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30 de Setembro dia de São Jerónimo: “Meu tormento é comigo! Eu mesmo sou meu maior perigo!”

Written By Beraká - o blog da família on sexta-feira, 23 de setembro de 2022 | 12:07

 







SÃO JERÓNIMO E O LIVRO

 



Por Lúcio Alcântara (Academia Cearense de Letras)


 

 

 

Jerônimo nasceu em Strídon, na Dalmácia, hoje território da Croácia em 340, e faleceu em Belém em 420. Filho de família católica deslocou-se jovem ainda, para Roma, onde iniciou estudos de grego e latim e conheceu os clássicos que marcariam suas preferências literárias, Plauto, Virgílio e Cícero, entre outros. Começa aí a formação latina do eslavo em meio às desordens da juventude e a sedução das mulheres. Faz passeios freqüentes ao Coliseu e as catacumbas, que muito o impressionaram. É batizado com mais de vinte anos de idade. Decide empreender longa viagem em companhia do seu amigo Bonoso, indo à Gália, e depois à Treves (Trier), na atual Alemanha, onde floresce sua vocação religiosa despertada pelo convívio com anacoretas e cenobitas. Prossegue viagem em direção ao Oriente, reduto do monaquismo 219 onde iria viver sua experiência essencial de isolamento e flagelação no deserto. Passa por Aquileia e Antióquia onde conhece e se deixa impressionar por Molco o eremita em quem vê sua figura futura. Estabelece-se por fim no deserto da Calcídia, na Síria, no ano 373, onde vive como um asceta, lutando contra tentações que afugenta com penitencias e mortificações.

 

 

 


 



Jejua e padece, auto flagelando-se, sendo conhecida representação sua brandindo uma pedra contra o peito. É nesse tempo de meditação e flagelo que trava sua luta interior entre a carne e o espírito, a sensualidade e a sublimação. Paralelamente debate-se entre o amor aos clássicos, e à leitura profana, e o respeito aos livros sagrados, cujo estilo considera pobre e sem ornato. É quando, combalido pela prática continuada de sacrifícios, extenuado, doente tem o sonho, que revela em carta à Santa Eustáquia, ''Ad Eustoquium", que iria orientar definitivamente seus esforços para o conhecimento, interpretação e tradução da Bíblia e textos correlatas. Vê-se diante de um Tribunal presidido pelo Deus de Israel como juiz inflexíYel a lhe indagar: "Quem, és? Um cristão, respondeu. Mentes, és de Cícero e não de Cristo". E mandou açoitar-lhe impiedosamente até atender às yozes que se juntaram ao pedido de perdão do réu, implorando clemência, considerada sua juventude e propósito de emendar-se. Promete nunca mais por os olhos em uma página profana. Falou o santo. O artista permaneceu mudo. Seu encantamento pela cultura clássica influiu em sua obra o que o levou a justificar-se assim: "Se a sabedoria profana me encanta, é que duma escrava e duma cativa quero fazer uma filha de Israel." A partir daí, diz-nos o santo, "Desde aquela hora me entreguei com tanta atenção e diligência a ler as coisas divinas, como jamais havia lido nas humanas". Era o conflito que vivia entre o profano e o sagrado a necessidade de optar entre Cícero e Cristo, como se um inevitavelmente excluísse o outro. O amor aos clássicos o acompanharia por toda vida. O inimigo Rufino quando denunciava suas falhas acusava-o de guardar consigo um códice de Cícero, considerada falta grave em um meio marcado pelo radicalismo religioso e as querelas teológicas. Aproveita a temporada no deserto para aprender o hebraico com um rabino, o que lhe permitirá mais tarde traduzir a Bíblia diretamente do original para o latim, a "vulgata", assim chamada por ser a versão mais acessível, sua obra mais conhecida. Na primavera de 378 regressa a Antioquia onde é ordenado Padre. Não desejava a ordenação, e só a recebeu sob a condição de não abdicar de sua liberdade de monge e escritor. A liberdade da solidão como a denomina Pascoaes. Esquecido, distante dos amigos, desgostoso com o ambiente da cidade, o comportamento reprovável do clero, e as disputas religiosas, vaga por diversos lugares, inclusive Jerusalém, até chegar à Constantinopla onde realiza estudos com São Gregório de Nazianzeno. Daí segue para Roma, atendendo chamado do Papa Damaso que convoca o concílio ecuménico no esforço para pacificar e unir a Igreja. Faz dele seu secretário, investindo-o da púrpura cardinalícia.

 


 

 


 


 

Em Roma, regurgitante de gente vinda de muitos lugares a religião é o assunto dominante. O concílio fracassa no propósito de unificar as igrejas do Ocidente e do Oriente, e Jerónimo se destaca pelos estudos e as traduções que realiza a pedido do Papa, o combate inclemente ao clero corrupto, os escândalos, o luxo cortesão, e a devassidão. Prega obstinado em defesa da virgindade, e assiste à matronas patrícias, piedosas e sábias, ensinando a doutrina e fazendo o proselitismo da vida monacal no cenáculo do Aventino. É em torno dele que se reúnem entre outras, Paula, suas filhas Blesila e Eustáquia, e Marcela, mais tarde suas companheiras na aventura de Belém, fundando mosteiros na reclusão santificadora.

 

 

 

 


 

 

 

O comportamento arrebatado e contundente de Jerónimo lhe vale muitas inimizades e o tornam alvo de críticas e infâmias que se exacerbam com o falecimento do seu protetor o Papa Damaso. Seu sucessor, Síricio, assume em meio à contestações de adversários que busca serenar afastando Jerónimo. Este, acusado pelos inimigos, entre outras coisas, de manter relações amorosas com suas discípulas, resolve retornar ao Oriente. Rejubilam-se os desafetos com sua partida. Jerónimo deixa Roma, que rotula de Babilónia, e vai em busca do seu destino, pois afinal é em Belém que realiza a maior parte de sua obra. Algum tempo depois, Paula, Eustáquia, e outras ilustres donzelas seguem ao seu encontro, e antes de se fixarem em Belém, em companhia dele, percorrem a via dos peregrinos, viajam à terra santa, à Fenícia e à Síria. Chegam até o Egito. Paula e Jerônimo visitam celas dos mosteiros e grutas dos eremitas. Descrevem-nos como defuntos vivos sob a cruz, e ao lado de uma Bíblia sobre a pedra, e um leito no chão, de folhas secas. Emergem das cavernas feito bichos que encantam à Deus. Fixam-se definitivamente em Belém, onde graças aos recursos de Paula constroem dois mosteiros, uma torre para reclusão e uma hospedaria para peregrinos. Ai permanece até a morte, absorvido por seus estudos, escrevendo e traduzindo, ensinando aos jovens, assistido por Paula e Eustáquia, com quem dialoga e troca idéias. Concilia os dois amores, Cícero e Cristo. Fala aos rapazes, de Homero, Virgílio e Cícero, liberto do conflito da mocidade, por acreditar que a cultura clássica não prejudica a fé cristã. Descansa quando escreve, estuda, ora e medita, alimentado de ervas embebidas em leite e pão grosseiro. Discute, enquanto suas obras são lidas e comentadas, sobretudo em Roma. Longe de Roma Jerônimo manteve-se ligado à sede do império mediante intensa correspondência trocada com amigos. Preocupava-o a hegemonia de Roma sobre o mundo cristão e a integridade do império ameaçada pelos bárbaros. É taxado de pagão e herético, e de escrever só para mulheres. Procurado por muitos viajantes reclama dos visitantes que "obrigam-no a fechar a porta na cara, ou interromper meus estudos da escritura que nos manda abrir as portas." Envolve-se em polêmicas e controvérsias religiosas, faz inimigos, trata com dureza os opositores, abusa da sátira "na frase ígnea que se abraça a um desgraçado e não o larga". No fim da vida, quase cego, atormentado pelos perseguidores, viu o desfecho da polêmica que travou com o ex-amigo Rufino convergir numa onda de fanatismo pelagiano que incendiou mosteiros e interditou igrejas, levando-o a afirmar, "podem prender os pregadores da verdade mas a verdade não será vencida". É a este homem, místico e combativo, dividido entre contemplação e ação, que orou na solidão do deserto, e pregou no burburinho da cidade, que "aspirava o domínio universal da sua fé pela igreja romana, como aspirava à santidade fazendo de sua vida perpétuo ensaio da morte", a quem muito deve o cristianismo e a história do livro.

 

 





Consideram-no ao lado de Cícero, Lutero, e Goethe, um dos mais influentes teóricos da tradição e tradução ocidental. E ainda o formulador de uma teoria pós ciceroniana da tradução que manda considerar o sentido do texto e não, cada palavra de per si. A carta de São Jerônimo a São Pamáquio é a resposta belicosa do autor, acusado por Rufino de haver deturpado o sentido e a forma de uma carta, que Epifania, Bispo de Constancia (Chipre) enviara à João, Bispo de Jerusalém, buscando dissuadi-lo de uma heresia origenista. A pedido de Eusébio de Cremona, Jerônimo traduziu-a para uso exclusivo do solicitante. Dezoito meses depois, furtada, aparece publicada em Jerusalém desencadeando a acusação de Rufino, o rival e ex-amigo. É na carta, à Pamáquio que Jerônimo lança, defendendo-se dos ataques que sofria, chamado até de falsário, os fundamentos da sua teoria da tradução. É certo que admite exceção para o caso das sagradas escrituras, que devem a seu juízo ser traduzidas literalmente, pois a ordem das palavras configura um mistério. Reforça, com vários exemplos, a importância de captar o sentido das idéias, e não o sentido das palavras.Em que pese a relevância da obra própria de São Jerônimo, o reconhecimento mais amplo viria da sua atividade como tradutor, particularmente da Bíblia, na versão conhecida como "vulgata". Fé-la por encomenda do Papa Damaso, para o latim, diretamente do hebraico. Isso facilitou sobre modo o acesso do povo ao texto sagrado, por mais compreensível, além de dar contribuição decisiva à unidade de Igreja, sob a hegemonia romana. De fato, dividida por querelas e controvérsias religiosas, alimentadas em parte por diferentes versões da Bíblia, a Igreja viria a se expandir e a construir a civilização ocidental cristã sobre o alicerce colocado por São Jerônimo. A "vulgata" viria a se impor sobre as demais versões, particularmente a "itala, ou vetus romana", e a chamada "septuaginta, ou dos setenta" traduzida do grego. Para a elaboração da chamada "vulgata", cujo reconhecimento litúrgico deu-se no Concilio de Trento por decreto de 8 de abril de 1546 como a mais amplamente divulgada foi-lhe de grande valia a Hexapla compilação comparativa da Bíblia feita por Orígenes. Tomando todas as versões Jerônimo terminou por renovar quase por completo o texto primitivo. Essas distintas versões provinham de fontes secundárias, geralmente gregas, contraditórias, focos de cismas e heresias doutrinárias. O mérito da "vulgata" ultrapassou os limites da religião, para influenciar de modo inquestionável a formação de todas línguas ocidentais. Curioso é que Lutero, muitos séculos depois, acusado de erros na tradução das escrituras para o alemão, defendeu-se afirmando ter se utilizado no trabalho do método de Jerônimo. Apesar de dizer, ser ele, entre todos, o que mais odiava.

 









 

 

 

É impressionante constatar como em condições tão precárias, foi possível produzir manualemente tantos textos, e difundi-los de tal modo que tenham sobrevivido até hoje. Isso só se conseguiu graças a uma estrutura de colaboradores formada por auxiliares, na fase de elaboração do livro, e na sua difusão a partir dos amigos situados em posições hierárquicas e geográficas estratégicas. Nesse aspecto é bom lembrar a inexistência de livreiros e processos de comercialização. A reprodução de cópias pelos interessados nos assuntos tratados, aliada a preocupação dele em municiar Roma com seus escritos, ajudou a consolidar textos canónicos que garantiram unidade doutrinária, instituíram dogmas e fizeram a igreja crescer sob a égide romana.A preferência pela oralidade deve-se a pressa com que trabalha e a sobrecarga de tarefas de que se incumbe. Ainda que reconheça "a diferença entre a audácia repentina do ditado, e o esforço meditado da redação, como está no prólogo do "Comentário à São Mateus". Tem-se como certo que raramente escrevesse, ele próprio, seus textos. Sucedem na faina, aos taquígrafos, os copistas, responsáveis, após correções, pelo produto final.

 

 

 


 



Sobre o estilo de Jerônimo propriamente, cumpre destacar a veemência, o sarcasmo, a palavra implacável, o uso de opiniões alheias em apoio à sua, as vezes indistinguíveis de seu texto pessoal, o que o levou a ser considerado um grande plagiário que preservou do esquecimento autores e obras.Preocupado com a fidelidade dos textos,Jerônimo, adota o comportamento cauteloso de enviá-los a amigos e irmãos, nos quais confia, para a propaganda e disseminação. Mostra-se intolerante com seus algozes que o inquinam de pagão, herético, e maliciosamente, de escrever só para mulheres, alusão às suas seguidoras, focos de irradiação de suas idéias a partir de Roma e Belém. Pede aos amigos, "Lede-me, mas salvai-me do público. Não suporto a censura dos impotentes". É conhecida a importância que empresta aos prefácios, em geral elaborados após concluído o trabalho, espaço para suas justificações e a descrição do processo por ele utilizado na feitura da obra. Já no encerramento do livro, "in fine librorum", era costume dos judeus aporem "sela", ou "salom", que quer dizer a paz, ou pacífico. E os latinos fecharem o texto com "explicuit" ou "feliciter". Naquela época como hoje, o momento de dar graças à Deus por ter concluído a tarefa. O amém, que entrou nos costumes cristãos, pode figurar em qualquer parte em toda obra. Exemplo disso são os evangelhos.Recomenda ao monge "para escrever livros", e adverte: "que o livro jamais se afaste de tuas mãos e de teus olhos", para evitar erros e omissões. A autenticidade da obra era dada pela assinatura, muitas vezes ausente nos textos de Jerônimo, fosse pela pressa com que trabalha, ou esquecimento dos copistas, era dada ao término do livro por final autógrafo, "após o ditado o amanuense relia a carta, voz alta, e depois o autor, de próprio punho, acrescentava um final" (Bruyne, em "São Jerônimo e a técnica do livro", D. Paulo Evaristo Arns, 2• edição, Editora Cosacnaify p. 170). Sua personalidade fascinante inspirou poetas, escritores e estudiosos tendo sido ainda um dos santos mais retratados.Pintaram-no entre outros, Lorenzo Lotto, Guido Reni, Caravaggio, Tintoretto, Piero de La Francesca, Leonardo da Vinci, Botticelli, Dürer, Rembrandt, Zurbaran e Ribera, imortalizando-o com sua arte, no deserto ou no estúdio, junto aos livros e a caveira, símbolo da efemeridade da Yida, e o leão domesticado, o anacoreta semi-nu, ou o doutor máximo da igreja em trajes cardinalícios. Dezesseis séculos depois o estudo da vida e da obra desse homem notável, bem assim das circunstâncias em que viveu, permitemnos conhecer a implantação dos fundamentos da civilização ocidental cristã e etapa importante da evolução da escrita, do livro, e da leitura. Este místico e asceta torturado, como o chamou Teixeira de Pascoaes, que viveu entre a sensualidade acesa pelo corpo e a excitação dos sentidos, e a imolação pela penitência, como oferenda a Deus em remissão dos pecados e fortalecimento da fé, deu-nos o exemplo da conciliação entre a cultura clássica, leiga, e os estudos sacros. A vida em Roma, entre palácios e dignatários da cúria, e a solidão do deserto, fonte de inspiração, seu "paraíso de luz" como o chamava.Tradutor da "vulgata", obra de mestre, fonte da unidade do cristianismo, até então dilacerado por heresias e controvérsias nutridas por fontes diversas de doutrina, dividido pela disputa entre ocidente e oriente, Roma e Constantinopla, por mil anos sua leitura orientou a consolidação e expansão da Igreja. Desempenhou papel importante na evolução da escrita, na transição do estilete para o cálamo, do papiro para o pergaminho, do livro de rolo para o "códice", tornando mais cômoda a leitura, e menos penosa a tarefa sem fim de fazer livros.

 

 

 





Desta personalidade multifacetada de teólogo, escritor polemista, gramático, filólogo, retórico, ressalta para a posteridade a contribuição fundadora para a teoria da tradução, preocupada com a fidelidade às idéias, sem incorrer na tentação literal, que fustigou reiteradamente com o látego do verbo de fogo, filho do seu temperamento indomável. Por todos esses atributos foi feito patrono dos bibliófilos, livreiros, editores, tradutores, bibliotecários, ou como sugere Larbaud, de todos os homens de letra, ou ainda em síntese, de todos os humanistas. Sem perder a atualidade, São Jerônimo nos lega a lição do amor aos livros, do estudioso incansável, da prospecção e estudo comparado. Dos textos para a construção da doutrina canônica, da busca da verdade, da harmonização entre o saber profano e a cultura cristã, a conciliação entre intelectual sofisticado e o asceta, o mundanismo da Roma corrompida e a solidão do deserto na companhia de bestas e escorpiões.




 


 





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