O mito
do "bom selvagem" tem sua origem na obra do filósofo franco-suíço
Jean-Jacques Rousseau e consiste na tese de que o ser
humano era puro e inocente em seu estado natural, sendo a sociedade responsável
por incutir nele valores e hábitos que o conduziriam ao conflito e aos
problemas que na visão de Rousseau marcavam a sociedade. Adotando-se
este ponto de vista, a maioria dos problemas sociais, que envolvem crimes tais
como furtos, assassinatos e abusos, não seriam resultado de natureza pessoal,
mas social. Eles seriam, na verdade, o produto nefasto
de uma sociedade desigual e injusta, que, ao submeter o indivíduo a uma
existência miserável, o encaminha para agir diferente daquilo que é socialmente
desejável. Deste modo, a solução dos problemas sociais passava pela
necessidade de se rever as instituições modernas da sociedade. Ninguém pode
deixar de reconhecer a influência da teoria do bom selvagem na consciência
contemporânea. Ela é vista no presente respeito por tudo o que é natural
(alimentos naturais, remédios naturais, parto natural, cultura vegana,
naturalista, minimalista, etc) e na desconfiança diante do que é feito pelo
homem, no desuso dos estilos autoritários de criação de filhos e na concepção
dos problemas sociais como defeitos reparáveis em nossas instituições, e não como tragédias inerentes à condição humana.Deste
modo, a solução dos problemas sociais passava pela necessidade de se rever as
instituições modernas da sociedade, pois segundo Rousseu “O homem nasce bom,
mas a sociedade o corrompe”, defende o filósofo iluminista. Entretanto, o mito criado pelo filósofo em torno da figura do
bom selvagem, o ser humano em seu estado natural, não contaminado por
constrangimentos sociais deve ser entendido como uma idealização meramente
teórica e não factível.Além disso, a obra de Rousseau não pretende negar
os ganhos da civilização para reconduzir a espécie humana à felicidade.Na
decadência da humanidade, provocada pelo desejo de possuir, pelo solo
demarcado, pela violência e a necessidade de leis, é,
que Rousseau vai mostrar ao narrar a origem da sociedade: O exemplo dos
selvagens, que foram encontrados quase todos nesse estágio, parece confirmar
que o gênero humano fora feito para assim permanecer para sempre. Que
esse estado é a verdadeira juventude do mundo, é que todos os progressos
anteriores foram em aparência, outros tantos passos para a perfeição do
indivíduo, mas, na verdade, para a decrepitude da espécie (ROUSSEAU, 2005, p.
92).Assim, para fundamentar seu pensamento que segue em
direção oposta ao progresso louvado por grande parte dos demais filósofos,
Rousseau vale-se de forma particular e individual dos mitos como se fosse uma verdade
universal. Isso mostra que o mito do bom selvagem segue sua carreira em
todas as utopias e ideologias ocidentais até Jean-Jacques Rousseau, o que
mostra não ter o ocidente renunciado ao antigo sonho da busca pelo paraíso
terrestre. Logo, nesse tempo, éramos bons e sem pecado. A versão atualizada do mito do bom selvagem é que o homem ocidental se
afastou da natureza e deixou de entendê-la e amá-la. Vale ressaltar que boa
parte das utopias, como a do mito do bom selvagem, é ancorada em alguma noção
equivocada, sentimentalista, irreal e reacionária de uma época de ouro perdida.
Durante o descobrimento uma série de relatos afirmam o território americano
como parte de um Paraíso Terreal, esse imaginário também informa a imagem que
muitos europeus fazem dos povos indígenas, até que Michel de Montaigne inaugura
uma reflexão sobre a sociedade tendo como referência os povos canibais do
continente americano.
Parte
dessa reflexão é incorporada por Jean-Jacques Rousseau, que embora não fale
unicamente sobre os povos ameríndios, elabora uma ideia positiva de natureza
humana que se assemelha aos relatos dos povos nativos da América. Quando o historiador Ferdinand Denis elabora uma proposta de
literatura brasileira, essa incorpora a problemática de Rousseau e aponta os
indígenas nacionais como figura autêntica nacional. Esse mesmo projeto
será incorporado com algumas variações pelos românticos indianistas como
Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias.
Rousseau
concordava com Adario em que a civilização europeia era mais corrupta que a dos
selvagens. Contudo, o estado selvagem, para ele, não
era a mesma coisa que o estado natural. Esse estado, que talvez nunca tenha
existido, é o do homem pré-social, que acaba de emergir das mãos da natureza,
“saciando sua fome debaixo de um carvalho, matando sua sede no primeiro riacho,
dormindo ao pé do mesmo carvalho no qual fez sua refeição. E eis suas
necessidades satisfeitas” (Rousseau, p. 41). Nessa fase, não se pode
dizer que os homens fossem ou bons ou maus, porque não mantendo entre si nenhum
tipo de relação moral não tinham nem virtudes nem vícios. Esse estado de
natureza original era difícil de sustentar, porque o homem isolado não podia
reagir aos ataques dos animais ou alimentar-se de uma forma estável. Mas o homem é dotado de uma qualidade desconhecida dos outros
animais, a perfectibilidade, e, graças a ela, conseguiu ultrapassar esse
estágio, passando para o estágio da horda, daí para o da família conjugal, e
daí para o da sociedade nascente. Esta é uma fase de equilíbrio em que há um
meio termo entre qualidades positivas e negativas, entre a indolência
característica do estado de natureza e a “atividade petulante” do mundo
moderno. Ela foi a verdadeira idade de ouro, a juventude da humanidade. Era
nela que estavam os selvagens, quando os europeus os encontraram, e dela nunca
deveríamos ter saído (ibidem, p. 72). Nesse estágio, pode-se dizer que o
homem seja realmente bom, pois “ninguém é tão manso como ele quando está em seu
estado primitivo, quando, colocado pela natureza a igual distância da estupidez
dos brutos e das funestas luzes do homem civil, ele se limita, pelo instinto e
pela razão, a garantir-se do mal que o ameaça e é impedido por sua piedade
natural de fazer mal a quem quer que seja” (ibidem, p. 72).
Todos os progressos da humanidade além desse estágio foram na verdade passos em direção à decadência moral. No entanto, Rousseau reconhece que de nada adianta sonhar com a volta ao estágio selvagem. O paraíso perdido não pode mais ser recuperado. Nossa única chance é fugir para a frente, criando, pela educação, um Emílio moralmente bom, nisso superior a esse ser moralmente indiferente que é o mero homem da natureza, e instituindo, pelo contrato, uma nova sociedade, que combine a liberdade do estado de natureza com os limites exigidos pelo estado civil, limites que não podem ser vistos como coercitivos, porque são livremente escolhidos pela vontade geral. Para um defensor da teoria do bom selvagem, Diderot parece às vezes estranhamente conformista. Ele diz que é preciso reformar as “leis insensatas” sob as quais vivemos, mas que no meio tempo é melhor respeitá-las, pois “há menos inconveniente em ser louco com os loucos que em ter juízo sozinho” (ibidem, p. 186).
Corroborando, Diderot
diz que é preferível imitar o bom capelão, “monge na Europa, selvagem em Taiti”
e que se deve “vestir a roupa do país para onde se vai, e guardar a do país de
onde se vem” (Diderot, pp. 147-53).
O ROMANTISMO SENTIMENTALISTA ROUSSEANO
Não podemos dizer que houve verdadeiramente um movimento pré-romântico, mas escritores em cujas obras observamos os primeiros germes de uma linguagem da natureza, da paixão e dos sonhos. Ao debruçarmos sobre a obra de Jean-Jacques Rousseau notamos alguns traços que o colocam na posição de precursor do movimento romântico, em especial o sentimento da natureza, tema central de sua vasta obra.O sentimento da natureza está profundamente relacionado com uma atitude subjetivista, com o voltar-se para si mesmo. Tomando por base sua própria personalidade, Jean-Jacques começa a estudar o homem e sua relação com o mundo que o cerca. Em seu Discours sur l’origine de l’inégalité, Rousseau situa a desigualdade entre os homens como enraizada na vida social: os seres humanos eram originalmente bons e viviam em uma condição de isolamento e inocência; a sociedade e seus valores culturais criaram, por meio da propriedade privada e da divisão do trabalho, uma desigualdade artificial de origem social, não natural, e uma falsa moralidade; logo, é a sociedade que corrompe o homem.
Daí, a proposta de mergulho no
interior de si mesmo para encontrar o homem natural: um homem originalmente
isolado e auto-suficiente, com todas as suas necessidades atendidas sem lutas e
sofrimentos e sem medo da morte. Rousseau busca,
assim, uma natureza humana selvagem, pura, sem a mácula causada pelo mundo
corrompido pela civilização. A formulação do mito do
bom selvagem, ser íntegro e primitivo, tão amplamente retomado pelos autores
românticos. Segundo Rousseau esse homem está oculto no interior de cada
homem, possui a essência de todos os homens, a liberdade. Mas, uma liberdade
não apenas social, também emocional, sentimental. Ao
localizar na vida social a fonte da corrupção humana, Rousseau estabelece um
profundo pessimismo no tocante à sociedade e à civilização, que se estenderá ao
espírito romântico. O homem romântico é um eterno insatisfeito, que não
acredita na realidade social, procurando escapar dessa opressiva realidade, por
meio da imaginação e da sensibilidade; porém, como tal espírito é feito de
profundas contradições, volta ainda seus olhos para a realidade presente, a
crítica do mundo contemporâneo, como o próprio Jean-Jacques o faz. Como
a propriedade para ele, fonte da desigualdade entre os homens, provoca a
corrupção humana, ocorre a necessidade de se exaltar a simplicidade,
exteriorizar a voz da alma e da consciência, escondidas no interior de cada ser
humano em sua criatividade original. Um dos pontos de
partida da obra de Rousseau é a interioridade como sinônimo de sentimento, o
que o contrapõe ao “racionalismo” do Século das Luzes. É no sentimento
que se encontra a melhor tradução da interioridade humana, pois é no sentir-se
que o homem mergulha em suas raízes de maneira mais livre. Há uma expansão do
eu e da subjetividade, que será a base de todo pensamento romântico. O espírito romântico, já no século XIX, volta-se para a
subjetividade, para a valorização dos sentimentos em todos os seus matizes, mas
é no amor que encontramos sua grande expressão. O amor que para Jean-Jacques é
também uma forma de ressaltar a essência primitiva do ser humano.No
entanto, ao falar de natureza, Rousseau não pressupõe apenas a natureza
interna, mas também a natureza externa, o espaço físico externo. O homem deve
procurar refletir sobre a natureza que o rodeia, o que essa natureza tem a lhe
dizer, que sentimentos ela desperta em sua interioridade. Tem-se, assim, uma fusão do espírito humano com a natureza
através de uma interiorização do espaço externo, ou seja, a natureza torna-se
parte da alma humana. O espírito humano acaba por se alargar ao se fundir com
um elemento puro, sem a mácula da mão humana corrompida pela sociedade. A
natureza mostra-se ao homem em todo seu esplendor e grandeza, é a natureza
selvagem, cuja força impulsiona o movimento universal. Na famosa obra de
Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, o caminhante solitário evoca a
natureza em seus longos passeios, é nela que encontra seus maiores prazeres,
pois sente essa natureza com todos seus sentidos, com todo seu ser. A natureza
transforma-se em refúgio da solidão e sua harmonia sensibiliza a alma
melancólica ao entrar em comunicação com Deus.O
sentimento da natureza manifesta-se no romantismo como extensão das idéias de
Rousseau, na busca da solidão, seja pela procura de lugares distantes como o
Novo Mundo, seja pela preferência por lugares pitorescos, grandiosos e
selvagens. Observamos que as idéias de Rousseau tiveram forte influência
na formação de todo um pensamento romantizado de alguns ideólogos brasileiros,
presente hoje na utopia da sociedade sem males, como se isso fosse possível com
seres humanos falhos e imperfeitos.
Conclusão:
A
grande verdade, dando um choque de realidade nesses pensadores romantizados, é
que bom selvagem é um mero fantasma! E o que é pior,
esse fantasma utópico produziu males muito tangíveis e reais! Do ponto
de vista da Europa, onde o mito se originou, ele impossibilitou qualquer
contato genuíno e verdadeiro com o Outro. Os bons
selvagens e seus descendentes de hoje são elogiados por seu calor humano, sua
imaginação e sua sensualidade, e em seguida convidados a brincar e ficarem
restritos em sua reserva ecológica. Do ponto de vista do Brasil, o
efeito mais espantoso foi que reconstituímos, deste lado do Atlântico, a
dualidade bom selvagem-mau civilizado, e assumimos no uníssono amém, como
vacas-de-presépio, a identidade do bom selvagem. Passamos a ser exatamente o
que Vespúcio, Caminha, Léry e Montaigne disseram que éramos: calorosos,
alegres, cordiais, generosos, descontraídos – e nus. O conteúdo do mito é
semelhante nos dois continentes, mas segundo outros mecanismos psicanalíticos.
Na Europa, o mito envolve uma atitude antagônica e paradoxal de autodepreciação
e de idealização do Outro. É aproximadamente a descrição da melancolia de
Freud.No Brasil, a adesão ao mito do bom selvagem significa uma atitude de
aviltamento da cultura alheia(estrangeirismo, imperialismo, burguesia, etc) e
de exaltação da própria cultura. É uma euforia agressiva, semelhante à
excitação maníaca que ocorre entre dois acessos de melancolia como dizia Freud.
A expressão ideológica da primeira doença, a europeia, é o exotismo. A da
segunda, a brasileira, é o nacionalismo. Ser nacionalista é devorar o exotismo
do europeu. É o que fazemos quando nos apropriamos da ideologia do bom
selvagem. Comemos um europeu fantasiado de índio – o bom selvagem – e nos
transformamos nele. É um festim pobre em vitaminas, porque a mentira europeia
(capitalismo, socialismo, comunismo, teologias da libertação e da prosperidade,etc)
não se converte em verdade só porque passou por nosso tubo digestivo. Uma identidade que se constitui na base de uma ficção é tão irreal
quanto a própria ficção. Estudos
recentes mostram que os ianomâmis da Amazônia também não são conservacionistas.
Ray Hames, descobriu que não se refreiam em matar animais que estão rareando.
Quando uma área de caça fica esgotada, eles passam a caçar mais longe, no
entanto, sem deixar que as primeiras se recuperem, abatendo qualquer animal no
caminho. Pesquisadores encontram o mesmo padrão entre
os índios Piro, no Peru, e Siona-Secoya, no Equador. Na Bolívia, Allyn MacLean
Stearman constatou que os índios Yuqui são caçadores oportunistas, que abatem
de preferência macacas grávidas ou com filhotes pequenos, sendo os fetos
considerados uma iguaria. Pescam com veneno, matando muito mais peixes do que
podem usar. Para obter frutas, derrubam suas árvores produtoras. Exemplos
como estes mostram que algumas das etnias indígenas usadas como símbolo de
convívio harmônico com a natureza não são melhores conservacionistas do que os
ocidentais. Apenas existiam em menor número e dispunham de pouca tecnologia. Em
consequência, seu poder de devastação era igualmente mais restrito.Boa parte das utopias é ancorada em alguma noção reacionária
(nesse caso válida) de uma época de ouro perdida. Nesse tempo, éramos
bons e sem pecado. A versão ecológica é que o homem ocidental se afastou da
natureza e deixou de entendê-la e amá-la.A realidade
histórica sugere que o homem sempre foi o mais perigoso dos predadores e o
maior usuário dos recursos naturais. Se o “brasileiro” é um bom
selvagem, e se o bom selvagem é uma ilusão, o “brasileiro” também não existe. O
devorador se revela tão inexistente quanto a coisa devorada. Temos que nos desfazer
do mito do bom selvagem, antes que sejamos devorados por ele.
BIBLIOGRAFIA:
-Steven Pinker. Tábula rasa – a negação
contemporânea da natureza humana, 2004.
-Rousseau, Jean-Jacques (1989). Do Contrato
Social. São Paulo: Pillares.
-O mito do bom selvagem no romance O Guarani
– Simeão P. Neto
-Rousseau: estado de natureza, o “bom
selvagem” e as sociedades indígenas – José S. Leopoldi.
-Sergio Buarque de Holanda, 1977. Visão do
paraíso. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
-Denis Diderot, 1972. Supplément au voyage
de Bougainville. Paris: Garnier-Flammarion.
-Affonso Arinos de Mello Franco, 1937. O
índio brasileiro e a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: José Olímpio.
-Michel de Montaigne, 1962. Essais. Paris:
Plêiade.
-PINTO, M. C. Q. M. O pré-romantismo
francês: Rousseau e Chateaubriand TEXTOS: O romantismo francês, seus
antecedentes, vínculos e repercussões. MACHADO, G. M. (org.), n. 12, 1992,
p.21-9.
-GUINSBURG, J. O Romantismo. São Paulo:
Perspectiva, 1978.
-Americo Vespúcio, “Cartas”. ln: O Brasil
de Américo Vespúcio. Brasília: UNB.
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