua mensagem”7. Ao se eleger em 2018, Bolsonaro, apesar de pertencer aos quadros da “velha política” do país, recorreu à “radicalização programática” como “o meio capaz de explorar o conflito entre a crise de legitimidade do neoliberalismo e a adesão afetiva a ele”. Uma análise mais profunda desse processo implica não só recolher o percurso que deu origem à nova (extrema) direita no Brasil depois de 2013, mas também realizar uma leitura das “matrizes discursivas que convergiram em sua formação”; das “gramáticas comuns que garantiram a comunicação e compatibilidade mútua dessas matrizes”; das “condições afetivas ou estados de ânimo coletivos que davam a essas matrizes algo com que se conectar”; e da “infraestrutura organizacional [...] da qual elas dependem”8. É a essa tarefa que será consagrado o segundo momento do diagnóstico do cenário externo.
1.2. Matrizes, gramáticas, condições afetivas e
infraestrutura da polarização
Segundo Rodrigo Nunes, o bolsonarismo é um
“projeto interclasses sustentado pela política, no topo, e por fortes
afinidades eletivas, na base”. Dentre as “matrizes discursivas” que o compõem,
algumas são restritas a determinado grupo ou classe (nisso falou a verdade, o bolsonarismo e a NOVA DIREITA não defendem o pensamento único como no esquerdismo ditatorial brasileiro); outras são amplamente
compartilhadas, mas seu significado é independente do grupo ou classe, e outras
são compartilhadas, mas com sentidos diferentes segundo a posição que se ocupa
na estrutura social9. Essas matrizes são geradoras de enunciados, de estruturas
afetivas (gostos e desgostos, ódios e amores, admiração e repulsa),
identificação e pertencimento, formas de autonarração e autoentendimento.
7 Nunes, R. Do transe à vertigem, p. 165.
8 Nunes, R. Do transe à vertigem, p. 19,
24-25
9 Nunes, R. Do transe à vertigem, p. 28.
As mais importantes são: (1) o militarismo (apoio a políticas de lei e ordem e ao uso extrajudicial da força); (2) o antiintelectualismo (rejeição da ciência e da educação formal em favor da religião e da experiência pessoal), que alguns associam ao mundo evangélico, mas que é compartilhado também pelas classes mais altas, predominantemente católicas; (3) o
empreendedorismo monetarista (ethos de empreendedor de si mesmo); (4) o
libertarismo econômico; (5) o anticomunismo, que, embora não representasse
“nenhuma ameaça concreta só tornava o discurso mais eficiente, na medida em que
seu caráter “abstrato” permitia que “simplesmente tudo que de alguma forma não
[conviesse]’ pudesse ser subsumido a um “conceito elástico” como “comunismo”
(ou “globalismo”)”; (6) o combate à corrupção; (7) o conservadorismo social,
incitado pelas conquistas dos movimentos feminista e da diversidade sexual e
pela “fabricação de pânicos morais”. O bolsonarismo fez que esses diferentes
elementos convergissem em torno de uma única figura: o “cidadão do bem”10.
A “gramática” subjacente a essas matrizes é uma “operação ideológica” que consiste em “promover a confusão entre a ansiedade em torno da perda de direitos e o medo de perder privilégios”. Essa operação conseguiu reunir, ao mesmo tempo, “o apoio de setores que têm poucas preocupações materiais, mas se ressentem das conquistas de certos grupos”, e de outros que “vivem assombrados pelo declínio de seu padrão de vida e pela perspectiva de não poder mais desfrutar dos direitos que um dia tiveram”11.
Ao associar as perdas provocadas pela globalização neoliberal aos “direitos” alcançados por outros, sobretudo mulheres, migrantes, grupos étnicos, pessoas LGBTQIA+, a extrema direita suscitava o desejo da restauração do status quo e a rejeição de políticas inclusivas.
10 Idem, p. 25, 31, 34, 35.
11 Idem, p. 36
O encontro entre “conservadorismo social e neoliberalismo” é, por um lado, gestado pela “teologia da prosperidade” das igrejas neopentecostais, que fornece uma justificativa divina para a acumulação de riqueza e “reforça o princípio calvinista de responsabilidade individual pelo [próprio] sucesso material”, e, por outro lado, por um “neoliberalismo desde cima”, que sempre investiu na família como instituição disciplinar que faz o contrapeso à tendências desagregadoras do mercado, tornando-se a rede de proteção no lugar das funções antes exercidas pelo Estado (educação, saúde, bem-estar)12.
Os elementos da “gramática” subjacente às matrizes discursivas do bolsonarismo são o individualismo, o punitivismo e a valorização da ordem acima da lei. De fato, na visão neoliberal, “só há indivíduos e (no máximo) suas famílias”. Qualquer mudança positiva no ambiente econômico é vista como conquista individual e as pautas de mudanças estruturais são tidas como tentativas de pleitear algum tipo de tratamento diferenciado.
A
animosidade punitiva, presente entre os ricos e entre os pobres, é, em geral
contra quem se encontra na base da pirâmide social. Individualismo e
punitivismo se cruzam na noção de ordem como algo acima da lei e, em última
instância, contrário a ela. Esse é um dos traços fundadores da cultura
brasileira, para a qual os direitos eram o privilégio de quem gozava de certo
status social e o apelo à ordem tinha mais a ver com a concessão de tratamento
especial a quem merecia. Quatro temas caros ao bolsonarismo ilustram isso: o
bordão dos “direitos humanos para humanos direitos”; a “flexibilização da
legislação referente à aquisição, posse e porte de armas de fogo”; o
“desmantelamento de proteções ambientais”; a cruzada contra radares de
velocidade e multas de trânsito 13.
As matrizes discursivas e sua gramática necessitam de condições afetivas que as tornem plausíveis a certos grupos. Dentre esses afetos se encontram: a humilhação diante de “situações de desemprego, subemprego, pobreza e endividamento”; o “medo de perder o próprio lugar no mundo”; o “orgulho masculino ferido”; o “ressentimento” contra grupos que supostamente teriam se beneficiado das mudanças das últimas décadas; o “abandono e desrespeito”; os “sentimentos antissistêmicos”, que decorrem de tudo isso14.
A estrema direita associou a fonte das
“diversas crises contemporâneas” com a apropriação
indevida de recursos por “outros” variados (países, etnias, religiões,
culturas,
12 Idem, p. 37, 38.
13 Nunes, R. Do transe à vertigem, p. 38,
39
14 Nunes, R. Do transe à vertigem, p. 45.
1.3. Polarização
política e manipulação da religião
As “matrizes discursivas” que estão na
origem do processo de polarização e sua “gramática” acionam, como acima foi
sublinhado, os afetos, dos mais sublimes aos mais abjetos, muitos deles ligados
a esse lugar fundador da condição humana, que é a família, outros, a essa
necessidade visceral de enraizamento, que é a ideia de pátria, outros ainda, a
essa dimensão por excelência do sentido último da existência, que é Deus e as
instituições simbólicas e sociais o tornam próximo ou acessível de quem o
busca. Não por acaso, nos anos que se seguiram às manifestações de 2013 essas
três fontes de onde brotam os afetos foram constantemente requisitadas. Não é o
caso aqui de analisá-las a fundo, mas de mostrar como, sobretudo a fonte
religiosa, foi objeto de manipulação.
Já se evocou acima como a “teologia da
prosperidade” contribuiu na gestação do encontro entre conservadorismo social e
neoliberalismo. Na análise de conjuntura eclesial sobre o pentecostalismo,
apresentada na última Assembleia Geral da CNBB, outros elementos do neopentecostalismo,
como a “teologia do domínio”, que explica o ativismo evangélico da terceira
onda pentecostal, também foram evocados16. O uso do sentimento religioso para
fins políticos, exacerbado entre 2018-2022, foi interpretado como uma das novas
manifestações do “cristofascismo”, categoria elaborada pela teóloga alemã
Dorothee Sölle na década de 1970, para se referir às relações entre o partido
nazista e as igrejas cristãs no Terceiro Reich17.
15 Nunes, R. Do transe à vertigem, p. 47.
16 Cf. INAPAZ. Análise de conjuntura
eclesial, apresentada na Assembleia Geral da CNBB em agosto de 2022.
17 Ver sobre o assunto: PY, F. Cristofascismo, um dos filhos do neofascismo. Disponível:
https://www.ihu.unisinos.br/616058-impulso-feminino-no-neofascismo-cristao-de-bolsonaro-
quatro-cenas-recentes-de-inicio-do-ano-eleitoral-artigo-de-fabio-py. Acesso:
10/04/2023; PY, F. Bolsonaro, a teologia
do poder autoritário
e um diagnóstico
político para 2022.
Entrevista com Fábio
Py. Disponível: https://www.ihu.unisinos.br/617022-bolsonaro-a-teologia-do-poder-autoritario-e-um-diagnostico-
politico-para-2022-entrevista-com-o-professor-fabio-py. Acesso: 10/04/2023
Não é o caso aqui de refletir sobre isso, mas de se perguntar sobre a utilização da religião nos acampamentos que prepararam os atentados do dia 08/01/2023. Além dos símbolos religiosos do cristianismo, como a Bíblia, a imagem da Virgem Maria, a oração do terço ou do Pai-Nosso, os acampados discursavam contra o comunismo, pela salvação da pátria e da família, pedindo a intervenção das forças armadas contra os que supostamente ameaçavam a ordem social.Durante todo o tempo em que exerceu seu mandato, Bolsonaro recorreu à religião, como atestam a expressão que dava sustentação “teológica” a seu governo: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, seus reiterados encontros com lideranças religiosas evangélicas e católicas, nas quais buscava associar seu governo a um pretenso mandato divino de caráter salvacionista, contra os “corruptos”, que haviam governado o Brasil antes dele, e contra seus inimigos, identificados com a esquerda, fortemente diabolizada.
O catolicismo, hegemônico no Brasil durante
séculos, sempre exerceu um forte influxo no espaço público nacional, servindo
muitas vezes para legitimar instituições e valores caros à sociedade e à
Igreja, ou para questionar o poder autoritário do Estado que violava os
direitos humanos fundamentais dos cidadãos. O impacto da cultura moderna,
marcada pela afirmação do indivíduo e pela fragmentação da vida, tornou o campo
religioso brasileiro mais plural e diversificado, levando, por um lado, à perda
do “influxo” da Igreja sobre o conjunto da população e sobre as instâncias do
Estado, e, por outro lado, tornando o mesmo campo religioso mais complexo e
diverso. Como foi apontado na Análise de Conjuntura Eclesial de 2022, foi
através das igrejas pentecostais que um novo tipo de presença cristã se deu nos
últimos anos na esfera pública, prestando-se e servindo à manipulação política,
promovendo e alimentando a polarização na sociedade18.
18 Passos. J. D. Uma teocracia pentecostal?
Considerações a partir da conjuntura política atual. Horizonte – Revista de
Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 18, n. 57, p. 1109-1136,
set./dez 2020; Oliveira, D. M. (2020).
Baseados no fundamentalismo bíblico, com discursos que falam mais ao coração do que à mente e, por isso mesmo, muito próximos da realidade cotidiana das pessoas, com certa tendência à magia e ao devocionismo, esse tipo de religiosidade cristã criou um sujeito importante no cenário político do país na atualidade. Apesar de o mundo pentecostal tradicional (primeira onda) privilegiar a formação de pequenas comunidades, próximas dos lugares onde moram os mais pobres, estratégia pastoral também adotada pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e pelos grupos de oração da Renovação Carismática Católica (RCC), fortemente presentes no interior do catolicismo a partir da década de 1970, a segunda e a terceira “ondas” do pentecostalismo evangélico investiram pesado nos meios de comunicação de massa, inicialmente através do rádio e da televisão, mas, nos últimos anos, através dos inúmeros recursos da mídia digital. Algo parecido aconteceu com a RCC no Brasil, que desde o começo investiu pesado na evangelização através da televisão e, nos últimos anos, através da mídia digital.
A mídia digital, além de aproximar usuários/as e facilitar a comunicação rápida entre eles/as, tornou-se um espaço de infinitas trocas de informações e opiniões, contribuindo na formação de diversos tipos de comunidades, nas quais há intercâmbio de ideias, partilha de vida, busca de convencimento sobre opções e convicções. Através dos algoritmos e da inteligência artificial, os portais de notícias e as redes sociais captam o interesse dos que navegam no mundo virtual e os colocam em contato com os que possuem interesse parecido, criando o fenômeno das “bolhas”, grupos de pessoas que seguem os que partilham as mesmas ideias e valores, e dos influencers, comunicadores/as com grande capacidade de difundir opiniões, valores, convicções e ideais, determinando gostos e opções nos followers, tanto no âmbito estético quanto ético, político e religioso.
Igrejas pentecostais e sua atuação política
recente no Brasil. Revista Brasileira de História das Religiões, 13 (37).
Disponível: https://doi.org/10.4025/rbhranpuh.v13i37.52701
Boa parte da polarização ocorrida no Brasil nos últimos anos se deu através das redes sociais, de suas bolhas e influencers, também com apelo religioso19. O uso da religião para fins políticos ganhou então nova configuração20. Muitos grupos religiosos, católicos ou não, têm sido bombardeados com uma avalanche de notícias (muitas delas falsas) sustentadas na negação da ciência e da evidência.
Este fenômeno
sociopolítico-religioso extrapola, e muito, os limites geográficos da nação
brasileira. Trata-se de um acontecimento mundial, com ramificações
internacionais e financiamento de grandes grupos econômicos21. As consequências
concretas desse fenômeno são, em parte, conhecidas22, mas ainda não se sabe
qual será seu alcance real nas diferentes camadas da população. Ninguém se
atreve a responder até onde os braços (ou tentáculos) desta aliança
fundamentalista-tradicionalista serão capazes de chegar. Uma coisa é possível
afirmar: não será por um curto período, pelo simples fato de que essa rede se amplia
cada vez mais.
2. Cenário
Interno
Para o cenário interno serão trazidos para
este diagnóstico uma breve nota histórica sobre as oposições entre grupos e
tendências religiosas no mundo católico no período que se seguiu ao Concílio
Vaticano II, seguida de uma breve descrição sobre o impacto da polarização
recente da sociedade no seio das comunidades da Igreja católica.
2.1. Nota
histórica sobre a "diversidade de tendências" no catolicismo pós Vaticano II
O catolicismo do Brasil nunca foi
monolítico. Sempre houve várias tendências nos grupos e movimentos a partir dos
quais ele se expressava e se organizava no país. No período imediatamente
anterior ao Concílio Vaticano II, a Ação Católica, fortemente marcada pela
19 Souza, N. de; Lanfranchi, M., O avanço do
fundamentalismo católico nas redes sociais no Brasil. In Revista de Cultura
Teológica, v. XXX, n. 102, mai-ago, p. 193-213.
20 Campos, B. M. Evangélicos
fundamentalistas e política: uma análise da conjuntura brasileira (2018-2019).
Horizonte – Revista de Estudos de Teologia
e Ciências da Religião, v. 18, n. 57, p. 1162-1187. set./dez 2020.
21 Burity, J. A onda conservadora na
política brasileira traz o fundamentalismo ao poder? In: Almeida, R. de;
Toniol,
R. (orgs), Conservadorismos, fascismos e
fundamentalismos: análises conjunturais, Editora da Unicamp, p. 21.
22 Guimarães, V. R., Dissertação de
Mestrado em Ciências da Religião, na Universidade Católica de Pernambuco
(UNICAP), sob a orientação do Prof. Dr. João Luiz Correia Júnior (2014).
http://tede2.unicap.br:8080/bitstream/tede/365/1/valtemir_ramos_guimaraes.pdf.
Os bispos brasileiros presentes no Concílio Vaticano II, em sua grande maioria, eram formados na teologia neoescolástica, caracterizada por sua perspectiva antimoderna e fechada ao diálogo com o mundo, com as outras igrejas cristãs e a outras religiões23. Nas Sessões do Concílio, graças aos encontros organizados por Dom Helder Câmara na Domus Mariae, residência que abrigou o episcopado do país em Roma, a teologia e os documentos conciliares foram aprofundados pelo conjunto dos bispos através das conferências dos principais teólogos, cardeais e bispos que elaboraram os textos do Vaticano II. Isso os preparou para redigirem e aprovarem, na última Sessão do Concílio, o Plano de Pastoral de Conjunto, responsável pela primeira recepção conciliar no país. Na a recepção do Concílio no Brasil foram importantes os Institutos nacionais criados pela CNBB para a formação de lideranças eclesiais no espírito e na teologia do Vaticano II no âmbito da catequese, da liturgia, da pastoral vocacional, da questão social.
23 Sobre a recepção do Concílio Vaticano II
pela Igreja do Brasil, ver: BEOZZO, J. O. A recepção do Vaticano II na Igreja
do Brasil. In Centro Manuel Larraín, Santiago, Chile, 2015. Disponível em:
https://centromanuellarrain.uc.cl/images/pdf/BeozzoJoseOscar.ArecepcaodoVaticanoII.pdf Acesso, 20/03/2023. Beozzo é uma das
principais referências nos estudos da recepção do Vaticano II no Brasil
Alguns desses institutos foram depois reunidos no Instituto Nacional de Pastoral (INP), muito importante na elaboração dos Planos de Pastoral de Conjunto que se seguiram e nos estudos de temas cruciais para a ação evangelizadora da Igreja do Brasil. A implementação desses Planos foi feita com grande criatividade em várias
dioceses, dando um enorme dinamismo à pastoral, com impactos na liturgia, na
catequese, na formação das CEBs, no estímulo à leitura da bíblia pelos fiéis,
na criação das diversas pastorais, nas iniciativas de diálogo ecumênico e
inter- religioso, na educação católica, no compromisso da Igreja junto aos mais
pobres, acompanhando-os em suas lutas. A vida religiosa teve uma participação
fundamental nessa primeira etapa de recepção, deixando os conventos e
aproximando-se das comunidades das periferias urbanas e do mundo rural.
As resistências às reformas e à recepção do Concílio foram marginais na Igreja do Brasil no período pós-Vaticano II. As mais conhecidas são as de Dom Antônio de Castro Mayer, bispo da Diocese de Campos, no Rio de Janeiro, que não aceitou a reforma litúrgica e manteve uma postura crítica ao Concílio, criando, em 1981, a Fraternidade Sacerdotal São João Maria Vianey, parceira da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, fundada por Marcel Lefebvre, sendo esse último excomungado, quando em 1988, em desobediência cismática a Roma, realizou algumas ordenações para o grupo liderado por Lefebvre; e por fim, as da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família, Propriedade (TFP), fundada por Plinio Correia de Oliveira, em 1960.A primeira recepção do Concílio no Brasil se deu pouco depois do golpe militar de 1964, apoiado, no começo, por vários setores do catolicismo e alguns membros da hierarquia. O endurecimento do regime, com a perseguição, prisão e tortura de militantes ligados à Igreja e a grupos de esquerda, levou vários bispos a se posicionarem contra as ações dos militares. Aos poucos a Igreja foi se tornando um dos lugares de organização de grupos que lutavam contra o regime e pela democracia, ganhando respeitabilidade e autoridade moral frente à opinião pública. A reflexão teológica elaborada então, baseada na leitura dos sinais dos tempos, proposta na Gaudium et spes, através do método Ver, Julgar, Agir, deu origem à teologia da libertação, que impactou bastante a organização das CEBs e das pastorais criadas à luz dos documentos conciliares (condenada posteriormente a TdL de linha marxista-leninista, e revolucionária, através de dois documentos da Congregação para a doutrina da fé: "Libertatis Nuntius" (06.08.1984), e "Libertatis conscientia" (22.03.1986).
O Brasil vivia então uma profunda transformação social, provocada pelo desenvolvimento econômico, que atraiu para as cidades milhões de pessoas, com impactos progressivos no campo religioso. Nas periferias urbanas, a ação das CEBs foi muito importante, pois contribuiu na organização religiosa dos/as fiéis, além de torná-los/as sujeitos de lutas por melhorias das condições de vida dos lugares em que viviam. Chegam então ao país movimentos eclesiais com forte acento na espiritualidade, como os grupos da RCC, ou na formação e ação do laicato, como, entre outros, os Cursilhos de Cristandade, o Caminho Neocatecumenal, o Movimento Comunhão e Libertação, os vários movimentos familiares, que atraiam então muitos fiéis. As práticas do catolicismo popular, feitas de romarias, promessas e festas aos santos da devoção, e as práticas do fiel comum, marcadas pela participação na liturgia, pelas devoções, busca dos sacramentos, continuavam importantes. O número de evangélicos cresceu também muito, oferecendo novas referências religiosas e morais para uma população pobre e em busca de sentido.Entre os anos 1970-1990, a convivência entre as tendências que se formaram no seio do catolicismo pós-conciliar era marcada pela crítica mútua e por certos preconceitos, sem, no entanto, levar a rupturas radicais. Isso se expressava na oposição entre os assim chamados católicos “progressistas” ou “libertadores”, identificados com os fiéis das CEBS e das pastorais inspiradas e nascidas da teologia da libertação, e os católicos “conservadores” ou “tradicionais”, identificados com os carismáticos e os grupos e comunidades inspirados pelos movimentos religiosos de perfil mais espiritualista e doutrinal. A maior parte dos fiéis, porém, mantinha as práticas do catolicismo popular (romarias, promessas, devoções) ou recorria à Igreja por conta dos sacramentos (batismo, eucaristia, crisma), das festas patronais, das exéquias, das missas de sétimo dia, não entrando nos debates que opunham os grupos mais ativos do catolicismo pós-conciliar.
As oposições entre as tendências “conservadora” ou “libertadora” e “progressista” ou “tradicional” diluíram-se um pouco a partir da década de 1990, com a assunção, por parte do “fiel comum” de muitas comunidades e de membros do episcopado, de elementos da espiritualidade carismática, vista por certos setores da hierarquia eclesiástica como a única capaz de frear a onda pentecostal evangélica. A queda do muro de Berlim parecia também diluir o “perigo” comunista, temido pelos católicos de perfil mais “conservador” ou “tradicional”. No final dessa mesma década teve início a presença e ação de padres “midiáticos” na televisão. A partir do final do século, o acesso à internet pelo grande público transformou-a num dos principais “lugares” e mediações da ação evangelizadora de grupos eclesiais. Os canais de TV de inspiração católica foram também ganhando grande importância. Alguns deles, como Canção Nova, TV Século XXI e Rede Vida, fortemente ligados ao pentecostalismo católico, tornaram-se aos poucos os principais veículos de “informação” e formação sobre a Igreja e sobre a fé para a maioria dos fiéis.
No final da década de 1990, de uma cisão na
TFP, nasceu a Associação dos Arautos do Evangelho, reconhecida em 2001, como
Associação Internacional de Fiéis de Direito Pontifício. Diferentemente dos
grupos e comunidades de perfil carismático e doutrinal nascidos após o
Concílio, os Arautos deram nova audiência e visibilidade ao tradicionalismo do
fundador da TFP, investindo num imaginário medieval, visto por muitos como
folclórico, pela estética adotada, mas com grande capacidade de atração de
certos setores das classes médias e altas da sociedade. Presentes em 78 países,
recorrem à crítica do fundador da TFP à modernidade, considerada decadente pela
perda dos valores da grande época da cristandade, distanciando- se, nesse
sentido, do Concílio Vaticano II.
Esse período de “acomodação” entre “conservadores” e “progressistas” foi marcado pelos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, que, mais que a abertura à criatividade da primeira recepção do Concílio, se preocuparam em oferecer-lhe um quadro mais institucional e doutrinal. Importante, sem dúvida, em tempos de transição e incertezas, esse quadro, aos poucos, mudou o perfil do episcopado brasileiro, que passou a preocupar-se mais com a dimensão moral, canônica, celebrativa e dogmática da fé, do que com questões de caráter pastoral ou de incidência da ação dos fiéis no espaço público. As mudanças profundas que atingiram a sociedade e a cultura, que se tornaram cada vez mais plurais e fragmentadas, reforçaram a descontinuidade do modelo eclesial do imediato pós-concílio. Ganhou então ênfase o caráter sagrado dos ministros ordenados e o profetismo e a relevância da presença e ação da Igreja na sociedade foram aos poucos se perdendo. O pluralismo e a fragmentação instauraram-se também dentro da Igreja e a “oposição” entre “progressistas” ou “libertadores” e “conservadores” ou “tradicionais” passou a ser vista como irrelevante, por conta mesmo do pluralismo de opiniões e visões.
Zygmunt Bauman, numa perspectiva analítica, recorreu à expressão “sociedade líquida” para falar da cultura pós-moderna, plural e fragmentada, sem referência a elementos epistemológicos, metafísicos, éticos e religiosos que lhe servissem de fundamento e horizonte de sentido. Bento XVI, num juízo mais pessimista, percebe nessa ausência de fundamento e horizonte os sinais de uma “ditadura do relativismo”. As duas leituras ajudam a entender a irrupção, nas últimas décadas, do apelo à afirmação da identidade, que, no mundo religioso, se traduz em fundamentalismo e tradicionalismo.Na Igreja católica, os acordos feitos entre o Vaticano e os grupos ligados ao tradicionalismo de Lefebvre, conheceram novos desdobramentos a partir de 2007 com a carta apostólica de Bento XVI, dada em forma de Mottu próprio Summorum pontificum, que permitia o uso, em forma extraordinária, do ritual de São Pio V. No Brasil, mesmo em dioceses onde não havia fiéis pertencentes às Fraternidades São Pio X e São João Maria Vianey, a missa em latim começou a atrair jovens em busca de algo que os ajudasse a fundar suas vidas na “solidez da tradição”. Em 2016, alguns desses jovens fundaram, no Rio de Janeiro, o Centro Dom Bosco que, segundo informações do portal institucional, é uma “associação de fiéis católicos que se reúnem para rezar, estudar e defender a fé”, tendo como missão “ajudar a resgatar a bimilenar tradição da Igreja”. O Brasil, continua o texto, é “uma nação católica que foi adormecida pelo veneno liberal das casas maçônicas”. O trabalho editorial é sua “principal fonte contrarrevolucionária”24. Como desdobramento dos grupos de oração da RCC, muitas Novas Comunidades também ganharam maior visibilidade nas últimas décadas, com forte presença de seus fundadores/as ou de algumas de suas lideranças na TV e nas mídias digitais.
24 Cf. Portal Centro Dom Bosco. In
https://centrodombosco.org/quem-somos/ Acesso: 15/03/2023.
Na TV, eles/as oferecem ao fiel comum
programas de caráter devocional ou espiritual, muitas vezes com forte acento
doutrinal, mas com pouca ou nenhuma referência à Doutrina Social da Igreja ou à
perspectiva crítica e profética do cristianismo no espaço público. Nas mídias
digitais, eles/as se tornaram influencers, alguns com milhões de seguidores/as,
atraídos/as por sua oferta de sentido, cura, libertação, salvação, referência
para se situar no mundo. A espiritualidade que veiculam é uma mescla de
devoções do catolicismo popular com técnicas de autoajuda e coaching
espiritual, numa clara “afinidade eletiva” com a lógica da pós-modernidade
liberal, centrada no desejo e na autorrealização do indivíduo, construtor do
próprio sucesso. Como nos canais de TV e nas mídias digitais dos grupos
evangélicos, vários/as deles/as também transformaram sua oferta religiosa em
negócio, demandando dinheiro de seus followers e movimentando recursos
importantes.
Nesse contexto difuso, fragmentado e plural, alguns influencers “católicos” ganharam especial destaque, com uma pregação doutrinária, supostamente baseada no magistério, atraindo visibilidade e audiência. A polarização social e política da sociedade, iniciada em 2013, aos poucos também passou a contar com a sustentação ideológico-religiosa de algumas dessas comunidades e influencers. Sem vinculação direta com os movimentos espirituais nascidos após o Concílio ou com as inúmeras expressões do catolicismo popular, as pregações dos grupos tradicionalistas ligados ao Centro Dom Bosco e suas muitas filiais pelo Brasil, encontraram eco e adesão nos milhões de fiéis ligados a esses movimentos e expressões da religiosidade popular. Alguns influencers “católicos”, com perfil ideológico contrário às grandes orientações dos documentos conciliares, mas com grande adesão entre fiéis com pouca formação e entre seminaristas, também contribuíram na transformação da oposição entre católicos “progressistas” ou “libertadores” e católicos “conservadores” ou “tradicionais” em polarização, demonizando a teologia da libertação e com ela todo o discurso social da Igreja, tão fortemente posto em evidência pelo magistério da Igreja nos últimos séculos. O relatório da escuta sinodal da Igreja do Brasil enviado à Secretaria Geral do Sínodo, os denomina de “gurus” teológicos. Após a eleição do Papa Francisco, alguns desses influencers, muito ativos nas novas mídias digitais e com apoio financeiro de grupos de perfil similar em outros países, começaram uma oposição frontal ao novo Pontífice, ao Vaticano II, às Conferências Episcopais, sendo muitas vezes apoiados por alguns cardeais, bispos, padres, seminaristas e leigos/as, impulsionando a polarização na Igreja.
2.2. Breve
descrição da polarização no interior da Igreja na atualidade
Em 1999 Libanio publicou a primeira versão do livro Cenários de Igreja, no qual propunha os quatro cenários de Igreja que então, segundo ele, estavam presentes no Brasil: Igreja instituição, Igreja carismática, Igreja da pregação, Igreja da práxis libertadora25. Em 2012 ele acrescentou a esses 4 cenários um quinto, o da Igreja fragmentada pós-moderna. Em sua leitura, ele propunha uma descrição de cada cenário, mostrando os elementos internos e externos que os caracterizavam e sua plausibilidade no futuro da Igreja, indicando também as interpenetrações entre alguns desses cenários. Pedro Ribeiro de Oliveira, na análise de conjuntura eclesial publicada no site o Instituto Humanitas Unisinos (IJU), em 21/02/2023, com o título “Igreja católica do Brasil: entre o restauracionismo e o liberacionismo”26, resgata a oposição entre “conservadores” (= restauracionistas) e “progressistas” (= liberacionistas), à qual Libanio tinha renunciado em sua obra de 1999/2012. Corroborando a perspectiva de Pedro Ribeiro de Oliveira, Agenor Brighenti lançou recentemente o livro O novo rosto do catolicismo brasileiro. Clero, leigos e religiosas e perfil dos padres novos, que retoma a pesquisa organizada por ele na PUC PR sobre o novo rosto do clero no Brasil. A obra traz contribuições de vários/as autores/as. Na introdução, o teólogo catarinense fala sobre o “deslocamento” ocorrido no perfil dos “novos padres”, passando do “profético para o terapêutico e do ético para o estético”.
25 LIBANIO, J. B. Cenários de Igreja, num
mundo plural e fragmentado. São Paulo: Loyola, 2012.
26 Ver Oliveira, P. R. Igreja católica do
Brasil: entre restauracionismo e liberacionismo. Disponível:
https://www.ihu.unisinos.br/626301-igreja-catolica-do-brasil-entre-o-restauracionismo-e-o-liberacionismo.
Acesso: 15/03/2023.
A pesquisa adotou a “perspectiva sociopastoral” da “evangelização-libertação”, oriunda da renovação proveniente do Concílio Vaticano II, presente nos “padres dos anos 1970/1980, e a perspectiva“institucional-carismática”, presente nos “novos padres” e na pastoral por eles implementada, que toma distância da renovação promovida pelo Concílio Vaticano II e da tradição da Igreja libertadora, num claro deslocamento da “militância para a mística na esfera da subjetividade individual”27. Sob certo pondo de vista, a leitura de Libanio, que renuncia à “oposição” entre progressistas/libertadores e conservadores/tradicionais, e as de Pedro Ribeiro de Oliveira e dos autores que participam da obra de Brighenti, são complementares. A primeira dá mais conta da pluralidade que caracteriza a atual situação do catolicismo no país, e a segunda mantém a “oposição” entre as duas posições ou mostra como elas se tensionam na perspectiva da polarização. Libanio não viveu para ver o influxo do discurso tradicionalista sobre o imaginário católico predominante no país, o do “fiel comum”, tido como “conservador” ou “tradicional” durante décadas pelas análises de conjuntura eclesiais que o opunham ao católico “progressista” ou “libertador”, procedente da renovação do Concílio Vaticano II e da teologia da libertação. Pedro Ribeiro de Oliveira, correto ao identificar o catolicismo de perfil “conservador” com o “restauracionismo”, e os autores que escreveram na obra organizada por Brighenti, ao permanecerem na oposição entre evangelizador- libertador e institucional-carismático, parecem não darem tanta importância à ação do discurso tradicionalista sobre o conjunto do imaginário católico predominante no país. Essa opção teórica, embora não invalide as duas análises, mostra a necessidade de aprofundá-las, não só na leitura aqui proposta, mas também em outras pesquisas sobre o fenômeno, de tipo mais abrangente e com métodos qualitativos. No fundo haveria que se perguntar se o mesmo fenômeno ocorrido na sociedade nos últimos anos, a saber, a recuperação pela extrema direita das insatisfações presentes nas manifestações de 2013, também não se encontraria na Igreja, ou seja, o discurso neotradicionalista que recupera e manipula as expressões do fiel comum presentes nas múltiplas formas de experiências de movimentos de caráter devocionista e espiritualista.
27 BRIGHENNTi, A. (Org.). O novo rosto do
catolicismo brasileiro. Clero, leigos e religiosas e perfil dos padres novos.
Petrópolis: Vozes, 2023, p. 10, 13.
O que é importante reter nesta análise do cenário interno? Por um lado, o pluralismo de tendências, constatado por Libano nas duas versões da obra escrita por ele, que não pode mais ser reduzido à oposição entre “progressista/libertador” e “conservador-tradicional”. Por outro, o deslocamento da oposição para a polarização, que, em parte, é contemplado pela análise de Pedro Ribeiro de Oliveira e dos/as teólogos/as que participaram da interpretação dos dados da pesquisa conduzida por Brighenti. A opção interpretativa da análise de conjuntura eclesial aqui proposta é de combinar essas perspectivas, como se verá na segunda parte, dedicada à análise. Em que consiste, neste momento, a combinação da leitura de Libanio com a de Pedro Ribeiro de Oliveira e as dos autores da obra organizada por Brighenti? Em mostrar como a ação de certos programas de TVs de inspiração católica, combinada com a ação de influencers “católicos”, de perfil neotradicionalista ou afinados com ele, sobre os “fiéis comuns”, tidos como “conservadores” ou “tradicionais” pelos estudiosos que os levavam em consideração nos estudos a eles dedicados, tem contribuído para o acirramento da polarização no seio da Igreja e para dar respaldo ideológico à polarização social e política. Na Análise de Conjuntura sobre o Pentecostalismo, apresentada na Assembleia da CNBB no final de agosto de 2022, foi dito que o pentecostalismo católico, que exerceu sua influência sobre a Igreja sobretudo através dos grupos de oração da RCC, já não tem nesses grupos sua principal base de atração de fiéis católicos, mas nas Novas Comunidades de Vida. Com efeito, são elas que mais interpelam e formam os “fiéis comuns” em um catolicismo de tipo devocional, sentimentalista e individualista, através de uma “religião” que dá segurança, autoafirmação, consolação e proteção, em um mundo que se tornou plural, fragmentado, inseguro, violento, sem os “valores” tidos como sustentáculos da vida. Os principais meios de difusão desse tipo de catolicismo são os canais de TV de inspiração católica e os recursos do mundo digital, com suas redes de influencers e followers. A “afinidade eletiva” entre esse tipo de espiritualidade e o catolicismo popular é evidente, sendo atestada pelo caráter afetivo, que fala ao coração mais que à mente, a fé na intervenção divina, baseada na crença no milagre e na magia. Esse tipo de espiritualidade tornou-se, porém, permeável a pregações mais ideológicas, propostas por influencers e grupos de perfil mais tradicionalista, como os do Centro Dom Bosco. Desses influencers e grupos surgiu, sobretudo a partir das manifestações de 2013 e da polarização que marca a sociedade brasileira desde então, a demonização do catolicismo progressista ou libertador, a cruzada de difamação e de desinformação contra a Igreja comprometida com os pobres, a campanha contra as reformas propostas pelo Papa Francisco, a difusão do sedevacantismo, a perseguição à Campanha da Fraternidade, a teólogos, teólogas e instituições que discutem questões consideradas por eles como heréticas ou contra a doutrina, levando a confusão ao “fiel comum” e conquistando certos setores importantes para a instituição eclesiástica, como seminaristas, padres e até bispos ou setores do laicato ligados a movimentos eclesiais.
Segunda Parte – Análise
O diagnóstico acima apresentado "é parcial (grifo nosso: literalmente) e
necessita ser mais bem ilustrado com dados de pesquisa quantitativa e
qualitativa." Baseado em pesquisas feitas em várias instituições que estudam a
evolução da questão religiosa no Brasil, ele também é o resultado de
observações empíricas, feitas por lideranças eclesiásticas e agentes de
pastoral de várias partes do país, e do acompanhamento de alguns grupos e
influencers com grande número de seguidores nas redes e canais de TV de
inspiração católica do país. Nesta segunda parte, mais analítica, os elementos
do cenário externo serão relidos sob o viés das oportunidades e desafios que
levantam à missão da Igreja, e os elementos do cenário interno serão relidos
enquanto forças e fraquezas para realizar a mesma missão.
1. Cenário
Externo
Do cenário externo serão trazidos nesta análise os elementos que podem ser vistos como oportunidades para a reflexão e a ação evangelizadora da Igreja, ou, pelo contrário, como ameaças e desafios para essa mesma missão, necessitando, por isso mesmo, de um discernimento teológico e pastoral. Para isso, a Encíclica Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social oferece pistas que poderão iluminar esse discernimento.
1.1. Oportunidades
do cenário externo para a missão evangelizadora
A polarização social e política, exacerbada a partir das manifestações de junho de 2013, deu origem, como foi indicado na primeira parte, a um novo ator na política brasileira: a extrema direita. Sem complexos, constituída por representantes da elite nacional, afinada com os princípios neoliberais e com propósitos antidemocráticos e autoritários, esse novo ator conseguiu atrair para seu projeto os grupos de perfil “liberal”, considerados de “centro”, dominando o cenário político do país nos últimos anos. Hábil no uso da mídia digital, ele seduziu milhões de eleitores, obtendo um índice relativamente alto de aprovação durante o período em que ocupou a esfera máxima do poder nacional. O uso do nome de Deus e dos símbolos religiosos para fins políticos não é novo no Brasil e não é feito somente pela Direita. A Esquerda, embora seja mais crítica à religião na esfera pública e adepta da laicidade do Estado, não ignora sua importância no imaginário da maioria do povo brasileiro. Sobretudo no período que se seguiu à recepção do Concílio Vaticano II no país, ela aproximou-se dos grupos eclesiais que se opuseram ao regime militar e contribuíram nos processos de redemocratização do país. Alguns desses grupos contribuíram na formação de vários dos partidos dessa tendência ou ingressaram em outros já formados, acreditando, como já afirmava o Papa Pio XI, que a política é a “forma mais perfeita da caridade”. Isso mostra que os símbolos religiosos continuam atraindo não só um número significativo de fiéis, mas também os que se dedicam profissionalmente à política, apesar da vigência do princípio da laicidade do Estado, que tende a confinar a religião ao âmbito privado das convicções do indivíduo.Todo símbolo religioso, apesar de doador de sentido, é ambíguo e opaco, necessitando de discernimento para ser bem compreendido, sobretudo se invoca o nome que carrega e condensa todo o sentido da existência: Deus. Já o judaísmo havia proibido todo uso desse nome para fins “idolátricos”, ou seja, para confirmar os interesses de quem o utiliza. Por isso, a proibição de pronunciar o nome de Deus. Esse nome, na compreensão cristã, fez- se carne em Jesus de Nazaré, e é a partir do que ele disse, fez e padeceu que toda reflexão realmente cristã deve discernir qualquer uso político da religião e de Deus.Em que a manipulação da religião, presente no cenário externo, pode ser uma oportunidade para a ação evangelizadora da Igreja? Ela atesta a força da religião e de seus símbolos no imaginário brasileiro, que ainda não foi secularizado. De fato, apesar do crescimento dos “sem religião” ou “desigrejados”, muita gente no Brasil ainda busca no divino e no transcendente motivos para “esperar contra toda esperança”, para acreditar que Deus e seus enviados podem intervir para mudar sua história, que Ele não é cúmplice das injustiças e dos inúmeros sofrimentos padecidos pelo pobre. Por ser ambígua, a religiosidade popular pode ser manipulada e ganhar perfis que, no caso do cristianismo, são contrários ao Evangelho. Por isso, ela necessita de constante crítica. Os profetas do Antigo Testamento haviam visto isso e realizaram o discernimento exigido diante de toda manifestação religiosa ou dos que usavam o nome de Deus contra Deus e contra o povo.
Outra oportunidade que esse “excesso” do recurso ao nome de Deus e à religiosidade do povo brasileiro oferece à Igreja é o modo como os que o fazem articulam crença e afeto. Os discursos que manipulam o nome de Deus para fins “comerciais” ou autoritários falam ao coração das pessoas mais que à razão. Algo parecido acontece com a religiosidade popular católica, os pentecostais e neopentecostais evangélicos e os grupos e movimentos de inspiração carismática e pentecostal do catolicismo. A cultura dita pós-moderna, fortemente conectada nas mídias digitais, também investe mais na imaginação e nos afetos do que na razão. Por isso, é tão propensa à difusão das Fake News ou à desinformação. Os movimentos sociais críticos, em geral associados aos grupos de Esquerda, no campo político, continuam invocando a utilização da razão. A Igreja e sua pastoral não podem certamente recorrer de modo acrítico ao excesso de religião presente no imaginário popular, mas precisam aprender com o uso que dela se fez nos últimos anos, para descobrirem como falar ao coração de quem busca o sagrado, a espiritualidade, a religião, Deus. Nesse sentido, são ilustrativas as “pautas de costumes” e as supostas “ideologias” que os grupos de extrema direita dizem combater, associando uma leitura fundamentalista dos textos bíblicos a temas como aborto, diversidade sexual e de gênero.
O uso “inteligente” das tecnologias digitais, feito pelos grupos de extrema direita, associado ao poder que essas tecnologias têm de falar mais à imaginação e ao coração do que à mente ou à inteligência, pode também ser uma “oportunidade” do cenário externo para uma ação pastoral que leve em conta a cultura virtual e sua lógica, que não é a mesma com a qual, em geral, a Igreja está habituada a trabalhar. Sem cair nos extremos de pensar que todo o mundo já entrou nessa cultura e nessa lógica, é necessário reimaginar os modos de anunciar o Evangelho, de propor a fé, de acompanhar os processos formativos, de oferecer os conteúdos doutrinários do cristianismo e de celebrar a experiência de Deus.
1.2. Ameaças
e desafios do cenário externo à missão da Igreja
Os ataques do dia 8/01/2023 às sedes dos três poderes da República brasileira sinalizam para uma compreensão da política contrária aos princípios da democracia, que são a argumentação, a negociação e a busca de consensos, definida pelo voto da maioria. Eles são também a expressão da violência de discursos baseados no ressentimento e no autoritarismo. No fundo, o ódio da política, que irrompeu nas manifestações de 2013, embora tenha dado lugar a um novo ator na política nacional, nega a política como busca de consensos dos diferentes que compõem o “nós” social, erigindo a própria opinião e interesse como representante da coletividade, transformando o oponente em inimigo. Unido ao populismo e manipulando os símbolos que representam o país, como o hino e a bandeira nacional, o discurso e os posicionamentos desse novo ator político ganham no Brasil contornos fascistas. Contrário às tendências da cultura contemporânea, que acolhem e defendem a diferença e o “politicamente correto”, tanto na linguagem quanto nas leis, esse novo ator, utilizando-se dos símbolos e dos textos religiosos de modo fundamentalista, faz a apologia dos modelos “tradicionais” de relações sociais no país, tornando “naturais” preconceitos relacionados às diferenças de sexo, raça e classe social.
A linguagem que fala ao coração mais que à mente, utilizada pelo novo ator da política nacional nos últimos anos, embora provoque adesão, é impermeável à crítica e pode ser facilmente manipulada ideologicamente e tornar-se incapaz de diálogo com quem não comunga com ela. Não por acaso os/as seguidores/as desse novo ator da política nacional tendem a veicular desinformação, a acreditar em falsas notícias, a desconfiar do que é dito pelos que não são de seu grupo, a negar a ciência. Conscientes do poder de criar adesão pelo afeto, os ideólogos e gurus desse novo ator político atribuem às teorias da conspiração supostas ameaças às instituições fundamentais da sociedade, como a família, a nação e a religião. Tudo o que supostamente atenta contra essas instituições seria, segundo eles, ideologia. É o caso das pautas “identitárias” adotadas pelas Esquerdas após o fim da “guerra fria”. Olavo de Carvalho, um dos “gurus” da extrema direita, se dizia “filósofo” e advogava para seus argumentos o atributo da verdade, incentivando seus seguidores a desmerecerem ou a atacarem os argumentos dos supostos adversários.
As mídias digitais, com sua enorme capacidade de aproximar pessoas e divulgar informações, tornaram-se, como já foi assinalado, a principal ferramenta de difusão das ideias e ideais dos novos atores da política nacional, muitos deles nativo-digitais. Cientes da tendência da cultura contemporânea, marcada mais pelo afeto do que pela razão crítica, e tendo em vista a criação de seguidores/as e adeptos/as, esses atores veiculam conteúdos que, por um lado, agudizam o sentimento de insegurança dos públicos visados, e, por outro, oferecem-lhes as certezas que os ajudam a situar-se num mundo cada vez mais complexo.
A extrema direita que governou o país soube muito
bem utilizar-se dos recursos das mídias digitais, através das famosas falas no
“cercadinho” e das lives semanais, que criavam a sensação de proximidade e
mantinham a adesão afetiva ao líder que encarnava os valores que asseguravam
seus seguidores, a saber, família, pátria, Deus.
O novo ator da política nascido das
manifestações e polarizações pós 2013 transformou o oponente em inimigo,
estimulando a violência, como mostram os ataques do 08/01/2023. Nesse sentido,
o grande desafio do cenário externo à evangelização é não ignorar esse novo
ator, transformando-o também em inimigo, mas ir ao seu encontro, descobrir suas
insatisfações, inseguranças e ressentimentos, oferecer-lhe como resposta ao que
o aflige o poder curador da linguagem da fé, ajudá-lo a ler criticamente os
recursos digitais através dos quais conhece e se relaciona com o mundo. Essa
foi a prática de Jesus, que, diante de seus oponentes, emblematicamente
figurados pelos fariseus e mestres da lei, que se consideravam os “donos” da
religião e de sua interpretação, buscou, muitas vezes de forma chocante,
através dos sinais e ensinamentos que faziam aproximar-se o reino de Deus,
atrair, convencer e converter seus contraditores.
1.3. Alguns critérios teológicos
para o discernimento do cenário externo
A polarização dos últimos anos não é privilégio do Brasil. Como foi observado no diagnóstico do cenário externo, a categoria polarização tem sido utilizada desde a década de 1980 e nos últimos anos tornou-se uma das chaves interpretativas para entender as tensões entre posições sociais, políticas, culturais e religiosas em vários países. O Papa Francisco, com a Carta encíclica Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social, oferece algumas chaves de leitura para entender a exacerbação da polarização no atual momento da história e pistas para construir um “nós” mais reconciliado e harmonioso28. Em sua leitura da realidade, o texto do Papa adota a imagem das “sombras de um mundo fechado”, no qual os “sonhos” de futuro sem guerras e mais integrado são “desfeitos aos pedaços” (FT 10-12).
28 FRANCISCO, Papa. Carta encíclica
Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Loyola,
2020.
Nesse mundo, perdeu-se a “consciência histórica” e surgem novas formas de colonização cultural, nas quais não há um “projeto” de humanidade para todos (FT 15-17), mas predomina o “descarte mundial” (FT 18-21), os “direitos humanos” deixam de ser “suficientemente universais” (FT 22-24), fazendo emergir o “conflito e o medo” (FT -28). A globalização e o progresso, continua o
Papa, perderam o “rumo comum” e fez surgir “focos de tensão” e se acumulando
“armas e munições, em uma situação mundial dominada pela incerteza, pela
decepção e pelo medo do futuro” (FT 29). O texto recorda ainda o drama causado
pela pandemia, o desrespeito da “dignidade humana” nas “fronteiras”, evocando o
drama das migrações (FT 32-41).
A cultura digital recebe uma atenção especial na leitura de Francisco. Por um lado, diz ele, “crescem as atitudes fechadas e intolerantes que, em face dos outros, nos fecham em nós mesmos; por outro, reduzem-se ou desaparecem as distâncias, a ponto de deixar de existir o direito à intimidade”, pois tudo se um “espetáculo que pode ser espiado, observado, e a vida acaba exposta a um controle constante” (FT 42). Nesse ambiente, “os movimentos de ódio e destruição”, mais que uma forma de ajuda mútua, são “meras associações contra um inimigo”, pois dissimulam e ampliam o “individualismo que se manifesta na xenofobia e no desprezo às pessoas mais fragilizadas” (FT 43). Daí emerge uma sociabilidade que favorece “a efervescência de formas insólitas de agressividade, com insultos, impropérios, difamação, afrontas verbais que chegam a destroçar a figura do outro” (FT 44), difundindo uma ideologia que se dá o direito de desrespeitar o outro. Em muitas plataformas se “favorece o encontro de pessoas que pensam da mesma maneira, dificultando a confrontação entre as diferenças” (FT 45). Um dos resultados desse tipo de comportamento é o fanatismo, que induz a “destruir os outros”, se encontrando em pessoas religiosas, mesmo nos cristãos, que “fazem parte de redes de violência verbal através da internet “e “fóruns ou espaços de intercâmbio digital” (FT 46). No segundo capítulo da Encíclica o Papa apresenta uma reflexão teológica sobre como vencer o que está na origem de toda polarização: o fechamento ao diferente, por sua condição étnica, social, de gênero, religiosa. De fato, a figura do bom samaritano é um apelo a transformar a capacidade de sair de si para ir ao encontro do outro que se encontra em uma situação de extrema vulnerabilidade, movendo-se de compaixão, exercendo a virtude da hospitalidade, que dá origem à fraternidade e à amizade social.
À luz da figura do bom samaritano Francisco vai elaborar sua reflexão, que parte da ideia de que é importante “pensar e gerar um mundo aberto”, baseado no amor universal, que promove as pessoas, na solidariedade, na fraternidade e na amizade social, que não cria muros e fronteiras. Para isso, é necessário reinventar a política, “uma política melhor, colocada a serviço do verdadeiro bem comum” (FT 154), alternativa aos populismos e liberalismos que seduzem de tantas maneiras o exercício atual da política. A superação das tensões que provocam sombras em um mundo fechado só se tornará realidade se houver uma aposta no diálogo que, como diz o Papa, é feito dos verbos “aproximar-se, expressar-se, ouvir- se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contato” (FT 198). Para isso acontecer, é preciso haver “artesãos de paz prontos a gerar, com engenhosidade e ousadia, processos de cura e de um novo encontro” (FT 225). As religiões, mais que alimentar ressentimentos e polarizações, que levam à destruição do outro e às guerras, devem oferecer uma “preciosa contribuição para a construção da fraternidade e a defesa da justiça na sociedade” (FT 271).
2. Cenário
interno
Os elementos do cenário interno
apresentados no diagnóstico serão aqui retomados enquanto podendo representar
fortalezas para a ação evangelizadora da Igreja ou são reais indicadores de
fraquezas para esta mesma ação, que requisitam, por isso mesmo, o discernimento
da Igreja, na perspectiva de decisões pastorais a serem tomadas.
2.1. Fortalezas
do cenário interno que podem potencializar a ação evangelizadora
O diagnóstico do cenário interno começou com um breve sobrevoo sobre a recepção do Concílio Vaticano II no Brasil, recordando sua criatividade e fecundidade. O Plano de Pastoral de Conjunto (PPC), então elaborado e aprovado, organizou a pastoral da Igreja ao redor de seis linhas de ação: (1) Promover uma sempre mais plena unidade visível no seio da Igreja católica; (2) Promover a ação missionária; (3) Promover a ação catequética, o aprofundamento doutrinal e a reflexão teológica; (4) Promover a ação litúrgica; (5) Promover a ação ecumênica; (6) Promover a melhor inserção do povo de Deus como fermento na construção de um mundo segundo os desígnios de Deus29. As Diretrizes da Ação Pastoral da Igreja foram durante muitos anos organizadas ao redor dessas seis linhas, depois transformadas em dimensões. As Diretrizes eram adotadas na maioria das dioceses, embora com ritmos e acentos distintos. A experiência das CEBs e das diferentes pastorais, com a teologia que delas emergiu, a saber, a teologia da libertação, foram um laboratório fecundo de muitas iniciativas originais, lidas na época pelo filósofo jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz, como passagem de uma “igreja reflexo” a uma “Igreja fonte”30, e pelo teólogo Leonardo Boff (que teve sua teologia condenada pela igreja), como “eclesiogênese”31.Sem sombra de dúvida, esse modelo de Igreja, cuja fonte é a teologia conciliar, conheceu no Brasil e nos demais países da América Latina e do Caribe uma configuração única, que alcançou sua maturidade na liderança e no magistério do Papa Francisco, que leva para o conjunto da Igreja católica muitos dos ricos aprendizados do “laboratório” eclesial que foi vivido no continente (Nicarágua seria um exemplo?). Nesse sentido, a figura profética de Igreja, que fez da opção preferencial pelos pobres sua marca distintiva, opção que se traduziu em tantas iniciativas em defesa da vida, da justiça, dos direitos humanos, das populações indígenas e afrodescendentes, dos movimentos que lutam por terra, trabalho e teto, dos grupos vulnerabilizados, da casa comum, traduzem bem a principal fortaleza da Igreja desse período, que ainda pode inspirar novas etapas da recepção do mesmo Concílio, como aparece nos constantes apelos do atual Pontífice à fidelidade criativa a esse marco divisor da igreja católica na segunda metade do século XX e sua bússola no século XXI.
29 Segundo Beozzo, a linha 1 correspondia à
Constituição Dogmática Lumen gentium, sobre a Igreja, ao Decreto Apostolicam
actuasitatem, sobre o apostolado dos leigos, ao Decreto Perfectae caritatis,
sobre a vida religiosa consagrada, ao Decreto Christus dominus, sobre o governo
das dioceses, conferências episcopais e conselhos de presbíteros e de pastoral;
a linha 2, ao Decreto Ad gentes, sobre a atividade missionária da Igreja e ao
Decreto Perfectae caritatis, sobre o empenho missionário da vida religiosa; a
linha 3, à Constituição dogmática Dei verbum, sobre a Palavra de Deus; a linha
4, à Constituição Sacrosanctum concilium, sobre a liturgia; a linha 5, ao
Decreto Unitatis redintegratio, sobre o ecumenismo; a linha 6, à Constituição
pastoral Gaudium et spes, sobre a Igreja no mundo de hoje. Alguns documentos
ficaram na sombra, como Dignitatis humanae, sobre a liberdade religiosa, ainda
não publicado quando foi aprovado o PPC; Orientalium ecclesiarum, sobre as
Igrejas orientais, por sua pouca incidência então no Brasil. Cf. BEOZZO, J. O.
A recepção do Vaticano II na Igreja do Brasil, 2015, p. 9-10.
30 VAZ, H. C. L. Igreja-reflexo vs
Igreja-fonte. Cadernos Brasileiros, n. 46 (1968), p. 17-22.
31 BOFF, L. Eclesiogênese. As comunidades eclesiais de base reinventam a Igreja. Petrópolis: Vozes, 1977; BOFF,L. A Igreja se faz povo: eclesiogênese, a Igreja que nasce da fé do pov. Petrópolis: Vozes, 1986.
Essa figura profética e “crítica” da Igreja pós-conciliar coexistiu e coexiste, como foi indicado no diagnóstico do cenário interno, com as muitas formas de expressão do catolicismo popular, que não passaram pelo processo de secularização e ofereceram as condições para a introdução das novas formas de expressão religiosa no seio da Igreja do país, como as dos movimentos espirituais e laicais surgidos na esteira do Concílio, dentre os quais se destacam os de inspiração carismática. Também esses movimentos, com seu acento na experiência subjetiva da fé e da salvação, vivida como experiência do e no Espírito Santo, apesar de serem vistos como opostos à figura profético-crítica do catolicismo que dominou a primeira recepção do Concílio na Igreja do Brasil, deram à mesma Igreja uma contribuição significativa e podem igualmente ser vistos como fortaleza, por aproximarem a espiritualidade católica da dimensão pneumatológica, presente nas tradições das Igrejas cristãs do Oriente e das Igrejas evangélicas pentecostais. Sob certo ponto de vista, a tradução “crítica-profética” e a tradução “religiosa- espiritual” do Concílio Vaticano II no Brasil retomam duas perspectivas que, segundo os estudiosos da religião, marcam a experiência religiosa: a da “proclamação” e a da “manifestação”, a primeira, representada pelo profetismo bíblico, e a segunda, presente em quase todas as experiências do transcendente determinadas pelo encontro com o “sagrado” ou o “santo”. Esse encontro, como é atestado em muitas passagens bíblicas, como a da Sarça ardente, em Ex 3,2-6, e na maioria das religiões determinadas pela ideia do sagrado, é, ao mesmo tempo, atraente e amedrontador, provocando temor e tremor. Nele se enraízam as experiências místicas de encontro do divino na natureza ou no mais íntimo de si, sendo, por isso mesmo, marcado por um excesso de sentido, mas também por ambiguidade e opacidade, necessitando ser discernido. Para isso, a tradição bíblica, através dos profetas, oferece pistas para discernir os desvios e equívocos das inúmeras manifestações do religioso. Dela vem a interdição do uso do nome de Deus e a denúncia dos cultos prestados a um deus que não se incomoda com a situação dos que são injustiçados ou esquecidos por aqueles mesmos que lhe oferecem sacrifícios. O deus da manifestação é por isso identificado com o ídolo, feito por “mãos humanas”, ou seja, manipulável segundo os interesses de quem lhe presta culto. Na mística e na teologia cristã, essas duas perspectivas foram aprofundadas pelas tradições catafática e apofática. A oposição entre as duas “traduções” do Concílio no Brasil, que pode ser aproximada das tradições místicas e teológicas que marcaram a experiência cristã ao longo dos séculos (proclamação = profética = apofática; manifestação = sagrado = catafática), são elas também uma fortaleza, pois uma pode corrigir e fecundar a outra. Com efeito, o excesso de crítica pode impedir de ver o belo, o bom e o verdadeiro que se manifesta nos símbolos, narrativas, experiências e práticas que se dizem inspiradas ou movidas por Deus, e o excesso do recurso ao divino e às suas manifestações, pode mascarar o uso ideológico e idolátrico do nome divino. Em Jesus, o Deus inominável manifestou-se na carne, assumindo sua ambiguidade constitutiva e tornando-a capax Dei. Nos últimos anos, a oposição que caracterizou grande parte do período pós-conciliar, deu lugar à irrupção de um pluralismo de princípio, que define o modo de conhecer, valorar e apreender a realidade. Já não há mais clareza sobre como definir o que é verdadeiro e o que é falso, o que é certo e o que é errado, o que é o ser e o que é o não ser. A “fluidez” das “sociedades líquidas” provoca em muitos o desejo do retorno a um fundamento, traduzido em fundamentalismo por muitos grupos religiosos. Enquanto tal, o pluralismo, como mostra Libanio em sua obra sobre os cenários de Igreja, não é negativo, mas, ao contrário, pode também se tornar uma fortaleza. Ao professar a cada domingo o Símbolo dos Apóstolos, os fiéis dizem crer na “santa Igreja católica”. Ora a catolicidade é justamente a abertura para todas as diferenças, sejam elas sociais, de gênero ou de raça, como tão bem expressou Paulo na carta em Gl 3,28. Mas, para que essa abertura se torne realidade, é necessário descobrir que a diferença não é uma ameaça, mas uma riqueza ou uma provocação para receber do outro o que não se tem e que pode ser uma bênção para si mesmo ou para o conjunto do Corpo de Cristo, que é sua Igreja. A Síntese continental do sínodo sobre a sinodalidade recorda, entre os oito temas escolhidos para enviar à Secretaria Geral do Sínodo como importantes para serem discutidos, o percurso “conciliar, sinodal e colegial” da Igreja da América Latina e do Caribe (n. 18). Partindo da evangelização dos primeiros séculos, passando pelos sínodos regionais e, a partir da criação do Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho (CELAM), das cinco Conferências do Episcopado da região, do sínodo da Amazônia, ao qual se seguiu a criação da Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA), da I Assembleia Eclesial, o texto afirma que os temas que emergiram da etapa da escuta mostram ao mesmo tempo o percurso sinodal vivido na região e os principais desafios que esse percurso aponta para a igreja do continente. O que hoje, no contexto do sínodo aberto em 2021, é chamado de sinodalidade, é também uma fortaleza da Igreja continental e, nela, da Igreja do Brasil, cujas experiências de “caminhar juntos”, podem certamente oferecer pistas para que a polarização interna à vida eclesial leve à comunhão.
2.2. Fraquezas
do cenário interno que demandam a reação da Igreja
O diagnóstico do cenário interno mostrou como a oposição entre “Igreja progressista ou libertadora” e Igreja “conservadora e tradicional”, a partir da ação de grupos “neotradicionalistas”, produziu, sobretudo nos últimos anos, uma polarização no mundo católico, “diabolizando” a tradição que nasceu da recepção criativa do Concílio Vaticano II na América Latina e no Caribe, que tem na opção preferencial pelos pobres uma de suas marcas. Esses grupos atuam, sobretudo, junto aos “fiéis comuns”, mas influenciam igualmente as Novas Comunidades de Vida, seminaristas, padres e bispos, através dos recursos da mídia digital e de canais de TV de inspiração católica, contando com o apoio de influencers que se dizem “católicos”, mas que se mostram resistentes ao magistério do Papa Francisco, às orientações da CNBB, às suas Diretrizes e iniciativas. Essa polarização, que tensionou as relações no interior da Igreja nos últimos anos, dificultando a comunhão entre suas diferentes tendências teológico-pastorais, coexiste com expressões mais veladas de resistência às orientações do Vaticano II, que conhece, com o Papa Francisco, uma nova etapa de sua recepção. Alguns intérpretes identificam essa resistência como “cisma silencioso” na Igreja, presente no seio do episcopado, entre muitos “padres novos” e, sobretudo, entre seminaristas e jovens religiosos/as em formação, mas também em meio a lideranças juvenis e em muitos movimentos eclesiais identificados pelas análises pastorais como “conservadores” ou “tradicionais”.
Uma expressão de parte da polarização é a
“manutenção” das coisas como estão, impedindo a Igreja de pôr-se em saída
missionária ou bloqueando, por inércia, desânimo, incapacidade e outros
interesses, as iniciativas propostas por Francisco. Com efeito, após a
Exortação apostólica Evangelii gaudium, muitas coisas deveriam ter sido
mudadas, transformadas e adaptadas na ação pastoral da Igreja, na formação dos
seminaristas e do corpo laical, na prática dos clérigos, mas isso se deu de
forma mitigada. A maioria das paróquias continuam do mesmo jeito, com uma
pastoral de manutenção. Algo parecido acontece no processo sinodal, do qual
participou a maioria das dioceses, mas que não tem se traduzido em mudanças
sinodais significativas.
A Igreja do Brasil foi, sem dúvida alguma, inovadora na recepção do Concílio, o que leva algumas de suas lideranças a considerarem que ela já vive o que tem sido pedido pelo Papa Francisco. Mas, se se olha mais de perto, as resistências e certos “boicotes” são visíveis. É o caso, por exemplo: do ostracismo ao qual são relegados os textos do Papa relacionados à questão social, como Laudato si e Fratelli tutti; das orientações práticas das dioceses com relação ao capítulo VIII da Amoris Laetitia; da surpreendente ausência de políticas de combate aos abusos de menores, de pessoas vulneráveis, de consciência e de poder; da lentidão em aplicar as orientações da Traditiones custodes e Desiderio desideravi; da pouca discussão do problema do clericalismo, do papel da mulher nas instâncias eclesiais de decisão, acentuadas na I Assembleia Eclesial e na escuta sinodal. As resistências, “veladas” e explícitas, ao magistério do Papa Francisco se encontram também em outros segmentos da Igreja, conforme observa Agenor Brighenti na conclusão da obra organizada por ele. Trata-se, diz ele, de uma resistência de inserir-se no mundo enquanto Igreja, “em atitude de diálogo e serviço. Daí o escapismo do emocionalismo ou a busca de segurança em um passado sem retorno, em fundamentalismos, tradicionalismos e devocionismos, em uma postura apologética frente ao mundo”. Essas atitudes redundam em retração da presença e atuação eclesiais na sociedade, no “encolhimento da pastoral social”, no “refúgio em uma Igreja autorreferencial, centrada no padre e na paróquia”. Essa postura faz com que a opção preferencial pelos pobres se transforme em assistencialismos, “fazendo dos excluídos objetos de caridade e não sujeitos de uma sociedade inclusiva para todos”. Disso deriva a “volta de uma espiritualidade e eclesiologias pré-conciliares, acompanhadas do clericalismo (DAp 100b), fenômeno ao qual o Papa Francisco tem se oposto duramente”32.
Terceira Parte – Prognóstico
O prognóstico aqui proposto, mais que
soluções mágicas, adota o caminho proposto pelo Papa Francisco para enfrentar a
polarização que tem afetado não só a Igreja do Brasil, mas também a de outros
países: o da sinodalidade. Após breves considerações sobre o significado desse
caminho, recolhendo os aprendizados já adquiridos desde sua abertura, serão
indicadas algumas propostas concretas para o discernimento do episcopado.
1. “O
caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do
terceiro milénio”
Desde o início de seu ministério, o Papa
Francisco, antes da realização dos sínodos que convocou, inovou com relação aos
demais sínodos, ao propor uma etapa de escuta aos vários segmentos do “povo
fiel de Deus”, através de um questionário sobre o tema do sínodo. Foi assim com
o sínodo da família e o sínodo da juventude. No sínodo para a Amazônia, 80 mil
pessoas participaram do processo de escuta. Essas experiências levaram o
pontífice a realizar
32 BRIBHENTI, A. (Org.). O novo rosto do
catolicismo brasileiro, op. cit., p. 322.
Ao iniciar esse caminho sinodal, dizia
então Francisco, “somos chamados a tornar-nos peritos na arte do encontro;
peritos, não na organização de eventos ou na proposta de uma
33 FRANCISCO, Papa. Homilia da missa de
abertura do sínodo sobre a sinodalidade. Disponível:
https://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2021/documents/20211010-omelia-sinodo-
vescovi.html, Acesso: 10/04/2023.
34 FRANCISCO, Papa. Homilia da missa de
abertura do sínodo sobre a sinodalidade.
O último verbo, discernir, mostra que o “encontro e a escuta”, vividos no processo sinodal, “não são um fim em si mesmo”, mas um “caminho de discernimento espiritual, de discernimento eclesial”, que se faz na “adoração, na oração, no contato com a Palavra de Deus”. A Palavra “guia o sínodo, para que não seja uma “convenção” eclesial, um convênio de estudos ou um congresso político, para que não seja um parlamento, mas um evento de graça, um processo de cura conduzido pelo Espírito”35. Os três verbos utilizados pelo Papa na homilia da missa de abertura do sínodo sobre a capacidade de encontrar e escutar o outro em suas múltiplas diferenças, inviabilizando qualquer discernimento sobre os caminhos a seguir na missão.Nesse sentido, tem razão o Papa Francisco quando vê na sinodalidade o caminho da Igreja no século XXI. De fato, em sociedades cada vez mais fragmentadas e plurais, o risco das oposições que derivam em polarizações, é formar o que a própria linguagem do mundo digital nomeou de “bolhas”, que não se comunicam entre si e criam mundos paralelos, o contrário Caminhar junto com quem não quer, ou com quem pensa deter a plenitude da verdade. Com efeito, as oposições que são constitutivas de toda sociedade humana, perpassando também a Igreja, podem ser tensionadas de tal modo que impede toda escuta.
35 FRANCISCO, Papa. Homilia da missa de
abertura do sínodo sobre a sinodalidade.
2. Dinâmicas
eclesiais e pastorais para enfrentar a polarização na Igreja
O autor da carta aos Efésios afirma que “Cristo é a nossa paz. De ambos os povos fez um só e, derrubando o muro de separação, em seu próprio corpo desfez toda a inimizade” (Ef 2,14). A reflexão teológica que subjaz à Carta Encíclica Fratelli tutti e ao processo sinodal iniciado em 2021, aponta o caminho que a Igreja deve seguir para colaborar nos processos necessários de reconciliação e paz na sociedade e no seio da própria Igreja. Os verbos propostos na Fratelli tutti, aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contato, e os verbos propostos na homilia da missa de abertura do sínodo sobre a sinodalidade, encontrar, escutar discernir, apontam a direção a ser seguida. O acompanhamento do que é veiculado nas mídias religiosas tem sido feito de forma mais tímida, em instituições dedicadas à pesquisa ou em organizações não governamentais, como a da Casa Galileia, que elabora um relatório semanal denominado “Cristãos nas redes”. A CNBB deveria pensar seriamente na criação de algum tipo de observatório ou de instância que poderia ajudar os fiéis católicos a discernirem o que é veiculado nas supostas “mídias católicas”. Nos idos da década de 1980 falava-se de “leitura crítica dos meios de comunicação”. Seria necessário também avançar na criação de um sentir comum ao redor dos grandes eixos da teologia do Concílio Vaticano II, a serem assegurados e difundidos nos canais de TV que se dizem de inspiração católica e nos Influencers que dizem falar em nome da Igreja.
PARA REFLEXÃO:
-Como a escuta sinodal desencadeou-se na condução da pastoral em minha diocese?
-As dinâmicas propostas em todas essas fases estão criando processos novos de encontro, escuta e discernimento?
-Poderão ajudar na criação
de processos de reconciliação e paz?
Fonte:https://drive.google.com/file/d/1GF6FJl5lUPQsM2_JKGhoyUsTccTQB0n5/view?fbclid=PAAaZ-MSB3fObaxr0IX76Wa232oM_PR_OzeWXx3T8PySUOo3JrUvSks2u7dTA
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"Parece surreal, mas a CNBB quer combater a polarização com um documento extremamente polarizado, ou seja, favorável ao esquerdismo, demonizando a direita, porém, inocentando e eximindo a esquerda de qualquer falha ou culpa, enfim, santificando e canonizando todos seus membros, inclusive seu guru-mor, o molusco: Lula" ...Diagnóstico perfeito desse documento-base elaborado pela banda podre(comunista) da CNBB
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