*Francisco José
Barros de Araújo
O mito do “bom selvagem”, formulado por Jean-Jacques Rousseau, sustenta que o ser humano nasce puro e inocente, sendo a sociedade responsável por corrompê-lo e gerar conflitos sociais. Sob essa perspectiva, crimes e condutas condenáveis — furtos, assassinatos e abusos — não derivariam da natureza humana, mas da desigualdade e injustiça sociais, que moldam o comportamento do indivíduo. Assim, a solução para os problemas sociais exigiria uma revisão das instituições modernas, capazes de corrigir suas falhas estruturais. Embora influente na cultura contemporânea — na valorização do que é natural, na crítica a métodos autoritários de educação e na interpretação dos problemas sociais como falhas institucionais —, a teoria do bom selvagem não corresponde à realidade antropológica nem à visão teológica do homem, que reconhece a complexidade da natureza humana, capaz de virtude e de pecado, independentemente das circunstâncias sociais. Rousseau afirma: “O homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe”, mas essa figura idealizada é uma construção teórica que ignora a profundidade da condição humana. Ao refletir sobre a origem da sociedade, o filósofo observa que a decadência humana — causada pelo desejo de possuir, pela violência e pela necessidade de leis — contrasta com a aparente pureza dos povos próximos à natureza: “O exemplo dos selvagens [...] parece confirmar que o gênero humano fora feito para assim permanecer para sempre. Que esse estado é a verdadeira juventude do mundo [...] para a decrepitude da espécie” (ROUSSEAU, 2005, p. 92). No entanto, tais idealizações não se sustentam quando confrontadas com evidências históricas, antropológicas e teológicas. Rousseau utiliza o mito do bom selvagem para criticar o progresso exaltado por outros filósofos, mostrando que a idealização de um estado original de inocência acompanha diversas utopias e ideologias ocidentais, refletindo a busca persistente pelo paraíso terrestre. Na versão contemporânea, sugere-se que o homem ocidental se afastou da natureza e perdeu sua capacidade de compreendê-la e respeitá-la. Esse imaginário remonta aos relatos de exploradores das Américas, que descreviam o território como um paraíso terrestre, influenciando a percepção europeia sobre os povos indígenas, até que Michel de Montaigne inaugura uma reflexão crítica sobre essas sociedades.
Parte dessa reflexão é incorporada por Jean-Jacques Rousseau, que
embora não fale unicamente sobre os povos ameríndios, elabora uma ideia
positiva de natureza humana que se assemelha aos relatos dos povos nativos da
América. Quando o historiador Ferdinand Denis
elabora uma proposta de literatura brasileira, essa incorpora a problemática de
Rousseau e aponta os indígenas nacionais como figura autêntica nacional. Esse mesmo projeto será incorporado com algumas variações pelos "românticos indianistas" como Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias.
Rousseau concordava com Adario em que a civilização europeia era mais corrupta que a dos selvagens. Contudo, o estado selvagem, para ele, não era a mesma coisa que o estado natural. Esse estado, que talvez nunca tenha existido, é o do homem pré-social, que acaba de emergir das mãos da natureza, “saciando sua fome debaixo de um carvalho, matando sua sede no primeiro riacho, dormindo ao pé do mesmo carvalho no qual fez sua refeição. E eis suas necessidades satisfeitas” (Rousseau, p. 41). Nessa fase, não se pode dizer que os homens fossem ou bons ou maus, porque não mantendo entre si nenhum tipo de relação moral não tinham nem virtudes nem vícios. Esse estado de natureza original era difícil de sustentar, porque o homem isolado não podia reagir aos ataques dos animais ou alimentar-se de uma forma estável. Mas o homem é dotado de uma qualidade desconhecida dos outros animais, a perfectibilidade, e, graças a ela, conseguiu ultrapassar esse estágio, passando para o estágio da horda, daí para o da família conjugal, e daí para o da sociedade nascente. Esta é uma fase de equilíbrio em que há um meio termo entre qualidades positivas e negativas, entre a indolência característica do estado de natureza e a “atividade petulante” do mundo moderno. Ela foi a verdadeira idade de ouro, a juventude da humanidade. Era nela que estavam os selvagens, quando os europeus os encontraram, e dela nunca deveríamos ter saído (ibidem, p. 72). Nesse estágio, pode-se dizer que o homem seja realmente bom, pois “ninguém é tão manso como ele quando está em seu estado primitivo, quando, colocado pela natureza a igual distância da estupidez dos brutos e das funestas luzes do homem civil, ele se limita, pelo instinto e pela razão, a garantir-se do mal que o ameaça e é impedido por sua piedade natural de fazer mal a quem quer que seja” (ibidem, p. 72). Todos os progressos da humanidade além desse estágio foram na verdade passos em direção à decadência moral. No entanto, Rousseau reconhece que de nada adianta sonhar com a volta ao estágio selvagem. O paraíso perdido não pode mais ser recuperado. Nossa única chance é fugir para a frente, criando, pela educação, um Emílio moralmente bom, nisso superior a esse ser moralmente indiferente que é o mero homem da natureza, e instituindo, pelo contrato, uma nova sociedade, que combine a liberdade do estado de natureza com os limites exigidos pelo estado civil, limites que não podem ser vistos como coercitivos, porque são livremente escolhidos pela vontade geral. Para um defensor da teoria do bom selvagem, Diderot parece às vezes estranhamente conformista. Ele diz que é preciso reformar as “leis insensatas” sob as quais vivemos, mas que no meio tempo é melhor respeitá-las, pois “há menos inconveniente em ser louco com os loucos que em ter juízo sozinho” (ibidem, p. 186).
Corroborando, Diderot diz que é preferível imitar o bom capelão,
“monge na Europa, selvagem em Taiti” e que se deve “vestir a roupa do país para
onde se vai, e guardar a do país de onde se vem” (Diderot, pp.
147-53).
O ROMANTISMO SENTIMENTALISTA ROUSSEANO
Não podemos dizer que houve verdadeiramente um movimento pré-romântico, mas escritores em cujas obras observamos os primeiros germes de uma linguagem da natureza, da paixão e dos sonhos. Ao debruçarmos sobre a obra de Jean-Jacques Rousseau notamos alguns traços que o colocam na posição de precursor do movimento romântico, em especial o sentimento da natureza, tema central de sua vasta obra.O sentimento da natureza está profundamente relacionado com uma atitude subjetivista, com o voltar-se para si mesmo. Tomando por base sua própria personalidade, Jean-Jacques começa a estudar o homem e sua relação com o mundo que o cerca. Em seu Discours sur l’origine de l’inégalité, Rousseau situa a desigualdade entre os homens como enraizada na vida social: os seres humanos eram originalmente bons e viviam em uma condição de isolamento e inocência; a sociedade e seus valores culturais criaram, por meio da propriedade privada e da divisão do trabalho, uma desigualdade artificial de origem social, não natural, e uma falsa moralidade; logo, é a sociedade que corrompe o homem.
Daí, a proposta de mergulho no
interior de si mesmo para encontrar o homem natural: um homem originalmente
isolado e auto-suficiente, com todas as suas necessidades atendidas sem lutas e
sofrimentos e sem medo da morte. Rousseau busca,
assim, uma natureza humana selvagem, pura, sem a mácula causada pelo mundo
corrompido pela civilização. A formulação do mito do
bom selvagem, ser íntegro e primitivo, tão amplamente retomado pelos autores
românticos. Segundo Rousseau esse homem está oculto no interior de cada
homem, possui a essência de todos os homens, a liberdade. Mas, uma liberdade
não apenas social, também emocional, sentimental. Ao
localizar na vida social a fonte da corrupção humana, Rousseau estabelece um
profundo pessimismo no tocante à sociedade e à civilização, que se estenderá ao
espírito romântico. O homem romântico é um eterno insatisfeito, que não
acredita na realidade social, procurando escapar dessa opressiva realidade, por
meio da imaginação e da sensibilidade; porém, como tal espírito é feito de
profundas contradições, volta ainda seus olhos para a realidade presente, a
crítica do mundo contemporâneo, como o próprio Jean-Jacques o faz. Como
a propriedade para ele, fonte da desigualdade entre os homens, provoca a
corrupção humana, ocorre a necessidade de se exaltar a simplicidade,
exteriorizar a voz da alma e da consciência, escondidas no interior de cada ser
humano em sua criatividade original. Um dos pontos de
partida da obra de Rousseau é a interioridade como sinônimo de sentimento, o
que o contrapõe ao “racionalismo” do Século das Luzes. É no sentimento
que se encontra a melhor tradução da interioridade humana, pois é no sentir-se
que o homem mergulha em suas raízes de maneira mais livre. Há uma expansão do
eu e da subjetividade, que será a base de todo pensamento romântico. O espírito romântico, já no século XIX, volta-se para a
subjetividade, para a valorização dos sentimentos em todos os seus matizes, mas
é no amor que encontramos sua grande expressão. O amor que para Jean-Jacques é
também uma forma de ressaltar a essência primitiva do ser humano.No
entanto, ao falar de natureza, Rousseau não pressupõe apenas a natureza
interna, mas também a natureza externa, o espaço físico externo. O homem deve
procurar refletir sobre a natureza que o rodeia, o que essa natureza tem a lhe
dizer, que sentimentos ela desperta em sua interioridade. Tem-se, assim, uma fusão do espírito humano com a natureza
através de uma interiorização do espaço externo, ou seja, a natureza torna-se
parte da alma humana. O espírito humano acaba por se alargar ao se fundir com
um elemento puro, sem a mácula da mão humana corrompida pela sociedade. A
natureza mostra-se ao homem em todo seu esplendor e grandeza, é a natureza
selvagem, cuja força impulsiona o movimento universal. Na famosa obra de
Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, o caminhante solitário evoca a
natureza em seus longos passeios, é nela que encontra seus maiores prazeres,
pois sente essa natureza com todos seus sentidos, com todo seu ser. A natureza
transforma-se em refúgio da solidão e sua harmonia sensibiliza a alma
melancólica ao entrar em comunicação com Deus.O
sentimento da natureza manifesta-se no romantismo como extensão das idéias de
Rousseau, na busca da solidão, seja pela procura de lugares distantes como o
Novo Mundo, seja pela preferência por lugares pitorescos, grandiosos e
selvagens. Observamos que as idéias de Rousseau tiveram forte influência
na formação de todo um pensamento romantizado de alguns ideólogos brasileiros,
presente hoje na utopia da sociedade sem males, como se isso fosse possível com
seres humanos falhos e imperfeitos.
Conclusão
A grande verdade, que dá um choque de realidade nos indigenistas romantizados, é que o “bom selvagem” é um mero fantasma. Um mito utópico que, paradoxalmente, gerou efeitos muito concretos e danosos. Na Europa, ele impediu qualquer contato genuíno com o Outro: os povos indígenas eram elogiados por calor humano, imaginação e sensualidade, mas imediatamente confinados a uma posição simbólica de subalternidade. No Brasil, reproduzimos essa dualidade bom selvagem–mau civilizado, assumindo, sem reflexão crítica, a identidade imaginária de povos alegres, calorosos e generosos, conforme descrito por Vespúcio, Caminha, Léry e Montaigne. Enquanto na Europa o mito revela uma autodepreciação idealizadora do Outro — um exotismo melancólico, nas palavras de Freud —, no Brasil ele se manifesta como uma euforia agressiva: um nacionalismo que devora o exotismo europeu, apropriando-se de sua ficção sem jamais convertê-la em realidade. Uma identidade fundada na fantasia não é mais real que a própria ficção que a originou. A realidade antropológica reforça essa constatação. Estudos com os ianomâmis da Amazônia, os Piro, os Siona-Secoya e os Yuqui demonstram que esses povos não são conservacionistas idealizados. Caçam indiscriminadamente, pescam em excesso e exploram recursos naturais sem planejamento, não por maldade, mas pela lógica de sobrevivência — da mesma forma que qualquer sociedade humana ao longo da história. O que muda é apenas a escala e a tecnologia disponível. Assim, os supostos “bons selvagens” não representam um convívio harmônico e natural com o meio ambiente, como pregam os defensores do mito. Boa parte das utopias, incluindo a do bom selvagem, se apoia em concepções sentimentais e irrealistas de uma “idade de ouro” perdida. A versão ecológica moderna sustenta que o homem ocidental se afastou da natureza, mas a realidade histórica mostra que o homem sempre foi o maior predador e explorador de recursos do planeta. Se o bom selvagem é uma ilusão, então o “brasileiro” imaginado nessa narrativa também o é: uma construção baseada em fantasia, não em fatos. Portanto, é imperativo desfazer o mito do bom selvagem. A realidade histórica, antropológica e teológica do homem contradiz a tese de Rousseau: não existe inocência natural a ser recuperada, nem paraíso terrestre perdido a ser resgatado. Persistir na ilusão não apenas distorce a compreensão da história e da cultura, como também nos impede de enfrentar os desafios reais da sociedade e do meio ambiente. É hora de encarar a verdade: o bom selvagem nunca existiu — e continuar acreditando nele é arriscado e enganoso.
*Francisco José
Barros de Araújo – Bacharel em Teologia pela Faculdade Católica do RN, conforme
diploma Nº 31.636 do Processo Nº 003/17 - Perfil curricular no
sistema Lattes do CNPq Nº 1912382878452130.
BIBLIOGRAFIA:
-AFONSO ARINOS DE MELLO FRANCO. O índio brasileiro e a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1937.
-BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Visão do paraíso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.
-DIDEROT, Denis. Supplément au voyage de Bougainville. Paris: Garnier-Flammarion, 1972.
-GUINSBURG, J. O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.
-LEOPOLDI, José S. Rousseau: estado de natureza, o “bom selvagem” e as sociedades indígenas.
-MONTAIGNE, Michel de. Essais. Paris: Plêiade, 1962.
-NETO, Simeão P. O mito do bom selvagem no romance O Guarani.
-PINTO, M. C. Q. M. O pré-romantismo francês: Rousseau e Chateaubriand. In: MACHADO, G. M. (Org.). Textos: O romantismo francês, seus antecedentes, vínculos e repercussões, n. 12, p. 21-29, 1992.
-PINKER, Steven. Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana, 2004.
-ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Pillares, 1989.
-VESPÚCIO, Américo. Cartas. In: O Brasil de Américo Vespúcio. Brasília: UNB.
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