#Carismas e Hierarquia: os dois pulmões que se completam e complementam a igreja de Cristo!
Comentários do Blog Berakash: Vemos hoje sacerdotes defendendo e até negando a necessidade do
sacerdócio ministerial na Igreja, como vemos também, leigos defendo um "Clericalismo exacerbado". Como encontrar
o equilíbrio nestas duas dimensões da Igreja: Carismas e Poder? A espiritualidade
laical é uma espiritualidade que une polos distintos e processos improváveis de
comunhão, isto é, encontrar Deus em
todas as coisas, contemplar na ação, usar de todas as coisas na medida em que
nos levem a um fim maior. Ela permite que muitos aspectos do nosso mundo
que estão nos fragmentando façam sentido em uma mesma direção, que é encontrar
o rosto encarnado de Cristo em meio à realidade diversa, e, nela, sentir-nos
chamado a ser redenção do gênero humano, ou seja, a fazer sentido da esperança
e do projeto de vida, de justiça e de dignidade em meio à realidade. Essa
espiritualidade permite que, em todos os âmbitos da vida cotidiana,
profissional, política, social, cívica, sintamos que somos chamados a fazer a
diferença, que, seja o que for que façamos, fazemo-lo com uma profunda
convicção de que ali estamos construindo o Reino e que isso seja notado. Não
que seja notado de uma maneira qualitativamente distinta, mas sim pela
profundidade e pelo testemunho de fazê-lo com toda a certeza de que Deus
trabalha dentro da vida e que nós somos um pouco criadores com Ele. O Papa
Francisco está chamando a uma forte afirmação do laicato de hoje e não só em
palavras. Eu acho que a exortação apostólica Gaudete et exsultate é uma
absoluta convicção a partir do pontificado de Francisco e um mapa para poder
fazer do meio da vocação laical o caminho privilegiado para a santidade. Ela
está reafirmando e reivindicando essa vocação na Igreja, que não é uma vocação
secundária, que não é uma vocação também reduzida, mas sim o caminho pleno para
responder aos sinais mais profundos da realidade hoje. O papa também está
marcando para nós leigos e leigas, linhas muito concretas, por exemplo, na
criação do novo Dicastério para a Vida, a Família e os Leigos, no qual tivemos
alguns encontros e avanços importantes como a nomeação de subsecretários dentro
desse âmbito eclesial na figura de leigas. O único antídoto contra o
clericalismo é um laicato maduro, responsável, capaz de encontrar seu próprio
lugar na Igreja e que possa ser uma interlocução construtiva com a Igreja, mas,
ao mesmo tempo, servir de interface para responder a todos os outros espaços
onde hoje a Igreja não está ou não pode estar presente ou está cada vez mais
limitada para chegar. O século presente, como já dizia o Concílio Vaticano II, é
o século dos leigos, mas cabe a nós fazer um discernimento profundo, com
maturidade, a partir da complementaridade, para poder encontrar a nossa
verdadeira identidade e a nossa contribuição mais profunda no meio desse
caminho do Reino. O kairós que estamos vivendo hoje, a partir do Concílio
Vaticano II e até o Papa Francisco, passa necessariamente pela sua
concretização, pelo fato de os leigos encontrarem seu verdadeiro chamado e
vocação no meio da Igreja, porém, é preciso entender que a Igreja não é uma ANARQUIA, nem muito menos uma DEMOCRACIA, mas um "Reino de Ordem" (conf. I Cor 14,33).
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ (NOTIFICAÇÃO SOBRE O LIVRO: «IGREJA:
CARISMA E PODER - ENSAIOS DE ECLESIOLOGIA MILITANTE» DE FREI LEONARDO BOFF,
O.F.M.)
INTRODUÇÃO
No dia 12 de
fevereiro de 1982, Frei Leonardo Boff, OFM, tomou a iniciativa de enviar à
Congregação para a Doutrina da Fé a resposta que deu à Comissão arquidiocesana
para a Doutrina da Fé do Rio de Janeiro, que criticara o seu livro « Igreja:
Carisma e Poder » (Editora Vozes - Petrópolis, RJ, Brasil, 1981). Declarava que
aquela crítica continha graves erros de leitura e de interpretação.A Congregação, após
ter estudado o livro nos seus aspectos doutrinais e pastorais, expôs ao Autor,
numa carta de 15 de maio de 1984, algumas reservas, convidando-o a aceitá-las e
oferecendo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de um diálogo de
esclarecimento. Tendo porém em vista a repercussão que o livro estava tendo
entre os fiéis, a Congregação informou L. Boff de que, em qualquer hipótese, a
carta seria publicada, levando eventualmente em consideração a posição que ele
viesse a tomar por occasião do diálogo.No dia 7 de setembro
de 1984, L. Boff foi recebido pelo Cardeal Prefeito da Congregação, acompanhado
pelo Mons. Jorge Mejía, na qualidade de Secretário. Foram objeto do colóquio
alguns problemas eclesiológicos surgidos da leitura do livro « Igreja: Carisma
e Poder » e assinalados na carta de 15 de maio de 1984. A conversa, que se
desenvolveu num clima fraterno, proporcionou ao Autor ocasião de expor seus
esclarecimentos pessoais, que ele quis também entregar por escrito. Tudo isto
foi explicado num comunicado final publicado e redigido de comum acordo com L.
Boff. Concluído o diálogo, foram recebidos pelo Cardeal Prefeito, em outra
sala, os Eminentíssimos Cardeais Aloísio Lorscheider e Paulo Evaristo Arns, que
se encontravam em Roma para esta oportunidade. A Congregação
examinou, seguindo a praxe que lhe é própria, os esclarecimentos orais e
escritos fornecidos por L. Boff e, embora tomando nota das boas intenções e das
repetidas declarações de fidelidade à Igreja e ao Magistério por ele expressas,
sentiu-se contudo no dever de salientar que as reservas levantadas acerca do
conteúdo do livro e assinaladas na carta, não poderiam, na sua substância,
considerar-se superadas. Julga pois necessário, assim como estava previsto,
agora publicar, nas suas partes essenciais, o conteúdo doutrinal da mencionada
carta.
PREMISSA DOUTRINAL
A eclesiologia do
livro « Igreja: Carisma e Poder » propõe-se ir ao encontro dos problemas da
América Latina e, em particular do Brasil, com uma coletânea de estudos e perspectivas
(cf. p. 13). Tal intenção exige, de um lado, uma atenção séria e aprofundada às
situações concretas, às quais o livro se refere e, por outro lado, — para
realmente corresponder ao seu objetivo — a preocupação de inserir-se na grande
tarefa da Igreja universal, no sentido de interpretar, desenvolver e aplicar,
sob a inspiração do Espírito Santo, a herança comum do único Evangelho,
entregue, uma vez para sempre, pelo Senhor à nossa fidelidade. Deste modo a
única fé do Evangelho cria e edifica, ao longo dos séculos, a Igreja católica,
que permanece una na diversidade dos tempos e na diferença das situações
próprias às múltiplas Igrejas particulares. A Igreja universal realiza-se e
vive nas Igrejas particulares e estas são Igreja exatamente enquanto continuam
a ser, num determinado tempo e lugar, expressão e atualização da Igreja
universal. Deste modo, com o crescimento e o progresso das Igrejas particulares
cresce e progride a Igreja universal; ao passo que, debilitando-se a unidade,
diminuiria e decairia também a Igreja particular. Por isso o verdadeiro
discurso teológico não pode jamais contentar-se em apenas interpretar e animar
a realidade de uma Igreja particular, mas deve, ao contrário, procurar
aprofundar os conteúdos do depósito sagrado da palavra de Deus, depósito
confiado à Igreja e autenticamente interpretado pelo Magistério. A praxis e as
experiências que sempre têm origem numa determinada e limitada situação
histórica, ajudam o teólogo e o obrigam a tornar o Evangelho acessível ao seu tempo.
A praxis, contudo, não substitui, nem produz a verdade, mas está a serviço da
verdade, que nos foi entregue pelo Senhor. O teólogo é, pois, chamado a
decifrar a linguagem das diversas situações — os sinais dos tempos — e a abrir
esta linguagem à inteligência da fé (cf. Enc. Redemptor hominis, n. 19).
Examinadas à luz dos critérios de um autêntico método teológico — aqui apenas
brevemente assinalados — certas opções do livro de L. Boff manifestam-se
insustentáveis. Sem pretender analisá-las todas, colocam-se em evidência apenas
as opções eclesiológicas que parecem decisivas, ou seja: a estrutura da Igreja,
a concepção do dogma, o exercício do poder sagrado e o profetismo.
A ESTRUTURA DA IGREJA
L. Boff coloca-se,
segundo as suas próprias palavras, dentro de uma orientação, na qual se afirma
« que a igreja como instituição não estava nas cogitações do Jesus histórico,
mas que ela surgiu como evolução posterior à ressurreição, particularmente com
o processo progressivo de desescatologização » (p. 123). Consequentemente, a
hierarquia é para ele « um resultado » da « férrea necessidade de se
institucionalizar », « uma mundanização », no « estilo romano e feudal » (p.
71). Daí deriva a necessidade de uma « mutação permanente da Igreja » (p. 109);
hoje deve emergir uma « Igreja nova » (p. 107, passim), que será « uma nova
encarnação das instituições eclesiais na sociedade, cujo poder será pura função
de serviço » (p. 108). Na lógica destas
afirmações explica-se também a sua interpretação acerca das relações entre catolicismo
e protestantismo: « Parece-nos que o cristianismo romano (catolicismo) se
distingue por afirmar corajosamente a identidade sacramental e o cristianismo
protestante por uma afirmação destemida da não-identidade » (p. 132; cf. pp,
126 ss., 140).Dentro desta visão,
ambas as confissões constituiriam mediações incompletas, pertencentes a um
processo dialético de afirmação e de negação. Nesta dialética « se mostra o que
seja o cristianismo. Que é o cristianismo? Não sabemos. Somente sabemos aquilo que
se mostrar no processo histórico » (p. 131). Para justificar esta
concepção relativizante da Igreja — que se encontra na base das críticas
radicais dirigidas contra a estrutura hierárquica da Igreja católica — L. Boff
apela para a Constituição Lumen gentium (n. 8) do Concílio Vaticano II. Da
famosa expressão do Concílio « Haec Ecclesia (se. única Christi Ecclesia) ...
subsistit in Ecclesia catholica », ele extrai uma tese exatamente contrária à
significação autêntica do texto conciliar, quando afirma: de fato, « esta (isto
é, a única Igreja de Cristo) pode subsistir também em outras Igrejas cristãs »
(p. 125). O Concílio tinha, porém, escolhido a palavra « subsistit » exatamente
para esclarecer que há uma única « subsistência » da verdadeira Igreja, enquanto
fora de sua estrutura visível existem somente « elementa Ecclesiae », que — por
serem elementos da mesma Igreja — tendem e conduzem em direção à Igreja
católica (LG 8). O Decreto sobre o ecumenismo exprime a mesma doutrina (UR
3-4), que foi novamente reafirmada pela Declaração Mysterium Ecclesiae, n. 1
(AAS LXV [1973], pp. 396-398).A subversão do
significado do texto conciliar sobre a subsistência da Igreja está na base do
relativismo eclesilógico de L. Boff, supra delineado, no qual se desenvolve e
se explicita um profundo desentendimento daquilo que a fé católica professa a
respeito da Igreja de Deus no mundo.
DOGMA E REVELAÇÃO
A mesma lógica
relativizante encontra-se na concepção da doutrina e do dogma expressa por L.
Boff. O Autor critica, de modo muito severo, « a compreensão doutrinária da
revelação » (p. 73). É verdade que L. Boff distingue entre dogmatismo e dogma
(cf. p. 139), admitindo o segundo e rejeitando o primeiro. Todavia, segundo
ele, o dogma, na sua formulação, é válido somente « para um determinado tempo e
circunstâncias » (pp. 127-128). « Num segundo momento do mesmo processo
dialético o texto deve poder ser ultrapassado para dar lugar a outro texto do
hoje da fé » (p. 128). O relativismo que resulta de semelhantes afirmações
torna-se explícito quando L. Boff fala de posições doutrinárias contraditórias
entre si, contidas no Novo Testamento (cf. p. 128). Consequentemente « a
atitude verdadeiramente católica » seria de « estar fundamentalmente aberto a
todas as direções » (p. 128). Na perspectiva de L. Boff a autêntica concepção
católica do dogma cai sob o veredito do « dogmatismo »: « Enquanto perdurar
este tipo de compreensão dogmática e doutrinária da revelação e da salvação de
Jesus Cristo dever-se-á contar irretorquivelmente com a repressão da liberdade
de pensamento divergente dentro da Igreja » (pp. 74-75).A este propósito
convém ressaltar que o contrário do relativismo não é o verbalismo ou o
imobilismo. O conteúdo último da revelação é o próprio Deus, Pai, Filho e
Espírito Santo, que nos convida à comunhão com Ele; todas as palavras
referem-se à Palavra, ou — como diz São João da Cruz: « ... a su Hijo ... todo
nos habló junto y de una vez en esta sola Palabra y no tiene más que hablar »
(Subida del Monte Carmelo, II, 22, 3). Mas nas palavras, sempre analógicas e
limitadas, da Escritura e da fé autêntica da Igreja, baseada na Escritura,
exprime-se, de modo digno de fé, a verdade acerca de Deus e acerca do homem. A
constante necessidade de interpretar a linguagem do passado, longe de sacrificar
esta verdade, torna-a, antes, acessível e desenvolve a riqueza dos textos
autênticos. Avançando, guiada pelo Senhor, que é o caminho e a verdade (Jo 14,
16), a Igreja, que ensina e que crê, está convencida de que a verdade expressa
pelas palavras de fé não só não oprime o homem, mas o liberta (Jo 8, 32) e é o
único instrumento de verdadeira comunhão entre os homens de diversas classes e
opiniões, enquanto uma concepção dialética e relativizante o expõe a um
decisionismo arbitrário.No passado, esta
Congregação teve ocasião de mostrar que o sentido das fórmulas dogmáticas
permanece sempre verdadeiro e coerente, determinado e irreformável, embora
possa ser ulteriormente esclarecido e melhor compreendido (cf. Mysterium
Ecclesiae, n. 5: AAS LXV [1973], pp. 403-404).Para continuar na sua
função de sal da terra, que nunca perde o seu sabor, o « depositum fidei » deve
ser fielmente conservado na sua pureza, sem deslizar no sentido de um processo
dialético da história e em direção ao primado da praxis.
O EXERCÍCIO DO PODER SAGRADO
Uma «grave patologia
» de que, segundo L. Boff, a Igreja romana deveria livrar-se, é provocada pelo
exercício hegemónico do poder sagrado que, além de torná-la uma sociedade
assimétrica, teria também sido deformado em si mesmo. Dando por certo que o eixo
organizador de uma sociedade coincide com o modo específico de produção que lhe
é próprio, e aplicando este princípio à Igreja, L. Boff afirma que houve um
processo histórico de expropriação dos meios de produção religiosa por parte do
clero em prejuízo do povo cristão que, em consequência, teria sido privado de
sua capacidade de decidir, de ensinar etc. (cf. pp. 75, 215 ss., 238-239). Além
disso, após ter sofrido esta expropriação, o poder sagrado teria também sido
gravemente deformado, vindo a cair deste modo nos mesmos defeitos do poder
profano em termos de dominação, centralização, triunfalismo (cf. pp. 98, 85, 91
ss.).Para remediar estes inconvenientes, propõe-se um novo modelo de Igreja,
no qual o poder seria concebido sem privilégios teológicos, como puro serviço
articulado de acordo com as necessidades da comunidade (cf. pp. 207, 108).Não se pode
empobrecer a realidade dos sacramentos e da palavra de Deus enquadrando-a no
esquema da « produção e consumo », reduzindo deste modo a comunhão da fé a um
mero fenómeno sociológico. Os sacramentos não são «material simbólico », a sua
administração não é produção, a sua recepção não é consumo. Os sacramento são
dom de Deus. Ninguém os « produz ». Todos recebemos por eles a graça de Deus,
os sinais do eterno amor. Tudo isto está além de toda produção, além de todo
fazer e fabricar humano. A única medida que corresponde à grandeza do dom é a
máxima fidelidade à vontade do Senhor, de acordo com a qual todos seremos
julgados — sacerdotes e leigos — sendo todos « servos inúteis » (Lc 17, 10).
Existe sempre, decerto, o perigo de abusos; põe-se sempre o problema de como
garantir o acesso de todos os fiéis à plena participação na vida da Igreja e na
sua fonte, isto é, na vida da Senhor. Mas interpretar a realidade dos
sacramentos, da hierarquia, da palavra e de toda a vida da Igreja em termos de
produção e de consumo, de monopólio, expropriação, conflito com o bloco
hegemónico, ruptura e ocasião para um modo assimétrico de produção, equivale a subverter
a realidade religiosa. Ao contrário de ajudar na solução dos verdadeiros
problemas, este procedimento leva, antes, à destruição do sentido autêntico dos
sacramentos e da palavra da fé.
O PROFETISMO NA IGREJA
O livro « Igreja:
Carisma e Poder » denuncia a hierarquia e as instituições da Igreja (cf. pp.
65-66, 88, 239-240). Como explicação e justificação para semelhante atitude
reivindica o papel dos carismas e, em particular, do profetismo (cf. pp.
237-240, 246, 247). A hierarquia teria a simples função de « coordenar », de «
propiciar a unidade, a harmonia entre os vários serviços », de « manter a
circularidade e impedir as divisões e sobreposições », descartando pois desta
função « a subordinação imediata de todos aos hierarcas » (cf. p. 248).Não há dúvida de que
todo o povo de Deus participa do múnus profético de Cristo (cf. LG 12); Cristo
cumpre o seu múnus profético não só por meio da hierarquia, mas também por meio
dos leigos (cf. ib. 35). Mas é igualmente claro que a denúncia profética na Igreja,
para ser legítima, deve permanecer sempre a serviço, para a edificação da
própria Igreja. Esta não só deve aceitar a hierarquia e as instituições, mas
deve também colaborar positivamente para a consolidação da sua comunhão
interna; além disso, pertence à hierarquia o critério supremo para julgar não
só o exercício bem orientado da denúncia profética, como também a sua
autenticidade (cf. LG 12).
CONCLUSÃO
Ao tornar público o
que acima ficou exposto, a Congregação sente-se na obrigação de declarar, outrossim,
que as opções aqui analisadas de Frei Leonardo Boff são de tal natureza que
põem em perigo a sã doutrina da fé, que esta mesma Congregação tem o dever de
promover e tutelar.O Sumo Pontífice João Paulo II, no decorrer de uma Audiência
concedida ao Cardeal Prefeito que subscreve este documento, aprovou a presente
Notificação, deliberada em reunião ordinária da Congregação para a Doutrina da
Fé, e ordenou que a mesma fosse publicada.
Roma, Sede da
Congregação para a Doutrina da Fé, 11 de Março de 1985.
Joseph Card.
Ratzinger
Prefeito
+ Alberto Bovone - Arcebispo tit. de
Cesarea de Numidia
Secretário
“Laicato e Clericalismo” – Avanços e desvios no entendimento do
Sacerdócio Comum dos fieis!

A Igreja de Cristo,
do Papa ao mais simples dos fiéis, é um reino de sacerdotes, uma nação
consagrada ao culto de Deus. Mas isso não significa que a todos correspondam,
indistintamente, os mesmos papéis e poderes.Nos últimos tempos, uma das
questões que tem gerado mais dúvidas e mal-entendidos entre os fiéis diz
respeito ao chamado sacerdócio comum. Há quem pense tratar-se de pura e simples
“novidade”, introduzida em tempos recentes como algo totalmente estranho ao
conteúdo da sagrada Tradição; outros, pelo contrário, interpretando de forma
indevida e exagerada os documentos eclesiásticos em que se fala do assunto,
pretendem atribuir aos leigos poderes e prerrogativas que eles, na verdade,
jamais exerceram em toda a história da Igreja.A fim de esclarecer o verdadeiro
alcance da expressão “sacerdócio comum dos fiéis”, conforme o sentido autêntico
que lhe dá a Igreja, convém transcrever aqui algumas páginas cristalinas em que
o Pe. Antonio Royo Marín [1] explica de modo mais do que transparente este tema
controvertido, que, longe de ser um detalhe marginal dentro da doutrina
católica, tem grandes repercussões práticas na vida espiritual de todos os
batizados.As explicações seguintes servem, antes de tudo, para pôr em relevo o
que, no fundo, já está dito com todas as letras no próprio Catecismo da Igreja
Católica (cf. n. 1591s), a saber: o sacerdócio comum e ministerial, embora
constituam duas participações no único sacerdócio de Cristo, são distintos não
apenas em grau, mas essencialmente.Um princípio
teológico fecundíssimo ensina que tudo o que há em Jesus Cristo como cabeça do
Corpo místico existe também, proporcionalmente, nos membros desse mesmo corpo,
contanto que se trate de perfeições comunicáveis.
Em Jesus Cristo, com efeito,
há duas classes de perfeições muito distintas entre si:
- Umas lhe são de tal
maneira próprias e exclusivas que são, em si mesmas, incomunicáveis aos demais;
tais são, por exemplo, a união hipostática e a plenitude absoluta de graça.
- Outras que são, por
sua própria natureza, comunicáveis aos membros de seu Corpo místico e estão em
Cristo como cabeça ou origem primária da qual derivam para os demais; tais são,
principalmente, a graça santificante, as virtudes infusas e os dons do Espírito
Santo.A este segundo grupo de graças pertence o seu sacerdócio.
Cristo o possui
em toda a sua plenitude absoluta e, neste sentido, o sacerdócio lhe é próprio e
exclusivo; mas Ele pode comunicar (e de fato comunica) a seus membros uma
participação verdadeira e real do seu próprio sacerdócio, ainda que em graus
muito diferentes de intensidade e perfeição.Existe um abismo entre a participação do sacerdócio de Cristo que
recebem todos os fiéis e a do ministro de Jesus Cristo, que recebeu o
sacramento da Ordem sacerdotal. Essa participação do
seu sacerdócio constitui a essência mesma do chamado caráter sacramental, que,
como se sabe, é como uma marca ou selo indelével que imprimem na alma três dos
sete sacramentos instituídos pelo próprio Cristo: o Batismo, a Confirmação e a
Ordem sacerdotal.
Por conseguinte, todo aquele que recebe um sacramento que
imprime caráter participa, por isso mesmo, do sacerdócio de Jesus Cristo - Essa
participação:
- Começa com o
caráter do sacramento do Batismo.
- Aperfeiçoa-se com o sacramento da Confirmação.
- E chega à máxima
plenitude que pode alcançar em nós com o caráter do sacramento da Ordem.
De maneira que não é
nenhum erro nem sequer um “piedoso exagero” falar de um sacerdócio dos fiéis,
não em sentido metafórico, mas num sentido muito real e verdadeiro! O caráter
batismal e o da Confirmação conferem aos simples fiéis uma participação muito
real e verdadeira do sacerdócio de Jesus Cristo em sentido próprio. É claro que
é preciso entender retamente o verdadeiro alcance desta participação para não
incorrer em lamentáveis equívocos e extravios. Existe um abismo entre a
participação do sacerdócio de Cristo que recebem todos os fiéis, pelo fato de
estarem batizados e confirmados, e a do ministro de Jesus Cristo, que recebeu,
além disso, o sacramento da Ordem sacerdotal.
Vamos expor a seguir, com toda precisão e cuidado, numa
série de conclusões, o que pertence a um (sacerdócio comum) e a outro sacerdócio (sacerdócio ministerial):
Em primeiro lugar, é
falso e herético dizer que todos os cristãos são sacerdotes no mesmo sentido em
que o são os que receberam devidamente o sacramento da Ordem! Esta conclusão
consta expressamente das declarações do Concílio de Trento contra os
reformadores protestantes, que afirmavam semelhante disparate. No entanto, os
simples fiéis recebem, sim, uma participação verdadeira e real do sacerdócio de
Jesus Cristo em virtude do caráter do Batismo e da Confirmação. Esta conclusão
consta claramente dos lugares teológicos tradicionais. Eis aqui as provas:
A Sagrada
Escritura
Os textos alusivos ao sacerdócio de todo o povo fiel são
abundantíssimos. Já no Antigo Testamento se vai insinuando progressivamente
esta sublime realidade, cuja plena revelação estava reservada para a lei
evangélica. Oferecemos a seguir uma seleção de textos extraídos dos dois
Testamentos bíblicos:
Ao promulgar a Lei no Sinai, Deus disse ao povo por boca
de Moisés:
"Agora, pois, se obedecerdes à minha voz, e guardardes minha aliança,
sereis o meu povo particular entre todos os povos. Toda a terra é minha, mas
vós me sereis um reino de sacerdotes e uma nação consagrada. Tais são as
palavras que dirás aos israelitas" (Ex 19, 5-6).
O profeta Isaías
renova esta promessa, aplicando-a aos tempos messiânicos:
"O espírito do Senhor repousa sobre mim, porque o Senhor consagrou-me
pela unção […]; virão estrangeiros apascentar vosso gado miúdo, gente de fora
vos servirá de lavradores e vinhateiros; a vós chamar-vos-ão sacerdotes do
Senhor, de ministros de nosso Deus sereis qualificados" (Is 61, 1-6).
O Apóstolo São Pedro
escreve taxativamente em sua primeira epístola dirigindo-se a todos os
cristãos:
"quais outras pedras vivas, vós também vos tornais os materiais deste
edifício espiritual, um sacerdócio santo, para oferecer vítimas espirituais,
agradáveis a Deus, por Jesus Cristo" (1Pd 2, 5).
E um pouco mais
abaixo:
"Vós, porém, sois uma raça escolhida, um sacerdócio régio, uma nação
santa, um povo adquirido para Deus, a fim de que publiqueis as virtudes daquele
que das trevas vos chamou à sua luz maravilhosa" (1Pd 2, 9).
São Paulo alude
claramente ao sacerdócio dos fiéis, sobretudo quando os exorta a se oferecerem
a Deus em sacrifício:
"Eu vos exorto, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, a oferecerdes
vossos corpos em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: é este o vosso culto
espiritual" (Rm 12, 1).
São João evangelista insiste
repetidas vezes no Apocalipse:
"da parte de Jesus Cristo […],
que nos ama, que nos lavou de nossos pecados no seu sangue e que fez de
nós um reino de sacerdotes para Deus e seu Pai" (Ap 1, 5-6).
"Cantavam um cântico novo, dizendo: Tu és digno de receber o livro e de
abrir-lhe os selos, porque foste imolado e resgataste para Deus, ao preço de
teu sangue, homens de toda tribo, língua, povo e raça; e deles fizeste para
nosso Deus um reino de sacerdotes, que reinam sobre a terra" (Ap 5, 9-10).
Na Sagrada Escritura,
portanto, se encontra claramente expressa a doutrina do sacerdócio real dos
simples fiéis.
Os Santos Padres na Igreja Primitiva
Na unidade da fé e do Batismo formamos uma sociedade indivisível e participamos todos de uma comum dignidade! É muito frequente nos Santos Padres a alusão ao sacerdócio dos fiéis.
Eis
aqui, a título de exemplo, um texto muito expressivo de São Leão Magno
dirigindo-se ao povo de Roma por ocasião do aniversário de sua eleição papal:
"Tendes motivos para
celebrar este aniversário se fosse vosso. Porque, embora a Igreja de Deus
esteja constituída por diversos graus, a integridade de seu sagrado corpo
resulta da união de todos os seus membros. Como diz o Apóstolo, “todos somos um
em Cristo” (Gl 3, 28), e não há um só membro tão separado do ofício de outro
que não esteja unido com ele na unidade da cabeça. Porque a todos os
regenerados em Cristo, o sinal da cruz os faz reis, e a unção do Espírito Santo
os consagra sacerdotes, para que, à parte este especial serviço de nosso
ministério (sua dignidade papal), todos os cristãos espirituais e razoáveis
saibam ser de régia dignidade e partícipes do ofício sacerdotal. De fato, o que há de
mais régio do que, tendo a alma submetida a Deus, ser governante do próprio
corpo? E que outra coisa é mais sacerdotal do que oferecer a Deus uma
consciência pura e oferecer no altar do coração as hóstias imaculadas da
piedade? E sendo tudo isso,
pela graça de Deus, comum a todos, é justo e razoável que vos alegreis no dia
de nossa eleição como se se tratasse de vossa própria honra. Com efeito, em
todo o corpo da Igreja não existe mais do que um só pontificado (o de Cristo),
cuja graça misteriosa, embora se derrame com maior abundância (pelas exigências do ministério) sobre os membros
superiores (o Papa, os bispos, os sacerdotes), nem por isso deixa de fluir sem
parcimônia até os membros inferiores [2].
O Magistério da
Igreja
O ensinamento oficial da Igreja a respeito do sacerdócio dos fiéis
foi exposto com extraordinária precisão e claridade em nossos dias pelos
imortais pontífices Pio XI e Pio XII. Vejamos alguns textos:
Pio XI, em sua Encíclica "Miserentissimus Redemptor",
escreve [3]:
"Não gozam da
participação deste misterioso sacerdócio e deste ofício de satisfazer e
sacrificar somente aqueles de quem Nosso Senhor se serve para oferecer a Deus a
oblação imaculada, do nascente ao poente em todo lugar (cf. Ml 1, 11), senão
que toda a família cristã, chamada com razão pelo Príncipe dos Apóstolos “raça
escolhida, um sacerdócio régio” (1Pd 2, 9), deve, tanto por si mesma como por
todo o gênero humano, oferecer sacrifícios pelos pecados, quase da mesma
maneira que todo sacerdote e pontífice, “escolhido entre os homens e
constituído a favor dos homens como mediador nas coisas que dizem respeito a
Deus” (Hb 5, 1).
Pio XII, em sua magnífica Encíclica "Mediator Dei", expõe amplamente a natureza do
sacerdócio dos fiéis, rechaçando as
imprecisões e exageros que sobre ele vêm-se difundido ultimamente e proclamando
com rigor e exatitude a doutrina verdadeira. Transcrevemos
alguns parágrafos particularmente representativos [4]:
-"Com clareza não menor, os ritos e
as orações do sacrifício eucarístico significam e demonstram que a oblação da
vítima é feita pelos sacerdotes em união com o povo".
-"De fato, não somente o sagrado
ministro, depois da oferta do pão e do vinho, voltado para o povo diz
explicitamente: “Orai, irmãos, para que 'o meu e o vosso sacrifício' sejam
aceitos junto a Deus-Pai onipotente”, mas ainda as orações com as quais é
oferecida a vítima divina são, além do mais, ditas no plural, e nelas se indica
que também o povo toma parte como ofertante neste augusto sacrifício."
-"Diz-se, por exemplo: “Pelos quais
nós te oferecemos, e que eles mesmos te oferecem… Por isso te suplicamos, ó
Senhor, aceitar aplacado esta oferta dos teus servos e de toda a tua família…
Nós, teus servos, como ainda o teu povo santo, oferecemos à tua excelsa
majestade os dons e dádivas que tu mesmo nos deste, a hóstia pura, a hóstia
santa, a hóstia imaculada”.
-"Nem é de admirar que os fiéis
sejam elevados a uma tal dignidade. Com a água do Batismo, com efeito, os
cristãos se tornam, a título comum, membros do Corpo místico de Cristo
sacerdote, e, por meio do caráter que se imprime nas suas almas, são delegados ao
culto divino, participando assim, de modo condizente ao próprio estado, do
sacerdócio de Cristo".
A razão teológica
Pio XII destacou com toda precisão no texto que acabamos de citar a razão
teológica fundamental do sacerdócio dos fiéis: o caráter sacramental do
Batismo, completado pelo caráter do sacramento da Confirmação [5]. Não é nenhum erro nem
sequer um “piedoso exagero” falar de um sacerdócio dos fiéis, não em sentido
metafórico, mas num sentido muito real e verdadeiro!Com efeito, como explica
Santo Tomás e é doutrina comum em teologia, o caráter sacramental não é outra
coisa que um sinal ou um distintivo que fica impresso na alma de maneira
indelével e que nos configura a Cristo sacerdote, dando-nos uma participação
física e formal do seu próprio sacerdócio eterno! Escutemos o Doutor Angélico:
"O caráter é, de modo
geral, um certo selo com que se marca uma pessoa com o fim de ordená-la a um
determinado fim, assim como se marca o dinheiro, para usá-lo no câmbio, ou o
soldado, para associá-lo ao batalhão. Pois bem, o cristão está destinado a duas coisas: A primeira e principal
é a fruição da glória eterna, e para isto ele é marcado com o selo da graça. A
segunda é receber ou administrar às outras pessoas as coisas que pertencem ao
culto de Deus, e para isto ele é marcado com o caráter sacramental. Ora, todos
os ritos da religião cristã derivam do sacerdócio de Cristo. Por isso, é claro
e evidente que o caráter sacramental é o caráter de Cristo, a cujo sacerdócio
se configuram os fiéis segundo os caracteres sacramentais, que não são outra
coisa que certas participações do sacerdócio de Cristo derivadas do mesmo
Cristo" [6].
CONCLUSÃO
Esta participação no
sacerdócio de Cristo começa com o simples caráter batismal, é ampliado e
aperfeiçoado com o da Confirmação e chega à sua plena perfeição com o da Ordem
sagrada. Com relação à Igreja, o batismo nos faz cidadãos seus; a Confirmação,
soldados; a ordem sacerdotal, ministros!
-Com relação à fé, o batizado a
professa! (conforme: Romanos 10,9-13;Lucas 9,26)
-O confirmado a defende! (conforme 1 Ped. 3,15; II Tim. 4,1-5 - ATENÇÃO! "Não seja burro pecando duas vezes, ou seja, fazendo errado e ensinando errado! Para alguns você será o evangelho vivo e único na vida de muitas pessoas!).
-E o sacerdote ordena as coisas que lhe dizem
respeito! (conforme Hebreus 5,1-4).
Referências:
1. Cf. Antonio R. Marín, Jesucristo y la Vida
Cristiana. Madrid: BAC, 1961, pp. 566-570, nn. 552-554.
2. S. Leão Magno, Serm. IV, De natali ipsius
IV, c. 1 (PL 54, 148-149). Os parênteses explicativos são do Pe. Antonio Royo
Marín, bem como as restantes notas abaixo.
3. Pio XI, Encíclica “Miserentissimus
Redemptor”, de 8 mai. 1928 (AAS 20 [1928] 172).
4. Pio XII, Encíclica “Mediator Dei”, de 20
nov. 1947, nn. 78-79 (AAS 39 [1947] 555-556).
5. Que o Batismo, a Confirmação e a Ordem
sacerdotal imprimam caráter na alma de quem recebe validamente estes
sacramentos é uma verdade de fé expressamente definida pelo Concílio de Trento.
6. S. Th. III, q. 63, a. 3, co. Precisamente
porque o caráter é uma mera participação do sacerdócio de Cristo, o mesmo
Cristo não tem caráter sacerdotal. O seu sacerdócio pleno e absoluto está para
o caráter assim como o perfeito e próprio está para o imperfeito e participado.
Análise do livro Igreja: carisma e poder de Leonardo Boff
Comentário: Foi publicado em julho 1981 um novo livro de Frei
Leonardo Boff O.F.M., que traz o título: “Igreja: carisma e poder” (Ed. Vozes,
Petrópolis 1981). Esta obra vem suscitando hesitações e contradições no meio
católico.

Em síntese: O presente artigo analisa a
obra eclesiológica de Frei Leonardo Boff, mostrando tratar-se de estudo
tendencioso e ambíguo. A partir do esquema, preconcebido, de que a cobiça do
poder inspirou o comportamento dos pastores da Igreja através dos séculos, o
autor propõe uma Igreja “carismática”, em que não haja docentes e discentes,
mas se adotem os critérios de comportamento de uma democracia humana. O estilo do autor é veemente, chegando á
sátira; hipóteses são propostas como teses (principalmente quando o autor
recorre à exegese bíblica protestante); falta por vezes ao autor a akribia (senso
de exatidão) necessária a um estudo científico para matizar os respectivos
dizeres, dando a posições discutidas o atributo de discutidas. Tal akribia se
impõe de modo especial numa obra que não é destinada apenas a especialistas,
mas se volta para o grande público, o qual muitas vezes está despreparado para
discernir o certo do incerto e do errado.
Queremos crer que Frei Leonardo não se quer
afastar da doutrina da reta fé; ele professa em seu livro que a Igreja é
sacramentum, no qual, além de elementos humanos, há também valores divinos;
todavia tais afirmações são empalidecidas, ou sufocadas pela veemência das
acusações feitas à Santa Igreja. No decorrer da leitura do livro têm-se não
raro a impressão de estar diante de uma obra inspirada por protestantismo e
marxismo.É sempre desagradável dizer Não a um irmão,
especialmente quando se sabe que é pessoa bem intencionada. A consciência,
porém, pode exigir que o façamos no intuito de servir à verdade, que é
patrimônio comum de todos os homens. – Neste artigo proporemos algumas
considerações gerais sobre o livro em foco; depois passaremos à análise da tese
central do livro; em apêndice será publicada uma recensão do Pe. Perego S. J.
sobre outro livro eclesiológico de L. Boff.
1.
Considerações gerais - Examinaremos quatro pontos sucessivos
1.1. O estilo da obra
Quem lê a obra e
m pauta, observa de imediato algumas
características significativas:
O autor aborda questões importantes de
história da Igreja ou de doutrina de fé, fazendo afirmações generalizadas, sem
explicitar matizes. Propõe hipóteses
como se fossem teses firmes e indiscutíveis – o que ilude o leitor
despreparado.
Aliás, é curioso que desejando combater o autoritarismo, L. Boff,
use de linguagem extremamente autoritária, IMPOSITIVA, INERRANTE, caricatural,
sarcástica (não propõe, mas impõe) - Impugnando a procura de segurança na doutrina e na disciplina
dentro da Igreja, o autor parece ter segurança absoluta daquilo que diz; quem
não concorda com ele, pode ser tachado de “cínico” (pág. 64, nº 9), de
“ignorante” (p. 65), de “subserviente e inexpressivo” (p. 65), como pode ser
escarnecido com ironia (pág. 68, nº 14).
Diante de várias
páginas do livro (para não dizer: diante do livro inteiro) o leitor tem a
impressão de que está não frente a um teólogo ou um intelectual que estuda com
objetividade e sem paixões o seu tema, mas, sim, diante de um escritor
tendencioso e preconcebido, como são muitas vezes os adversários da Igreja, que
afirmam sem conhecer bem (e sem querer conhecer bem) o assunto, pois estão
interessados em denegrir e caricaturar passionalmente. Entende-se (embora não
se justifique) que um não especialista combativo proceda de tal maneira, mas
não se compreende que um teólogo como Frei Leonardo o faça. A propósito
tenham-se em vista as páginas 96, 100, 140, 143, 144 e outras.
1.2. Linguagem ambígua
L. Boff usa vocabulário e linguagem que
freqüentemente têm o sabor da ambigüidade – o que não se admite nem num livro
científico nem num livro de ampla divulgação. Assim:
a) “Estamos no fim das reformas, urge
re-criar (a Igreja)” (pág. 101). Significa isto que vamos destruir todo o
passado e recomeçar atualmente a história da Igreja, como o quis fazer Lutero
no século XVI e como até hoje fazem os discípulos de Lutero, criando centenas
de denominações, das quais as últimas já não são cristãs?
b) À pág. 126 lê-se: “No Novo Testamento
constata-se a irredutibilidade de várias posições teológicas; existem
contradições entre elas, assim entre S. Mateus e a epístola aos Gálatas, a
epístola aos Romanos e a epístola de São Tiago. Mesmo dentro do corpus paulinum
constatam-se contradições entre Rm 7,12 e Gl 3,13, concernindo à valorização da
lei judaica” (pág. 126). – Ora as palavras “contradições” e “irredutibilidade”
são, no mínimo, ambivalentes ou impróprias. O que há no Novo Testamento, são
enfoques diversos ou a consideração de aspectos diferentes da mesma realidade
que é a Lei de Moisés e a justificação; esses aspectos, julgados diversamente
pelos Apóstolos, se complementam mutuamente e não são irredutíveis uns aos
outros. Com efeito; São Paulo considera a entrada na graça ou na justiça (que
se faz pela fé sem as obras), ao passo que São Tiago e São Mateus consideram a
perseverança na justiça (que não ocorre sem obras); São Paulo mesmo ora
focaliza a Lei de Moisés enquanto é santa e preceitua a santidade de vida (Rm),
ora focaliza a Lei enquanto foi ocasião a que Israel conhecesse a sua fraqueza
(Gl).
c) À p. 127, o autor fala da relatividade
das fórmulas de fé e da necessidade de criar novas expressões da verdade
revelada… Seria bom matizar esta afirmação: Paulo VI, na sua encíclica
“Mysterium fidei” em 1965, lembrou a necessidade de guardar, apesar de tudo,
certos termos e fórmulas aos quais se prende desde séculos a expressão da
mensagem revelada; algo de análogo se deu em 1972 por parte da S. Congregação
para a Doutrina da Fé na sua Instrução “Mysterium Filii Dei”. O abandono de
certas expressões clássicas ocasionou e pode ocasionar perigo para a própria
mensagem.
d) À p. 119 algo de semelhante ocorre em
relação às páginas do Novo Testamento. Citando o autor protestante W. Marxsen,
Leonardo Boff fala da “maneira dogmática de se ler os textos do Novo
Testamento. Esta maneira dogmática considera pura e simplesmente, sem dar-se
conta das mediações históricas, que o Novo Testamento é sem mais Palavra de
Deus. Utiliza os textos dogmaticamente para justificar doutrinas, fundamentar
inapelavelmente medidas disciplinares da Igreja. Portanto o catolicismo assume
aqui novamente uma conotação pejorativa, como uma forma patológica de se viver
e sentir a mensagem cristã”. – Perguntamo-nos: que significa isto? O Novo
Testamento não pode ser tomado como fonte donde depreendamos as verdades da fé?
Cremos que o autor não quer dizer isto, mas poderia ser interpretado como se o
quisesse dizer.
e) Todo o cap. VII é uma exaltação do
sincretismo! Sincretismo, no caso, quer dizer: capacidade de assimilar
elementos novos sem destruição do essencial (pág. 170). Curioso, porém: o autor
acha que “foi um erro histórico a exclusão do protestantismo” (pág. 141). Acha
(?) que as mudanças na Igreja podem ocorrer à semelhança da conversão do pão e
do vinho no corpo e sangue de Cristo na Missa; cf. pág. 109, nº 41 (citando uma
poesia de Lothar Zenetti).
1.3. Influência marxista
O leitor não pode deixar de perceber
certa influência do marxismo (ou de aspectos tendenciosos e discutíveis do
marxismo) nas expressões e nas categorias assumidas pelo autor.
Assim às págs. 91-93, L. Boff transcreve um
texto atribuído a um analista brasileiro, deixado no anonimato, sendo apenas
citada no rodapé da pág. 93 a obra-fonte com título francês: “L’Église et la
politique au Brésil” (sem local e ano de edição), “75-78”. Esse trecho, assaz longo, compara a
autoridade na Igreja com a autoridade no Partido Comunista da União Soviética
antes da revolução chinesa! Haveria
entre ambos um paralelismo de estruturas e de comportamentos (pág. 93). Esta
afirmação é, no mínimo, estranha e despropositada. À pág. 217 Emile Durkheim é
associado às autoridades doutrinárias que L. Boff tenciona seguir (o autor se faz discípulo de
gente muito pouco cristã). Se tais
afirmações fossem proferidas por um comunista, tendencioso e superficial, não
causariam surpresa; mas, ditas por um teólogo, que não pode deixar de conhecer
matizes e facetas da matéria, torna-se algo de incompreensível e estarrecedor.
A mesma comparação entre Igreja e marxismo reaparece à pág. 67.
À pág. 94, nº 20, os Papas Leão XIII e Pio
XI são tidos como mais afins aos ideais do fascismo do que aos do liberalismo
ou socialismo! A obsessão por ver ideologias em tudo é grande… – L. Boff cita
Ch. Dawson, Religion and Modern State, N. Y., 1936, 135-136 para se fundamentar
no caso.
Às págs. 184-187, a divisão do trabalho na
Igreja condiciona as classes na Igreja.
À pág. 75 lê-se na Igreja alguns detêm os
meios de produção religiosa e, consequentemente, “detêm o poder, criam e
controlam o discurso oficial”. Seriam os membros da hierarquia. Os demais fiéis
seriam os meros consumidores de tais bens. L. Boff julga que os detentores dos
meios de produção “elaboram a sua correspondente teologia, que vem justificar,
reforçar e socializar o seu poder, atribuindo origem divina à forma histórica
de seu exercício” (pág. 76)! – Concepções marxistas aí estão subjacentes,
desfigurando por completo a imagem da vida e do magistério da Igreja. Ademais a
afirmação de L. Boff deveria ser comprovada, pois ela resulta de um esquema
concebido a priori e aplicado cegamente à Igreja. Um teólogo não ignora quanto
é artificial ou falsa a tese de L. Boff (ou do marxismo) quando aplicada à
Igreja.
Às págs. 176s, o autor enfatiza o princípio
de que “o eixo organizador de uma sociedade reside no seu modo de produção
peculiar … Esta atividade é infra-estrutural e sobre ela se constrói tudo o
mais na sociedade… Também a Igreja é condicionada, limitada e orientada pelo
modo de produção específico”. Para ilustrar e corroborar tal asserção, Boff
cita à pág. 177 A. Gramsci, um dos mentores do marxismo na Itália. O autor,
portanto, recorre às categorias de análise marxista da sociedade, categorias
que são materialistas e atéias e, por conseguinte, jamais poderão servir para
construir uma autêntica teologia; de resto, o uso das mesmas foi explicitamente
condenado pelo S. Padre João Paulo II em discurso proferido aos Bispos do CELAM
aos 2/07/80: “A libertação cristã … não recorre … à praxis ou análise marxista,
pelo perigo de ideologização a que se expõe a reflexão teológica, quando se realiza
partindo de uma praxis que recorre à análise marxista. Suas conseqüências são a
total politização da existência cristã, a dissolução da linguagem da fé na das
ciências sociais e o esvaziamento da dimensão transcendental da salvação
cristã”.
O c. VIII (págs. 172-195) é também
altamente significativo, apresentando as características de uma Igreja
articulada com a classe hegemônica e as características de uma Igreja
articulada com as classes subalternas. Mais uma vez tem-se, subjacente, o
esquema marxista de classe opressora e classe oprimida. O pobre seria sempre
uma epifania do Senhor? Todo pobre é
sempre um espoliado ou um empobrecido? Cf.
pág. 186. Será que a akribía (exatidão), científica permite afirmar isto
sem mais? Cf. PR 247/1980, p. 282-291 (que significa pobre no Documento de
Puebla?).
1.4. O papel da exegese protestante liberal
O autor confia plenamente nas sentenças dos
exegetas protestantes mais liberais, que tentam interpretar os Evangelhos e a
figura de Cristo segundo referenciais racionalistas e assaz duvidosos (porque
subjetivos). Por isso L. Boff julga que Jesus mesmo não fundou a Igreja, mas
que esta se deriva da vontade dos apóstolos inspirados pelo Espírito Santo
(págs. 222s 216). A bibliografia citada por Frei Leonardo é, em grande parte,
protestante liberal, ficando as clássicas obras da teologia católica relegadas
para o plano do superado.
2. A Igreja no livro em foco
Frei Leonardo não deixa de reconhecer que
na Igreja há elementos divinos e elementos humanos (pág. 221) e que a Igreja é
sacramento (pág. 130s)… Todavia tais afirmações são raras e pálidas no conjunto
do livro, onde a Igreja é geralmente tratada como sociedade meramente humana,
na qual teriam prevalecido os abusos de homens gananciosos e prepotentes. De
modo especial a secção das págs. 60-76 é caricatural, com veste de aparato
científico.
Tem-se a impressão de que, segundo Boff, a Igreja autêntica seria
governada pelo povo de Deus, que deveria ter nos bispos e no Papa os seus
representantes, de tal modo que não se justificaria a distinção entre Igreja
discente e Igreja docente:
“A hierarquia se sente membro da Ecclesia
discens e o leigo membro da Ecclesia docens.
Cada qual é mestre e discípulo um do outro e todos seguidores do
Evangelho. Na coexistência e simultaneidade das duas funções, deve-se entender
o apelo de Jesus para que ninguém se deixe chamar de mestre, pai ou diretor
espiritual, pois todos somos irmãos (cf. Mt 23, 8-10)” (pág. 215).
Pergunta-se então: qual o critério para discernir verdade e erro
se todos são mestres e discípulos? Seria o Espírito Santo, que falaria no
íntimo dos fiéis? Tal critério está sujeito a ser manipulado pelo subjetivismo,
como demonstra a história do Protestantismo, cujas últimas denominações não
reconhecem mais a Divindade de Cristo (cf. Mórmons, Testemunhas de Jeová,
Estudiosos da Bíblia).
Paulo Freire é citado para provar que a
distinção entre docente e discente é patológica e desumanizante. A Paulo Freire
são contrapostas as figuras dos Papas Gregório XVI (+ 1846) e Pio X (+ 1914);
L. Boff cita frases destes Pontífices que evidentemente eram condicionadas pela
necessidade de rejeitar o liberalismo e o modernismo da respectiva época. Cf.
pág. 218. Seria desejável a menção, muito mais
importante, do “carisma seguro da verdade”, que o Concílio do Vaticano II
atribui aos Bispos para guardarem e transmitirem autenticamente a mensagem da
fé (cf. Constituição Dei Verbum nº 8).
Se alguém quer dizer que os carismáticos devem governar a Igreja, não
esqueça tal carisma peculiar dos Bispos. Diz explicitamente o Concílio:
“O ofício de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita
ou transmitida foi confiado unicamente ao magistério vivo da Igreja, cuja
autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo. Tal magistério
evidentemente não está acima da Palavra de Deus, mas a seu serviço, não
ensinando senão o que foi transmitido …; com a assistência do Espírito Santo,
piamente ausculta aquela Palavra, santamente a guarda e fielmente a expõe” (Dei
Verbum nº 10).
Assim vemos que carisma e autoridade (=
poder, na linguagem do livro em foco) não se opõem entre si. Deve haver
autoridade na Igreja (e isto, por instituição do próprio Cristo; cf. Mt
16,16-19; Lc 22, 31s; Jo 21,5-17…); todavia essa autoridade não é comparável à
que os homens detêm e exercem em sociedades meramente humanas, mas é autoridade
carismática, ou seja, apoiada por especial carisma (= dom) de Deus para jamais
levar o povo de Deus a erros em matéria de fé e de moral, antes para fazê-lo
reconhecer cada vez mais as exigências do Evangelho sempre que isto se torne
necessário. Mesmo os Papas de vida moral mais censurável, como Alexandre VI
(1492-1503), nunca emitiram um decreto que contrariasse à fé e à moral da
Igreja. Numa palavra, a autoridade na Igreja é serviço (diakonía), e não
exercício de poder arbitrário.
Se não se admite essa carisma indefectível da verdade (que está
acima da erudição dos teólogos, embora precise desta), é natural que se caia no
Protestantismo e, muito especialmente, no Protestantismo congregacionalista
(onde a congregação dos fiéis se governa na mais autêntica forma
democrática).

Na verdade, a autoridade na Igreja vem de Cristo, que
prolonga sua tríplice função sacerdotal, profética e pastoral nos ministros que
Ele escolhe e ordena e que exercem suas funções não por delegação dos fiéis,
mas por disposição do próprio Cristo (cf. discurso de João Paulo II aos
ordenados no Maracanã aos 2/07/80); mesmo que haja eleição de Bispos, o eleito
não recebe do povo a sua autoridade, mas de Cristo mediante os eleitores. Compreende-se até certo ponto que deva
haver autoridade forte na Igreja, pois esta não é obra humana. Se fosse criação
de homens, logicamente poderia ser retocada e re-criada por homens, as suas
decisões seriam tomadas simplesmente por maioria de votos; deveria prevalecer
exclusivamente o bom senso fundamentado sobre razões filosóficas ou científicas.
Acontece, porém, que a Igreja não é sociedade meramente humana; é, sim,
sacramentum, ou seja, realidade sensível que assinala e transmite uma realidade
divina, isto é, a presença e a graça de Cristo. Por isto os pastores da Igreja
têm o dever de preservar a mensagem da fé e as autênticas expressões desta não
segundo critérios puramente humanos, mas segundo os critérios que a S.
Escritura, colocada dentro da Tradição viva da Igreja, aponta ao povo de Deus;
para realizar esta função, o magistério da Igreja goza de especial assistência
do Espírito (cf. Mt 16,16-19; Lc 22,31s; Jo 21, 15-17; 14,26); tal assistência
não depende da santidade ou das faltas dos pastores da Igreja, mas se exerce
sempre que a Igreja se deva pronunciar oficialmente em matéria de fé e de
costumes.
Houve, sem dúvida, no passado da
Igreja atitudes de Papas e Bispos fortemente autoritárias, que não correspondem
ao modo de pensar e agir nem dos eclesiásticos nem do mundo de hoje.
Observe-se, porém, que não se pode julgar o passado à luz das categorias de
pensar e agir do presente. Os antigos praticavam de boa fé o que nos pode parecer
hoje inaceitável; a geração que hoje acusa o passado, será um dia veementemente
acusada pelas futuras gerações. Não se pode esquecer, por exemplo, que São
Francisco de Assis, Santa Clara, S. Tomás de Aquino, S. Alberto Magno, S.
Boaventura e outros santos e sábios viveram em pleno século XIII, que foi um
século de Inquisição, e não deixaram uma palavra de protesto contra esta. –
Aliás, sempre houve santos entre os Papas e pastores da Igreja através dos seus
vinte séculos; viveram o amor a Deus e o serviço aos irmãos tão generosamente
quanto lhes sugeriam as circunstâncias de sua época.
Todo fiel católico deve reconhecer que
entre os pastores da Igreja de Cristo confiada a Pedro houve e há falhas
intelectuais e morais. Mas isto não o impede de afirmar que, através das mãos
humanas dos clérigos (às vezes, manchadas e poluídas), passou e passa incólume
o ouro de Deus para todos os fiéis. Ainda poderíamos citar numerosas passagens
do livro de Frei L. Boff merecedoras de observações. O livro está, de ponta a
ponta, inspirado pelos princípios que assinalamos até aqui. Tais princípios e
as aplicações que dos mesmos faz L. Boff, se tomados a sério, levar-nos-iam a dizer
que a eclesiologia de Boff é camufladamente protestante.As considerações propostas neste artigo
permanecem no plano dos estudos, onde é lícito (e, às vezes, necessário)
discordar; principalmente quando se trata das verdades da fé, o dever de
fidelidade aos autênticos mananciais (no caso, ao Senhor Jesus) é duplamente
imperioso. Cremos que as hipóteses e as afirmações de Frei Leonardo, entregues
à ampla divulgação num estilo “gostoso” de sátira e caricatura “científica”,
são destinadas a destruir mais do que a construir, pois o autor não oferece ao
leitor a ocasião de ver outros aspectos que ele aborda; ele não ajuda o leitor
a criticar e a matizar as posições assumidas no livro; ao contrário, o autor da
obra usa de estilo que parece dirimente … ou mesmo esmagador de qualquer tese
contrária (quando na verdade se trata de um conjunto, em grande parte,
subjetivo, oscilante e vulnerável).
Cremos que Frei Leonardo, sincero como é, não deixará de refletir sobre
estes tópicos.

APÊNDICE
A fim de evidenciar aos nossos leitores que
as críticas à obras de Frei Leonardo Boff procedem também de outras fontes,
como são os teólogos e recenseadores de livros europeus, já em junho de 1980
publicamos nesta revista uma recensão do livro “Jesus Cristo Libertador” elaborada
pelo Pe. Leroy O. P. (cf. PR 246/1980), págs. 243-248). Neste fascículo publicaremos uma recensão da
eclesiologia de Frei Leonardo Boff tal como aparece em livro congênere ao que
acabamos de analisar, ou seja, no volume UNA IGLESIA QUE NACE DEL PUEBLO (Ediciones
Sigueme, Salamanca 1979, págs. 523). Esta obra compreende duas partes. A
primeira contém os relatórios e as exposições proferidas no Encontro das
Comunidades Eclesiais de Base ocorrido em Vitória (Brasil) de 6 a 8 de Janeiro
de 1975. A segunda parte apresenta os ecos do Encontro das mesmas realizado
também em Vitória (ES) de 29/07 a 1/08/1976; nessa secção da obra acham-se os
estudos de seis peritos, a saber: o sociólogo protestante Jether Pereira
Ramalho, o Pe. Eduardo Hoornaert, o sociólogo católico Pedro Ribeiro de
Oliveira, o Pe. João Batista Libânio S. J., Frei Carlos Mesters e Frei Leonardo
Boff. A respeito do texto deste último o Pe. A. Perego S. J. escreveu uma
apreciação na revista Divus Thomas de Piacenza, 83.3, 1980, págs. 289-291, que
se segue em tradução portuguesa:
“O sexto estudo, de Leonardo Boff,
estende-se na descrição das comunidades de base como redescoberta ou, melhor,
como refundação da Igreja. O ensaio-rio de Boff contém muitas páginas válidas e
estimulantes; infelizmente, porém, apresenta muitas outras que confundem as
idéias e não respeitam a doutrina da Igreja. Além de descrever a Igreja latina
pré-conciliar com traços caricaturais, além de contrapor a Igreja-instituição e
a Igreja carismática e além de pretender gratuitamente que a comunidade tenha
precedido, no tempo, a organização (págs. 495s), o discurso do autor é
contaminado por escatologismo de baixo jaez. Afirma que Jesus viveu sob o
pesadelo da iminência escatológica do Reino e se enganou redondamente a este
propósito (pág. 475). Aceita de olhos
fechados a tese de Loisy segundo a qual “Cristo pregou o Reino de Deus e, no
lugar deste, veio a Igreja” (págs. 477, 479), como também aceita a tese de Küng
conforme a qual Cristo “não fundou nenhuma Igreja”, mas colocou apenas
premissas para que a Igreja surgisse depois da sua morte (pág. 478). A Igreja
dos gentios estava totalmente fora do horizonte de Jesus e os doze Apóstolos
não podem ser chamados “Igreja em miniatura” (pág. 480). Pedro, fundamento da
Igreja, como refere Mt 16,18, é apenas uma explicação etiológica1 (págs.
481-482). A faculdade de ligar e
desligar é apenas de caráter doutrinário, e Pedro tem função de representante
mais do que de chefe da comunidade (pág. 482).
Jesus falhou (?) no intuito de instaurar o Reino, mas não desesperou;
e Deus realizou a sua expectativa, concretizando o Reino na pessoa de
Jesus. A Igreja assim substitui, de certo modo, o Reino não realizado, na
medida em que é comunidade que continua a pregá-lo como se estivesse já
realizado em Jesus (págs. 484-485).
A última ceia, com a instituição da
Eucaristia e do sacerdócio do Novo Testamento, não é elemento constitutivo da
Igreja, mas uma simples antecipação festiva do Reino que Jesus julgava pudesse
irromper de um momento para o outro no mundo (pág. 483). A Igreja,
essencialmente “Igreja dos gentios” (pág. 485), helenizável e helenizada (pág.
486), não nasceu em Pentecostes, mas depois: os Apóstolos não suspeitaram nem
mesmo que a Igreja tivesse nascido em Pentecostes; nesta ocasião eles ainda esperavam
ver Jesus aparecer sobre as nuvens (pág. 487).

Por isto a Igreja, não instituída por
Cristo, “nasceu de uma decisão dos Apóstolos” e, se a Igreja “nasceu de uma
decisão dos Apóstolos movidos pelo Espírito, então é claro, conclui o autor,
que à Igreja toca essencialmente o poder de decisão comunitária, disciplinar e
dogmática”, em conseqüência, a Igreja está ilimitadamente aberta a toda
adaptação espácio-temporal sobre qualquer ponto, mesmo no que diz respeito à
sagrada hierarquia (págs. 489-490); esquece o autor que esta é de iure divino.
“O episcopado, o presbiterado e as outras
funções perdurarão” (pág. 491), diz o autor; mas logo depois acrescenta que “o
importante não está neste ponto, mas no poder decisório da Igreja” (pág.
491). Em conseqüência, torna-se legítimo
falar de “reinvenção” da Igreja (pág. 492); no caso particular da Eucaristia,
se a Igreja o quisesse recebido o sacramento da Ordem. Seria até conveniente
que, na atual situação de escassez de ministros ordenados, fossem delegados alguns
leigos como ministros extraordinários para celebrar a Eucaristia. A sua
celebração, porém, não se deveria chamar Missa, nem ser executada segundo o
Ritual da Missa, mas chamar-se-ia Ceia do Senhor e se desenrolaria segundo um
procedimento inventado pela criatividade popular (págs. 493-502).
Não é necessário que nos detenhamos em
mostrar a inconciliabilidade destas opiniões do autor com a fé da Igreja.
Acrescentemos apenas duas coisas. A primeira é que, em todos estes pontos, o
autor, longe de ser original, segue acriticamente alguns autores modernos ditos
“de crista da onda”, dos quais imita também a pouco louvável astúcia de
rotular, como questões disputadas, as explanações nas quais são contrabandeadas
doutrinas espúrias. A segunda é a imperdoável leviandade com que o autor
líquida em bloco toda a séria e sólida teologia pré-conciliar como se fosse um
acervo de “teses dogmáticas de antemão estipuladas” (pág. 491).
"O livro se encerra sob o signo
do entusiasmo e apresentando conclusões que nos parecem precisar de ser
repensadas; tem aos montes, premissas inadmissíveis ou bastante discutíveis
como são muitas das opiniões expressas pelos relatores".
A. PEREGO
1 Explicação etiológica … Isto quer dizer
que o episódio de Mt 16, 16-18 teria sido forjado pelas comunidades cristãs
primitivas para explicar a causa (aitia, em grego) do primado exercido pelos
Bispos de Roma, em virtude de iniciativa própria e não por mandato de
Jesus. A propósito pode-se observar que
as frases de Jesus em Mt 16, 16-19 só se podem entender se foram
originariamente proferidas em aramaico pelo próprio Jesus. Nenhuma comunidade
cristã de língua grega teria “inventado” tal discurso de Jesus, pois a língua
grega não usava as expressões que o texto de Mt 16,16-19 apresenta: Bar-jona,
carne e sangue, Pai que está nos céus, portas do inferno, ligar-desligar,
Kepha-kepha (em grego dir-se-ia Petros, petra, e não haveria trocadilho). Donde se vê que não se pode negar a
autenticidade da promessa de primado feita a Pedro em Mt 16, 16-19.
Fonte - Revista : “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº : 260 – ano : 1982 – Pág. 15
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