“A junta de governo do Brasil atual não precisa, já há muito
tempo, demonstrar que houve um crime. Basta escolher o criminoso, e todo o
resto se arranja”
J.R.
Guzzo - 16 fev 2024 – Revista Oeste
As suposições oficiais da polícia e do ministro Alexandre de Moraes sobre as alegadas tentativas, ou intenções, ou conversas, ou planos, ou desejos, ou pensamentos etc. etc. de um golpe de Estado que seria dado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro já são um dos grandes clássicos do almanaque mundial das investigações criminais. As investigações provaram um fato indiscutível. Nunca houve a mais remota possiblidade de que ele, ou qualquer outro ser vivo, tenha organizado o que se entende como um “golpe de Estado” — de acordo com o dicionário da língua portuguesa e a lógica mais elementar. Ficou provado, aliás, o exato contrário: o suspeito disse que não queria nem iria fazer nada de parecido. Mas os acusadores, e quase toda a mídia, chegaram à conclusão oposta: a culpa é dele. Se não deu o golpe, tentou dar. Se não tentou, quis tentar. Se não quis, pensou em querer.
Enfim, pode não ter acontecido realmente nada, mas o ex-presidente
e a sua turma mais próxima gostariam que acontecesse — pelo que deram a
entender conversando entre si pelo WhatsApp, ou mesmo em reuniões “presenciais”.
A
adesão de quase toda a imprensa à teoria do ministro Moraes sobre o que chamam
de “golpe do Bolsonaro” se faz em cima de algo que está virando o “novo normal”
no Brasil — a lógica que leva a conclusões ilógicas. Funciona assim: “Vamos
demonstrar na reportagem abaixo, por A + B, o que está acontecendo. A: estamos
no mês de fevereiro. B: o mês de fevereiro vem imediatamente antes do mês de
março. Conclusão: o mês que vem é abril”. É esse, basicamente, o jornalismo que
foi apresentado no caso. As matérias se dispunham a provar, fato por fato, que
Bolsonaro tentou, quis, pensou etc. no golpe. Daí expõem, fato por fato, o que
aconteceu — e cada fato, sem exceção, mostra que a única coisa que o
ex-presidente não fez, em suas meditações sobre o assunto no segundo semestre
de 2022, foi pedir a ajuda de alguém para um golpe. A obra-prima da
investigação é uma reunião secreta do ministério — só que a reunião foi filmada,
gravada e fotografada, e nela Bolsonaro só falou de coisas que já tinha falado
antes em público. A mais agressiva de todas, e que ocupou a maior parte da
reunião, foram as suas conhecidíssimas suspeitas sobre as urnas eletrônicas do
TSE.
E o
golpe, mesmo, com aqueles atos absolutamente necessários para se dar um golpe?
Nem uma sílaba na reunião toda, ou depois dela, ou antes.
O que houve de
realmente concreto foi essa coisa das urnas, que a polícia, o ministro e os
jornalistas apresentam como prova de golpe — “desinformação” com intenções
antidemocráticas, pelo que dizem. Se Bolsonaro estava reclamando das urnas é
porque iria dizer, caso perdesse a eleição, que houve fraude na contagem dos
votos — e, em cima disso, decretar que ia continuar na Presidência. Mas ele
perdeu, não disse que houve fraude e não continuou na Presidência. Foi embora
quando acabou o seu mandato. Mais que tudo, não há lei nenhuma que proíba
desconfiar das urnas do TSE — milhões de brasileiros desconfiam, e não vão
confiar nunca. Foi exatamente para falar mal do sistema eleitoral, aliás, que o
próprio Bolsonaro fez a sua palestra fatal para os embaixadores na fase final
da campanha. Por causa disso a Justiça declarou que ele não pode mais ser
candidato a eleição nenhuma — mas não disse que cometeu o crime de “golpe de
Estado”. Mudaram de ideia?
O resumo desta opera, que é em dez ou mais atos, poderia muito bem ser o seguinte: Bolsonaro é o único acusado de golpe no mundo que disse com todas as palavras, segundo a própria peça de acusação, que não admitia dar o golpe. Depois de falar em “providências”, ele disse exatamente o seguinte:
“Não é
providência de força, não. Não é dar tiro, botar a tropa na rua, metralhar aí,
tocar fogo”. Era o quê, então? De novo, segundo as palavras que a polícia
revelou, era colocar os ministros (“o meu exército”, segundo disse) numa ação
conjunta para apontar os problemas que ele via nas urnas do TSE. “Perder
eleição numa democracia não tem problema nenhum”, disse Bolsonaro na reunião
que serve de base principal das denúncias. “Agora, perder a democracia numa
eleição, aí, sim, é que está o problema.”
Foi precisamente o que Lula, o PT e o
“centro civilizado” disseram o tempo inteiro durante a campanha: se Bolsonaro
ganhar a eleição, ele vai acabar com a democracia no Brasil. Mas, para a mídia
quase toda, essas palavras provam que o ex-presidente defendeu “um golpe sem
armas” na reunião. Aí não tem jeito.
Mas quem é que está preocupado, a esta altura, com prova,
aplicação da lei ou simplesmente coisas que façam algum nexo?
No Brasil de Alexandre de Moraes, do STF e dos comunicadores, a última preocupação é provar qualquer das acusações que fazem — pelo menos dentro daquilo que as leis, os regimes democráticos e o raciocínio lógico consideram ser uma prova. Para que prova? A junta de governo do Brasil atual não precisa, já há muito tempo, demonstrar que houve um crime. Basta escolher o criminoso, e todo o resto se arranja — a autoridade que funciona ao mesmo tempo como polícia, promotor e juiz do caso escreve um relatório dizendo que o ângulo reto ferve a 90 graus e que, diante disso, o sujeito é culpado. A mídia garante ao público que o relatório é uma prova irrefutável contra o acusado, e não se fala mais do assunto. O que interessa não é o que aconteceu, e sim o que eles querem que aconteça. E o que eles querem, mais do que qualquer outra coisa que já quiseram na vida, é prender Jair Bolsonaro. No seu entender, é a única maneira de resolver um problema até agora sem solução visível: não dá para ganharem uma única eleição limpa neste país enquanto ele estiver por aí. De um inquérito ilegal que foi transformado em instrumento de governo, passa-se para as prisões ilegais. Daí se vai à cassação ilegal de mandatos parlamentares. Segue-se a decisão ilegal de tornar inelegível um cidadão que não foi condenado por crime nenhum.
Nada do que se fez deu certo até agora. O sistema
STF-TSE-Moraes-Lula conduziu uma campanha eleitoral que Bolsonaro não poderia
ganhar. Tendo perdido, ficaram com medo de que ele disputasse a Presidência de
novo em 2026 — e então proibiram que seja candidato a qualquer cargo público
pelos próximos oito anos. Tendo sido declarado inelegível, constatou-se que
podia continuar influindo na política com seu apoio a candidatos já nas
próximas eleições municipais. Reúne milhares de eleitores quando aparece em
público, ao contrário de um presidente que não pode dar dez passos na rua para
não ser vaiado, e suas lives batem recordes — ainda mais ao contrário de Lula,
cujas tentativas de falar com o público pela internet foram tão ruins que
tiveram de sair do ar, por falta crônica de audiência.
A última
ideia, ora em execução, é colocar Bolsonaro na cadeia; ali ele não vai poder
usar suas redes sociais, fazer as lives, viajar pelo país, ir a comícios.
E a ilegalidade grosseira disso tudo — fora a vergonha mundial de um regime que prende o principal político da oposição, às vésperas de eleições? É quando entram em cena o STF e as provas imaginárias do golpe que não foi dado. Se vai funcionar ou não é coisa que só vai se saber ao certo quando saírem os resultados das eleições para prefeitos e vereadores. Não existe nada de mais odiado hoje no Brasil do que o Supremo — e essa reputação vai, cada vez mais, contaminando a imagem de Lula. Ele não vai dizer, agora, que não tem nada a ver com o STF ou com Alexandre de Moraes, mesmo porque não pode. Lula não é mais ninguém sem os dois; na verdade, continuaria num xadrez da PF em Curitiba se não fossem um e o outro. De mais a mais, quem vai acreditar numa coisa dessas? O problema, nessa história toda, é o que sempre acontece quando o grupo que tem a força vai concentrando na violação da lei a sua ação política.
É preciso, aí, apostar cada vez mais
na ilegalidade; não é possível fazer isso com moderação, nem voltar atrás, pois
nesse caso o outro lado acaba ganhando. De um inquérito ilegal que foi
transformado em instrumento de governo, passa-se para as prisões ilegais. Daí
se vai à cassação ilegal de mandatos parlamentares. Segue-se a decisão ilegal
de tornar inelegível um cidadão que não foi condenado por crime nenhum. Há a
censura ilegal, as tornozeleiras ilegais e a violação ilegal dos direitos dos
advogados.
Agora
estão no primeiro golpe da história em que havia “minutas” por escrito, sem a
assinatura de ninguém, e no qual quem tinha a força armada eram os inimigos do
“golpe”, e não os acusados de serem os golpistas.
A próxima ideia, para o momento em que acharem que dá, é anular o registro do maior partido da oposição, o PL — e o que tem a maior bancada na Câmara dos Deputados, com 99 cadeiras. E daí para a frente? Problemas da democracia se curam com mais democracia, segundo o entendimento comum. Problemas das ditaduras se curam com mais ditadura; como dizia Roberto Campos, ditaduras de esquerda não são biodegradáveis. É o que o consórcio STF-Lula, pelas decisões concretas que os ministros têm tomado há cinco anos, quer fazer no Brasil. Parece ter se tornado uma questão de sobrevivência para eles — ou anulam de vez o sistema legal para continuar mandando, ou correm o risco de não mandar em mais nada no futuro. Uma opção é ir tomando as decisões à medida que as coisas aparecem; cada dia é um dia. No dia de hoje, o STF está operando como se o Brasil estivesse numa espécie de estado de sítio, decretado e governado por ele mesmo. Amanhã é amanhã. Talvez nada ilustre isso tão bem como a prisão do presidente do PL por três dias, com audiência de custódia e tudo, porque a PF encontrou em sua casa uma arma com registro vencido. Isso não existe e nunca existiu na Justiça brasileira, mas aí é que está — na vida como ela é, Alexandre de Moraes provou que está podendo prender quem ele quiser. Daí soltou, para provar que está podendo soltar na hora que quiser. Os assinantes da “Carta em Defesa da Democracia”, os “garantistas” e os que se consideram salvos pelo STF não acharam nada de anormal. O presidente da Câmara, por exemplo, foi desfilar no Carnaval de Maceió; disse que a história toda era um mero “caso de polícia”. A imprensa não lamentou a prisão e não percebeu a soltura. Ou seja: o presidente do maior partido de oposição fica três dias inteiros na cadeia e está tudo bem. As pessoas continuam sendo condenadas a 17 anos de prisão por participarem do quebra-quebra do dia 8 de janeiro — tudo bem, igualmente. Um país de 200 milhões de habitantes é governado por um inquérito policial aberto cinco anos atrás, perpétuo e com teores zero de legalidade. Nada do que se decide ali pode ser contestado por ninguém, nunca. Só são indiciados os adversários do sistema Lula-STF. Não se preveem absolvições. Também aí, nenhum problema.
Falar em
“provas”, a esta altura, vira uma brincadeira — como lembrar o que diz o texto
da lei, ou mencionar as regras do Estado de Direito.
O STF não está
interessado em debates jurídicos, na legalidade do que faz, na hermenêutica ou
na propedêutica. Está pensando unicamente em manter as coisas como estão, até
para a segurança de Alexandre de Moraes e dos demais ministros que se
condenaram a aprovar tudo o que ele faz. Deixou de ser um tribunal de Justiça;
tornou-se uma combinação de delegacia de polícia com vara penal. Não está
claro, até o momento, como o STF pode deixar de ser o que está sendo — nem como
vai modificar as relações de dependência mútua que mantém com o mundo de Lula.
Tendo pela frente um inimigo que não podem suprimir, mas apenas prender, o
Congresso aberto e eleições capazes de dar maioria para a oposição no Senado,
daqui a menos de três anos, é certo que estão contratando problema. O habitual,
em situações como essa ou parecidas, é os radicais ficarem mais radicais. Vão
conseguir o que querem? Aí, como sempre, já são outros 500.
Fonte - https://revistaoeste.com/revista/edicao-204/prova-para-que-prova/
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