Cidade do Vaticano - Em decreto assinado e que entrou em vigor a 1º de janeiro de 1970, o Papa Paulo VI efetuou a maior reforma do Santoral, eliminando 33 santos legendários, entre os quais São Cristóvão, Santa Bárbara, e Santa Filomena. O decreto, suprime alguns santos do calendário de festejos católicos universais, para dar maior ênfase à morte e ressurreição de Cristo e diminui, simultaneamente, a influência de Santos, cuja existência, em alguns casos, foi colocada em dúvida. Outros dois santos proeminentes, São Jorge e São Nicolau, não receberão culto universal, e os bispos de cada nação resolverão sobre as honras que lhes serão tributadas. Como
se explica o recente caso de Santa Filomena? Como pode a Igreja cancelar a
festa da santa, quando se lhe atribuem tantos milagres e favores? E que dizer
do tratamento dado a São Jorge?
Analisaremos separadamente: "o que
se deu com Santa Filomena e São Jorge"?
O famoso
caso de Santa Filomena, apesar da surpresa que suscitou, é, em verdade, muito
simples e compreensível. As notícias, porém, e reportagens da imprensa (muitas
vezes, mal formuladas), os comentários do público, deram-lhe vulto indevido,
chegando a envolver proposições de fé. É o que exige da nossa parte uma
elucidação serena. Atendendo a esta necessidade, consideraremos primeiramente a
origem da devoção a Santa Filomena; a seguir, focalizaremos os temas de fé que
parecem prender-se à célebre «história».
Os
inícios da devoção a Santa Filomena:
O
histórico da devoção (geralmente ignorado) será suficiente para dissipar a
maioria das dúvidas recém suscitadas pelo noticiário da imprensa.Até 1802 não
se conhecia a famosa devoção a Santa Filomena na cristandade.Aconteceu,
porém, que aos 25 de maio de 1802 (época em que os arqueólogos começaram a
estudar os cemitérios da antiguidade) descobriram nas catacumbas de Sta.
Priscila em Roma, junto à via Salária, um túmulo recoberto por três fragmentos
de lápide; sobre esses destroços lia-se uma inscrição em tinta vermelha assim
concebida:
"LUMENA - PAXTE - CUM FI"
Tais letras estavam acompanhadas de
desenhos simbólicos, como duas âncoras, uma palma, três setas, folhas de hera
(ou, conforme alguns, um lírio). No interior do túmulo os exploradores
encontraram ossos que eles julgaram ser os despojos de uma jovem donzela dos
seus treze ou quinze anos de idade, a qual morrera com o crânio fraturado.
Encontraram, outrossim, uma ampola que parecia conter sangue e que, em
consequência, foi considerada sinal de que a donzela morrera como mártir da fé.
A palma do epitáfio parecia corroborar a suposição do martírio, no caso; as
setas que a acompanhavam, indicariam o instrumento da morte. Além do mais, a
idade muito tenra atribuída à defunta fazia crer que fora virgem. Quanto ao
nome da jovem sepultada, os descobridores não hesitaram em recompô-lo
invertendo a ordem dos dizeres das placas de modo a ler:
PAX TECUM FILUMENA: «A paz esteja contigo, ó Filomena»
Filumena é particípio passado grego, que
significa «amada, dileta» (alma?... Virgem?... Mártir?...). O vocábulo, porém,
foi tomado como nome próprio da presumida virgem e mártir do sepulcro. Concluíram
os arqueólogos que haviam descoberto as relíquias de uma grande santa da
antiguidade, cuja existência fora ignorada até então. Esses despojos mortais
foram então extraídos das catacumbas e levados para a Custódia central das
Relíquias em Roma. Em breve, o cônego Francisco di Lúcia solicitou-as
instantemente e obteve-as para a aldeia de Mugnano, no sul da Itália, para onde
os despojos mortais foram transportados aos 10 de agosto de 1805. Já que todos
julgavam tratar-se de uma verdadeira santa, os fiéis começaram a invocá-la.Note-se bem que não era necessário nem
processo de canonização nem pronunciamento explicito da autoridade suprema da
Igreja no caso, pois os santos anteriores ao séc. X não eram objeto de processo
jurídico de canonização, mas eram simplesmente aclamados pela voz do povo (cf.
«P. R.» 13/1959, qu. 5). No caso de Sta. Filomena, portanto a devoção se
baseava unicamente na suposta autenticidade da documentação e das interpretações
que acabamos de mencionar.Pouco depois da trasladação para Mugnano, uma
religiosa napolitana, Irmã Maria Luísa de Jesus, julgou ter recebido uma série
de revelações a respeito da vida e do martírio de Santa Filomena. Na base de
tais revelações foi então redigida a biografia de Santa Filomena, Virgem e
Mártir: narrava-se aí que fora filha de um rei da Grécia e padecera sob o
Imperador Diocleciano (f305), que a queria violentar.A devoção se foi consequentemente expandindo pela
Itália e a França; a sua popularidade tomou incremento extraordinário em vista
da cura aparentemente milagrosa da Venerável Pauline Marie Jaricot, fundadora
da Obra da Propagação da Fé, a qual, já moribunda, teria recuperado a saúde por
intercessão de Santa Filomena!Em Ars, o santo cura João Maria Vianney
(1786-1859) nutria grande estima para com Santa Filomena, chamando-a «sua cara
santinha», e atribuindo-lhe numerosos favores; Filomena tornou-se assim a «taumaturga
do séc. XIX». Tendo em vista os avultados benefícios, tanto
espirituais como temporais, que comumente se derivavam da devoção a essa santa,
a Sagrada Congregação dos Ritos, órgão oficial da Santa Sé que trata do culto
divino, em 1837 autorizou a sua veneração pública, estabelecendo a respectiva
festa anual no dia 11 de agosto; em 1855 a mesma S Congregação aprovou um
formulário de Missa e um ofício para esse dia (note-se: o ofício era
simplesmente do «Comum das Virgens Mártires»; tinha apenas uma leitura própria
em Matinas, leitura, porém, que nada afirmava dos traços biográficos ou da cena
de martírio de Filomena).Nos últimos tempos, cerca de 300.000 devotos visitavam anualmente os
despojos mortais de Sta. Filomena em Mugnano (Itália); elevado número de
igrejas (somente nos Estados Unidos, cem igrejas), associações e pessoas foram
colocadas sob o seu patrocínio.Isso tudo, porém, não impediu que em tempos
recentes os doutos, mesmo católicos, tenham começado a manifestar reservas
frente ao culto de Sta. Filomena; os conhecimentos de história antiga, de
arqueologia, tendo progredido, havendo-se esmerado também o senso de crítica e
exatidão cientificas, os estudiosos perceberam a precariedade da documentação
histórica sobre a qual se apoiava a devoção à santa.Com efeito. Os arqueólogos
averiguaram que as ditas «ampolas de sangue» das antigas sepulturas na verdade
não contêm sangue, nem são indícios de despojos de algum mártir -
Verificaram outrossim que os símbolos do epitáfio encontrado sobre os ossos de
Filomena têm significado assaz genérico: a âncora lembra a cruz de Cristo e a
esperança do cristão, a palma indica o galardão de que no céu goza todo
discípulo fiel e as flechas e as folhas de hera servem apenas para separar as
palavras entre si. Quanto à reconstituição do nome
«Filumena» e à atribuição do mesmo à defunta encontrada, observou-se que se
baseavam em hipótese igualmente inconsistente. Sim; no séc. IV após a concessão
de paz à Igreja (313), as catacumbas de Roma foram sendo rebuscadas por Sãos devotos,
que desejavam extrair os corpos dos mártires e justos mais famosos da
antiguidade; abriam, portanto, as sepulturas, removendo as lápides sepulcrais
ou os epitáfios. Ora, quando sepultavam novos mortos nas catacumbas do séc. IV,
os respectivos túmulos eram muitas vezes fechados com lápides dos antigos
sepulcros; ao aproveitar, porém, essas lápides, os «fossores» ou coveiros
faziam questão de misturá-las entre si, tomando fragmentos de mais de uma
sepultura primitiva destituídos de nexo recíproco, justamente para evitar que
se cresse que os ossos recém-sepultados em tal lugar pertenciam a tal ou tal
defunto mais antigo.
Não estaria fora de propósito
conjeturar que isto se tenha dado no caso de «Santa Filomena»; os três
fragmentos que recobriam os ossos encontrados não proviriam de sepulturas mais
antigas? Não teriam sido reunidos mais ou menos ao acaso?
Suposto isto, a
reconstituição do nome «Filumena» (a partir do LÚMEN A na primeira lápide e FI
na terceira), careceria de fundamento; poder-se-ia mesmo perguntar se existiu
uma santa mártir com o nome de «Filumena»; LUME- NA e FI poderiam entrar na
composição de muitas palavras das quais as outras partes estariam perdidas.Na base
das considerações acima, já havia vários anos que no seio mesmo da Igreja se
levantavam dúvidas a respeito da existência de Santa Filomena, quando nos
últimos meses o Santo Padre João XXIII houve por bem mandar cancelar do
calendário oficial da Igreja a festa dessa santa; para isso, S. Santidade
baseava-se na falta de certeza concernente à historicidade mesma "de Sta.
Filomena.Como se vê, essa atitude da Santa Sé não foi
adequadamente compreendida por um dos jornais do Rio de Janeiro, que publicou a
seguinte noticia:
«Não há mais Santa Filomena —
acaba de decretar o Vaticano». A frase dá a entender que é o Vaticano quem faz
e desfaz os santos, como se estes não passassem de produtos da imaginação ou do
senso piedoso das autoridades eclesiásticas e dos devotos.
Aliás, a
determinação da Santa Sé relativa a Santa Filomena faz parte de amplo projeto
de remodelação da Liturgia sobre bases muito simples e claras, remodelação que
naturalmente tende a remover da piedade cristã os motivos de devoção que
careçam de seguro fundamento histórico. Tomando a rigor a disposição da S.
Congregação dos Ritos, verifica-se que não é proibida a devoção particular a
Santa Filomena; apenas o culto litúrgico foi atingido pelo decreto. Se alguém,
portanto julga que a precária documentação existente sobre Sta. Filomena merece
crédito, pode dirigir-se a essa santa; era o que se fazia de boa fé no século
passado. Em nossos dias, porém, é de desejar que nenhum cristão, por mais
piedoso que seja. feche os olhos voluntàriamente às conclusões dos estudiosos,
contentando-se com uma piedade de fantasia alheia à realidade dos fatos.São estes
os precedentes que elucidam o atual «caso de Santa Filomena», permitindo-nos
verificar que muito acertada foi a determinação de Roma ao cancelar do seu
calendário oficial a festa da santa: a piedade só pode lucrar ao se deixar
guiar pelas luzes da verdade.
Contudo algumas
questões de índole doutrinária são espontaneamente suscitadas pela explanação
acima. Abordemo-las sucessivamente. A primeira
dúvida suscitada talvez seja a que concerne:
1) a autoridade
do magistério da Igreja. Muitos perguntam: como entender a aparente
retratação de si mesma que a Igreja acaba de fazer?
A
resposta não é difícil! Na verdade, a Igreja nunca se pronunciou por seu
magistério solene e infalível em favor da existência de Santa Filomena! Sua
atitude foi, como dissemos, simplesmente a seguinte: em 1802 encontraram-se
ossos que, com alguma verossimilhança foram atribuídos pelos arqueólogos a uma
santa dita «Filomena», virgem e mártir do séc. IV; a verossimilhança da
atribuição parecia suficiente e aceitável naquele início do século passado,
época de exíguo senso crítico. Ora, visto que se apresentava Filomena como
santa do século IV, as autoridades da Igreja não se viam, no caso, obrigadas a
instaurar processo de canonização; a declaração de santidade (ou a canonização)
de Filomena devia ser suposta; teria sido feita pela voz do povo cristão
antigo, como era costume antes do século X (cf. «P. R.» 13/1959,
qu. 5). Em consequência, os Romanos Pontífices, os bispos e o povo católico
foram aceitando «Santa Filomena»; as graças atribuídas à sua intercessão só
faziam corroborar a crença na santa. A colocação no calendário
litúrgico aos 11 de agosto de modo nenhum implica em definição infalível; era apenas
medida de disciplina,medida sujeita a reforma desde que tal disciplina se
evidenciasse inoportuna; as autoridades da Igreja introduziram a festa de
Filomena unicamente por causa da devoção do povo cristão, devoção contra a qual
nada se podia objetar, pois nada tinha de absurdo ou supersticioso (a questão
da autenticidade da documentação pressuposta nem sequer se punha no século
passado).Nos
"tempos atuais, porém, os estudiosos tendo verificado a precariedade de
tal documentação, a Sta. Igreja não hesita em afirmar a evidência dos fatos:
não permite, continue a ser celebrada na sua Liturgia oficial uma festa tão
insegura- mente assentada; quanto às manifestações de devoção pessoal a Santa
Filomena, são toleradas,desde que os devotos julguem haver fundamento para crer
na existência da santa. Tal atitude da Igreja está longe de ser uma
«descanonização» ou «dessantificação», como se tem dito, pois nunca houve
canonização oficial de Sta. Filomena; aconteceu mesmo mais de uma vez
em épocas passadas que as autoridades eclesiásticas resolveram vedar o culto
que o povo cristão começara a tributar a determinado santo. Cf. «P.R.» 13/1959,
qu. 5.
2)- Outra das
dificuldades doutrinárias suscitadas pelo «caso de Santa Filomena» seria: Como explicar os milagres atribuídos à santa,
caso se admita que esta não tenha existido? Tanto faz invocar santos existentes
como santos não existentes?
Primeiramente,
no tocante aos milagres convém lembrar que a Igreja não se empenha por afirmar
a sua realidade; o magistério eclesiástico é, em geral, lento e cauteloso
quando se trata de admitir portentos. Dado, porém, que os fiéis (e em particular o
Cura d'Ars) tenham realmente obtido graças extraordinárias mediante a devoção a
Santa Filomena, será preciso recordar que não são propriamente os santos que
fazem milagres e concedem graças, mas é o Senhor Deus quem distribui tais dons,
e os distribui principalmente em vista da fé e da devoção dos que os pedem na
terra; no caso, portanto, da devoção a Santa Filomena, se houve milagres, estes
foram realizados diretamente por Deus em resposta às piedosas disposições dos
devotos; dado que Sta. Filomena não tenha existido, ela não intercedia
(nem intercede) por seus devotos (como realmente intercede no céu um santo
existente), mas a figura da santa servia ao menos de estimulo à piedade dos
orantes; assim é que mesmo uma presumida «Santa Filomena» podia concorrer para
a obtenção de graças extraordinárias do Céu (vinha a ser o incentivo subjetivo
do zelo e da devoção dos que oravam).Disto não se segue, é claro, que tanto faz invocar santos existentes
como invocar santos inexistentes. A piedade e os afetos da alma para que sejam
dignos da natureza humana, devem ser iluminados pela verdade ou pela realidade
das coisas. Caso, porém, alguém de boa fé se ache no erro, tomando como existente um santo que não
existiu, o Senhor não deixa de atender à boa fé de quem O suplica; Ele em tais
casos corresponde às preces, não por causa do santo inexistente, mas por causa
das disposições sinceras de quem ora.
3)
Não seria para recear que semelhantes golpes venham a ser futuramente
Infligidos ao culto dos santos?
Em
resposta, distinguiremos entre santos canonizados após processo formal (tais
processos só começaram a ser feitos no séc. X) e santos proclamados apenas pela
voz popular não contraditada pela autoridade suprema da Igreja. Ao passo que sobre
a existência e a intercessão dos primeiros não resta dúvida, a respeito dos
outros não é impossível que se descubram, no decorrer dos tempos, documentos
que invalidem as respectivas crenças populares; a Igreja então terá que
declarar a inconsistência da devoção a esses santos; no caso, portanto, dos
justos sobre os quais a Igreja não se definiu por seu magistério supremo, a
devoção fica dependendo da autenticidade dos documentos que se possam aduzir em
favor de tais santos (a grande maioria está suficientemente comprovada).
Foi justamente, por
averiguar que careciam de verdadeiro fundamento histórico, que a S. Congregação
dos Ritos mandou ultimamente eliminar do calendário da S. Liturgia as festas
de:
1)- São Leão II (3 de julho), pois se evidenciou que nos
antigos códigos litúrgicos a cifra II não significava um santo posterior a. São
Leão I, dito «Magno», Papa, mas designava o próprio São Leão I a ser celebrado
pela segunda vez no ano (a primeira vez ocorria aos 11 de abril).
2)- Santo Anacleto (13 de julho); verificou-se que este nome não
era senão uma variante do nome São Cleto, que já tem sua festa a 26 de abril (a
preposição aná em grego significa «de novo»).
3)- São Vital (28 de
abril); também está comprovado que o santo celebrado com este nome
em abril não difere do seu homônimo festejado aos 4 de novembro.
4)- São João diante da
Porta Latina (6 de maio); sob este titulo se comemorava um episódio
cuja autenticidade foi reconhecida como assaz duvidosa: acreditava-se, com
efeito, que o Apóstolo São João, diante da Porta Latina de Roma, fora atirado
em um tanque de óleo a ferver, escapando, porém, incólume do perigo. Ora, já
que a documentação referente a este particular é pouco fidedigna, a Santa
Igreja (que nunca definira o episódio como sendo real) houve por bem não mais o
celebrar em sua Liturgia;
5)- Trasladação da Casa de Loreto (10
de dezembro); também
por se ter observado que carece de suficiente documentação histórica este
episódio já não é objeto de -celebração no culto oficial (cf. «P.R.» 12/1958,
qu. 9, onde se expõem as origens da narrativa se- segundo a qual teria sido
transferida pelos anjos para Loreto, Itália, a casa na qual se deu a Anunciação
do Arcanjo Gabriel a Maria).
Seja lícito e oportuno repetir:
A Santa Igreja aceitou a celebração de
tais festas porque, de um lado, nada tinham de incompatível com as verdades da
fé e, de outro lado, pareciam suficientemente assentadas sobre fatos e documentos
históricos de seus contextos. Note-se que, ao celebrar essas festas, os fiéis
não praticavam coisa vã, porque, mesmo que não tivessem tido existência os
santos ou os episódios cultuados, eles eram, no mínimo, motivos de
afervoramento religioso, afervoramento ao qual Deus respondia liberalmente com
suas graças.Tais festas mereciam a reverência (e esta apenas) que a respectiva
documentação histórica lhes podia conciliar.Desde, porém, que se evidenciou a
precariedade de tal documentação, a Igreja não hesitou em tomar atitude
coerente, modificando o seu calendário litúrgico.As modificações assinaladas, longe de deixar os
fiéis perplexos e como que abalados na sua piedade, devem, antes, contribuir
para lhes incutir uma fé mais pura e lúcida; elas mais uma vez lembram que se
deve distinguir na Igreja entre o essencial e acidental. O símbolo de fé e a
estrutura da Igreja são, sim, essenciais e intangíveis, porque se derivam do
próprio Deus; quanto às manifestações da vida cristã,, elas podem variar; o
critério para as aprovar ou desaprovar é um critério de bom senso ou de
documentação cientifica, critério sujeito a mudanças no decorrer dos tempos; a
Igreja aceita tais mudanças, já que não Lhe afetam a estrutura; Ela as deseja
mesmo, quando são oportunas, a fim de ser sempre atual e presente à vida dos
povos.
A confusão presente
oriunda do cancelamento das referidas festas se deve a um pressuposto assaz
comum:
Muitos dos nossos contemporâneos julgam
que tudo que se faz na Igreja, é feito por ordem de Sua Santidade o Papa,
envolvendo a sua autoridade suprema e infalível. Na realidade, tal nem sempre se
dá.
Muitas práticas não essenciais à vida cristã se desenvolvem, na Igreja, de
baixo para cima (não de cima para baixo), isto é, originam-se por iniciativa do
povo devoto não por decreto superior. As autoridades eclesiásticas
deixam os fiéis agir enquanto não veem superstição em tal ou tal prática
popular e enquanto não se percebe motivo que desaconselhe a continuação. Desde,
porém, que tal motivo se imponha, a Santa Igreja intervém para vantagem do povo
de Deus. Foi o que se deu nos casos que acabamos de percorrer.
E sobre o culto de "veneração" (honra) a São Jorge ?
Romanos 13,7: "Deem a cada um o que lhe é devido: se imposto, imposto; se tributo, tributo; se temor, temor; se honra, honra..."
Quanto a
São Jorge, a sua festa não foi de todo eliminada do calendário oficial da Igreja, porque
não há motivos para pôr em dúvida a sua existência. Contudo a celebração do
santo foi destituída do seu relevo antigo, passando a constituir mera
comemoração. O motivo disto é que, segundo os mais recentes estudos, já não se pode
asseverar a historicidade de quanto se narrava a propósito de São Jorge;
consciente disto, a Sta. Igreja julgou oportuno não chamar tanto a atenção dos
fiéis para um santo cujos dados biográficos nos ficam quase totalmente
encobertos. A
respeito de São Jorge, portanto, apenas se pode dizer com segurança que nasceu
em Lida (Lydda) na Síria por volta de 270 e foi martirizado em Nicomédia no ano
de 303. São considerados como incertos ou mesmo lendários os pormenores
habitualmente narrados: Jorge, como soldado do Império Romano, teria
participado de uma campanha na Pérsia, após a qual haveria residido em Beirute
(Síria); nesta cidade, teria lutado contra um dragão; depois disto, dizem que
Diocleciano o enviou em expedição à Grã-Bretanha; Jorge atravessou então o mar
da Irlanda, hoje também dito «Canal de São Jorge», e desembarcou em Porta
Sistuntiorum; daí dirigiu-se para Glastonbury em peregrinação ao túmulo de seu compatriota
José de Arimatéia.
sobre a "Canonização oficial e eclesial" (infalível) e "aclamação popular"
Os
teólogos e canonistas, quase unanimemente, afirmam que o Sumo Pontífice goza de
infalibilidade, quando define estar algum justo na glória celeste e, por
conseguinte, merecer a veneração pública dos fiéis.A razão em que se apoiam, é a seguinte: O Papa
não pode induzir em erro a Igreja universal em matéria de fé e costumes (como
definiu o Concilio do Vaticano, consoante a mais autêntica tradição cristã; cf.
a questão 2 deste fascículo). Ora uma sentença de canonização toca a moral
do povo cristão, pois propõe à veneração e à imitação dos fiéis uma pessoa que,
não há dúvida, representa um ideal de doutrina e de vida bem caracterizado, e
um modelo de virtudes a serem seguidos. Não se pode conceber, pois, que
o Sumo Pontífice, em declarações feitas solenemente ao orbe católico, não
indique as pessoas correspondentes a tal propósito, ou seja, autênticos santos
(disto, porém, não se segue que todos os autênticos santos são também
canonizados ou publicamente proclamados tais). Note-se
outrossim que os Pontífices mesmos, nas bulas de canonização, parecem professar
a consciência da sua infalibilidade (o que por si não é argumento decisivo,
mas, ao menos, confirmativo). Eis as expressões categóricas de que costumam
usar: «Intar sanctos et electos ab Ecclesia universali
honorari praeci- pimus...Apostolicae Sedis auctoritate catalogo sanctorum
scribi manda- vimus...Memoriam inter sanctos ab omnibus de cuetero fieri
censemus, et anniversarium ipsius diem solemniter celebrari constituimus,...
statuentes ab Ecclesia universali illius memoriam quolibet anno pia devotione
recoli debere...»
Quem não queira reconhecer a
sentença de canonização, incorre em falta grave, como dá a ver a seguinte
fórmula:
«Si quis, quod non credimus, temerário ausu,
contraire tenta- verit,... sciat se, auctoritate B. Petri, principis
apostolorum, cuius vel immeriti vices agimus, anathematis vinculo innodatum».
Para se
avaliar todo o alcance destas expressões, observem-se os termos
intencionalmente mais brandos em que os Pontífices se costumam exprimir nas
bulas de beatificação (declaração limitada a certas pessoas e regiões): «Tenore
praesentium indulgemus...; licentiam et íacultatem concedimus...».
As reservas são explicitamente
formuladas nos dizeres:
«... donec aliud per Nos, vel per sedem
apostolicam, fuerit solemniter ordinatum».
No caso,
pois, de beatificação, o Santo Padre concede, não preceitua, e embora tenha
boas razões para conceder, não julga impossível uma reforma de sentença.O fato
de que os teólogos geralmente admitem a infalibilidade das sentenças de
canonização torna gravemente temerária, escandalosa e próxima de heresia a
posição de quem queira negar tal doutrina. Por conseguinte, também seria
gravemente temerário duvidar de que tal ou tal santo canonizado esteja
realmente na glória celeste. Não se poderia, porém, afirmar que a negação ou a
dúvida em tais assuntos equivale à heresia: «Mesmo após o concilio do Vaticano,
não há definição explícita da Igreja a tal respeito, de sorte que quem negasse
não seria formalmente herege» (T. Ortolan, Ganonisa- tion dans l'Église
Romaine, em «Dictionnaire de Théologie catholique» II 2. Paris 1939, 1624).Para
proferir uma sentença de canonização, o Sumo Pontífice, embora goze da assistência
infalível do Espírito Santo, não é dispensado de recorrer a critérios
sensíveis, capazes de gerar certeza no plano meramente humano (é o que se dá,
aliás, no caso de qualquer definição dogmática pronunciada pelo S. Padre).
Dois
sinais raros e indispensáveis são exigidos para que um processo de canonização
chegue a termo feliz :
1º) Comprovada
heroicidade das virtudes do justo durante a sua vida terrestre.
2º) O
testemunho de milagres comprovados por sua intercessão, após a morte.
Qualquer dúvida
a respeito de um ou outro destes pré-requisitos retém ou anula toda a marcha do
processo.Quanto aos milagres em particular, a Igreja ainda
hoje os reconhece como autênticos sinais de Deus, desde que se verifiquem em
circunstâncias determinadas (cf. «P. R.» 6/1958 qu. 1). Para que o processo
chegue à sentença de beatificação, requerem-se dois, três ou quatro milagres,
conforme a qualificação das testemunhas que os referem (cf. cân. 2117); no
caso dos mártires, a exigência de milagres pode ser mitigada ou até dispensada
(cf. cân. 2116 § 2). Para a canonização, tornam-se indispensáveis dois ou três
milagres (segundo circunstâncias variáveis) verificados após a beatificação
(cf. cân. 2138). Assim quer a Sta. Igreja assegurar-se de que realmente Deus falou
ao mundo pela conduta de vida de tal ou tal justo.Parecem dispensáveis ulteriores
comentários ao caso.
Dom Estêvão Bettencourt (OSB)
CONCLUSÃO
Deus é a verdade (João 14,6), e a Igreja é a Coluna e sustentáculo da
verdade (1 Tim3,15), portanto, é claro que para Deus e sua Igreja, não é uma
coisa irrelevante a ponto de achar que tanto faz invocar santos existentes como
invocar santos inexistentes. A piedade e os afetos da alma para que sejam
dignos da natureza humana, devem ser iluminados pela verdade ou pela
realidade das coisas. Caso, porém, alguém de boa-fé se ache no
erro, tomando como existente um santo que não existiu, o Senhor não deixa de atender à
boa fé de quem O suplica. Deus que é pai, e não um
legalista, em tais casos corresponde autenticidade e necessidade das
preces, não por causa do santo existente, ou inexistente,
mas por causa das disposições sinceras de quem ora (conf. Mateus 7,11). Deus neste caso está mais atento ao pedinte e o que
este estar a pedir, e não simplesmente por meio de quem ele pede, até
mesmo porque, em último caso, ainda que o santo existisse, ele por si só nada
poderia fazer, mas apenas interceder, quem opera o realizar da graça pedida é
unicamente Deus! O santo apenas intercede.
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Lamentável, muita argumentação, mas que não negam os fatos... tomando-se, p.ex., o caso de Santa Filomena, santa confirmada por outro Grande Santo, o Cura d'Ars, santa de prodigiosos milagres. Esse texto demonstra o caos que vemos na Igreja "pós-conciliar".
Prezado Henrique,
Sou obrigado a discordar de você, como muito bem explicou a matéria, uma coisa não tem nada haver com a outra. Os santos retirados do Calendário dos santos, nunca foram canonizados oficialmente, mas aclamados popularmente pelos cristãos como santos. Quem goza da infalibilidade não é povo, que pode até erroneamente pedir a crucificação de Jesus. Quanto aos santos, esses erram pessoalmente e teologicamente, mesmo sendo declarados santos.
Everardo - SP
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