Acusa-se tal movimento de ser condescendente com a culpabilidade da Igreja, que segundos estudiosos, é bem menor do que julgam os promotores, e de deturpar o caminho divino, colocando-o em segundo plano diante da missão terrena de ajudar os pobres.
Posição
oficial da Igreja Católica sobre a TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO:
Na Igreja
Católica, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou dois documentos sobre
esta teologia:
1º)- Libertatis
nuntius ("Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da
Libertação"), em 1984.
2º)- Libertatis
Conscientia, de 1986.
Os documentos,
defendem a importância do compromisso radical para com os pobres, porém
considera a teologia da libertação herética, por fazer uma releitura marxista e
de outras ideologias políticas (materialista e atéia) da religião, é
incompatível com a doutrina católica.Outros afirmam
que o que ocorreu não foi uma crítica ou repressão ao movimento em si, mas sim
correção de certos exageros de alguns de seus representantes (como sacerdotes
mais tendentes à política).O Papa João Paulo II dirigiu uma carta à CNBB, em
9 de abril de 1986, pedindo o verdadeiro desenvolvimento desta teologia, ao
excluir-se seus príncipios incorretos:“Na medida em que se empenha por encontrar aquelas respostas
justas,penetradas de compreensão para com a rica experiência da Igreja neste
País, tão eficazes e construtivas quanto possível e ao mesmo tempo consonantes
e coerentes com os ensinamentos do Evangelho, da Tradição viva e do perene
Magistério da Igreja,estamos convencidos, nós e os senhores, de que a Teologia
da Libertação é não só oportuna, mas útil e necessária. Ela deve constituir uma
nova etapa em estreita conexão com as anteriores, daquela reflexão teológica
iniciada com a tradição apostólica e continuada com os grandes padres e
doutores, com o magistério ordinário e extraordinário e, na época mais recente,
com o rico patrimônio da Doutrina Social da Igreja expressa em documentos que
vão da Rerum Novarum a Laborem Exercens. Os pobres deste país, que tem nos
senhores os seus pastores, os pobres deste continente são os primeiros a sentir
urgente necessidade deste evangelho da libertação radical e integral. Sonegá-lo
seria defraudá-los e desiludi-los.Para concluir, o texto incita ao verdadeiro
desenvolvimento da Teologia da Libertação "de modo homogêneo e não
heterogêneo com relação à teologia de todos os tempos, em plena fidelidade à
doutrina da Igreja, atenta a um amor preferencial e não excludente nem
exclusivo para com os pobres." - Assim a Igreja
Católica rejeita qualquer doutrina que foque exclusivamente nos aspectos
materiais do homem, e exclua Deus. Desse modo, o então Cardeal Ratzinger, no
retiro espiritual que pregou ao Papa João Paulo II, e aos Cardeais em 1986,
escreveu: "Sem resposta para a fome da verdade, sem cura das
doenças da alma ferida por causa da mentira ou, numa palavra, sem a verdade e
sem Deus, o homem não se pode se salvar(nem libertar-se). Aqui descobrimos a
essência da mentira do demônio. Deus aparece na sua visão do mundo como
supérfluo, desnecessário à salvação do homem. Deus é um luxo dos ricos. Segundo
ele, a única coisa decisiva é o pão, a matéria. O centro do homem seria o
estômago.E perguntou o Cardeal Ratzinger, falando aos Cardeais:
"Porventura não existe uma tendência, também entre nós, de adiar o anúncio
da verdade de Deus, para antes fazer as coisas mais necessárias ? Vemos, porém,
que um desenvolvimento econômico sem desenvolvimento espiritual destrói o homem
e o mundo".
Reposicionamentos e críticas:
Clodovis Boff,
professor da PUC/PR e importante teórico da Teologia da Libertação, irmão do
ex-padre Leonardo Boff, escreveu um longo artigo apontando
importantes desvios na teologia da libertação.
Sintetiza sua crítica em dois pontos:
1)-A Teologia
da Libertação, devido à sua ambiguidade epistemológica, acabou se
desencaminhando: colocou os pobres em lugar de Cristo.
2)- Dessa
inversão de fundo resultou um segundo equívoco: instrumentalização da fé
"para" a libertação. Erros fatais, por comprometerem os bons frutos
desta oportuna teologia."
Com o
envelhecimento de seus mais importantes teólogos, vozes importantes de dentro
do movimento passaram a apoiar o reposicionamento da Teologia da Libertação como
Teologia da Cidadania.
SAGRADA
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ - INSTRUÇÃO
SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
INTRODUÇÃO
O
Evangelho de Jesus Cristo é mensagem de liberdade e força de libertação. Esta
verdade essencial tornou-se, nos últimos anos, objeto da reflexão dos teólogos,
com uma nova atenção que, em si mesma, é rica de promessas.A
libertação é antes de tudo e principalmente libertação da escravidão radical do
pecado. Seu objetivo e seu termo é a liberdade dos filhos de Deus, que é dom da
graça. Ela exige, por uma consequência lógica, a libertação de muitas outras
escravidões, de ordem cultural, económica, social e política, que, em última
análise, derivam todas do pecado e constituem outros tantos obstáculos que
impedem os homens de viver segundo a própria dignidade. Discernir com clareza o
que é fundamental e o que faz parte das consequências, é condição indispensável
para uma reflexão teológica sobre a libertação.Na
verdade, diante da urgência dos problemas, alguns são levados a acentuar
unilateralmente a libertação das escravidões de ordem terrena e temporal, dando
a impressão de relegar ao segundo plano a libertação do pecado e portanto de
não atribuir-lhe praticamente a importância primordial que lhe compete. A
apresentação dos problemas por eles proposta torna-se por isso confusa e ambígua.
Outros, com a intenção de chegarem a um conhecimento mais exato das causas das
escravidões que desejam eliminar, servem-se, sem a suficiente precaução
crítica, de instrumentos de pensamento que é difícil, e até mesmo impossível,
purificar de uma inspiração ideológica incompatível com a fé cristã e com as
exigências éticas que dela derivam.A
Congregação para a Doutrina da Fé não pretende tratar aqui o vasto tema da
liberdade cristã e da libertação em si mesmo. Propõe-se fazê-lo num documento
posterior, no qual porá em evidência, de maneira positiva, toda a sua riqueza,
tanto para a doutrina como para a prática.A
presente Instrução tem uma finalidade mais precisa e mais limitada: quer chamar
a atenção dos pastores, dos teólogos e de todos os fiéis, para os desvios e
perigos de desvio, prejudiciais à fé e à vida cristã, inerentes a certas formas
da teologia da libertação que usam, de maneira insuficientemente crítica,
conceitos assumidos de diversas correntes do pensamento marxista.Esta
advertência não deve, de modo algum, ser interpretada como uma desaprovação de
todos aqueles que querem responder generosamente e com autêntico espírito
evangélico à « opção preferencial pelos pobres ».Nem
pode, de maneira alguma, servir de pretexto para aqueles que se refugiam numa
atitude de neutralidade e de indiferença diante dos trágicos e urgentes
problemas da miséria e da injustiça. Pelo contrário, é ditada pela certeza de
que os graves desvios ideológicos que ela aponta levam inevitavelmente a trair
a causa dos pobres.Mais do que nunca,
convém que grande número de cristãos, com uma fé esclarecida e decididos a
viver a vida cristã na sua totalidade, se empenhem, por amor a seus irmãos
deserdados, oprimidos ou perseguidos, na luta pela justiça, pela liberdade e
pela dignidade humana. Hoje mais do que nunca, a Igreja propõe-se condenar os
abusos, as injustiças e os atentados à liberdade, onde quer que eles aconteçam
e quaisquer que sejam seus autores, e lutar, com os seus próprios meios, pela
defesa e promoção dos direitos do homem, especialmente na pessoa dos pobres.
I
- UMA ASPIRAÇÃO
1.
A poderosa e quase irresistível aspiração dos povos à libertação constitui
um dos principaissinais dos tempos que a Igreja deve perscrutar e
interpretar à luz do Evangelho.[1] Este
fenómeno marcante de nossa época tem uma amplidão universal, manifesta-se porém
em formas e em graus diferentes conforme os povos. È sobretudo entre os povos
que experimentam o peso da miséria e entre as camadas deserdadas que esta
aspiração se exprime com vigor.
2.
Esta aspiração traduz a percepção autêntica, ainda que obscura, da dignidade do
homem, criado « à imagem e semelhança de Deus » (Gên 1, 26-27),
rebaixada e menosprezada por múltiplas opressões culturais, políticas, raciais,
sociais e económicas, que muitas vezes se acumulam.
3.
Ao revelar-lhes a sua vocação de filhos de Deus, o Evangelho suscitou no
coração dos homens a exigência e a vontade positiva de uma vida fraterna, justa
e pacífica, na qual cada pessoa possa encontrar o respeito e as condições da
sua auto-realização espiritual e material. Esta exigência encontra-se, sem
dúvida, na raiz da aspiração de que falamos.
4.
Por consequência, o homem já não está disposto a sujeitar-se, passivamente ao
peso esmagador da miséria, com suas sequelas de morte, doenças e depauperamento.
Sente profundamente esta miséria como una intolerável violação da sua dignidade
original. Muitos fatores, entre os quais é preciso incluir o fermento
evangélico, contribuíram para o despertar da consciência dos oprimidos.
5.
Já não se ignora, mesmo nos segmentos da população ainda dominados pelo
analfabetismo, que, graças ao maravilhoso progresso das ciências e das
técnicas, a humanidade, em constante crescimento demográfico, seria capaz de
assegurar a cada ser humano um mínimo de bens exigidos pela sua dignidade de
pessoa.
6.
O escândalo das gritantes desigualdades entre ricos e pobres – quer se trate de
desigualdades entre países ricos e países pobres, ou de desigualdades entre
camadas sociais dentro de um mesmo território nacional – já não é tolerado. De
um lado, atingiu-se uma abundância jamais vista até agora, que favorece o
desperdício; e, de outro lado, vive-se ainda numa situação de indigência,
marcada pela privação dos bens de primeira necessidade, de modo que já não se
conta mais o número das vítimas da subnutrição.
7.
A falta de equidade e de sentido de solidariedade nos intercâmbios
internacionais reverte de tal modo em benefício dos países industrializados,
que a distância entre ricos e pobres aumenta sem cessar. Daí o sentimento de
frustração, entre os povos do Terceiro Mundo, e a acusação de exploração e de
colonialismo económico lançada contra os países industrializados.
8.
A recordação dos estragos causados por um certo tipo de colonialismo e de suas
consequências aviva muitas vezes feridas e traumatismos.
9.
A Sé Apostólica, na linha do Concílio
Vaticano II, bem como as Conferências Episcopais, não
têm cessado de denunciar o escândalo que constitui a gigantesca corrida
armamentista que, além das ameaças que faz pesar sobre a paz, absorve enormes
somas, uma parcela das quais seria suficiente para acudir às necessidades mais
urgentes das populações privadas do necessário.
II
- EXPRESSÕES DESTA ASPIRAÇÃO
1.
A aspiração pela justiça e pelo reconhecimento efetivo da dignidade de cada ser
humano, como qualquer outra aspiração profunda, exige ser esclarecida e
orientada.
2.
Com efeito, é um dever usar de discernimento acerca das expressões,
teóricas e práticas, desta aspiração. Pois existem numerosos movimentos
políticos e sociais que se apresentam como porta-vozes autênticos da aspiração
dos pobres e como habilitados, mesmo com o recurso a meios violentos, a
realizar as transformações radicais que poriam fim à opressão e à miséria do
povo.
3. Deste modo, a
aspiração pela justiça encontra-se muitas vezes prisioneira de ideologias que
ocultam ou pervertem o seu sentido, propondo à luta dos povos para a sua
libertação objetivos que se opõem à verdadeira finalidade da vida humana e
pregando meios de ação que implicam o recurso sistemático à violência, contrários
a uma ética que respeite as pessoas.
4.
A interpretação dos sinais dos tempos à luz do Evangelho exige
pois que se perscrute o sentido da aspiração profunda dos povos pela justiça,
mas, ao mesmo tempo, que se examinem, com um discernimento crítico, as
expressões teóricas e práticas que são componentes desta aspiração.
III
- A LIBERTAÇÃO, TEMA CRISTÃO
1.
Considerada em si mesma, a aspiração pela libertação não pode deixar de
encontrar eco amplo e fraterno no coração e no espírito dos cristãos.
2.
Assim, em consonância com esta aspiração, nasceu o movimento teológico e
pastoral conhecido pelo nome de « teologia da libertação »: num primeiro
momento nos países da América Latina, marcados pela herança religiosa e
cultural do cristianismo; em seguida, nas outras regiões do Terceiro Mundo, bem
como em alguns ambientes dos países industrializados.
3. A expressão «
teologia da libertação » designa primeiramente uma preocupação privilegiada,
geradora de compromisso pela justiça, voltada para os pobres e para as vítimas
da opressão. A partir desta abordagem podem-se distinguir diversas maneiras,
frequentemente inconciliáveis, de conceber a significação cristã da pobreza e o
tipo de compromisso pela justiça que ela exige. Como todo movimento de ideias,
as « teologias da libertação » englobam posições teológicas diversificadas;
suas fronteiras doutrinais são mal definidas.
4.
A aspiração pela libertação, como o próprio termo indica, refere-se
a um tema fundamental do Antigo e do Novo Testamento. Por isso, tomada em si
mesma, a expressão « teologia da libertação » é uma expressão perfeitamente
válida: designa, neste caso, uma reflexão teológica centrada no tema bíblico da
libertação e da liberdade e na urgência de suas incidências práticas. A
convergência entre a aspiração pela libertação e as teologias da libertação não
é pois fortuita. O significado desta convergência não pode ser compreendido
corretamente se não à luz da especificidade da mensagem da Revelação,
autenticamente interpretada pelo Magistério da Igreja.[2]
IV
- FUNDAMENTOS BÍBLICOS
1.
Uma teologia da libertação corretamente entendida constitui, pois, um convite
aos teólogos a aprofundarem certos temas bíblicos essenciais, com o espírito
atento às graves e urgentes questões que a atual aspiração pela libertação e os
movimentos de libertação, eco mais ou menos fiel dessa aspiração, põem à Igreja.
Não é possível esquecer, por um só instante, as situações de dramática miséria
de onde brota a interpelação assim lançada aos teólogos.
2. A experiência
radical da liberdade cristã[3] constitui
aqui o primeiro ponto de referência. Cristo, nosso Libertador, libertou-nos do
pecado e da escravidão da lei e da carne, que constitui a marca da condição do
homem pecador. Ê pois a vida nova da graça, fruto da justificação, que nos
torna livres. Isto significa que a mais radical das escravidões é a escravidão
do pecado. As demais formas de escravidão encontram pois, na escravidão do
pecado, a sua raiz mais profunda. É por isso que a liberdade, no pleno sentido
cristão, caracterizada pela vida no Espírito, não pode ser confundida com a
licença de ceder aos desejos da carne. Ela é vida nova na caridade.
3
As « teologias da libertação » recorrem amplamente à narração do Livro do Êxodo.
Este constitui, de fato, o acontecimento fundamental na formação do Povo
eleito. É preciso não perder de vista, contudo, que a significação específica
do acontecimento provém de sua finalidade, já que esta libertação está
orientada para a constituição do povo de Deus e para o culto da Aliança
celebrado no Monte Sinai.[4] Por isso a libertação do Êxodo não pode ser
reduzida a uma libertação de natureza prevalentemente ou exclusivamente
política. É significativo, de resto, que o termo libertação seja ás vezes substituído na Sagrada Escritura
pelo outro, muito semelhante, de redenção.
4.
Jamais se apagará da memoria de Israel o episódio que originou o Êxodo. Ele é o
ponto de referência quando, após a destruição de Jerusalém e o Exílio de
Babilónia, o Povo eleito vive na esperança de uma nova
libertação e, para além dessa, na expectativa de uma libertação definitiva.
Nesta experiência, Deus é reconhecido como o Libertador. Ele estabelecerá com
seu povo uma nova Aliança, marcada pelo dom do seu Espírito e pela conversão
dos corações.[5]
5.
As múltiplas angústias e desgraças experimentadas pelo homem fiel ao Deus da
Aliança servem de tema para diversos salmos: lamentações, pedidos de socorro,
ações de graças referem-se à salvação religiosa e à libertação. Neste contexto,
a desgraça não se identifica pura e simplesmente com uma condição social de
miséria ou com a sorte de quem sofre opressão política. Ela inclui também a
hostilidade dos inimigos, a injustiça, a morte e a culpa. Os salmos nos remetem
a uma experiência religiosa essencial: somente de Deus se espera a salvação e o
remédio. Deus, e não o homem, tem o poder de mudar as situações de angústia.
Assim, os « pobres do Senhor » vivem numa dependência total e confiante na
providência amorosa de Deus.[6] Aliás,
durante toda a travessia do deserto, o Senhor nunca deixou de prover à
libertação e à purificação espirituais de seu povo.
6.
No Antigo Testamento, os profetas, desde Amos, não cessam de recordar, com
particular vigor, as exigências da justiça e da solidariedade e de formular um
juizo extremamente severo sobre os ricos que oprimem o pobre. Tomam a defesa da
viúva e do órfão. Proferem ameaças contra os poderosos: a acumulação de
iniquidades acarretará necessariamente terríveis castigos. Isto porque não se
concebe a fidelidade à Aliança sem a prática da justiça. A justiça em relação a
Deus e a justiça em relação aos homens são inseparáveis. Deus é o defensor e o
libertador do pobre.
7.
Semelhantes exigências encontram-se também no Novo Testamento. Ali são até
radicalizadas, como demonstra o discurso das Bem-aventuranças.
Conversão e renovação devem operar-se no mais íntimo do coração.
8.
Já anunciado no Antigo Testamento, o mandamento do amor fraterno estendido a
todos os homens constitui agora a suprema norma da vida social.[7] Não
há discriminações ou limites que possam opor-se ao reconhecimento de todo e
qualquer homem como o próximo.[8]
9.
A pobreza por amor ao Reino é exaltada. E na figura do Pobre, somos levados a
reconhecer a imagem e como que a presença misteriosa do Filho de Deus que se
fez pobre por nosso amor.[9]Este
é o fundamento das inexauríveis palavras de Jesus sobre o Juízo, em Mt 25,
31-46. Nosso Senhor é solidário com toda desgraça; toda desgraça leva a marca
de sua presença.
10.
Contemporaneamente as exigências da justiça e da misericórdia, já enunciadas no
Antigo Testamento, são aprofundadas a ponto de revestirem no Novo Testamento
uma significação nova. Aqueles que sofrem ou são perseguidos são identificados
com Cristo.[10] A
perfeição que Jesus exige de seus discípulos (Mt 5, 18) consiste no
dever de serem misericordiosos « como vosso Pai é misericordioso » (Lc 6,
36).
11.
É à luz da vocação cristã ao amor fraterno e à misericórdia que os ricos são
severamente admoestados para que cumpram o seu dever.[11]São
Paulo, perante as desordens na Igreja de Corinto, acentua vigorosamente a
ligação que existe entre tomar parte no sacramento do amor e repartir o pão com
o irmão que se encontra em necessidade.[12]
12.
A Revelação do Novo Testamento nos ensina que o pecado é o mal mais profundo,
que atinge o homem no cerne da sua personalidade. A primeira libertação, ponto
de referência para as demais, é a do pecado.
13.
Se o Novo Testamento se abstém de exigir previamente, como pressuposto para a
conquista desta liberdade, uma mudança da condição política e social, é sem
dúvida, para salientar o caráter radical da emancipação trazida por Cristo,
oferecida a todos os homens, sejam eles livres ou escravos politicamente.
Contudo a Carta a Filêmon mostra que a nova liberdade, trazida
pela graça de Cristo, deve necessariamente ter repercussão também no campo
social.
14.
Não se pode portanto restringir o campo do pecado, cujo primeiro efeito é o de
introduzir a desordem na relação entre o homem e Deus, àquilo que se denomina «
pecado social ». Na verdade, só uma adequada doutrina sobre o pecado permitirá
insistir sobre a gravidade de seus efeitos sociais.
15.
Não se pode tampouco situar o mal unicamente ou principalmente nas « estruturas
» económicas, sociais ou políticas, como se todos os outros males derivassem
destas estruturas como de sua causa: neste caso a criação de um « homem novo »
dependeria da instauração de estruturas económicas e socio-políticas
diferentes. Há, certamente, estruturas iníquas e geradoras de iniquidades, e é
preciso ter a coragem de mudá-las. Fruto da ação do homem, as estruturas boas
ou más são consequências antes de serem causas. A raiz do mal se encontra pois
nas pessoas livres e responsáveis, que devem ser convertidas pela graça de
Jesus Cristo, para viverem e agirem como criaturas novas, no amor ao próximo,
na busca eficaz da justiça, do auto-domínio e do exercício das virtudes.[13] Ao
estabelecer como primeiro imperativo a revolução radical das relações sociais e
ao criticar, a partir desta posição, a busca da perfeição pessoal, envereda-se
pelo caminho da negação do sentido da pessoa e de sua transcendência, e
destroem-se a ética e o seu fundamento, que é o caráter absoluto da distinção
entre o bem e o mal. Ademais, sendo a caridade o princípio da autêntica
perfeição, esta não pode ser concebida sem abertura aos outros e sem espírito
de serviço.
V
- A VOZ DO MAGISTÉRIO
1. Para responder ao desafio lançado à nossa época pela opressão e pela fome, o Magistério da Igreja, com a preocupação de despertar as consciências cristãs para o sentido da justiça, da responsabilidade social e da solidariedade para com os pobres e os oprimidos, relembram repetidamente a atualidade e a urgência da doutrina e dos imperativos contidos na Revelação.
2. Limitamo-nos a mencionar aqui apenas algumas destas intervenções: os pronunciamentos pontifícios mais recentes, Mater et Magistra e Pacem in terris, Populorum progressio eEvangelii nuntiandi. Mencionemos ainda a carta ao Cardeal Roy, Octogésima adveniens.
3. O Concílio Vaticano II, por sua vez, tratou as questões da justiça e da liberdade na Constituição pastoral Gaudium et spes.
4. O Santo Padre insistiu em diversas oportunidades neste tema, particularmente nas encíclicasRedemptor hominis, Dives in Misericórdia e Laborem exercens. As numerosas intervenções que relembram a doutrina dos direitos do homem tocam diretamente nos problemas da libertação da pessoa humana em face dos diversos tipos de opressão de que é vítima. É preciso citar, especialmente neste contexto, o discurso proferido diante da XXXVI Assembleia geral da ONU, em New-York, no dia 2 de outubro de 1979.[14] No dia 28 de janeiro do mesmo ano, João Paulo II, ao abrir a Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Puebla, havia recordado que a verdade completa sobre o homem é a base da verdadeira libertação.[15]Este texto constitui um documento de referência direta para a teologia da libertação.
5. Por duas vezes, em 1971 e 1974, o Sínodo dos Bispos tratou de temas que se referem diretamente à concepção cristã da libertação: o tema da justiça no mundo e o tema da relação entre a libertação das opressões e a libertação integral ou a salvação do homem. Os trabalhos dos Sínodos de 1971 e de 1974 levaram Paulo VI a esclarecer, na Exortação apostólica Evangelii nuntiandi, a relação que existe entre a evangelização e a libertação ou a promoção humana.[16]
6. A preocupação da Igreja pela libertação e pela promoção humana traduziu-se também no fato da constituição da Pontifícia Comissão Justiça e Paz.
7. Numerosos Episcopados, de acordo com a Santa Sé, têm lembrado também eles a urgência e os caminhos para uma autêntica libertação humana. Neste contexto convém fazer menção especial dos documentos das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano de Medellin, em 1968, e de Puebla, em 1979. Paulo VI esteve presente na abertura de Medellin, João Paulo II na de Puebla. Ambos os Papas trataram do tema da conversão e da libertação.
8. Seguindo as pegadas de Paulo VI, insistindo na especificidade da mensagem do Evangelho,[17]especificidade que deriva da sua origem divina, João Paulo II, no discurso de Puebla, lembrou quais são os três pilares sobre os quais deve assentar una autêntica teologia da libertação: a verdade sobre Jesus Cristo, a verdade sobre a Igreja e a verdade sobre o homem.[18]
VI
- UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DO CRISTIANISMO
1.
Não se pode esquecer a ingente soma de trabalho desinteressado realizado por
cristãos, pastores, sacerdotes, religiosos e leigos que, impelidos pelo amor a
seus irmãos que vivem em condições desumanas, se esforçam por prestar auxílio e
proporcionar alívio aos inumeráveis males que são frutos da miséria. Entre
eles, alguns se preocupam por encontrar os meios eficazes que permitam pôr fim,
o mais depressa possível, a uma situação intolerável.
2.
O zelo e a compaixão, que devem ocupar um lugar no coração de todos os
pastores, correm por vezes o risco de se desorientar ou de serem desviados para
iniciativas não menos prejudiciais ao homem e à sua dignidade do que a própria
miséria que se combate, se não se prestar suficiente atenção a certas
tentações.
3. O sentimento
angustiante da urgência dos problemas não pode levar a perder de vista o
essencial, nem fazer esquecer a resposta de Jesus ao Tentador (Mt 4, 4): « Não só de pão vive o
homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus » (Dt 8, 3). Assim, sucede que
alguns, diante da urgência de repartir o pão, são tentados a colocar entre
parênteses e a adiar para amanhã a evangelização: primeiro o pão, a Palavra
mais tarde. É um erro fatal separar as duas coisas, até chegar a opô-las. O
senso cristão, aliás, espontaneamente sugere a muitos que façam uma e outra.[19]
4.
A alguns parece até que a luta necessária para obter justiça e liberdade
humanas, entendidas no sentido económico e político, constitua o essencial e a
totalidade da salvação. Para estes, o Evangelho se reduz a um evangelho
puramente terrestre.
5.
É em relação à opção preferencial pelos pobres, reafirmada com
vigor e sem meios termos, após Medellin, na Conferência de Puebla[20] de
um lado, e à tentação de reduzir o Evangelho da salvação a um evangelho
terrestre, de outro lado, que se situam as diversas teologias da
libertação.
6.
Lembremos que a opção preferencial, definida em Puebla, é dupla:
pelos pobres e pelos jovens.[21] É
significativo que a opção pela juventude seja, de maneira geral, totalmente
silenciada.
7.
Dissemos acima (cf. IV, 1) que existe uma autêntica « teologia da libertação »,
aquela que lança raízes na Palavra de Deus, devidamente interpretada.
8.
Mas sob um ponto de vista descritivo, convém falar das teologias
da libertação, pois a expressão abrange posições teológicas, ou até mesmo
ideológicas, não apenas diferentes, mas até, muitas vezes, incompatíveis entre
si.
9.
No presente documento tratar-se-á somente das produções daquela corrente de
pensamento que, sob o nome de « teologia da libertação », propõem uma
interpretação inovadora do conteúdo da fé e da existência cristã, interpretação
que se afasta gravemente da fé da Igreja, mais ainda, constitui uma negação
prática dessa fé.
10.
Conceitos tomados por empréstimo, de maneira a-crítica, à ideologia marxista e
o recurso a teses de uma hermenêutica bíblica marcada pelo racionalismo
encontram-se na raiz da nova interpretação, que vem corromper o que havia de
autêntico no generoso empenho inicial em favor dos pobres.
1. A impaciência e o
desejo de ser eficazes levaram alguns cristãos, perdida a confiança em qualquer
outro método, a voltarem-se para aquilo que chamam de « análise marxista ».
2. Seu raciocínio é o
seguinte: uma situação intolerável e explosiva exige uma ação eficaz que não pode mais ser adiada. Uma ação
eficaz supõe uma análise
científica das causas estruturais da miséria. Ora, o marxismo
aperfeiçoou um instrumental para semelhante análise. Bastará pois aplicá-lo à
situação do Terceiro Mundo e especialmente à situação da América Latina.
3.
Que o conhecimento científico da situação e dos possíveis caminhos de
transformação social seja o pressuposto de uma ação capaz de levar aos objetivos
prefixados, é evidente. Vai nisto um sinal de seriedade no compromisso.
4.
O termo « científico », porém, exerce uma fascinação quase mítica; nem tudo o
que ostenta a etiqueta de científico o é necessariamente. Por isso tomar
emprestado um método de abordagem da realidade é algo que deve ser precedido de
um exame crítico de natureza epistemológica. Ora, este prévio exame crítico
falta a várias « teologias da libertação ».
5. Nas ciências
humanas e sociais, convém estar atento antes de tudo à pluralidade de métodos e
de pontos de vista, cada um dos quais põe em evidência um só aspecto da
realidade; esta em virtude de sua complexidade, escapa a uma explicação
unitária e unívoca.
6.
No caso do marxismo, tal como se pretende utilizar na conjuntura de que
falamos, tanto mais se impõe a crítica prévia, quanto o pensamento de Marx
constitui uma concepção totalizante do mundo, na qual numerosos dados de
observação e de análise descritiva são integrados numa estrutura
filosófico-ideológica, que determina a significação e a importância relativa
que se lhes atribui. Os a priori ideológicos são pressupostos
para a leitura da realidade social. Assim, a dissociação dos elementos
heterogéneos que compõem este amálgama epistemologicamente híbrido torna-se
impossível, de modo que, acreditando aceitar somente o que se apresenta como
análise, se é forçado a aceitar, ao mesmo tempo, a ideologia. Por isso não é
raro que sejam os aspectos ideológicos que predominem nos empréstimos que
diversos « teólogos da libertação » pedem aos autores marxistas.
7. A advertência
de Paulo VI continua ainda
hoje plenamente atual: através do marxismo, tal como è vivido concretamente,
podem-se distinguir diversos aspectos e diversas questões propostas à reflexão
e à ação dos cristãos. Entretanto, « seria ilusório e perigoso chegar ao ponto
de esquecer o vínculo estreito que os liga radicalmente, aceitar os elementos
da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia, entrar na
prática da luta de classes e de sua interpretação marxista sem tentar perceber
o tipo de sociedade totalitária à qual este processo conduz ».[22]
8.
É verdade que desde as origens, mais acentuadamente porém nestes últimos anos,
o pensamento marxista se diversificou, dando origem a diversas correntes que
divergem consideravelmente entre si. Na medida, porém, em que se mantêm
verdadeiramente marxistas, estas correntes continuam a estar vinculadas a um
certo número de teses fundamentais que não são compatíveis com a concepção
cristã do homem e da sociedade. Neste contexto, certas fórmulas não são
neutras, mas conservam a significação que receberam na doutrina marxista
original. É o que acontece com a « luta de classes ». Esta expressão continua
impregnada da interpretação que Marx lhe deu e não poderia, por conseguinte,
ser considerada, como um equivalente, de caráter empírico, da expressão «
conflito social agudo ». Aqueles que se servem de semelhantes fórmulas,
pretendendo reter apenas certos elementos da análise marxista,, que de resto
seria rejeitada na sua globalidade, alimentam pelo menos um grave mal-entendido
no espírito de seus leitores.
9. Lembremos que o
ateísmo e a negação da pessoa humana,, de sua liberdade e de seus direitos,
encontram-se no centro da concepção marxista. Esta contém de fato erros que
ameaçam diretamente as verdades de fé sobre o destino eterno das pessoas. Ainda
mais: querer integrar na teologia uma « análise » cujos critérios de
interpretação dependam desta concepção ateia, significa embrenhar-se em
desastrosas contradições. O desconhecimento da natureza espiritual da pessoa,
aliás, leva a subordiná-la totalmente à coletividade e deste modo a negar os
princípios de uma vida social e política em conformidade com a dignidade
humana.
10.
O exame crítico dos métodos de análise tomados de outras disciplinas impõe-se
de maneira particular ao teólogo. É a luz da fé que fornece à teologia seus
princípios. Por isso a utilização, por parte dos teólogos, de elementos
filosóficos ou das ciências humanas tem um valor « instrumental » e deve ser
objeto de um discernimento crítico de natureza teológica. Em outras palavras, o
critério final e decisivo da verdade não pode ser, em última análise, senão um
critério teológico. É à luz da fé, e daquilo que ela nos ensina sobre a verdade
do homem e sobre o sentido último de seu destino, que se deve julgar da
validade ou do grau de validade daquilo que as outras disciplinas propõem, de
resto, muitas vezes à maneira de conjectura, como sendo verdades sobre o homem,
sobre a sua história e sobre o seu destino.
11.
Aplicados à realidade económica, social e política de hoje, certos esquemas de
interpretação tomados de correntes do pensamento marxista podem apresentar, à
primeira vista, alguma verosimilhança na medida em que a situação de alguns
países oferece analogias com aquilo que Marx descreveu e interpretou, em meados
do século passado. Tomando por base estas analogias, operam-se simplificações
que, abstraindo de fatores essenciais específicos, impedem, de fato, uma
análise verdadeiramente rigorosa das causas da miséria, mantêm as confusões.
12.
Em certas regiões da América Latina, a monopolização de grande parte das
riquezas por uma oligarquia de proprietários desprovidos de consciência social,
a quase ausência ou as carências do estado de direito, as ditaduras militares
que conculcam os direitos elementares do homem, o abuso do poder por parte de
certos dirigentes, as manobras selvagens de um certo capital estrangeiro,
constituem outros tantos fatores que alimentam um violento sentimento de
revolta junto àqueles que, deste modo, se consideram vítimas impotentes de um
novo colonialismo de cunho tecnológico, financeiro, monetário ou económico. A
tomada de consciência das injustiças é acompanhada por un pathos que
pede muitas vezes emprestado ao marxismo seu discurso, apresentado abusivamente
como sendo um discurso « científico ».
13.
A primeira condição para uma análise é a total docilidade à realidade que se
pretende descrever. Por isso, uma consciência crítica deve acompanhar o uso das
hipóteses de trabalho que se adotam. É necessário saber que elas correspondem a
um ponto de vista particular, o que tem por consequência inevitável sublinhar
unilateralmente certos aspectos do real, deixando outros na sombra. Esta
limitação, que deriva da natureza das ciências sociais, é ignorada por aqueles
que, à guisa de hipóteses reconhecidas como tais, recorrem a uma concepção
totalizante, como é o pensamento de Marx.
1.
Esta concepção totalizante impõe assim a sua lógica e leva as « teologias da
libertação » a aceitar um conjunto de posições incompatíveis com a visão cristã
do homem. Com efeito, o núcleo ideológico, tomado do marxismo e, que serve de
ponto de referência, exerce a função de princípio determinante.
Este papel lhe é confiado em virtude da qualificação de científico,
quer dizer, de necessariamente verdadeiro, que lhe é atribuída. Neste núcleo
podem-se distinguir diversos componentes.
2. Na lógica do
pensamento marxista, a « análise » não é dissociável da praxis e da concepção da
história à qual esta praxis está
ligada, A análise é pois um instrumento de crítica e a crítica não passa de uma
etapa do combate revolucionário. Este combate é o da classe do Proletariado investido
de sua missão histórica.
3. Em consequência,
somente quem participa deste
combate pode fazer uma análise correta.
4.
A consciência verdadeira é pois uma consciência « partidarista ». Pelo que se
vê, é a própria concepção da verdade que aqui está em causa e que se encontra
totalmente subvertida: não existe verdade – afirma-se – a não ser na e pela
praxis « partidarista ».
5.
A praxis e a verdade que dela deriva, são praxis e
verdade partidaristas, porque a estrutura fundamental da história está marcada
pela luta de classes. Existe pois uma necessidade objetiva de
entrar na luta de classes (que é o reverso dialético da relação de exploração
que se denuncia). A verdade é a verdade de classe – não há verdade senão no
combate da classe revolucionária.
6.
A lei fundamental da história, que é a lei da luta de classes, implica que a
sociedade esteja fundada sobre a violência. À violência que constitui a relação
de dominação dos ricos sobre os pobres deverá responder a contra-violência
revolucionária, mediante a qual esta relação será invertida.
7. A luta de classes é
pois apresentada como uma lei objetiva e necessária. Ao entrar no seu processo,
do lado dos oprimidos, « faz-se » a verdade, age-se « cientificamente ». Em
consequência, a concepção da verdade vai de par com a afirmação da violência
necessária e, por isso, com a do amoralismo político. Nesta perspectiva, a
referência a exigências éticas, que prescrevam reformas estruturais e
institucionais radicais e corajosas perde totalmente o sentido.
8.
A lei fundamental da luta de classes tem um caráter de globalidade e de
universalidade. Ela se reflete em todos os domínios da existência, religiosos,
éticos, culturais e institucionais. Em relação a esta lei, nenhum destes
domínios é autónomo. Em cada um esta lei constitui o elemento determinante.
9.
Quando se assumem estas teses de origem marxista é, em particular, a própria
natureza da ética qui é radicalmente questionada. De fato, o caráter
transcendente da distinção entre o bem e o mal, princípio da moralidade,
encontra-se implicitamente negado na ótica da luta de classes.
IX
- TRADUÇÃO « TEOLÓGICA » DESTE NÚCLEO IDEOLÓGICO
1.
As posições aqui expostas encontram-se às vezes enunciadas com todos os seus
termos em alguns escritos de « teólogos da libertação ». Em outros, elas se
deduzem logicamente das premissas colocadas. Em outros ainda, elas são
pressupostas em certas práticas litúrgicas (como por exemplo a « Eucaristia »
transformada em celebração do povo em luta), embora quem participa destas
práticas não esteja plenamente consciente disso. Estamos pois diante de um
verdadeiro sistema, mesmo quando alguns hesitam em seguir a sua lógica até o
fim. Como tal, este sistema é uma perversão da mensagem cristã, como esta foi
confiada por Deus à Igreja. Esta mensagem se encontra pois posta em xeque, na
sua globalidade, pelas « teologias da libertação ».
2. Não é o fato das estratificações
sociais, com as conexas desigualdades e injustiças, é a teoriada luta de classes como lei
estrutural fundamental da história que é recebida por estas « teologias da
libertação », na qualidade de princípio. A conclusão a que se chega é que a
luta de classes, entendida deste modo, divide a própria Igreja e em função dela
se devem julgar as realidades eclesiais. Pretende-se ainda que afirmar que o
amor, na sua universalidade, é um meio capaz de vencer aquilo que constitui a
lei estrutural primária da sociedade capitalista, seria manter, de má fé, uma
ilusão falaz.
3.
Dentro desta concepção, a luta de classes é o motor da história. A história
torna-se assim uma noção central. Afirmar-se-á que Deus se fez história.
Acrescentar-se-á que não existe senão uma única história, na qual já não é
preciso distinguir entre história da salvação e história profana. Manter a
distinção seria cair no « dualismo ». Semelhantes afirmações refletem um
imanentismo historicista. Tende-se deste modo a identificar o Reino de Deus e o
seu advento com o movimento de libertação humana e a fazer da mesma história o
sujeito de seu próprio desenvolvimento como processo da auto-redenção do homem
por meio de luta de classes. Esta identificação está em oposição com a fé da
Igreja, como foi relembrada pelo Concílio Vaticano II.[23]
4.
Nesta linha, alguns chegam até ao extremo de identificar o próprio Deus com a
história e a definir a fé como « fidelidade à história », o que significa
fidelidade comprometida com uma prática política, afinada com a concepção do
devir da humanidade concebido no sentido de um messianismo puramente temporal.
5.
Por conseguinte, a fé, a esperança e a caridade recebem um novo conteúdo: são «
fidelidade à história », « confiança no futuro », « opção pelos pobres ». É o
mesmo que dizer que são negadas em sua realidade teologal.
6.
Desta nova concepção deriva inevitavelmente uma politização radical das afirmações
da fé e dos juízos teológicos. Já não se trata somente de chamar a atenção para
as consequências e incidências políticas das verdades de fé que seriam
respeitadas antes de tudo em seu valor transcendente. Toda e qualquer afirmação
de fé ou de teologia se vê subordinada a um critério político, que, por sua
vez, depende da teoria da luta de classes, como motor da história.
7.
Apresenta-se por conseguinte o ingresso na luta de classes como uma exigência
da própria caridade; denuncia-se como atitude desmobilizadora e contrária ao
amor pelos pobres a vontade de amar, de saída, todo homem, qualquer que seja a
classe a que pertença, e de ir ao seu encontro pelas vias não-violentas do
diálogo e da persuasão. Mesmo afirmando que ele não pode ser objeto de ódio,
afirma-se com a mesma força que, pelo fato de pertencer objetivamente ao mundo
dos ricos, ele é, antes de tudo, um inimigo de classe a combater. Como
consequência, a universalidade do amor ao próximo e a fraternidade
transformam-se num princípio escatológico que terá valor somente para o « homem
novo », que surgirá da revolução vitoriosa.
8.
Quanto à Igreja, a tendência é de encará-la simplemente como uma realidade
dentro da história, sujeita ela também às leis que, segundo se pensa, governam
o devir histórico na sua imanência. Esta redução esvazia a realidade específica
da Igreja, dom da graça de Deus e mistério da fé. Contesta-se, igualmente, que
a participação na mesma Mesa eucarística de cristãos que, por acaso, pertençam
a classes opostas, tenha ainda algum sentido.
9.
Na sua significação positiva, a Igreja dos pobres indica a
preferência, sem exclusivismo, dada aos pobres, segundo todas as formas de
miséria humana, porque eles são os prediletos de Deus. A expressão significa
ainda que a Igreja, como comunhão e como instituição, assim como os membros da
mesma Igreja, tomam consciência, em nosso tempo, das exigências da pobreza
evangélica.
10.
Mas as « teologias da libertação », que têm o mérito de haver revalorizado os
grandes textos dos profetas e do Evangelho acerca da defesa dos pobres, passam
a fazer um amálgama pernicioso entre o pobre da Escritura e
o proletariado de Marx. Perverte-se deste modo o sentido cristãodo
pobre e o combate pelos direitos dos pobres transforma-se em combate de classes
na perspectiva ideológica da luta de classes. A Igreja dos pobres significa
então Igreja classista, que tomou consciência das necessidades da luta
revolucionária como etapa para a libertação e que celebra esta libertação na
sua liturgia.
11.
É necessário fazer uma observação análoga a respeito da expressão Igreja
do povo. Do ponto de vista pastoral, pode-se entender com essa expressão os
destinatários prioritários da evangelização, aqueles para os quais, em virtude
de sua condição, se volta primeiro que tudo o amor pastoral da Igreja. É
possível referir-se também à Igreja como « povo de Deus », ou seja, como o povo
da Nova Aliança realizada em Cristo.[24]
12.
As « teologias da libertação », a que aqui nos referimos, porém, entendem
por Igreja do povoa Igreja da luta libertadora organizada. O povo
assim entendido chega mesmo a tornar-se, para alguns, objeto de fé.
13.
A partir de semelhante concepção da Igreja do povo, elabora-se uma crítica das
próprias estruturas da Igreja. Não se trata apenas de uma correção fraterna
dirigida aos pastores da Igreja, cujo comportamento não reflita o espírito
evangélico de serviço e se apegue a sinais anacrónicos de autoridade que escandalizam
os pobres. Trata-se, sim, de pôr em xeque a estrutura sacramental e hierárquica da Igreja, tal como a
quis o próprio Senhor. São denunciados na Hierarquia e no Magistério os
representantes objetivos da classe dominante, que é preciso combater. Teologicamente,
esta posição equivale a afirmar que o povo é a fonte dos ministérios e portanto
pode dotar-se de ministros à sua escolha, de acordo com as necessidades de sua
missão revolucionária histórica.
X
- UMA NOVA HERMENÊUTICA
1.
A concepção partidarista da verdade, que se manifesta na praxis revolucionária
de classe, corrobora esta posição. Os teólogos que não compartilham as teses da
« teologia da libertação », a hierarquia e sobretudo o Magistério romano são
assim desacreditados a priori, como pertencentes à classe dos
opressores. A teologia deles é uma teologia de classe. Os argumentos e
ensinamentos não merecem pois ser examinados em si mesmos, uma vez que refletem
simplesmente os interesses de uma classe. Por isso, decreta-se que o discurso
deles é, em princípio, falso.
2.
Aparece aqui o carácter global e totalizante da « teologia da libertação ». Por
isso mesmo, deve ser criticada não nesta ou naquela afirmação que ela faz, mas
a partir do ponto de vista de classes que ela adopta a priori e
que nela funciona como princípio hermenêutico determinante.
3.
Por causa deste pressuposto classista, torna-se extremamente difícil, para não
dizer impossível, conseguir com alguns « teólogos da libertação » um verdadeiro
diálogo, no qual o interlocutor seja ouvido e seus argumentos sejam discutidos
objetivamente e com atenção. Com efeito estes teólogos mais ou menos
conscientemente, partem do pressuposto de que o ponto de vista da classe
oprimida e revolucionária, que seria o mesmo deles constitui o único ponto de
vista da verdade. Os critérios teológicos da verdade, vêem-se, deste modo,
relativizados e subordinados aos imperativos da luta de classes. Nesta
perspectiva substitui-se a ortodoxia como regra correta da fé
pela ideia da ortopráxis, como critério de verdade. A este
respeito, é preciso não confundir a orientação prática, própria à teologia
tradicional, do mesmo modo e pelo mesmo título que lhe é própria também a
orientação especulativa, com um primado privilegiado, conferido a um
determinado tipo de praxis. Na realidade esta última é a praxis revolucionária
que se tornaria assim critério supremo da verdade teológica. Uma metodologia
teológica sadia toma em consideração, sem dúvida, apraxis da Igreja
e nela encontra um de seus fundamentos, mas isto porque essa praxis é
decorrência da fé e constitui uma expressão vivenciada dessa fé.
4.
A doutrina social da Igreja é rejeitada com desdém. Esta procede, afirma-se, da
ilusão de um possível compromisso, próprio das classes médias, destituídas de sentido
histórico.
5.
A nova hermenêutica inserida nas « teologias da libertação »
conduz a uma releitura essencialmente política da Escritura. É
assim que se atribui a máxima importância ao acontecimento do Êxodo,
enquanto libertação da escravidão política. Propõe-se igualmente una leitura
política do Magnificat. O erro aqui não está em privilegiar uma
dimensão política das narrações bíblicas; mas em fazer desta dimensão a
dimensão principal e exclusiva, o que leva a uma leitura redutiva da Escritura.
6.
Quem assim procede, coloca-se por isso mesmo na perspectiva de um messianismo
temporal, que é uma das expressões mais radicais da secularização do Reino de
Deus e de sua absorção na imanência da história humana.
7.
Privilegiar deste modo a dimensão política, é o mesmo que ser levado a negar a radical
novidade do Novo Testamento e, antes de tudo, a desconhecer a pessoa
de Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, bem como o
caráter específico da libertação que Ele nos traz e que é fundamentalmente
libertação do pecado, fonte de todos os males.
8.
Aliás, pôr de lado a interpretação autorizada do Magistério, denunciada como
interpretação de classe, é afastar-se automaticamente da Tradição. É, par isso
mesmo, privar-se de um critério teológico essencial para a interpretação e
acolher no vazio assim criado, as teses mais radicais da exegese racionalista.
Retoma-se, então, sem espírito crítico, a oposição entre o « Jesus da
história» e o « Jesus da fé ».
9.
Conserva-se, sem dúvida, a letra das fórmulas da fé, especialmente a de
Calcedônia, mas atribui-se a essas fórmulas uma nova significação, que
constitui uma negação da fé da Igreja. De um lado, rejeita-se a doutrina
cristológica apresentada pela Tradição, em nome do critério de classe; e de outro
lado, pretende-se chegar ao « Jesus da história » a partir da experiência
revolucionária da luta dos pobres pela sua libertação.
10.
Pretende-se reviver uma experiência análoga à que teria sido a de Jesus. A
experiência dos pobres lutando por sua libertação, que teria sido a de Jesus, e
só ela, revelaria assim o conhecimento do verdadeiro Deus e do Reino.
11.
É claro que a fé no Verbo encarnado, morto e ressuscitado por todos os homens,
a Quem « Deus fez Senhor e Cristo »[25] é
negada. Toma o seu lugar uma « figura » de Jesus, uma espécie de símbolo que
resume em si mesmo as exigências da luta dos oprimidos.
12.
Propõe-se assim uma interpretação exclusivamente política da morte de Cristo.
Nega-se desta maneira seu valor salvífico e toda a economia da redenção.
13.
A nova interpretação atinge assim todo o conjunto do mistério cristão.
14.
De um modo geral, ela opera o que se poderia chamar de inversão dos símbolos.
Assim, em lugar de ver no Êxodo com São Paulo, uma figura do batismo,[26] se
tenderá ao extremo de fazer deste um símbolo da libertação política do povo.
15.
Pelo mesmo critério hermenêutico, aplicado à vida eclesial e à constituição
hierárquica da Igreja, as relações entre a hierarquia e a « base » tornam-se
relações de dominação que obedecem à lei da luta de classes. A
sacramentalidade, que está na raiz dos ministérios eclesiásticos e que faz da
Igreja uma realidade espiritual que não se pode reduzir a uma análise puramente
sociológica, é simplesmente ignorada.
16.
Verifica-se ainda a inversão dos símbolos no domínio dos sacramentos.
A Eucaristia não é mais entendida na sua verdade de presença sacramental do
sacrifício reconciliador e como dom do Corpo e do Sangue de Cristo. Torna-se
celebração do povo na sua luta. Por conseguinte, a unidade da Igreja é
radicalmente negada. A unidade, a reconciliação, a comunhão no amor não mais
são concebidas como um dom que recebemos de Cristo.[27] É
a classe histórica dos pobres que, mediante o combate, construirá a unidade. A
luta de classes é o caminho desta unidade. A Eucaristia torna-se, deste modo,
Eucaristia de classe. Nega-se também, ao mesmo tempo a força triunfante do amor
de Deus que nos é dado.
XI
- ORIENTAÇÕES
1.
Chamar a atenção para os graves desvios que algumas « teologias da libertação »
trazem consigo não deve, de modo algum, ser interpretado como uma aprovação,
ainda que indireta, aos que contribuem para a manutenção da miséria dos povos,
aos que dela se aproveitam, aos que se acomodam ou aos que ficam indiferentes
perante esta miséria. A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo
amor ao homem, escuta o clamor pela justiça[28] e
deseja responder com todas as suas forças.
2.
Um imenso apelo é assim dirigido à Igreja. Com audácia e coragem, com
clarividência e prudência, com zelo e força de ânimo, com um amor aos pobres
que vai até ao sacrifício, os pastores, como muitos já fazem, hão-de considerar
como tarefa prioritária responder a este apelo.
3.
Todos aqueles, sacerdotes, religiosos e leigos que, auscultando o clamor pela
justiça, quiserem trabalhar na evangelização e na promoção humana, fá-lo-ão em
comunhão com seu bispo e com a Igreja, cada um na linha de sua vocação eclesial
específica.
4.
Conscientes do carácter eclesial de sua vocação, os teólogos colaborarão
lealmente e em espírito de diálogo com o Magistério da Igreja. Saberão
reconhecer no Magistério um dom de Cristo à sua Igreja[29] e
acolherão a sua palavra e as suas orientações com respeito filial.
5.
Somente a partir da tarefa evangelizadora, tomada em sua integralidade, se
compreendem as exigências de uma promoção humana e de uma libertação
autênticas. Esta libertação tem como pilares indispensáveis, a verdade sobre Jesus Cristo, o Salvador, a
verdade sobre a Igreja, a verdade sobre o homem e sobre a sua dignidade.[30] É
à luz das bem-aventuranças, da bem-aventurança dos pobres de coração em
primeiro lugar, que a Igreja, desejosa de ser no mundo inteiro a Igreja dos
pobres, quer servir a nobre causa da verdade e da justiça. Ela se dirige a cada
homem e, por isso mesmo, a todos os homens. Ela é a « Igreja universal. A
Igreja do mistério da encarnação. Não é a Igreja de uma classe ou de uma só
casta. Ela fala em nome da própria verdade. Esta verdade é realista ». Ela leva
a ter em conta « cada realidade humana, cada injustiça, cada tensão, cada luta
».[31]
6.
Uma defesa eficaz da justiça deve apoiar-se na verdade do homem, criado à
imagem de Deus e chamado à graça da filiação divina. O reconhecimento da
verdadeira relação do homem com Deus constitui o fundamento da justiça,
enquanto regula as relações entre os homens. Esta é a razão pela qual o combate
pelos direitos do homem, que a Igreja não cessa de promover, constitui o
autêntico combate pela justiça.
7.
A verdade do homem exige que este combate seja conduzido por meios que estejam
de acordo com a dignidade humana. Por isso o recurso sistemático e deliberado à
violência cega, venha essa de um lado ou de outro, deve ser condenado.[32] Pôr
a confiança em meios violentos na esperança de instaurar uma maior justiça é
ser vítima de uma ilusão fatal. Violência gera violência e degrada o homem.
Rebaixa a dignidade do homem na pessoa das vítimas e avilta esta mesma
dignidade naqueles que a praticam.(O Cristão a exemplo de Cristo, não mata, mas
da a vida).
8.
A urgência de reformas radicais que incidam sobre estruturas que segregam a
miséria e constituem, por si mesma, formas de violência, não pode fazer perder
de vista que a fonte da injustiça se encontra no coração dos homens. Não se
obterão pois mudanças sociais que estejam realmente ao serviço do homem senão
fazendo apelo às capacidades éticas da pessoa e à constante
necessidade de conversão interior.[33] Pois
na medida em que colaborarem livremente, por sua própria iniciativa e em
solidariedade, nestas necessárias mudanças, os homens, despertados no sentido
de sua responsabilidade, crescerão em humanidade. A inversão entre moralidade e
estruturas é própria de uma antropologia materialista, incompatível com a
verdade do homem.
9.
É pois igualmente ilusão fatal crer que novas estruturas darão origem por si
mesmas a um « homem novo », no sentido da verdade do homem. O cristão não pode
desconhecer que o Espírito Santo que nos foi dado é a fonte de toda verdadeira
novidade e que Deus é o senhor da história.
10.
A derrubada, por meio da violência revolucionária, de estruturas geradoras de
injustiças não é pois ipso facto o começo da instauração de um
regime justo. Um fato marcante de nossa época deve ocupar a reflexão de todos
aqueles que desejam sinceramente a verdadeira libertação dos seus irmãos.
Milhões de nossos contemporâneos aspiram legitimamente a reencontrar as
liberdades fundamentais de que estão privados por regimes totalitários e ateus,
que tomaram o poder por caminhos revolucionários e violentos, exatamente em
nome da libertação do povo. Não se pode desconhecer esta vergonha de nosso
tempo: pretendendo proporcionar-lhes liberdade, mantêm-se nações inteiras em
condições de escravidão indignas do homem. Aqueles que, talvez por
inconsciência, se tornam cúmplices de semelhantes escravidões, traem os pobres
que eles quereriam servir.
11. A luta de classes
como caminho para uma sociedade sem classes é um mito que impede as reformas e
agrava a miséria e as injustiças. Aqueles que se deixam fascinar por este mito
deveriam refletir sobre as experiências históricas amargas às quais ele
conduziu. Compreenderiam então que não se trata, de modo algum, de abandonar
uma via eficaz de luta em prol dos pobres em troca de um ideal desprovido de
efeito. Trata-se, pelo contrário, de libertar-se de uma miragem para se apoiar
no Evangelho e na sua força de realização.
12.
Uma das condições para uma necessária retificação teológica é a revalorização
do magistério social da Igreja. Este magistério não é, de modo
algum, fechado. É, ao contrário, aberto a todas as novas questões que não
deixam de surgir no decorrer dos tempos. Nesta perspectiva, a contribuição dos
teólogos e dos pensadores de todas as regiões do mundo para a reflexão da
Igreja é hoje indispensável.
13.
Do mesmo modo, a experiência daqueles que trabalham diretamente na
evangelização e na promoção dos pobres e dos oprimidos é necessária à reflexão
doutrinal e pastoral da Igreja. Neste sentido é preciso tomar consciência de
certos aspectos da verdade a partir da praxis, se por
praxis se entende a prática pastoral e uma prática social que conserva
sua inspiração evangélica.
14.
O ensino da Igreja em matéria social proporciona as grandes orientações éticas.
Mas para que possa atingir diretamente a ação, ele precisa de pessoas
competentes, do ponto de vista científico e técnico, bem como no domínio das
ciências humanas e da política. Os pastores estarão atentos à formação destas
pessoas competentes, profundamente impregnadas pelo Evangelho. São aqui
visados, em primeiro lugar, os leigos, cuja missão específica é a de construir
a sociedade.
15.
As teses das « teologias da libertação » estão sendo largamente difundidas, sob
uma forma ainda simplificada, nos cursos de formação ou nas comunidades de
base, que carecem de preparação catequética e teológica e de capacidade de
discernimento. São assim aceitas, por homens e mulheres generosos, sem que seja
possível um juízo crítico.
16.
É por isso que os pastores devem vigiar sobre a qualidade e o conteúdo da
catequese e da formação que devem sempre apresentar a integralidade da
mensagem da salvação e os imperativos da verdadeira libertação humana,
no quadro desta mensagem integral.
17.
Nesta apresentação integral do mistério cristão, será oportuno acentuar os
aspectos essenciais que as « teologias da libertação » tendem especialmente a
desconhecer ou eliminar: transcendência e gratuidade da libertação em Jesus
Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem; soberania de sua graça; verdadeira
natureza dos meios de salvação, e especialmente da Igreja e dos sacramentos. Tenham-se
presentes a verdadeira significação da ética, para a qual a distinção entre o
bem e o mal não pode ser relativizada; o sentido autêntico do pecado; a
necessidade da conversão e a universalidade da lei do amor fraterno. Chame-se a
atenção contra uma politização da existência, que, desconhecendo ao mesmo tempo
a especificidade do Reino de Deus e a transcendência da pessoa, acaba
sacralizando a política e abusando da religiosidade do povo em proveito de
iniciativas revolucionárias.
18.
É frequente dirigir aos defensores da « ortodoxia » a acusação de passividade,
de indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a situações intoleráveis de
injustiça e de regimes políticos que mantêm estas situações. A conversão
espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o zelo pela justiça e
pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza, são exigidos a todos,
especialmente aos pastores e aos responsáveis. A preocupação pela pureza da fé
não subsiste sem a preocupação de dar a resposta de um testemunho eficaz de
serviço ao próximo e, em especial, ao pobre e ao oprimido, através de uma vida
teologal integral. Pelo testemunho de sua capacidade de amar, dinâmica e
construtiva, os cristãos lançarão, sem dúvida, as bases desta « civilização do
amor » de que falou, depois de Paulo VI, a Conferência de Puebla.[34] De
resto, são numerosos os sacerdotes, religiosos ou leigos, que se consagram de
um modo verdadeiramente evangélico à criação de uma sociedade justa.
As
palavras de Paulo VI, na Profissão de fé do povo de
Deus, exprimem, com meridiana clareza, a fé da Igreja, da qual ninguém pode
afastar-se sem provocar, juntamente com a ruína espiritual, novas misérias e
novas escravidões.« Nós professamos que o Reino de Deus iniciado aqui
na terra, na Igreja de Cristo, não é deste mundo, cuja figura passa, e que seu
crescimento próprio não se pode confundir com o progresso da civilização, da
ciência ou da técnica humanas, mas consiste em conhecer cada vez mais
profundamente as insondáveis riquezas de Cristo, em esperar cada vez mais
corajosamente os bens eternos, em responder cada vez mais ardentemente ao amor
de Deus e em difundir cada vez mais amplamente a graça e a santidade entre os
homens. Mas é este mesmo amor que leva a Igreja a preocupar-se constantemente
com o bem temporal dos homens. Não cessando de lembrar a seus filhos que eles
não têm aqui na terra uma morada permanente, anima-os também a contribuir, cada
qual segundo a sua vocação e os meios de que dispõem, para o bem de sua cidade
terrestre, a promover a justiça, a paz e a fraternidade entre os homens, a
prodigalizar-se na ajuda aos irmãos, sobretudo aos mais pobres e mais
infelizes. A intensa solicitude da Igreja, esposa de Cristo, pelas necessidades
dos homens, suas alegrias e esperanças, seus sofrimentos e seus esforços, nada
mais é do que seu grande desejo de lhes estar presente para os iluminar com a
luz de Cristo e reuni-los todos nele, seu único Salvador. Esta solicitude não
pode, em hipótese alguma, comportar que a própria Igreja se conforme às coisas
deste mundo, nem que diminua o ardor da espera pelo seu Senhor e pelo Reino
eterno ».[35]
O
Sumo Pontífice João Paulo II, no decorrer de uma Audiência concedida ao Cardeal
Prefeito que subscreve este documento, aprovou a presente Instrução, deliberada
em reunião ordinária da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou
que a mesma fosse publicada.
Roma,
Sede da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, 6 de Agosto de 1984, na
Festa da Transfiguração do Senhor.
Joseph
Card. Ratzinger
Prefeito
SB
Alberto Bovone
Arcebispo tit. de Cesárea de Numidia
Secretário
Notas
[1] Cf. Gaudium et spes, n. 4.
[2] Cf. Dei Verbum, n. 10.
[3] Cf. Gál 5, 1 ss.
[4] Cf. Êx 24.
[5] Cf. Jer 31, 31-34; Ez 36, 26 ss.
[6] Cf. Sof 3, 12 ss.
[7] Cf. Deut 10, 18-19.
[8] Cf. Lc 10, 25-27.
[9] Cf. 2 Cor 8, 9.
[10] Cf. Mt 25, 31-46; At 9, 4-5; Col 1, 24.
[11] Cf. Tg 5, 1 ss.
[12] Cf. 1 Cor 11, 17-34.
[13] Cf. Tg 2, 14-26.
[14] Cf. AAS 71, 1979, pp. 1144-1160.
[15] Cf. AAS 71, 1979, p. 196.
[16] Cf. Evangelii nuntiandi, nn. 25-33: AAS 68, 1976, pp. 23-28.
[17] Cf. Evangelii nuntiandi, n. 32: AAS 68, 1976, p. 27.
[18] Cf. AAS 71, 1979, pp. 188-196.
[19] Cf. Gaudium et spes, n. 39; Pio XI, Quadragesimo anno: AAS 23, 1931, p. 207.
[20] Cf. nn. 1134-1165 e nn. 1166-1205.
[21] Cf. Doc. de Puebla, IV, 2.
[22] Paulo PP. VI, Octogesima adveniens, n. 34: AAS 63, 1971, pp. 424-425.
[23] Cf. Lumen gentium, nn. 9-17.
[24] Cf. Gaudium et spes, n. 39.
[25] Cf. At 2, 36.
[26] Cf. 1 Cor 10, 1-2.
[27] Cf. Ef 2, 11-12.
[28] Cf. Doc. de Puebla, I, 2, n. 3. 3.
[29] Cf. Lc 10, 16.
[30] Cf. João Paulo PP. II, Discurso na abertura da Conferência de Puebla: AAS 71, 1979, pp. 188-186.
[31] Cf. João Paulo PP. II, Discurso na Favela « Vidigal», no Rio de Janeiro, 2 de Julho de 1980: AAS 72, 1980, pp. 852-858.
[32] Cf. Doc. de Puebla, II, 2, n. 5. 4.
[33] Cf. Doc. de Puebla, IV, 3, n. 3. 3.
[34] Cf. Doc. de Puebla, IV, 2, n. 2. 4.
[35] Paulo PP. VI, Profissão de Fé do Povo de Deus, 30 de Junho de 1968: AAS 60, 1968, pp. 443-444.
Fonte: Vatican.va
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