(Papa Leão XIII - Pontificado de:1878 -1903 = 25 anos de pastoreio) |
Estudiosos de todo o
mundo se reuniram em Roma para discutir sobre a Rerum Novarum do Papa Leão
XIII, no 125º aniversário da primeira encíclica social moderna. Conhecida por
sua forte oposição ao socialismo, pela defesa da propriedade privada e pela
afirmação da legitimidade dos sindicatos, a Rerum Novarum, concordaram os
palestrantes, representa também o momento da doutrina social católica moderna.O
presidente e fundador do Instituto Acton, pe. Sirico, conversou com ZENIT sobre
a atualidade da encíclica, especialmente no que diz respeito à liberdade
religiosa, hoje cada vez mais em risco.
Nos
Estados Unidos, no final do século XX, lamentou pe. Sirico, manifestou-se um
clima cada vez mais hostil a uma liberdade religiosa genuína e robusta. Narrando
só alguns fatos o sacerdote mostrou como a liberdade econômica da Igreja (uma
das dimensões é o direito de dispor livremente da propriedade) foi atacada e,
neste processo, a sua verdadeira missão e a sua verdadeira essência foram
ameaçadas.
1)-“No Arizona, um pastor protestante
foi preso por manter seus estudos bíblicos na própria casa, com a
acusação das autoridades de ter violado as leis estaduais que proíbem a
realização de reuniões regulares em casas particulares”.
2)-“Na
Pensilvânia,
Washington DC e muitos outros lugares, algumas dioceses católicas com problemas
financeiros foram impedidas de gerir a responsabilidade de suas propriedades,
por causa de adversários que utilizam códigos históricos de preservação para
impedir a alteração, a venda ou a demolição das estruturas eclesiásticas”.
3)-“Em Massachusetts, ILLinois e em outras jurisdições, as agências
católicas foram obrigadas a abandonar os seus serviços adotivos, por causa da
obrigação de entregar crianças também a casais do mesmo sexo (contrariando o magistério da Igreja). Esses
requisitos têm força de lei, porque o Estado controla as licenças de adoção
para as agências”.
O que poucos Católicos e Cristãos em geral sabem, ao defenderem as idéias progressistas de Obama, é que a tal reforma sanitária deste ex presidente causou propositalmente, uma série de ameaças para a liberdade
religiosa. Atividades comerciais de propriedade de cristãos, colégios
religiosos e outras instituições humanitárias, estariam a desafiar o seu mandato.
Fonte: Zenit
CARTA ENCÍCLICA «RERUM
NOVARUM» DO SUMO PONTÍFICE PAPA LEÃO XIII - A TODOS OS NOSSOS VENERÁVEIS
IRMÃOS, OS PATRIARCAS, PRIMAZES, ARCEBISPOS E BISPOS DO ORBE CATÓLICO, EM GRAÇA
E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA SOBRE A CONDIÇÃO DOS OPERÁRIOS
INTRODUÇÃO
1. A "sêde de inovações" (conforme II Tim 4,3),
que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa agitação febril,
devia, tarde ou cedo, passar das regiões da política para a esfera vizinha da
economia social. Efetivamente, os progressos incessantes da indústria, os novos
caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os operários
e os patrões, a influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da
indigência da multidão, a opinião enfim mais avantajada que os operários formam
de si mesmos e a sua união mais compacta, tudo isto, sem falar da corrupção dos
costumes, deu em resultado final um temível conflito. Por toda a parte,
os espíritos estão apreensivos e numa ansiedade expectante, o que por si só
basta para mostrar quantos e quão graves interesses estão em jogo. Esta
situação preocupa e põe ao mesmo tempo em exercício o gênio dos doutos, a
prudência dos sábios, as deliberações das reuniões populares, a perspicácia dos
legisladores e os conselhos dos governantes, e não há, presentemente, outra
causa que impressione com tanta veemência o espírito humano.É por isto que,
Veneráveis Irmãos, o que em outras ocasiões temos feito, para bem da Igreja e
da salvação comum dos homens, em Nossas Encíclicas sobre a soberania política,
a liberdade humana, a constituição cristã dos Estados [*] e outros assuntos
análogos, refutando, segundo Nos pareceu oportuno, as opiniões errôneas e
falazes, o julgamos dever repetir hoje e pelos mesmos motivos, falando-vos da
Condição dos Operários. Já temos tocado esta matéria muitas vezes, quando se nos
tem proporcionado o ensejo; mas a consciência do Nosso cargo Apostólico
impõe-Nos como um dever tratá-la nesta Encíclica mais explicitamente e com
maior desenvolvimento, a fim de pôr em evidência os princípios duma solução,
conforme à justiça e à equidade. O problema nem é fácil de resolver, nem
isento de perigos. E difícil, efetivamente, precisar com exatidão os direitos e
os deveres que devem ao mesmo tempo reger a riqueza e o proletariado, o capital
e o trabalho. Por outro lado, o problema não é sem perigos, porque não poucas
vezes homens turbulentos e astuciosos procuram desvirtuar-lhe o sentido e
aproveitam-no para excitar as multidões e fomentar desordens.
Causas do conflito
2. Em todo o caso,
estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário, com medidas
prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo
a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria
imerecida. O século passado destruiu, sem as substituir por coisa alguma, as
corporações antigas, que eram para eles uma proteção; os princípios e o
sentimento religioso desapareceram das leis e das instituições públicas, e
assim, pouco a pouco, os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto,
com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça
duma concorrência desenfreada (política e ideológica).A usura voraz veio agravar ainda mais o
mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser
praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável
ambição. A tudo isto deve acrescentar-se o monopólio do trabalho e dos papéis
de crédito, que se tornaram o quinhão dum pequeno número de ricos e de
opulentos, que impõem assim um jugo quase servil à imensa multidão dos
proletários.
A solução socialista
3. Os Socialistas, para
curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem, e pretendem
que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens dum
indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve
voltar para - os Municípios ou para o Estado. Mediante esta
transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das
comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar
um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante
teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se
fosse posta em prática. Pelo
contrário, é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários,
viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício
social.
A propriedade particular
4. De facto, como é
fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce
uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem
que possuirá como próprio e como pertencendo-lhe; porque, se põe à disposição de
outrem as suas forças e a sua indústria, não é, evidentemente, por outro motivo
senão para conseguir com que possa prover à sua sustentação e às necessidades
da vida, e espera do seu trabalho, não só o direito ao salário, mas ainda um
direito estrito e rigoroso para usar dele como entender. Portanto, se,
reduzindo as suas despesas, chegou a fazer algumas economias, e se, para
assegurar a sua conservação, as emprega, por exemplo, num campo, torna-se
evidente que esse campo não é outra coisa senão o salário transformado: o
terreno assim adquirido será propriedade do artista com o mesmo título que a
remuneração do seu trabalho. Mas, quem não vê que é precisamente nisso que
consiste o direito da propriedade mobiliária e imobiliária? Assim,
esta conversão da propriedade particular em propriedade colectiva, tão
preconizada pelo socialismo, não teria outro efeito senão tornar a situação dos
operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e
roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda a possibilidade de
engrandecerem o seu património e melhorarem a sua situação.
5. Mas, e isto parece ainda mais grave, o remédio proposto está em oposição flagrante com a justiça, porque a propriedade particular e pessoal é, para o homem, de direito natural. Há, efetivamente, sob este ponto de vista, uma grandíssima diferença entre o homem e os animais destituídos de razão. Estes não se governam a si mesmos; são dirigidos e governados pela natureza, mediante um duplo instinto, que, por um lado, conserva a sua atividade sempre viva e lhes desenvolve as forças; por outro, provoca e circunscreve ao mesmo tempo cada um dos seus movimentos. O primeiro instinto leva-os à conservação e à defesa da sua própria vida; o segundo, à propagação da espécie; e este duplo resultado obtêm-no facilmente pelo uso das coisas presentes e postas ao seu alcance. Por outro lado, seriam incapazes de transpor esses limites, porque apenas são movidos pelos sentidos e por cada objecto particular que os sentidos percebem. Muito diferente é a natureza humana. Primeiramente, no homem reside, em sua perfeição, toda a virtude da natureza sensitiva, e desde logo lhe pertence, não menos que a esta, gozar dos objetos físicos e corpóreos. Mas a vida sensitiva mesmo que possuída em toda a sua plenitude, não só não abraça toda a natureza humana, mas é-lhe muito inferior e própria para lhe obedecer e ser-lhe sujeita. O que em nós se avantaja, o que nos faz homens, nos distingue essencialmente do animal, é a razão ou a inteligência, e em virtude desta prerrogativa deve reconhecer-se ao homem não só a faculdade geral de usar das coisas exteriores, mas ainda o direito estável e perpétuo de as possuir, tanto as que se consomem pelo uso, como as que permanecem depois de nos terem servido.
Uso comum dos bens criados e propriedade particular deles
Uma consideração mais
profunda da natureza humana vai fazer sobressair melhor ainda esta verdade. O
homem abrange pela sua inteligência uma infinidade de objetos, e às coisas
presentes acrescenta e prende as coisas futuras; além disso, é senhor das suas
ações; também sob a direção da lei eterna e sob o governo universal da
Providência divina, ele é, de algum modo, para si a sua lei e a sua
providência. É por isso que tem o direito de escolher as coisas que julgar mais
aptas, não só para prover ao presente, mas ainda ao futuro. De onde se segue que deve ter sob o seu domínio não só os
produtos da terra, mas ainda a própria terra, que, pela sua fecundidade, ele vê
estar destinada a ser a sua fornecedora no futuro. As necessidades do homem repetem-se perpetuamente:
satisfeitas hoje, renascem amanhã com novas exigências. Foi preciso, portanto,
para que ele pudesse realizar o seu direito em todo o tempo, que a natureza
pusesse à sua disposição um elemento estável e permanente, capaz de lhe
fornecer perpetuamente os meios. Ora, esse elemento só podia ser a terra, com
os seus recursos sempre fecundos. E não se apele para a providência do Estado,
porque o Estado é posterior ao homem, e antes que ele pudesse formar-se, já o
homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua
existência. Não se oponha também à legitimidade da propriedade particular o facto
de que Deus concedeu a terra a todo o género humano para a gozar, porque Deus
não a concedeu aos homens para que a dominassem confusamente todos juntos. Tal
não é o sentido dessa verdade. Ela significa, unicamente, que Deus não
assinou uma parte a nenhum homem em particular, mas quis deixar a limitação das
propriedades à indústria humana e às instituições dos povos. Aliás, posto que
dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de servir à utilidade
comum de todos, atendendo a que não há ninguém entre os mortais que não se
alimente do produto dos campos. Quem os não tem, supre-os pelo trabalho, de maneira
que se pode afirmar, com toda a verdade, que o trabalho é o meio universal de
prover às necessidades da vida, quer ele se exerça num terreno próprio, quer em
alguma parte lucrativa cuja remuneração, sai apenas dos produtos múltiplos da
terra, com os quais ela se comuta. De tudo isto resulta, mais uma vez, que a
propriedade particular é plenamente conforme à natureza. A terra, sem dúvida,
fornece ao homem com abundância as coisas necessárias para a conservação da sua
vida e ainda para o seu aperfeiçoamento, mas não poderia fornecê-las sem a
cultura e sem os cuidados do homem. Ora, que faz o homem, consumindo os
recursos do seu espírito e as forças do seu corpo em procurar esses bens da
natureza? Aplica, para assim dizer, a si mesmo a porção da natureza corpórea
que cultiva e deixa nela como que um certo cunho da sua pessoa, a ponto que,
com toda a justiça, esse bem será possuído de futuro como seu, e não será
lícito a ninguém violar o seu direito de qualquer forma que seja.
A propriedade sancionada pelas leis humanas e divinas
A força destes
raciocínios é duma evidência tal, que chegamos a admirar como certos
partidários de velhas opiniões podem ainda contradizê-los, concedendo sem
dúvida ao homem particular o uso do solo e os frutos dos campos, mas
recusando-lhe o direito de possuir, na qualidade de proprietário, esse solo em
que edificou, a porção da terra que cultivou. Não vêem, pois, que despojam
assim esse homem do fruto do seu trabalho; porque, afinal, esse campo amanhado
com arte pela mão do cultivador, mudou completamente de natureza: era selvagem,
ei-lo arroteado; de infecundo, tornou-se fértil; o que o tornou melhor, está
inerente ao solo e confunde-se de tal forma com ele, que em grande parte seria
impossível separá-lo. Suportaria a justiça
que um estranho viesse então a atribuir-se esta terra banhada pelo suor de quem
a cultivou? Da mesma forma que o efeito segue a causa, assim é justo que o
fruto do trabalho pertença ao trabalhador.É, pois, com razão, que a
universalidade do gênero humano, sem se deixar mover pelas opiniões contrárias
dum pequeno grupo, reconhece, considerando atentamente a natureza, que nas suas
leis reside o primeiro fundamento da repartição dos bens e das propriedades
particulares; foi com razão que o costume de todos os séculos sancionou uma
situação tão conforme à natureza do homem e à vida tranquila e pacífica das
sociedades. Por seu lado, as leis civis, que recebem o seu valor [1], quando
são justas, da lei natural, confirmam esse mesmo direito e protegem-no pela
força. Finalmente, a autoridade das leis divinas vem pôr-lhe o seu selo,
proibindo, sob perla gravíssima, até mesmo o desejo do que pertence aos outros:
«Não desejarás a mulher do teu próximo, nem a sua casa, nem o seu campo, nem o
seu boi, nem a sua serva, nem o seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença»
[2] .
A família e o Estado
(Gênesis 2,24:"Por esse motivo é que o homem deixa a guarda de seu pai e sua mãe, para se unir à sua mulher...") |
6. Entretanto, esses
direitos, que são inatos a cada homem considerado isoladamente, apresentam-se
mais rigorosos ainda, quando se consideram nas suas relações e na sua conexão
com os deveres da vida doméstica. Ninguém põe em dúvida que, na escolha dum género
de vida, seja lícito cada um seguir o conselho de Jesus Cristo sobre a
virgindade, ou contrair um laço conjugal. Nenhuma lei humana poderia apagar de
qualquer forma o direito natural e primordial de todo o homem ao casamento, nem
circunscrever o fim principal para que ele foi estabelecido desde a origem:
«Crescei e multiplicai-vos»[3]. Eis, pois, a família, isto é, a
sociedade doméstica, sociedade muito pequena certamente, mas real e anterior a
toda a sociedade civil, à qual, desde logo, será forçosamente necessário
atribuir certos direitos e certos deveres absolutamente independentes do
Estado. Assim, este direito de propriedade que Nós, em nome da natureza,
reivindicamos para o indivíduo, é preciso agora transferi-lo para o homem
constituído chefe de família. Isto não basta: passando para a sociedade
doméstica, este direito adquire aí tanto maior força quanto mais extensão lá
recebe a pessoa humana.A natureza não impõe
somente ao pai de família o dever sagrado de alimentar e sustentar seus filhos;
vai mais longe. Como os filhos reflectem a fisionomia de seu pai e são uma
espécie de prolongamento da sua pessoa, a natureza inspira-lhe o cuidado do seu
futuro e a criação dum património que os ajude a defender-se, na perigosa
jornada da vida, contra todas as surpresas da má fortuna. Mas, esse património poderá ele
criá-lo sem a aquisição e a posse de bens permanentes e produtivos que possam
transmitir-lhes por via de herança? Assim como a sociedade civil, a
família, conforme atrás dissemos, é uma sociedade propriamente dita, com a sua
autoridade e o seu governo paterno, é por isso que sempre indubitavelmente na
esfera que lhe determina o seu fim imediato, ela goza, para a escolha e uso de
tudo o que exigem a sua conservação e o exercício duma justa independência, de
direitos pelo menos iguais aos da sociedade civil. Pelo menos iguais, dizemos
Nós, porque a sociedade doméstica tem sobre a sociedade civil uma prioridade
lógica e uma prioridade real, de que participam necessariamente os seus
direitos e os seus deveres. E se os indivíduos e as famílias, entrando
na sociedade, nela achassem, em vez de apoio, um obstáculo, em vez de proteção,
uma diminuição dos seus direitos, dentro em pouco a sociedade seria mais para
se evitar do que para se procurar.Querer, pois, que o
poder civil invada arbitrariamente o santuário da família, é um erro grave e
funesto. Certamente, se existe algures uma família que se encontre numa
situação desesperada, e que faça esforços vãos para sair dela, é justo que, em
tais extremos, o poder público venha em seu auxílio, porque cada família é um
membro da sociedade. Da mesma forma, se existe um lar doméstico que seja teatro
de graves violações dos direitos mútuos, que o poder público intervenha para
restituir a cada um os seus direitos. Não é isto usurpar as atribuições dos
cidadãos, mas fortalecer os seus direitos, protegê-los e defendê-los como
convém. Todavia, a acção daqueles que presidem ao governo público não deve ir
mais além; a natureza proíbe-lhes ultrapassar esses limites. A autoridade
paterna não pode ser abolida, nem absorvida pelo Estado, porque ela tem uma
origem comum com a vida humana. «Os filhos são alguma coisa de seu pai»; são de
certa forma uma extensão da sua pessoa, e, para falar com justiça, não é
imediatamente por si que eles se agregam e se incorporam na sociedade civil,
mas por intermédio da sociedade doméstica em que nasceram. Porque os «filhos
são naturalmente alguma coisa de seu pai... devem ficar sob a tutela dos pais
até que tenham adquirido o livre arbítrio» [4]. Assim, substituindo a providência
paterna pela providência do Estado, os socialistas vão contra a justiça natural
e quebram os laços da família.
O comunismo, princípio de empobrecimento
7. Mas, além da
injustiça do seu sistema, vêem-se bem todas as suas funestas consequências, a
perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável
servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os
descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a habilidade privados dos
seus estímulos, e, como consequência necessária, as riquezas estancadas na sua
fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade na nudez, na
indigência e na miséria. Por tudo o que Nós acabamos de dizer, se compreende
que a teoria socialista da propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se
como prejudicial àqueles membros a que se quer socorrer, contrária aos direitos
naturais dos indivíduos, como desnaturando as funções do Estado e perturbando a
tranquilidade pública. Fique, pois, bem assente que o primeiro
fundamento a estabelecer por todos aqueles que querem sinceramente o bem do
povo é a inviolabilidade da propriedade particular. Expliquemos agora onde
convém procurar o remédio tão desejado.
A Igreja e a questão social
8. É com toda a
confiança que Nós abordamos este assunto, e em toda a plenitude do Nosso
direito; porque a questão de que se trata é de tal natureza, que, se não
apelamos para a religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma
solução eficaz. Ora, como é principalmente a Nós que estão confiadas a salvaguarda da
religião e a dispensação do que é do domínio da Igreja, calarmo-nos seria aos
olhos de todos trair o Nosso dever. Certamente uma questão desta
gravidade demanda ainda de outros a sua parte de atividade e de esforços; isto
é, dos governantes, dos senhores e dos ricos, e dos próprios operários, de cuja
sorte se trata. Mas, o que Nós afirmamos sem hesitação, é a inanidade da sua ação
fora da Igreja. E a Igreja, efetivamente, que haure no Evangelho doutrinas
capazes de pôr termo ao conflito ou ao menos de o suavizar, expurgando-o de
tudo o que ele tenha de severo e áspero; a Igreja, que se não contenta em esclarecer
o espírito de seus ensinos, mas também se esforça em regular, de harmonia com
eles a vida e os costumes de cada um; a Igreja, que, por uma multidão de
instituições eminentemente benéficas, tende a melhorar a sorte das classes
pobres; a Igreja, que quer e deseja ardentemente que todas as classes
empreguem em comum as suas luzes e as suas forças para dar à questão operária a
melhor solução possível; a Igreja, enfim, que julga que as leis e a autoridade
pública devem levar a esta solução, sem dúvida com medida e com prudência, a
sua parte do consenso.
Não luta, mas "Concórdia das Classes"
9. O primeiro princípio
a pôr em evidência é que o homem deve aceitar com paciência a sua condição: é
impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível. É, sem
dúvida, isto o que desejam os Socialistas; mas contra a natureza todos os
esforços são vãos. Foi ela, realmente, que estabeleceu entre os
homens diferenças tão multíplices como profundas; diferenças de inteligência,
de talento, de habilidade, de saúde, de força; diferenças necessárias, de onde
nasce espontaneamente a desigualdade das condições. Esta desigualdade, por outro lado, reverte em
proveito de todos, tanto da sociedade como dos indivíduos; porque a vida social
requer um organismo muito variado e funções muito diversas, e o que leva
precisamente os homens a partilharem estas funções é, principalmente, a
diferença das suas respectivas condições. Pelo que diz respeito ao trabalho em
particular, o homem, mesmo no estado de inocência, não era destinado a viver na
ociosidade, mas, ao que a vontade teria abraçado livremente como exercício
agradável, a necessidade lhe acrescentou, depois do pecado, o sentimento da dor
e o impôs como uma expiação: «A terra será maldita por tua causa; é pelo
trabalho que tirarás com que alimentar-te todos os dias da vida» [5]. O mesmo
se dá com todas as outras calamidades que caíram sobre o homem: neste mundo
estas calamidades não terão fim nem tréguas, porque os funestos frutos do
pecado são amargos, acres, acerbos, e acompanham necessariamente o homem até ao
derradeiro suspiro. Sim, a dor e o sofrimento são o apanágio da humanidade, e
os homens poderão ensaiar tudo, tudo tentar para os banir; mas não o
conseguirão nunca, por mais recursos que empreguem e por maiores forças que
para isso desenvolvam. Se há quem, atribuindo-se o poder fazê-lo,
prometa ao pobre uma vida isenta de sofrimentos e de trabalhos, toda de repouso
e de perpétuos gozos, certamente engana o povo e lhe prepara laços, onde se
ocultam, para o futuro, calamidades mais terríveis que as do presente.
O melhor partido consiste em ver as coisas tais quais são, e, como dissemos, em
procurar um remédio que possa aliviar os nossos males.O erro capital na
questão presente é crer que as duas classes são inimigas natas uma da outra,
como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem
mutuamente num duelo obstinado. Isto é uma aberração tal, que é necessário
colocar a verdade numa doutrina contrariamente oposta, porque, assim como no
corpo humano os membros, apesar da sua diversidade, se adaptam maravilhosamente
uns aos outros, de modo que formam um todo exatamente proporcionado e que se
poderá chamar simétrico, assim também, na sociedade, as duas classes estão
destinadas pela natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se
mutuamente em perfeito equilíbrio. Elas têm imperiosa
necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem
capital. A concórdia traz consigo
a ordem e a beleza; ao contrário, dum conflito perpétuo só podem resultar
confusão e lutas selvagens. Ora, para dirimir este conflito e cortar o mal na
sua raiz, as Instituições possuem uma virtude admirável e múltipla. E, primeiramente,
toda a economia das verdades religiosas, de que a Igreja é guarda e intérprete,
é de natureza a aproximar e reconciliar os ricos e os pobres, lembrando às duas
classes os seus deveres mútuos e, primeiro que todos os outros, os que derivam
da justiça.
Obrigações dos operários e dos patrões
10. Entre estes
deveres, eis os que dizem respeito ao pobre e ao operário: deve fornecer
integral e fielmente todo o trabalho a que se comprometeu por contrato livre e
conforme à equidade; não deve lesar o seu patrão, nem nos seus bens, nem na sua
pessoa; as suas reivindicações devem ser isentas de violências e nunca
revestirem a forma de sedições; deve fugir dos homens perversos que, nos seus
discursos artificiosos, lhe sugerem esperanças exageradas e lhe fazem grandes
promessas, as quais só conduzem a estéreis pesares e à ruína das fortunas. Quanto
aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas
respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do Cristão. O trabalho
do corpo, pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um
objeto de vergonha, honra o homem, porque lhe fornece um nobre meio de
sustentar a sua vida. O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens
como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor
dos seus braços. O cristianismo, além disso, prescreve que se tenham em
consideração os interesses espirituais do operário e o bem da sua alma. Aos
patrões compete velar para que a isto seja dada plena satisfação, para que o operário
não seja entregue à sedução e às solicitações corruptoras, que nada venha
enfraquecer o espírito de família nem os hábitos de economia. Proíbe também aos
patrões que imponham aos seus subordinados um trabalho superior às suas forças
ou em desarmonia com a sua idade ou o seu sexo.Mas, entre os deveres
principais do patrão, é necessário colocar, em primeiro lugar, o de dar a cada
um o salário que convém. Certamente, para fixar a justa medida do
salário, há numerosos pontos de vista a considerar. Duma maneira geral,
recordem-se o rico e o patrão de que explorar a pobreza e a miséria e especular
com a indigência, são coisas igualmente reprovadas pelas leis divinas e
humanas; que cometeria um crime de clamar vingança ao céu quem defraudasse a
qualquer no preço dos seus labores: «Eis que o salário, que tendes extorquido
por fraude aos vossos operários, clama contra vós: e o seu clamor subiu até aos
ouvidos do Deus dos Exércitos»[6]. Enfim, os ricos devem precaver-se
religiosamente de todo o ato violento, toda a fraude, toda a manobra usurária
que seja de natureza a atentar contra a economia do pobre, e isto mais ainda,
porque este é menos apto para defender-se, e porque os seus haveres, por serem
de mínima importância, revestem um carácter mais sagrado. A obediência
a estas leis — pergunta-mos Nós — não bastaria, só de per si, para fazer cessar
todo o antagonismo e suprimir-lhe as causas?
11. Todavia a Igreja,
instruída e dirigida por Jesus Cristo, eleva o seu olhar ainda para mais alto;
propõe um conjunto de preceitos mais completo, porque ambiciona estreitar a
união das duas classes até as unir uma à outra por laços de verdadeira amizade.
Ninguém
pode ter uma verdadeira compreensão da vida mortal, nem estimá-la no seu devido
valor, se não se eleva à consideração da outra vida que é imortal. Suprimi
esta, e imediatamente toda a forma e toda a verdadeira noção de honestidade
desaparecerá; mais ainda: todo o universo se tornará um impenetrável mistério. Quando
tivermos abandonado esta vida, só então começaremos a viver: esta verdade, que
a mesma natureza nos ensina, é um dogma cristão sobre o qual assenta, como
sobre o seu primeiro fundamento, toda a economia da religião. Não,
Deus não nos fez para estas coisas frágeis e caducas, mas para as coisas
celestes e eternas; não nos deu esta terra como nossa morada fixa, mas como
lugar de exílio. Que abundeis em riquezas ou outros bens, chamados bens
de fortuna, ou que estejais privados deles, isto nada importa à eterna
beatitude: o uso que fizerdes deles é o que interessa.Pela Sua superabundante
redenção, Jesus Cristo não suprimiu as aflições que formam quase toda a trama
da vida mortal; fez delas estímulos de virtude e fontes de mérito, de sorte que
não há homem que possa pretender as recompensas eternas, se não caminhar sobre
os traços sanguinolentos de Jesus Cristo: «Se sofremos com Ele, com Ele
reinaremos»[7]. Por outra parte, escolhendo Ele mesmo a cruz e os tormentos,
minorou-lhes singularmente o peso e a amargura, e, a fim de nos tornar ainda
mais suportável o sofrimento, ao exemplo acrescentou a Sua graça e a promessa
duma recompensa sem fim: «Porque o momento tão curto e tão ligeiro das
aflições, que sofremos nesta vida, produz em nós o peso eterno duma glória
soberana incomparável» [8]. Assim, os afortunados deste mundo são
advertidos de que as riquezas não os isentam da dor; que elas não são de
nenhuma utilidade para a vida eterna, mas antes um obstáculo[9]; que eles devem
tremer diante das ameaças severas que Jesus Cristo profere contra os ricos
[10]; que, enfim, virá um dia em que deverão prestar a Deus, seu juiz,
rigorosíssimas contas do uso que hajam feito da sua fortuna.
Posse e uso das riquezas
12. Sobre o uso das
riquezas, já a pura filosofia pôde delinear alguns ensinamentos de suma
excelência e extrema importância; mas só a Igreja no-los pode dar na sua
perfeição, e fazê-los descer do conhecimento à prática. O fundamento dessa
doutrina está na distinção entre a justa posse das riquezas e o seu legítimo
uso. A propriedade particular, já o dissemos mais acima, é de direito natural
para o homem: o exercício deste direito é coisa não só permitida, sobretudo a
quem vive em sociedade, mas ainda absolutamente necessária[11]. Agora, se se
pergunta em que é necessário fazer consistir o uso dos bens, a Igreja responderá
sem hesitação: «A esse respeito o homem não deve ter as coisas exteriores por
particulares, mas sim por comuns, de tal sorte que facilmente dê parte delas
aos outros nas suas necessidades. É por isso que o Apóstolo disse: «Ordena aos
ricos do século... dar facilmente, comunicar as suas riquezas» [12]. Ninguém
certamente é obrigado a aliviar o próximo privando-se do seu necessário ou do
de sua família; nem mesmo a nada suprimir do que as conveniências ou decência
Impõem à sua pessoa: «Ninguém com efeito deve viver contrariamente às
conveniências»[13]. Mas, desde que haja suficientemente satisfeito à
necessidade e ao decoro, é um dever lançar o supérfluo no seio dos pobres: «Do
supérfluo dai esmolas» [14]. É um dever, não de estrita justiça, excepto nos casos
de extrema necessidade, mas de caridade cristã, um dever, por consequência,
cujo cumprimento se não pode conseguir pelas vias da justiça humana.
Mas, acima dos juízos do homem e das leis, há a lei e o juízo de Jesus Cristo,
nosso Deus, que nos persuade de todas as maneiras a dar habitualmente esmola:
«É mais feliz», diz Ele, «aquele que dá do que aquele que recebe» [15], e o
Senhor terá como dada ou recusada a Si mesmo a esmola que se haja dado ou
recusado aos pobres: «Todas as vezes que tenhais dado esmola, a um de Meus
irmãos, é a Mim que a haveis dado» [16]. Eis, aliás, em algumas
palavras, o resumo desta doutrina: Quem quer que tenha recebido da divina
Bondade maior abundância, quer de bens externos e do corpo, quer de bens da
alma, recebeu-os com o fim de os fazer servir ao seu próprio aperfeiçoamento,
e, ao mesmo tempo, como ministro da Providência, ao alívio dos outros. «E por
isso, que quem tiver o talento da palavra tome cuidado em se não calar; quem
possuir superabundância de bens, não deixe a misericórdia entumecer-se no fundo
do seu coração; quem tiver a arte de governar, aplique-se com cuidado a
partilhar com seu irmão o seu exercício e os seus frutos» [17].
Dignidade do trabalho
13. Quanto aos
deserdados da fortuna, aprendam da Igreja que, segundo o juízo do próprio Deus,
a pobreza não é um opróbrio e que não se deve corar por ter de ganhar o pão com
o suor do seu rosto. É o que Jesus Cristo Nosso Senhor confirmou com o Seu
exemplo. Ele, que «de muito rico que era, Se fez indigente» [18] para a
salvação dos homens; que, Filho de Deus e Deus Ele mesmo, quis passar aos olhos
do mundo por filho dum artesão; que chegou até a consumir uma grande parte da
Sua vida em trabalho mercenário: «Não é Ele o carpinteiro, o Filho de Maria?»
[19]. Quem tiver na sua frente o modelo divino, compreenderá mais facilmente o
que Nós vamos dizer: que a verdadeira dignidade do homem e a sua excelência
reside nos seus costumes, isto é, na sua virtude; que a virtude é o património
comum dos mortais, ao alcance de todos, dos pequenos e dos grandes, dos pobres
e dos ricos; só a virtude e os méritos, seja qual for a pessoa em quem se
encontrem, obterão a recompensa da eterna felicidade. Mais ainda: é para as classes
desafortunadas que o coração de Deus parece inclinar-se mais. Jesus Cristo
chama aos pobres bem-aventurados [20]: convida com amor a virem a Ele, a fim de
consolar a todos os que sofrem e que choram [21]; abraça com caridade mais
terna os pequenos e os oprimidos. Estas doutrinas foram, sem dúvida
alguma, feitas para humilhar a alma altiva do rico e torná-lo mais
condescendente, para reanimar a coragem daqueles que sofrem e inspirar-lhes
resignação. Com elas se acharia diminuído um abismo causado pelo orgulho, e se
obteria sem dificuldade que as duas classes se dessem as mãos e as vontades se
unissem na mesma amizade.
Comunhão de bens de natureza e de graça
14. Mas é ainda
demasiado pouco a simples amizade: se se obedecer aos preceitos do
cristianismo, será no amor fraterno que a união se operará. Duma parte e doutra
se saberá e compreenderá que os homens são todos absolutamente nascidos de
Deus, seu Pai comum; que Deus é o seu único e comum fim, que só Ele é capaz de
comunicar aos anjos e aos homens uma felicidade perfeita e absoluta; que todos
eles foram igualmente resgatados por Jesus Cristo e restabelecidos por Ele na
sua dignidade de filhos de Deus, e que assim um verdadeiro laço de fraternidade
os une,-quer entre si, quer a Cristo, seu Senhor, que é «o primogénito de
muitos irmãos»[22]. Eles saberão, enfim, que todos os bens da natureza, todos os tesouros
da graça, pertencem em comum e indistintamente a todo o género humano e que só
os indignos é que são deserdados dos bens celestes: «Se vós sois filhos, sois
também herdeiros, herdeiros de Deus, co-herdeiros de Jesus Cristo» [23] .Tal
é a economia dos direitos e dos deveres que ensina a filosofia cristã. Não se
veria em breve prazo estabelecer-se a pacificação, se estes ensinamentos
pudessem vir a prevalecer nas sociedades?
Exemplo e magistério da Igreja
15. Entretanto, a
Igreja não se contenta com indicar o caminho que leva à salvação; ela conduz a
esta e com a sua própria mão aplica ao mal o conveniente remédio. Ela
dedica-se toda a instruir e a educar os homens segundo os seus princípios e a
sua doutrina, cujas águas vivificantes ela tem o cuidado de espalhar, tão longe
e tão largamente quanto lhe é possível, pelo ministério dos Bispos e do Clero. Depois,
esforça-se por penetrar nas almas e por obter das vontades que se deixem
conduzir e governar pela regra dos preceitos divinos. Este ponto é capital e de
grandíssima importância, porque encerra como que o resumo de todos os
interesses. que estão em litígio, e aqui a ação da Igreja é soberana. Os
instrumentos de que ela dispõe para tocar as almas, recebeu-os, para este fim,
de Jesus Cristo, e trazem em si a eficácia duma virtude divina. São os
únicos aptos para penetrar até às profundezas do coração humano, que são
capazes de levar o homem a obedecer às imposições do dever, a dominar as suas
paixões, a amar a Deus e ao seu próximo com uma caridade sem limites, a
ultrapassar corajosamente todos os obstáculos que dificultam o seu caminho na
estrada da virtude.Neste ponto, basta
passar ligeiramente em revista pelo pensamento os exemplos da antiguidade. As
coisas e factos que vamos lembrar estão isentos de controvérsia. Assim, não é
duvidoso que a sociedade civil foi essencialmente renovada pelas instituições
cristãs, que esta renovação teve por efeito elevar o nível do gênero humano,
ou, para melhor dizer, chamá-lo da morte à vida, e guindá-lo a um alto grau de
perfeição, como se não viu semelhante nem antes nem depois, e não se verá
jamais em todo o decurso dos séculos. Que, enfim, destes benefícios foi Jesus
Cristo o princípio e deve ser o seu fim: porque, assim como tudo partiu d'Ele,
assim também tudo Lhe deve ser referido. Quando, pois, o Evangelho raiou no mundo,
quando os povos tiveram conhecimento do grande mistério da encarnação do Verbo
e da redenção dos homens, a vida de Jesus Cristo, Deus e homem, invadiu as
sociedades e impregnou-as inteiramente com a Sua fé, com as Suas máximas e com
as Suas leis. E por isso que, se a sociedade humana deve ser curada,
não o será senão pelo regresso à vida e às instituições do cristianismo. A quem
quer regenerar uma sociedade qualquer em decadência, se prescreve com razão que
a reconduza às suas origens [24]. Porque a perfeição de toda a sociedade
consiste em prosseguir e atingir o fim para o qual foi fundada, de modo que
todos os movimentos e todos os actos da vida social nasçam do mesmo princípio
de onde nasceu a sociedade. Por isso, afastar-se do fim é caminhar para a
morte, e voltar a ele é readquirir a vida. E o que Nós-dizemos de todo o corpo
social aplica-se igualmente a essa classe de cidadãos que vivem do seu trabalho
e que formam a grandíssima maioria.Nem se pense que a
Igreja se deixa absorver de tal modo pelo cuidado das almas, que põe de parte o
que se relaciona com a vida terrestre e mortal. Pelo que em particular diz
respeito à classe dos trabalhadores, ela faz todos os esforços para os arrancar
à miséria e procurar-lhes uma sorte melhor. E, certamente, não é um fraco apoio
que ela dá a esta obra só pelo facto de trabalhar, por palavras e atos, para
reconduzir os homens à virtude. Os costumes cristãos, desde que entram em ação,
exercem naturalmente sobre a prosperidade temporal a sua parte de benéfica
influência; porque eles atraem o favor de Deus, princípio e fonte de todo o
bem; reduzem o desejo excessivo das riquezas e a sede dos prazeres, esses dois
flagelos que frequentes vezes lançam a amargura e o desgosto no próprio seio da
opulência [25]; contentam-se enfim com uma vida e alimentação frugal, e
suprem pela economia a modicidade do rendimento, longe desses vícios que
consomem não só as pequenas, mas as grandes fortunas, e dissipam os maiores
patrimônios.
A Igreja e a caridade durante os séculos
16. A Igreja, além
disso, provê também directamente à felicidade das classes deserdadas, pela
fundação e sustentação de instituições que ela julga próprias para aliviar a
sua miséria; e, mesmo neste género de benefícios, ela tem sobressaído de tal
modo, que os seus próprios inimigos lhe fizeram o seu elogio. Assim, entre os
primeiros cristãos, era tal a virtude da caridade mútua, que não raro se viam
os mais ricos despojarem-se do seu património em favor dos pobres. Por
isso, a indigência não era conhecida entre eles [26]; os Apóstolos tinham
confiado aos Diáconos, cuja ordem fora especialmente instituída para esse fim,
a distribuição quotidiana das esmolas, e o próprio S. Paulo, apesar de
absorvido por uma solicitude que abraçava todas as Igrejas, não hesitava em
empreender penosas viagens para ir em pessoa levar socorros aos cristãos
indigentes. Socorros do mesmo género eram espontaneamente oferecidos
pelos fiéis em cada uma das suas assembleias: o que Tertuliano chama os
«depósitos da piedade», porque eram empregados «em sustentar e sepultar as
pessoas indigentes, os órfãos pobres de ambos os sexos, os domésticos velhos,
as vítimas de naufrágio» [27].Eis como pouco a pouco
se formou esse património, que a Igreja sempre guardou com religioso cuidado
como um bem próprio da família dos pobres. Ela chegou até a assegurar socorros
aos infelizes, poupando-lhes a humilhação de estender a mão; porque esta mãe
comum dos ricos e dos pobres, aproveitando maravilhosamente rasgos de caridade
que ela havia provocado por toda a parte, fundou sociedades religiosas e uma multidão
doutras instituições úteis que, pouco tempo depois, não deviam deixar sem
alívio nenhum género de miséria. Há hoje, sem dúvida, um certo número de
homens que, fiéis ecos dos pagãos de outrora, chegam a fazer, mesmo dessa
caridade tão maravilhosa, uma arma para atacar a Igreja; e viu-se uma
beneficência estabelecida pelas leis civis substituir-se à caridade cristã; mas
esta caridade, que se dedica toda e sem pensamento reservado à utilidade do
próximo, não pode ser suprida por nenhuma invenção humana. Só a Igreja
possui essa virtude, porque não se pode haurir senão no Sagrado Coração de
Jesus Cristo, e é errar longe de Jesus Cristo estar afastado da Sua Igreja.
O concurso do Estado
17. Todavia não há
dúvida de que, para obter o resultado desejado, não é de mais recorrer aos
meios humanos. Assim, todos aqueles a quem a questão diz respeito, devem visar ao
mesmo fim e trabalhar de harmonia cada um na sua esfera. Nisto há como que uma
imagem da Providência governando o mundo: porque nós vemos de ordinário que os
factos e os acontecimentos que dependem de causas diversas são a resultante da
sua ação comum.Ora, que parte de ação e de remédio temos nós o direito
de esperar do Estado? Diremos, primeiro, que por Estado entendemos aqui, não
tal governo estabelecido entre tal povo em particular, mas todo o governo que
corresponde aos preceitos da razão natural e dos ensinamentos divinos,
ensinamentos que Nós todos expusemos, especialmente na Nossa Carta Encíclica
sobre a constituição cristã das sociedades [28].
Origem da prosperidade nacional
18. O que se pede aos
governantes é um curso de ordem geral, que consiste em toda a economia das leis
e das instituições; queremos dizer que devem fazer de modo que da mesma
organização e do governo da sociedade brote espontaneamente e sem esforço a
prosperidade, tanto pública como particular. Tal é, com efeito, o ofício da
prudência civil e o dever próprio de todos aqueles que governam. Ora o
que torna uma nação próspera, são os costumes puros, as famílias fundadas sobre
bases de ordem e de moralidade, a prática e o respeito da justiça, uma
imposição moderada e uma repartição equitativa dos encargos públicos, o
progresso da indústria e, do comércio, uma agricultura florescente e outros
elementos, se os há, do mesmo gênero: todas as coisas que se não podem
aperfeiçoar, sem fazer subir outro tanto a vida e a felicidade dos cidadãos.
Assim como, pois, por todos estes meios, o Estado pode tornar-se útil às outras
classes, assim também pode melhorar muitíssimo a sorte da classe operária, e
isto em todo o rigor do seu direito, e sem ter a temer a censura de ingerência;
porque, em virtude mesmo do seu ofício, o Estado deve servir o interesse comum.
E
é evidente que, quanto mais se multiplicarem as vantagens resultantes desta
acção de ordem geral, tanto menos necessidade haverá de recorrer a outros
expedientes para remediar a condição dos trabalhadores. Mas há outra
consideração que atinge mais profundamente ainda o nosso assunto. A razão
formal de toda a sociedade é só uma e é comum a todos os seus membros, grandes
e pequenos. Os pobres, com o mesmo título que os ricos, são, por direito natural,
cidadãos; isto é, pertencem ao número das partes vivas de que se compõe, por
intermédio das famílias, o corpo inteiro da Nação, para não dizer que em todas
as cidades são o grande número.Como, pois, seria desrazoável prover a uma
classe de cidadãos e negligenciar outra, torna-se evidente que a autoridade
pública deve também tomar as medidas necessárias para salvaguardar a salvação e
os interesses da classe operária. Se ela faltar a isto, viola a estrita
justiça que quer que a cada um seja dado o que lhe é devido. A esse respeito S.
Tomás diz muito sabiamente: «Assim como a parte e o todo são em certo modo uma
mesma coisa, assim o que pertence ao to-do pertence de alguma sorte a cada
parte» [29]. E por isso que, entre os graves e numerosos deveres dos
governantes que querem prover, como convém, ao público, o principal dever, que
domina lodos os outros, consiste em cuidar igualmente de todas as classes de
cidadãos, observando rigorosamente as leis da justiça, chamada distributiva.Mas, ainda que todos os
cidadãos, sem exceção, devam contribuir para a massa dos bens comuns, os quais,
aliás, por um giro natural, se repartem de novo entre os indivíduos, todavia as
constituições respectivas não podem ser nem as mesmas, nem de igual medida. Quaisquer
que sejam as vicissitudes pelas quais as formas do governo são chamadas a
passar, haverá sempre entre os cidadãos essas desigualdades de condições, sem
as quais uma sociedade não pode existir nem conceber-se. Sem dúvida são
necessários homens que governem, que façam leis, que administrem justiça, que,
enfim, por seus conselhos ou por via da autoridade, administrem os negócios da
paz e as coisas da guerra. Que estes homens devem ter a proeminência em
toda a sociedade e ocupar nela o primeiro lugar, ninguém o pode duvidar, pois
eles trabalham directamente para o bem comum e duma maneira tão excelente.Os
homens que, pelo contrário, se aplicam às coisas da indústria, não podem
concorrer para este bem comum nem na mesma medida, nem pelas mesmas vias; mas,
entretanto, também eles, ainda que de maneira menos directa, servem muitíssimo
os interesses da sociedade. Sem dúvida alguma, o bem comum, cuja aquisição deve
ter por efeito aperfeiçoar os homens, é principalmente um bem moral.Mas numa sociedade
regularmente constituída deve encontrar-se ainda uma certa abundância de bens
exteriores «cujo uso é reclamado para exercício da virtude»[30]. Ora, a fonte fecunda e necessária de todos estes bens é
principalmente o trabalho do operário, o trabalho dos campos ou da oficina.
Mais ainda: nesta ordem de coisas, o trabalho tem uma tal fecundidade e tal
eficácia, que se pode afirmar, sem receio de engano, que ele é a fonte única de
onde procede a riqueza das nações. A
equidade manda, pois, que o Estado se preocupe com os trabalhadores, e proceda
de modo que, de todos os bens que eles proporcionam à sociedade, lhes seja dada
uma parte razoável, como habitação e vestuário, e que possam viver à custa de
menos trabalho e privações [31]. De onde resulta que o Estado deve favorecer
tudo o que, de perto ou de longe, pareça de natureza a melhorar-lhes a sorte.
Esta solicitude, longe de prejudicar alguém, tornar-se-á, ao contrário, em
proveito de todos, porque importa soberanamente à nação que homens, que são
para ela o princípio de bens tão indispensáveis, não se encontrem continuamente
a braços com os horrores da miséria.
O Governo é para os governados e não vice-versa
19. Dissemos que não é
justo que o indivíduo ou a família sejam absorvidos pelo Estado, mas é justo,
pelo contrário, que aquele e esta tenham a faculdade de proceder com liberdade,
contando que não atentem contra o bem geral, e não prejudiquem ninguém. Entretanto,
aos governantes pertence proteger a comunidade e as suas partes: a comunidade,
porque a natureza confiou a sua conservação ao poder soberano, de modo que a
salvação pública não é somente aqui a lei suprema, mas é a própria a causa e a
razão de ser do principado; as partes, porque, de direito natural, o governo
não deve visar só os interesses daqueles que têm o poder nas mãos, mas ainda o
bem dos que lhe estão submetidos. Tal é o ensino da filosofia, não
menos que da fé cristã. Por outra parte, a autoridade vem de Deus e é uma
participação da Sua autoridade suprema; desde então, aqueles que são os
depositários dela devem exercê-la à imitação de Deus, cuja paternal solicitude
se não estende menos a cada uma das criaturas em particular do que a todo o seu
conjunto. Se, pois, os interesses gerais, ou o interesse duma classe em
particular, se encontram ou lesa-dós ou simplesmente ameaçados, e se não for
possível remediar ou obviar a isso doutro modo, é de toda a necessidade
recorrer à autoridade pública.
Obrigações e limites da intervenção do Estado
20. Ora, importa à
salvação comum e particular que a ordem e a paz reinem por toda a parte; que
toda a economia da vida doméstica seja regulada segundo os mandamentos de Deus
e os princípios da lei natural; que a religião seja honrada e observada; que se
vejam florescer os costumes públicos e particulares; que a justiça seja
religiosamente graduada, e que nunca uma classe possa oprimir impunemente a
outra; que cresçam robustas gerações, capazes de ser o sustentáculo, e, se
necessário for, o baluarte da Pátria. É por isso que os operários, abandonando o
trabalho ou suspendendo-o por greves, ameaçam a tranquilidade pública; que os
laços naturais da família afrouxam entre os trabalhadores; que se calca aos pés
a religião dos operários, não lhes facilitando o cumprimento dos seus deveres
para com Deus; que a promiscuidade dos sexos e outras excitações ao vício
constituem nas oficinas um perigo para a moralidade; que os patrões esmagam os
trabalhadores sob o peso de exigências iníquas, ou desonram neles a pessoa
humana por condições indignas e degradantes; que atentam contra a sua saúde por
um trabalho excessivo e desproporcionado com a sua idade e sexo: em todos estes
casos é absolutamente necessário aplicar em certos limites a força e autoridade
das leis. Esses limites serão determinados pelo mesmo fim que reclama o
socorro das leis, isto é, que eles não devem avançar nem empreender nada além
do que for necessário para reprimir os abusos e afastar os perigos.Os direitos, em que
eles se encontram, devem ser religiosamente respeitados e o Estado deve
assegurá-los a todos os cidadãos, prevenindo ou vingando a sua violação. Todavia,
na protecção dos direitos particulares, deve preocupar-se, de maneira especial,
dos fracos e dos indigentes. A classe rica faz das suas riquezas uma espécie de
baluarte e tem menos necessidade da tutela pública. A classe indigente,
ao contrário, sem riquezas que a ponham a coberto das injustiças, conta
principalmente com a protecção do Estado. Que o Estado se faça, pois, sob um
particularíssimo título, a providência dos trabalhadores, que em geral
pertencem à classe pobre [32].
O Estado deve proteger a propriedade particular
21. Mas, é conveniente
descer expressamente a algumas particularidades. É um dever principalíssimo dos
governos o assegurar a propriedade particular por meio de leis sábias. Hoje
especialmente, no meio de tamanho ardor de cobiças desenfreadas, é preciso que
o povo se conserve no seu dever; porque, se a justiça lhe concede o direito de
empregar os meios de melhorar a sua sorte, nem a justiça nem o bem público
consentem que danifiquem alguém na sua fazenda nem que se invadam os direitos
alheios sob pretexto de não que igualdade. Por certo que a maior parte dos operários
quereriam melhorar de condição por meios honestos sem prejudicar a ninguém;
todavia, não poucos há que, embebidos de máximas falsas e desejosos de
novidade, procuram a todo o custo excitar e impelir os outros a violências.
Intervenha portanto a autoridade do Estado, e, reprimindo os agitadores,
preserve os bons operários do perigo da sedução e os legítimos patrões de serem
despojados do que é seu.
Impedir as greves
22. O trabalho muito
prolongado e pesado e uma retribuição mesquinha dão, não poucas vezes, aos
operários ocasião de greves. E preciso que o Estado ponha cobro a esta
desordem grave e frequente, porque estas greves causam dano não só aos patrões
e aos mesmos operários, mas também ao comércio e aos interesses comuns; e em
razão das violências e tumultos, a que de ordinário dão ocasião, põem muitas
vezes em risco a tranquilidade pública. O remédio, portanto, nesta
parte, mais eficaz e salutar é prevenir o mal com a autoridade das leis, e
impedir a explosão, "removendo a tempo as causas" de que se prevê que hão de
nascer os conflitos entre os operários e os patrões.
Proteger os bens da alma
23. Muitas outras
coisas deve igualmente o Estado proteger ao operário, e em primeiro lugar os
bens da alma. A vida temporal, posto que boa e desejável, não é o fim para que
fomos criados; mas é a via e o meio para aperfeiçoar, com o conhecimento da
verdade e com a prática do bem, a vida do espírito. O espírito é o que tem em
si impressa a semelhança divina, e no qual reside aquele principado em virtude
do qual foi dado ao homem o direito de dominar as criaturas inferiores e de
fazer servir à sua utilidade toda a terra e todo o mar: «Enchei a terra e
tornai-vo-la sujeita, dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu e
sobre todos os animais que se movem sobre a terra»[33]. Nisto todos os homens
são iguais, e não há diferença alguma entre ricos e pobres, patrões e criados,
monarcas e súbditos, «porque é o mesmo o Senhor de todos»[34]. A ninguém é
lícito violar impunemente a dignidade do homem, do qual Deus mesmo dispõe, com
grande reverência, nem pôr-lhe impedimentos, para que ele siga o caminho
daquele aperfeiçoamento que é ordenado para o conseguimento da vida interna; pois,
nem mesmo por eleição livre, o homem pode renunciar a ser tratado segundo a sua
natureza e aceitar a escravidão do espírito; porque não se trata de direitos
cujo exercício seja livre, mas de deveres para com Deus que são absolutamente
invioláveis.
24. Daqui vem, como
consequência, a necessidade do repouso festivo. Isto, porém, não quer dizer que
se deve estar em ócio por mais largo espaço de tempo, e muito menos significa
uma inacção total, como muitos desejam, e que é a fonte de vícios e ocasião de
dissipação; mas um repouso consagrado à religião. Unido à religião, o repouso tira
o homem dos trabalhos e das ocupações da vida ordinária para o chamar ao
pensamento dos bens celestes e ao culto devido à Majestade divina. Eis
aqui a principal natureza e fim do repouso festivo que Deus, com lei especial,
prescreveu ao homem no Antigo Testamento, dizendo-lhe: «Recorda-te de santificar
o sábado» [35]; e que ensinou com o Seu exemplo, quando no sétimo dia, de-pois
de criado o homem, repousou: «Repousou no sétimo dia .de todas as Suas obras
que tinha feito» [36].
Proteção do trabalho dos operários, das mulheres
e das crianças
25. No que diz respeito
aos bens naturais e exteriores, primeiro que tudo é um dever da autoridade
pública subtrair o pobre operário à desumanidade de ávidos especuladores, que
abusam, sem nenhuma descrição, tanto das pessoas como das coisas. Não é justo
nem humano exigir do homem tanto trabalho a ponto de fazer pelo excesso da
fadiga embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo. A atividade do homem,
restrita como a sua natureza, tem limites que se não podem ultrapassar. O
exercício e o uso aperfeiçoam-na, mas é preciso que de quando em quando se
suspenda para dar lugar ao repouso. Não deve, portanto, o trabalho prolongar-se
por mais tempo do que as forças permitem. Assim, o número de horas de trabalho
diário não deve exceder a força dos trabalhadores, e a quantidade de repouso
deve ser proporcionada à qualidade do trabalho, às circunstâncias do tempo e do
lugar, à compleição e saúde dos operários. O trabalho, por exemplo, de
extrair pedra, ferro, chumbo e outros materiais escondidos debaixo da terra,
sendo mais pesa-do e nocivo à saúde, deve ser compensado com uma duração mais
curta. Deve-se também atender às estações, porque não poucas vezes um trabalho
que facilmente se suportaria numa estação, noutra é de facto insuportável ou
somente se vence com dificuldade.
26. Enfim, o que um
homem válido e na força da idade pode fazer, não será equitativo exigi-lo duma
mulher ou duma criança. Especialmente a infância — e isto deve ser estritamente
observado — não deve entrar na oficina senão quando a sua idade tenha suficientemente
desenvolvido nela as forças físicas, intelectuais e morais: de contrário, como
uma planta ainda tenra, ver-se-á murchar com um trabalho demasiado precoce, e
dar-se-á cabo da sua educação. Trabalhos há também quê se não adaptam tanto
à mulher, a qual a natureza destina de preferência aos arranjos domésticos,
que, por outro lado, salvaguardam admiravelmente a honestidade do sexo, e
correspondem melhor, pela sua natureza, ao que pede a boa educação dos filhos e
a prosperidade da família. Em geral, a duração do descanso deve
medir-se pelo dispêndio das forças que ele deve restituir. O direito ao
descanso de cada dia assim como à cessação do trabalho no dia do Senhor, deve
ser a condição expressa ou tácita de todo o contrato feito entre patrões e
operários. Onde esta condição não entrar, o contrato não será justo, pois
ninguém pode exigir ou prometer a violação dos deveres do homem para com Deus e
para consigo mesmo.
O quantitativo do salário dos operários
27. Passemos agora a
outro ponto da questão e de não menor importância, que, para evitar os
extremos, demanda uma definição precisa. Referimo-nos à
fixação do salário. Uma vez livremente aceite o salário por uma e outra parte,
assim se raciocina, o patrão cumpre todos os seus compromissos desde que o pague
e não é obrigado a mais nada. Em
tal hipótese, a justiça só seria lesada, se ele se recusasse a saldar a dívida
ou o operário a concluir todo o seu trabalho, e a satisfazer as suas condições;
e neste último caso, com exclusão de qualquer outro, é que o poder público
teria que intervir para fazer valer o direito de qual quer deles.Semelhante raciocínio
não encontrará um juiz equitativo que consinta em o abraçar sem reserva, pois
não abrange todos os lados da questão e omite um deveras importante. Trabalhar
é exercer a actividade com o fim de procurar o que requerem as diversas
necessidades do homem, mas principalmente a sustentação da própria vida.
«Comerás o teu pão com o suor do teu rosto» [37]. Eis a razão por que o
trabalho recebeu da natureza como que um duplo cunho: é pessoal, porque a força
activa é inerente à pessoa, e porque a propriedade daquele que a exerce e a
recebeu para sua utilidade; e é necessário, porque o homem precisa da sua
existência, e porque a deve conservar para obedecer às ordens incontestáveis da
natureza. Ora, se não se encarar o trabalho senão pelo seu lado pessoal , não
há dúvida de que o operário pode a seu bel-prazer restringir a taxa do salário.
A mesma vontade que dá o trabalho pode contentar-se com uma pequena remuneração
ou mesmo não exigir nenhuma. Mas já é outra coisa, se ao carácter de
personalidade se juntar o de necessidade, que o pensamento pode abstrair, mas
que na realidade não se pode separar. Efectivamente, conservar a existência é
um dever imposto a todos os homens e ao qual se não podem subtrair sem crime.
Deste dever nasce necessariamente o direito de procurar as coisas necessárias à
subsistência, e que o pobre as não procure senão mediante o salário do seu
trabalho. Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes
aprouver, cheguem, inclusivamente, a acordar na cifra do salário: acima da sua
livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a
saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do
operário sóbrio e honrado. Mas se, constrangido pela necessidade ou
forçado pelo receio dum mal maior, aceita condições duras que por outro lado
lhe não seria permitido recusar, porque lhe são impostas pelo patrão ou por
quem faz oferta do trabalho, então é isto sofrer uma violência contra a qual a
justiça protesta. Mas, sendo de temer que nestes casos e em outros análogos,
como no que diz respeito às horas diárias de trabalho e à saúde dos operários,
a intervenção dos poderes públicos seja importuna, sobretudo por causa da
variedade das circunstâncias, dos tempos e dos lugares, será
preferível que a solução seja confiada às corporações ou sindicatos de que
falaremos, mais adiante, ou que se recorra a outros meios de defender os
interesses dos operários, mesmo com o auxílio e apoio do Estado,
se a questão o reclamar [38].
A economia como "meio de conciliação das classes"
28. O operário que
receber um salário suficiente para ocorrer com desafogo às suas necessidades e
às da sua família, se for prudente, seguirá o conselho que parece dar-lhe a
própria natureza: aplicar-se-á a ser parcimonioso e agirá de
forma que, com prudentes economias, vá juntando um pequeno pecúlio, que lhe
permita chegar um dia a adquirir um modesto património. Já vimos
que a presente questão não podia receber solução verdadeiramente eficaz, se se
não começasse por estabelecer como princípio fundamental a inviolabilidade da
propriedade particular. Importa, pois, que as leis favoreçam o espírito de
propriedade, o reanimem e desenvolvam, tanto quanto possível, entre as massas
populares.Uma vez obtido, este
resultado seria a fonte dos mais preciosos benefícios, e em primeiro lugar duma
repartição dos bens certamente mais equitativa. A violência das revoluções
políticas dividiu o corpo social em duas classes e cavou entre elas um imenso
abismo. Dum lado, a onipotência na opulência: uma facção que, senhora absoluta
da indústria e do comércio, desvia o curso das riquezas e faz correr para o seu
lado todos os mananciais; facção que aliás tem na sua mão mais dum motor da
administração pública. Do outro, a fraqueza na indigência: uma multidão
com a alma dilacerada, sempre pronta para a desordem. Ah, estimule-se a
industriosa atividade do povo com a perspectiva da sua participação na
prosperidade do solo, e ver-se-á nivelar pouco a pouco o abismo que separa a
opulência da miséria, o operar-se a aproximação das duas classes. Demais,
a terra produzirá tudo em maior abundância, pois o homem é assim feito: o
pensamento de que trabalha em terreno que é seu redobra o seu ardor e a sua
aplicação. Chega a pôr todo o seu amor numa terra que ele mesmo
cultivou, que lhe promete a si e aos seus não só o estritamente necessário, mas
ainda uma certa fartura. Não há quem não descubra sem esforço os efeitos desta
duplicação da atividade sobre a fecundidade da terra e sobre a riqueza das
nações. A terceira utilidade será a suspensão do movimento de emigração;
ninguém, com efeito, quereria trocar por uma região estrangeira a sua pátria e
a sua terra natal, se nesta encontrasse os meios de levar uma vida mais
tolerável. Mas uma condição indispensável para que todas estas vantagens se
convertam em realidades, é que a propriedade particular não seja esgotada por
um excesso de encargos e de impostos. Não é das leis humanas, mas da natureza,
que emana o direito de propriedade individual; a autoridade pública não o pode
pois abolir; o que ela pode é regular-lhe o uso e conciliá-lo com o bem comum.
É por isso que ela age contra a justiça e contra a humanidade quando, sob o
nome de impostos, sobrecarrega desmedidamente os bens dos particulares.
Benefício das corporações
29. Em último lugar,
diremos que os próprios patrões e operários podem singularmente auxiliar a
solução, por meio de todas as obras capazes de aliviar eficazmente a indigência
e de operar uma aproximação entre as duas classes. Pertencem a este número as
associações de socorros mútuos; as diversas instituições, devidas à iniciativa
particular, que têm por fim socorrer os operários, bem como as suas viúvas e
órfãos, em caso de morte, de acidentes ou de enfermidades; os patronatos que
exercem uma proteção benéfica para com as crianças dos dois sexos, os
adolescentes e os homens feitos. Mas o primeiro lugar pertence às
corporações operárias, que abrangem quase todas as outras. Os nossos
antepassados experimentaram por muito tempo a benéfica influência destas
associações. Ao mesmo tempo que os artistas encontravam nelas inapreciáveis
vantagens, as artes receberam delas novo brilho e nova vida, como o proclama
grande quantidade de monumentos. Sendo hoje mais cultas as gerações, mais
polidos os costumes, mais numerosas as exigências da vida quotidiana, é fora de
dúvida que se não podia deixar de adaptar as associações a estas novas
condições. Assim, com prazer vemos Nós irem-se formando por toda a
parte sociedades deste gênero, quer compostas só de operários, quer mistas,
reunindo ao mesmo tempo operários e patrões: é para desejar que aumentem a sua
ação. Conquanto nos tenhamos ocupado delas mais duma vez [39], queremos expor aqui
a sua oportunidade e o seu direito de existência e indicar como devem
organizar-se é qual deve ser o seu programa de ação.
As associações particulares e o Estado
30. A experiência que o
homem adquire todos os dias da exiguidade das suas forças, obriga-o e impele-o
a agregar-se a uma cooperação estranha. É nas Sagradas Letras que se lê esta
máxima: «Mais valem dois juntos que um só, pois tiram vantagem da sua
associação. Se um cai, o outro sustenta-o. Desgraçado do homem só, pois; quando
cair, não terá ninguém que o levante» [40]. E estoutra: «O irmão que é ajudado
por seu irmão, é como uma cidade forte» [41]. Desta propensão natural,
como dum único germe, nasce, primeiro, a sociedade civil; depois, no próprio
seio desta, outras sociedades que, por serem restritas e imperfeitas, não
deixam de ser sociedades verdadeiras.Entre as pequenas
sociedades e a grande, há profundas diferenças, que resultam do seu fim
próximo. O fim da sociedade civil abrange universalmente todos os cidadãos,
pois este fim está no bem comum, isto é, num bem do qual todos e cada um têm o
direito de participar em medida proporcional. Por isso se chama público, porque
«reúne os homens para formarem uma nação»[42]. Ao contrário, as sociedades que
se constituem no seu seio são frágeis, porque são particulares, e o são com
efeito, pois a sua razão de ser imediata é a utilidade particular e exclusiva
dos seus membros: «A sociedade particular é aquela que se forma com um fim particular,
como quando dois ou três indivíduos se associam para exercerem em comum o
comércio» [43]. Ora, pelo facto de as sociedades particulares não terem
existência senão no seio da sociedade civil, da qual são como outras tantas
partes, não se segue, falando em geral e considerando apenas a sua natureza,
que o Estado possa negar-lhes a existência. O direito de existência foi-lhes
outorgado pela própria natureza; e a sociedade civil foi instituída para
proteger o direito natural, não para o aniquilar. Por esta razão, uma
sociedade civil que proibisse as sociedades públicas e particulares,
atacar-se-ia a si mesma, pois todas as sociedades públicas e particulares tiram
a sua origem dum mesmo princípio: a natural sociabilidade do homem. Certamente
se dão conjunturas que autorizam as leis a opor-se à fundação duma sociedade
deste género. Se uma sociedade, em virtude mesmo dos seus estatutos orgânicos,
trabalhasse para um fim em oposição flagrante com a probidade, com a justiça,
com a segurança do Estado, os poderes públicos teriam o direito de lhe impedir
a formação, ou o direito de a dissolver, se já estivesse formada. Mas deviam em
tudo isto proceder com grande circunspecção para evitar usurpação dos direitos
dos cidadãos, e para não determinar, sob a cor da utilidade pública, alguma
coisa que a razão houvesse de desaprovar. Pois uma lei não
merece obediência, senão enquanto é conforme com a reta razão e a lei eterna de
Deus [44].
31. Aqui, apresentam-se
ao Nosso espírito as confrarias, as congregações e as ordens religiosas de todo
o género, nascidas da autoridade da Igreja e da piedade dos fiéis. Quais foram
os seus frutos de salvação para o género humano até aos nossos dias, a História
o diz suficientemente. Considerando simplesmente o ponto de vista da razão,
estas sociedades aparecem como fundadas com um fim honesto, e,
consequentemente, sob os auspícios do direito natural: no que elas têm de
relativo à religião, não dependem senão da Igreja. Os poderes públicos não
podem, pois, legitimamente, arrogar-se nenhum direito sobre elas, atribuir-se a
sua administração; a sua obrigação é antes respeitá-las, protegê-las e, em caso
de necessidade, defendê-las. Justamente o contrário é o que Nós temos sido
condenados a ver, principalmente nestes últimos tempos. Em não poucos países, o
Estado tem deitado a mão a estas sociedades, e tem acumulado a este respeito
injustiça sobre injustiça: sujeição às leis civis, privações do direito
legítimo de personalidade, espoliação dos bens. Sobre estes bens, a Igreja tinha
todavia os seus direitos: cada um dos membros tinha os seus; os doadores, que
lhe haviam dado uma aplicação, e aqueles, enfim, que delas auferiam socorros e
alívio, tinham os seus. Assim não podemos deixar de deplorar
amargamente espoliações tão iníquas e tão funestas; tanto mais que se ferem de
proscrição as sociedades católicas na mesma ocasião em que se afirma a
legalidade das sociedades particulares, e que, aquilo que se recusa a homens
pacíficos e que não têm em vista senão a utilidade pública, se concede, e por
certo muito amplamente, a homens que meditam planos funestos para a religião e
também para o Estado.
As "associações operárias católicas"
As "associações operárias católicas"
32. Certamente em
nenhuma outra época se viu tão grande multiplicidade de associações de todo o
gênero, principalmente de associações operárias. Não é, porém, aqui, o lugar
para investigar qual é a origem de muitas delas, qual o seu fim e quais os
meios com que tendem para esse fim. Mas é uma opinião, confirmada por numerosos
indícios, que elas são ordinariamente governadas por chefes ocultos, e que
obedecem a uma palavra de ordem igualmente hostil ao nome cristão e à segurança
das nações: que, depois de terem açambarcado todas as empresas, se há operários
que recusam entrar em seu seio, elas fazem-lhe expiar a sua recusa pela
miséria. Neste estado de coisas, os operários cristãos
não têm remédio senão escolher entre estes dois partidos: ou darem os seus nomes a sociedades de que a religião
tem tudo a temer, ou organizarem-se eles próprios e unirem as suas forças para
poderem sacudir denodadamente um jugo tão injusto e tão intolerável. Haverá
homens, verdadeiramente empenhados em arrancar o supremo bem da humanidade a um
perigo iminente, que possam ter a menor dúvida de que é necessário optar por
esse último partido? É altamente louvável o zelo de
grande número dos nossos, que, conhecendo perfeitamente as necessidades da hora
presente, sondam cuidadosamente o terreno, para aí descobrirem uma vereda
honesta que conduz à reabilitação da classe operária. Constituindo-se
protetores das pessoas dedicadas ao trabalho, esforçam-se por aumentar a sua
prosperidade, tanto doméstica como individual, e regular com equidade as
relações recíprocas dos patrões e dos operários; por manter e enraizar nuns e
noutros a lembrança dos seus deveres e a observância dos preceitos que,
conduzindo o homem à moderação e coordenando todos os excessos, mantêm nas
nações, e entre elementos tão diversos de pessoas e de coisas, a concórdia e a
harmonia mais perfeita. Sob a inspiração dos mesmos pensamentos,
homens de grande mérito se reúnem em congresso, para comunicarem mutuamente as
ideias, unirem as suas forças, ordenarem programas de ação. Outros ocupam-se em
fundar corporações adequadas às diversas profissões e em fazer entrar nelas os
artistas: coadjuvam-nos com os seus conselhos e a sua fortuna, e providenciam
para que lhes não falte nunca um trabalho honrado e proveitoso. Os Bispos, por seu lado, animam estes esforços e colocam-nos
sob a sua proteção: por sua autoridade e sob os seus auspícios, membros do
clero tanto secular como regular se dedicam, em grande número, aos interesses
espirituais das corporações. Finalmente, não faltam católicos
que, possuidores de abundantes riquezas, convertidos de algum modo em
companheiros voluntários dos trabalhadores, não olham a despesas para fundar e
propagar sociedades, onde estas possam encontrar, a par com certa abastança
para o presente, a promessa de honroso descanso para o futuro. Tanto zelo,
tantos e tão engenhosos esforços têm já feito entre os povos um bem muito
considerável, e demasiado conhecido para que seja necessário falar deles mais
nitidamente. É a nossos olhos feliz prognóstico para o futuro, e esperamos
destas corporações os mais benéficos frutos, conquanto que continuem a
desenvolver-se e que a prudência presida à sua organização. Proteja o Estado
estas sociedades fundadas segundo o direito; mas não se intrometa no seu
governo interior e não toque nas molas íntimas que lhes dão vida; pois o
movimento vital procede essencialmente dum princípio interno, e extingue-se
facilmente sob a ação duma causa externa.
Disciplina e finalidade destas associações
33. Precisam
evidentemente estas corporações, para que nelas haja unidade de ação e acordo
de vontades, duma sábia e prudente disciplina. Se, pois, como é certo, os
cidadãos são livres de se associarem, devem sê-lo igualmente de se dotarem com
os estatutos e regulamentos que lhes pareçam mais apropriados ao fim que visam.
Quais devem ser estes estatutos e regulamentos? Não cremos que se
possam dar regras certas e precisas para lhes determinar os pormenores; tudo depende
do gênio de cada nação, das tentativas feitas e da experiência adquirida, do
gênero de trabalho, da expansão do comércio e doutras circunstâncias de coisas
e de tempos que se devem pesar com ponderação. Tudo quanto se pode dizer em
geral é que se deve tomar como regra universal e constante o organizar e
governar por tal forma as cooperações que proporcionem a cada um dos seus
membros os meios aptos para lhes fazerem atingir, pelo caminho mais cômodo e
mais curto, o fim que eles se propõem, e que consiste no maior aumento possível
dos bens do corpo, do espírito e da fortuna. Mas é
evidente que se deve visar antes de tudo o objecto principal, que'é o
aperfeiçoamento moral e religioso. E
principalmente este fim que deve regular toda a economia destas sociedades;
doutro modo, elas degenerariam bem depressa e cairiam, por pouco que fosse, na
linha das sociedades em que não tem lugar a religião. Ora, de que serviria ao
artista ter encontrado no seio da corporação a abundância material, se a falta
de alimentos espirituais pusesse em perigo a salvação da sua alma? «Que vale ao homem possuir o universo inteiro, se vier a
perder a sua alma?»[45]. Eis o
carácter com que Nosso Senhor Jesus Cristo quis que se distinguisse o cristão
do pagão: «Os pagãos procuram todas estas coisas... procurai primeiro o reino
de Deus, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo»[46]. Assim, pois,
tomando a Deus por ponto de partida, dê-se amplo lugar à instrução religiosa a
fim de que todos conheçam os seus deveres para com Ele; o que é necessário
crer, o que é necessário esperar, o que é necessário fazer para obter a
salvação eterna, tudo isto lhes deve ser cuidadosamente recomendado;
premunam-se com particular solicitude contra as opiniões erróneas e contra
todas as variedades do vício. Guie-se o operário
ao culto de Deus, incite-se nele o espírito de piedade, faça-se principalmente
fiel à observância dos domingos e dias festivos. Aprenda ele a amar e a respeitar a Igreja, mãe comum
de todos os cristãos, a aquiescer aos seus preceitos, a frequentar os seus
sacramentos, que são fontes divinas onde a alma se purifica das suas manchas e
bebe a santidade. Constituída assim a religião em fundamento de todas as leis
sociais, não é difícil determinar as relações mútuas a estabelecer entre os
membros para obter a paz e a prosperidade da sociedade. As diversas funções
devem ser distribuídas da maneira mais proveitosa aos interesses comuns, e de
tal modo, que a desigualdade não prejudique a concórdia.Importa grandemente que
os encargos sejam distribuídos com inteligência, e claramente definidos, a fim
de que ninguém sofra injustiça. Que a massa comum seja administrada com
integridade, e que se determine previamente, pelo grau de indigência de cada um
dos membros, a quantidade de auxílio que deve ser concedido; que os direitos e os deveres dos patrões sejam perfeitamente
conciliados com os direitos e deveres dos operários. A fim de
atender às reclamações eventuais que se levantem numa ou noutra classe a
respeito dos direitos lesados, seria muito para desejar que os próprios
estatutos encarregassem homens prudentes e íntegros, tirados do seu seio, para
regularem o litígio na qualidade de árbitros.
Convite para os "operários católicos" se associarem
34. É necessário ainda
prover de modo especial a que em nenhum tempo falte trabalho ao operário; e que
haja um fundo de reserva destinado a fazer face, não somente aos acidentes
súbitos e fortuitos inseparáveis do trabalho industrial, mas ainda à doença, à
velhice e aos reveses da fortuna. Estas leis, contanto que sejam aceites de boa
vontade, bastam para assegurar aos fracos a subsistência e um certo bem-estar; mas
as corporações católicas são chamadas ainda a prestar os seus bons serviços à
prosperidade geral. Pelo passado podemos sem temeridade julgar o futuro. Uma
época cede o lugar a outra; mas o curso das coisas apresenta maravilhosas
semelhanças, preparadas por essa Providência que tudo dirige e faz convergir
para o fim que Deus se propôs ao criar a humanidade. Sabemos que nas primeiras
idades da Igreja lhe imputavam como crime a indigência dos seus membros,
condenados a viver de esmolas ou do trabalho: Mas, despidos como estavam de
riquezas e de poder, souberam conciliar o favor dos ricos e a proteção dos
poderosos. Viam-nos diligentes, laboriosos, modelos de justiça e
principalmente de caridade. Com o espetáculo
duma vida tão perfeita e de costumes tão puros, todos os preconceitos se
dissiparam, o sarcasmo caiu e as ficções duma superstição inveterada
desvaneceram-se pouco a pouco ante a verdade cristã. A sorte da
classe operária, tal é a questão de que hoje se trata, será resolvida pela
razão ou sem ela e não pode ser indiferente às nações quer o seja dum modo ou
doutro. Os operários cristãos resolvê-la-ão facilmente pela razão, se, unidos
em sociedades e obedecendo a uma direção prudente, entrarem no caminho em que
os seus antepassados encontraram o seu bem e o dos povos. Qualquer que
seja nos homens a força dos preconceitos e das paixões, se uma vontade
pervertida não afogou ainda inteiramente o sentido do que é justo e honesto,
será indispensável que, cedo ou tarde, a benevolência pública se volte para
esses operários, que se tenham visto ativos e modestos, pondo a equidade acima
da ganância, e preferindo a tudo a religião do dever. Daqui, resultará esta
outra vantagem: que a esperança de salvação e grandes facilidades para a
atingir, serão oferecidas a esses operários que vivem no desprezo da fé cristã,
ou nos hábitos que ela reprova. Compreendem, geralmente, esses operários que
têm sido joguete de esperanças enganosas e de aparências mentirosas. Pois
sentem, pelo tratamento desumano que recebem dos seus patrões, que quase não
são avaliados senão pelo peso do ouro produzido pelo seu trabalho; quanto às
sociedades que os aliciaram, eles bem vêem que, em lugar da caridade e do amor,
não encontram nelas senão discórdias intestinas, companheiras inseparáveis da
pobreza insolente e incrédula. A alma embotada, o corpo extenuado, quanto
não desejariam sacudir um jugo tão humilhante! Mas, ou por causa do respeito
humano ou pelo receio da indigência, não ousam fazê-lo. Ah, para todos esses operários podem as sociedades católicas
ser de maravilhosa utilidade, se convidarem os hesitantes a vir
procurar no seu seio um remédio para todos os males, e acolherem pressurosas os
arrependidos e lhes assegurarem defesa e proteção.
Solução definitiva: a caridade
Solução definitiva: a caridade
35. Vede, Veneráveis
Irmãos, por quem e por que meios esta questão tão difícil demanda ser tratada e
resolvida. Tome cada um a tarefa que lhe pertence; e isto
sem demora, para que não suceda que, adiando o remédio, se tome incurável o
mal, já de si tão grave. Façam os governantes uso da autoridade
protetora das leis e das instituições; lembrem-se os ricos e os patrões dos
seus deveres; tratem os operários, cuja sorte está em jogo, dos seus interesses pelas
vias legítimas; e, visto que só a religião, como dissemos no princípio, é capaz
de arrancar o mal pela raiz, lembrem-se todos de que a primeira coisa a fazer é
a restauração dos costumes cristãos, sem os quais os meios mais eficazes
sugeridos pela prudência humana serão pouco aptos para produzir salutares
resultados. Quanto à Igreja, a sua ação jamais faltará por qualquer
modo, e será tanto mais fecunda, quanto mais livremente se possa desenvolver.Nós desejamos que
compreendam isto sobretudo aqueles cuja missão é velar pelo bem público. Empreguem
neste ponto os Ministros do Santuário toda a energia da sua alma e generosidade
do seu zelo, e guiados pela vossa autoridade e pelo vosso exemplo, Veneráveis
Irmãos, não se cansem de inculcar a todas as classes da sociedade as máximas do
Evangelho; façamos tudo quanto estiver ao nosso alcance para salvação dos povos,
e, sobretudo, alimentem em si e acendam nos outros, nos grandes e nos pequenos
a caridade, senhora e rainha de todas as virtudes. Portanto, a salvação
desejada deve ser principalmente o fruto duma grande efusão de caridade,
queremos dizer, daquela caridade que compendia em si todo o Evangelho, e que,
sempre pronta a sacrificar-se pelo próximo, é o antídoto mais seguro contra o
orgulho e o egoísmo do século. Desta virtude, descreveu S. Paulo as feições
características com as seguintes palavras: «A caridade é paciente, é benigna,
não cuida do seu interesse; tudo sofre; a tudo se resigna»[47].Como
sinal dos favores celestes e penhor da Nossa benevolência, a cada um de vós,
Veneráveis Irmãos, ao vosso Clero e ao vosso Povo, com grande afeto no Senhor,
concedemos a Bênção Apostólica.
Dada em Roma, junto de
S. Pedro, a 15 de Maio de 1891, no décimo
quarto ano do Nosso Pontificado.
PAPA LEÃO XIII
________________________________________
Notas
[*] Alude-se aqui às
Encíclicas «Diuturnum» (1831), «Immortale Dei» (1885), «Libertas» (1888).
[1] Veja-se S. Tomás,
Sum. Teol., I-II, q. 95, a. 4.
[2]
Dt 5,21.
[3]
Gn 1,28.
[4]
S. Tomás, Sum. Teol., 11-II, q. 10, a. 12.
[5]
Gn 3,17.
[6] Tg 5,4.
[7] 2 Tm 2,12.
[8] 2 Cor 4,7.
[9] Mt 19,23-24.
[10] Lc 6,24-25.
[11] S. Tomás, Sum.
Teol., II-II, q. 66, a. 2.
[12] Ibidem, q. 65, a.
2.
[13] S. Tomás, Sum. Teol., 11-11, q. 32, a. 6.
[14] Lc 11,41.
[15] Act 20,35.
[16] Mt 25,40.
[17] S. Gregório Magno, in Evang., Hom. IX, n. 7.
[18] 2 Cor 8,9.
[19] Mc 6,3.
[20] Mt 5,3.
[21] Ibidem, 11,18.
[22] Rm 8,29.
[23] Ibidem, VIII, 17.
[24] Também Maquiavel,
Discorsi, III, 1, afirma este princípio.
[25] 1 Tm 6,10.
[26] Act 4,34.
[27] Apolog., II, 39.
[28] Trata-se da
Encíclica «Immortale Dei».
[29] S. Tomás, Sum.
Teol., II-II, q. 61, a. 1 ad 2.
[30] S. Tomás, De
regimine princ. I, 15.
[31] Veja-se o n. 12
desta Encíclica: Posse e uso das riquezas.
[32] Veja-se o n. 17 e
segs. desta Encíclica.
[33] Gn 1,28.
[34] Rm 10,12.
[35] Ex 20,8.
[36] Gn 2,2.
[37] Gn 3,19.
[38] Veja-se o n. 29 e
segs.
[39] Veja-se a
Encíclica Libertas.
[40] Eclo 4,9-12.
[41]Pr 18,19.
[42] S. Tomás, Contra
impugn. Dei cultum et relig., II, 8.
[43] Ibidem.
[44] S. Tomás, Sum.
Teol., I-II, q. 93, a. 3 ad 2.
[45] Mt 16,26.
[46] Mt 6,32-33.
[47] 1 Cor 13,4-7.
Fonte:Vatican.va
cento e vinte e sete anos da Rerum Novarum
Por: Padre Arnaldo Rodrigues - Cidade do Vaticano
Ao recordar a
apresentação da Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII, desejamos destacar e
refletir sobre alguns temas que são essenciais ao saudável progresso humano. Cento
e vinte e sete anos se passaram desde a promulgação da Enciclica Rerum Novarum,
no dia 15 de maio de 1891 pelo Papa Leao XIII. A encíclica é a primeira a tratar
concretamente temas ligados a Doutrina Social da Igreja, de modo especial a
condição dos trabalhadores. Ela representa um marco na doutrina social
cristã: não só porque é o primeiro documento oficial e explícito que trata de
problemas sociais e econômicos, mas também porque oferece uma impostação clara
de como se compreende a Doutrina Social da Igreja. Esta encíclica, ainda
muito atual, foi seguida depois por outras duas grandes e famosas encíclicas: A
Populorum Progressio, do Papa Paolo VI, e a Centesimus annus, do Papa João
Paulo II.Por ocasião destes cento e vinte sete anos, o Vatican News resolveu
destacar alguns pontos da encíclica que ainda se devem considerar nos tempos
atuais.Nestes cento e vinte sete anos, resolvemos destacar 10 (dez) pontos da encíclica que ainda devem ser considerados importantes e atuais em nossos
tempos:
1)-Uso comum dos bens criados e propriedades particulares
A terra, sem dúvida,
fornece ao homem com abundância as coisas necessárias para a conservação da sua
vida e ainda para o seu aperfeiçoamento, mas não poderia fornecê-las sem a
cultura e sem os cuidados do homem. Ora, que faz o homem, consumindo os
recursos do seu espírito e as forças do seu corpo em procurar esses bens da
natureza? Aplica, para assim dizer, a si mesmo a porção da natureza corpórea que
cultiva e deixa nela como que um certo cunho da sua pessoa, a ponto que, com
toda a justiça, esse bem será possuído de futuro como seu, e não será lícito a
ninguém violar o seu direito de qualquer forma que seja.
2)-A família e o Estado
Assim como a sociedade
civil, a família, é uma sociedade propriamente dita, com a sua autoridade e o
seu governo paterno, é por isso que sempre indubitavelmente, na esfera que lhe
determina o seu fim imediato, ela goza, para a escolha e uso de tudo o que
exigem a sua conservação e o exercício duma justa independência, de direitos
pelo menos iguais aos da sociedade civil. Pelo menos iguais, dizemos
nós, porque a sociedade doméstica tem sobre a sociedade civil uma prioridade
lógica e uma prioridade real, de que participam necessariamente os seus
direitos e os seus deveres. E se os indivíduos e as famílias, entrando na
sociedade, nela achassem, em vez de apoio, um obstáculo, em vez de proteção,
uma diminuição dos seus direitos, dentro em pouco a sociedade seria algo mais para
se evitar do que para se procurar.
3)-A Igreja e a questão social
A Igreja, efetivamente,
que haure no Evangelho doutrinas capazes de pôr termo ao conflito ou ao menos
de o suavizar, expurgando-o de tudo o que ele tenha de severo e áspero; a
Igreja, que se não contenta em esclarecer o espírito de seus ensinos, mas
também se esforça em regular, de harmonia com eles a vida e os costumes de cada
um; a Igreja, que, por uma multidão de instituições eminentemente benéficas,
tende a melhorar a sorte das classes pobres; a Igreja, que quer e
deseja ardentemente que todas as classes empreguem em comum as suas luzes e as
suas forças para dar à questão operária a melhor solução possível; a Igreja,
enfim, que julga que as leis e a autoridade pública devem levar a esta solução,
sem dúvida com medida e com prudência, a sua parte do consenso.
4)-Dignidade do trabalho
“Não é Ele o
carpinteiro, o Filho de Maria?”. Quem tiver na sua frente o modelo divino,
compreenderá mais facilmente o que vamos dizer: que a verdadeira dignidade do
homem e a sua excelência reside nos seus costumes, isto é, na sua virtude; que
a virtude é o patrimônio comum dos mortais, ao alcance de todos, dos pequenos e
dos grandes, dos pobres e dos ricos; só a virtude e os méritos, seja
qual for a pessoa em quem se encontrem, obterão a recompensa da eterna
felicidade.
5)-A Igreja e a caridade durante os séculos
Ela - Igreja - chegou
até a assegurar socorros aos infelizes, poupando-lhes a humilhação de estender
a mão; porque esta mãe comum dos ricos e dos pobres, aproveitando
maravilhosamente rasgos de caridade que ela havia provocado por toda a parte,
fundou sociedades religiosas e uma multidão de outras instituições úteis
que, pouco tempo depois, não deviam deixar sem alívio nenhum gênero de miséria.
6)-Origem da "prosperidade nacional"
O que torna uma nação
próspera, são os costumes puros, as famílias fundadas sobre bases de ordem e de
moralidade, a prática e o respeito da justiça, uma imposição moderada e uma
repartição equitativa dos encargos públicos, o progresso da indústria e, do
comércio, uma agricultura florescente e outros elementos, do mesmo gênero:
todas as coisas que se podem aperfeiçoar, fazendo subir outro tanto, a
vida e a felicidade dos cidadãos.
7)-O Governo "é para os governados" e não vice-versa - (Governo é Serviço e não Tirania):
Aos governantes
pertence proteger a comunidade e as suas partes: a comunidade, porque a
natureza confiou a sua conservação ao poder soberano, de modo que a salvação
pública não é somente aqui a lei suprema, mas é a própria a causa e a
razão de ser do principado; as partes, porque, de direito natural, o governo
não deve visar só os interesses daqueles que têm o poder nas mãos, mas ainda o
bem dos que lhe estão submetidos. Tal é o ensino da filosofia, não
menos que da fé cristã. Por outra parte, a autoridade vem de Deus e é uma
participação da Sua autoridade suprema; desde então, aqueles que são os
depositários dela devem exercê-la à imitação de Deus, que faz cair a chuva sobre justos e injustos, mas cuja paternal solicitude, se estende preferencialmente, porém, não exclusivamente, sobre os mais humildes.
8)-Proteger os bens da alma
A vida temporal, posto
que boa e desejável, não é o fim para que fomos criados; mas é a via e o meio
para aperfeiçoar, com o conhecimento da verdade e com a prática do bem, a vida
do espírito. O espírito é o que tem em si impressa a semelhança divina, e no
qual reside aquele principado em virtude do qual foi dado ao homem o direito de
dominar as criaturas inferiores e de fazer servir prudentemente à sua utilidade toda a terra
e todo o mar: “Enchei a terra e tornai-a sujeita, dominai sobre os peixes do mar e
sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem sobre a terra”.Nisto
todos os homens são iguais, e não há diferença alguma entre ricos e pobres,
patrões e criados, monarcas e súditos, porque é o mesmo o Senhor de todos.A necessidade do repouso festivo. Isto, porém, não quer dizer que se deve
estar em ócio por mais largo espaço de tempo, e muito menos significa uma inação
total, como muitos desejam, e que é a fonte de vícios e ocasião de dissipação;
mas um repouso consagrado à religião. Unido à religião, o repouso tira o homem dos
trabalhos e das ocupações da vida ordinária para o chamar ao pensamento dos
bens celestes e ao culto devido à Majestade divina.
9)-A "Economia como meio de conciliação" de classes
A violência das
revoluções políticas dividiu o corpo social em duas classes e cavou entre elas
um imenso abismo. Dum lado, a onipotência na opulência: uma facção que, senhora
absoluta da indústria e do comércio, desvia o curso das riquezas e faz correr
para o seu lado todos os mananciais; facção que aliás tem na sua mão mais dum
motor da administração pública. Do outro, a fraqueza na indigência: uma
multidão com a alma dilacerada, sempre pronta para a desordem.Ah, estimule-se a industriosa atividade do povo com a
perspectiva da sua participação na prosperidade do solo, e ver-se-a nivelar
pouco a pouco o abismo que separa a opulência da miséria, o operar-se a
aproximação das duas classes. Demais,
a terra produzirá tudo em maior abundância, pois o homem é assim feito: o
pensamento de que trabalha em terreno que é seu, redobra o seu ardor e a sua
aplicação. Chega a pôr todo o seu amor numa terra que ele mesmo cultivou, que
lhe promete a si e aos seus não só o estritamente necessário, mas ainda uma
certa fartura. Não há quem não descubra sem esforço os efeitos desta duplicação
da atividade sobre a fecundidade da terra e sobre a riqueza das nações.A
terceira utilidade será a justa suspensão do movimento de emigração; ninguém, com
efeito, quereria trocar por uma região estrangeira a sua pátria e a sua terra
natal, se
nesta encontrasse os meios de levar uma vida mais tolerável.
10)- Solução definitiva: a caridade
Façamos tudo quanto
estiver ao nosso alcance para salvação dos povos, e, sobretudo, alimentem em si
e acendam nos outros, nos grandes e nos pequenos a caridade, senhora e rainha
de todas as virtudes. Portanto, a salvação desejada deve ser principalmente o
fruto duma grande efusão de caridade, queremos dizer, daquela caridade que
compendia em si todo o Evangelho, e que, sempre pronta a sacrificar-se pelo
próximo, é o antídoto mais seguro contra o orgulho e o egoísmo do século. Desta
virtude, descreveu S. Paulo as feições características com as seguintes
palavras: “A caridade é paciente, é benigna, não cuida do seu interesse; tudo
sofre; a tudo se resigna..."
Fonte: vaticannews.va
O CONCEITO DE
CLASSES PARA A IGREJA E O COMUNISMO MARXISTA SÃO DIFERENTES! VOCÊ SABIA DISTO?
Então, nesse, como
em outros pontos, entravam em choque o pensamento oficial da Igreja Católica e
o comunismo. Por isso se torna necessário que se entenda o que
significava classe para ambos:
CONCEITO DE CLASSES (LUTA) NO
MARXISMO?
Apesar de classe ser
um conceito fundamental da obra de Karl Marx, ele
nunca definiu explicitamente o que seria; mas podemos perceber alguns elementos
do que significava para ele. Classe
social serve para identificar os agrupamentos que emergem da estrutura das
desigualdades sociais. Para Marx, as classes são as expressões do
modo de produzir de uma sociedade, mas o próprio modo de produção se define
também pelas relações que intermedeiam as classes sociais e que dependem das
relações das classes com os instrumentos de produção. Toda classe
é sempre definida pelas relações que a ligam às outras classes, dependendo tais
relações das diversas posições que as classes ocupam no processo produtivo. Ele
lembra que:
"Os indivíduos isolados só formam uma Classe na
medida em que têm de travar uma luta comum contra uma outra
classe" (Marx e Engels, 1984, p. 83).
“A luta de classes é o confronto - aberto ou
dissimulado – que se produz entre classes antagônicas em favor de seus
interesses enquanto classe. Os proprietários dos Meios de Produção querem
explorar ao máximo os trabalhadores, pagando o menor salário possível; em
contrapartida, os trabalhadores querem o inverso”.
E são esses
interesses intrínsecos às classes antagônicas que fazem com que os marxistas
afirmem que o Capital e o Trabalho não têm interesses comuns. A luta de classes não ocorre apenas no conflito
aberto, ela está presente em todo momento das relações entre os proprietários
dos Meios de Produção e os que têm que vender a sua força de trabalho.
"ENTENDIMENTO DE CLASSES" NO
CATOLICISMO:
1 Coríntios
12,14-25: “O corpo não é composto de um só membro, mas de muitos. Se o pé disser:
Porque não sou mão, não pertenço ao corpo, nem por isso deixa de fazer parte do
corpo. E se o ouvido disser: Porque não sou olho, não pertenço ao corpo, nem
por isso deixa de fazer parte do corpo. Se todo o corpo fosse olho, onde
estaria a audição? Se todo o corpo fosse
ouvido, onde estaria o olfato? De fato, Deus dispôs cada um dos membros no
corpo, segundo a sua vontade. Se todos fossem um só membro, onde estaria o
corpo? Assim, há muitos membros, mas um só corpo. O olho não pode dizer à mão: Não
preciso de você! Nem a cabeça pode dizer aos pés: Não
preciso de vocês! Pelo contrário, os membros do corpo que parecem mais fracos
são indispensáveis, e os membros que pensamos serem menos honrosos,
tratamos com especial honra. E os membros que em nós são indecorosos são
tratados com decoro especial, enquanto os que em nós são decorosos não precisam
ser tratados de maneira especial. Mas Deus estruturou o corpo dando maior honra aos membros que
dela tinham falta, a fim de que não haja divisão no corpo, mas, sim,
que todos os membros tenham igual cuidado uns pelos outros...”
Efésios 4,11-16: “Assim, Ele designou alguns para apóstolos, outros para
profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres, com o propósito de aperfeiçoar os santos para a obra do ministério, para que o Corpo de Cristo seja edificado, até que todos alcancemos a unidade da fé e do conhecimento do
Filho de Deus, e cheguemos à maturidade, atingindo a medida da estatura da
plenitude de Cristo. O
objetivo é que não sejamos mais como crianças, levados de um lado para o outro
pelas ondas teológicas, nem jogados para cá e para lá por todo vento de
doutrina e pela malícia de certas pessoas que induzem os incautos ao erro. Longe
disso, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça,
Cristo. Dele todo corpo, ajustado e unido pelo auxílio de todas as
juntas, cresce e edifica-se a si mesmo em amor, na medida em que cada
parte realiza a sua função. Como devem agir os Cristãos...”
A classe social para
o clero fundamentava-se sobre uma concepção de mundo própria da Igreja
Católica:
“A sociedade era vista como um Corpo harmonioso, cujas diversas partes
deveriam cooperar em vista de um bem comum (conceito Paulino da Igreja Corpo de
Cristo).As classes(carismas)
eram diversas, mas, não antagônicas; e deveriam se complementar para não
enfraquecer o Todo”.
As classes, para
esse pensamento social católico, eram diferenças hierárquicas entre grupos que
sempre estiveram presentes na história da humanidade, por isso, que
em alguns documentos, chegaram a afirmar que era "uma lei da
natureza".
“O Clero entendia a sociedade como um Corpo
Social, sendo cada classe, na verdade, membro deste mesmo Corpo. Por essa visão, cada membro (classe) tinha sua função e
deveria colaborar em harmonia com os outros membros para o bem do Todo”.
Lembra Pio XI:
“A ordem é a unidade resultante da disposição
conveniente de muitas partes, e o corpo social não será verdadeiramente ordenado, se não há um vínculo
comum que una solidamente num só todos
os membros que o constituem" (Pio XI, 1931, p. 49).
Por esta
concepção, patrão e empregado tinham, sim, os mesmos
interesses: o bem-comum. E
para que isso fosse alcançado, cada um tinha de fazer a sua parte. A
função dos trabalhadores seria trabalhar e a dos proprietários zelar pelos seus
empregados e cuidar dos negócios. Em relação às
desigualdades sociais, os Papas criticavam os comunistas, pois eles queriam
acabar com as classes e tornar a sociedade igualitária, e isso, seria um
atentado contra as leis naturais. Neste sentido, Pio XI alertava que:
"Erram vergonhosamente todos que sem consideração
atribuem a todos os homens direitos iguais na sociedade civil e asseveram que
não existe legítima hierarquia" (Pio XI, 1937, p. 34).
Leão XIII já tinha
lembrado muito tempo antes que:
“A desigualdade reverte em proveito de todos, tanto da sociedade como dos
indivíduos; porque a vida social requer um organismo variado e funções muito diversas"
(Leão XIII, 1891, p. 21).
Em outras palavras,
existe uma desigualdade social que é condenada por Deus, mas
existe uma desigualdade de ordem natural que é querida e estabelecida por
Deus, pois a criação é desigual, tanto no mundo visível
como invisível. Seria, portanto, necessário existir pessoas para
fazer serviços braçais e artísticos, esportivos e artesanais (operários) e
aqueles que administram (Patrões). Tentar subverter esta ordem,
acabaria por levar à desarmonia do Todo, seria como querer mudar a ordem dos
astros no universo.
Se a Doutrina Social
da Igreja negava a luta de classes, uma vez que entendia a sociedade como Corpo
Social, então era:
"Erro capital na questão presente crer que as duas classes são
inimigas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres
para se combaterem mutuamente num duelo obstinado. Isto é uma aberração tal, que é necessário colocar
a verdade numa doutrina contrariamente oposta, porque, assim como no corpo
humano os membros, apesar de sua diversidade, se adaptam maravilhosamente uns
aos outros, de modo que formam um todo...assim também, na sociedade, as
duas classes estão destinadas pela natureza a unirem-se
harmoniosamente" (Leão XIII, 1891, p. 22).
Com esta concepção
de sociedade diferente do Comunismo, a luta de classes
acabava sendo percebida apenas como o conflito aberto, a pura violência entre
os grupos hierárquicos; assim sendo, contrário ao amor evangélico (e infelizmente o
Comunismo REAL comprovou isto na história). A partir do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica iniciava o seu aggiornamento. Com a eleição de
João XXIII o Concílio Vaticano II enfatizou a missão social, espiritual e humana, enfim, a missão INTEGRAL da Igreja Católica.Defendeu e promoveu a importância do laicato dentro
da instituição, valorizou o diálogo ecumênico, modificou a liturgia para as língua vernáculas para
torná-la mais acessível e desenvolveu a noção de Igreja como povo de
Deus. Substituiu a ideia de Igreja como mestra do mundo pela de serva dos servos de Deus
do mundo. A constituição
pastoral do Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, demonstrava claramente a
abertura da Igreja Católica ao mundo moderno e a procura de um diálogo da
hierarquia com outras correntes de pensamentos, na intenção da construção de um
mundo melhor e mais fraterno:
"Ainda que rejeite inteiramente o ateísmo, todavia a
Igreja proclama sinceramente que todos os homens, crentes e não crentes, devem
contribuir para a reta construção do mundo no qual vivem em comum. O que não é possível sem um
prudente e sincero DIÁLOGO" ("Gaudium es Spes", 1966, p. 28).
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