É muito comum se ouvir hoje: "EU NÃO ACREDITO EM NADA VINDO DA ESQUERDA..." (e vice-versa). A habilidade narrativa determina quem tem voz. A tensão entre grupos em disputa pela narrativa é tão velha quanto a linguagem. Religiões e impérios espalham suas falas e disputam a atenção. Identificar essas narrativas e a quem servem é o caminho para delimitar quem nos fala e inferir o que nos isola ou ajuda a colaborar. A grande verdade é que não existe narrador isento! Por mais cuidadoso que seja, cada um carrega seu conjunto de valores e é perpassado pelos julgamentos e assunções que vêm com a cultura do grupo. Mesmo que não tenha mensagem específica, o contador de histórias sempre parte de sua visão de mundo.
Dos mitos invisíveis, o que mais me assusta é o que prega que estamos em guerra contra a natureza. A quem serve o cenário de escassez e a narrativa de medo e violência? Ouvir uns aos outros e as histórias que nos chegam de forma profunda e atenta está na raiz da mudança de paradigma da qual depende nossa sobrevivência.
Intuo que nos aproximamos de um divisor de águas: "ou vamos disseminar uma prática viral de colaboração e escuta ou nos estatelar no muro de nossa ganância."
ENCARANDO DE FORMA "EQUILIBRADA E RACIONAL" A GUERRA
DE NARRATIVAS
Por *Januária Cristina Alves
O caminho do amadurecimento é o caminho de
suportar teorias incompletas. Quanto mais sofisticado é o seu aparelho de
pensar, mais você suporta a dúvida. E porque você suporta a dúvida, torna-se um
cientista. A diferença entre a ciência infantil e a ciência adulta – entre a
ciência do homem primitivo e a do homem contemporâneo - é o quanto de dúvida a
sua teoria suporta.” Eis aí um dos grandes desafios do homem moderno: suportar
o não saber quando tem (ou pensa que tem) um mecanismo de busca e pesquisa que
vai lhe contar tudo (ou quase!) sobre o que deseja saber. O conhecimento a um simples clique, acompanhado de sabedoria instantânea. Doce ilusão! A desinformação entrou em cena
para nos mostrar que estamos expostos a um sem número de informações falsas,
imprecisas, adulteradas, equivocadas, parcialmente corretas ou propositadamente
“editadas”. Essa avalanche da “má informação” nos confunde, angustia, deprime,
imobiliza e é aí que mora o perigo.
Ouvi muita gente dizer que estava “desistindo de entender essa guerra” já que há “uma guerra de narrativas” e as versões são tantas, que se corre o risco de não entender a História com “H” maiúsculo. E por que queremos entender a História? Porque somos parte dela, e a estamos construindo, de um jeito ou de outro, tanto no mundo on como no off-line. “As nações se escrevem pelas histórias que contam. A cada dia, mais histórias são criadas que os ucranianos contarão por gerações. Os civis que tentaram impedir o caminho de tanques russos se plantando na frente deles. É com isso que nações se constroem”, afirmou o historiador Yuval Harari, em um artigo recentemente publicado. Ou seja, os fatos importam, as notícias fazem muita diferença em nosso dia a dia, e tudo o que buscamos nesse momento é entendê-las para não apenas saber quem somos, mas sobretudo para saber o que fazer nesse momento tão conturbado na história da humanidade.
E por que as notícias são tão importantes? Durante uma guerra, uma pandemia e uma crise climática como a que estamos vivendo, informações precisas são uma fonte de segurança emocional, física e digital. Elas são fundamentais para a nossa integridade corporal, a de nossos filhos, das nossas comunidades, para o equilíbrio da nossa saúde mental, para a estabilidade das nossas finanças, instituições, governos e do próprio planeta, e também para a construção das nossas identidades sociais e culturais. Por tudo isso precisamos saber se as informações que estamos acessando são confiáveis. Daí a importância da Educação para Mídias, que pode ser um instrumento poderoso para ajudar as crianças e jovens a desenvolverem modos de ser e pensar que as façam sentir mais confortáveis com a incerteza e assim, percebam que a complexidade das situações a que estão expostas não deve impedi-los de tentar desvendá-lo e de atuarem como cidadãos em busca da resolução dos problemas que estão postos para a sua geração. Nesse sentido, é fundamental que recuperemos urgentemente o ensino dos procedimentos das chamadas ciências sociais. É preciso exercitar a objetividade como método e não como o que alguns já chamam de “neutralidade performática”, ou seja, uma pseudo-objetividade que muitos jornalistas ainda insistem em dizer que faz parte de sua prática.
A objetividade não é algo impossível de ser praticado, ela é composta de procedimentos que as chamadas ciências humanas têm como pilares, como aquele que parte do princípio de que, antes de se contar uma história é preciso conhecer todas as evidências possíveis, é imperativo usar a razão fazendo muitas perguntas, testar o bom senso (que não é o senso comum), analisar todas as ideias contidas naquele contexto, para então tentar chegar o mais próximo possível do que seria “a verdade”. A narrativa construída e relatada em quaisquer meios é o resultado desse processo. Rodrigo Tavares, professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal, em seu artigo publicado na Folha de S.Paulo, ressalta a importância de se resgatar as competências e habilidades que são caracterizadas como pertencentes às humanidades, lembrando que a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) destaca que a capacidade de analisar criticamente e de resolver problemas, de mostrar iniciativa, inovação e criatividade e a capacidade de ser flexível, tolerante e resiliente serão as competências mais importantes para o cidadão do século XXI.
“Ao invés
de treinarmos os alunos para memorizarem a verdade, temos que inspirá-los a
descobrirem; em oposição ao cultivo de uma única especialidade (ex. só a
sociologia, filosofia, etc), temos que fecundar a sua capacidade de adaptação;
para superar o seu natural autocentrismo, temos que dar-lhes a oportunidade de
experimentarem as ansiedades de terceiros, e outros saberes”, enfatiza.
ATENÇÃO!
Nunca é demais lembrar que não estamos lidando com um fenômeno novo! A
desinformação sempre foi uma arma de guerra. Usar informações propositadamente
ambíguas ou pouco precisas como fagulhas para iniciar um conflito não é uma
tática nova. Há mais de 2.000 anos, o estrategista
militar da China antiga Sun Tzu já afiançava que a “guerra indireta” é uma
das formas mais eficazes de se combater os inimigos.
O inédito
é que a desinformação não é mais apenas uma arma da guerra física no corpo
a corpo entre países ou coalizões, mas uma peça na engrenagem de uma outra
batalha travada no mundo paralelo das redes sociais, que
envolve outros componentes de poder e disputas.
Nesse sentido, aprender a ler a guerra contida nos memes, nas hashtags, nos posts e vídeos dos tiktokers é exercitar muito mais do que a sobrevivência sustentável e saudável nesse universo informacional é, sobretudo, praticar a cidadania digital de maneira participativa e engajada. Como afirma Henry Jenkins, um dos grandes pesquisadores de mídia do nosso tempo:
“[...] no momento em que tomamos nas mãos o controle das
tecnologias de mídias para contar histórias de maneiras poderosas, interagindo
com outros participantes na criação e circulação de conteúdos, estamos deixando
para trás a cultura do espectador e do consumo passivo.”
Na guerra contra a desinformação, a
complexidade é o desafio, e a grande arma é encarar a dúvida como matéria-prima
da construção do conhecimento. É preciso, mais do que nunca, transformar os
olhares e os modos de atuar, como bem ensina o grande mestre escritor e
contador de histórias Ítalo Calvino: “Cada vez que o reino humano me parece
condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu deveria voar
para outro espaço. Não se trata, absolutamente, de fuga para o sonho ou o irracional.
Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o
mundo sob outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle.”
A guerra está posta – e postada! -, só nos resta lutar (e porque não, tuitar!).
*Januária Cristina Alves é mestre em
comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros
infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira,
coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e
autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da
Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação -
ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização
Midiática e Informacional da Unesco.
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Perfeito! Concordo em gênero, número e grau! " ...A habilidade narrativa determina quem tem voz. A tensão entre grupos em disputa pela narrativa é tão velha quanto a linguagem. Religiões e impérios espalham suas falas e disputam a atenção. Identificar essas narrativas e a quem servem é o caminho para delimitar quem nos fala e inferir o que nos isola ou ajuda a colaborar. A grande verdade é que não existe narrador isento! Por mais cuidadoso que seja, cada um carrega seu conjunto de valores e é perpassado pelos julgamentos e assunções que vêm com a cultura do grupo. Mesmo que não tenha mensagem específica, o contador de histórias sempre parte de sua visão de mundo. "
Fabíola
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