Nada mais nobre e elevado do que o ideal da pobreza evangélica, mas nada mais execrável do que a sua deturpação. São Francisco de Assis exaltava a Dama Pobreza, mas já nos primórdios da Ordem franciscana houve uma deformação do ideal seráfico em relação à pobreza evangélica, criando divisões e levando alguns de seus membros à heresia. Fazendo uma interpretação literal da Regra Franciscana, e deformando-a, os denominados espirituais, e mais tarde os fratricelli, passaram a considerar a pobreza não mais como um meio de perfeição, mas como um fim em si mesmo, colocando-a acima da caridade. Contrariavam assim o ensinamento de São Paulo:
“Ainda
que distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que
entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada
valeria” (1 Cor. 13, 3).
O raciocínio errado em que se baseavam esses hereges era que Jesus Cristo e os Apóstolos procuravam a perfeição, portanto não possuíam bens privados nem em comum. O Papa João XXII respondeu com a bula Ad conditorem, ensinando que a perfeição evangélica consiste essencialmente na caridade (amor de Deus), e de nada serve renunciar aos bens materiais se a pessoa continua a se preocupar com eles.
SE O VALOR DA POBREZA FOI DETURPADO, O DA RIQUEZA E O FAVOR
DE DEUS PARA COM OS JUSTOS TAMBÉM O FOI
No Antigo Testamento
considerava-se a riqueza como um dom de Deus, a ponto de os textos sagrados
elogiarem sem nenhuma hesitação a riqueza dos personagens piedosos da história
de Israel:
-Abraão era muito rico em rebanhos, prata e ouro (Gn 13,2);
-Isaac obteve o cêntuplo numa colheita e “tornou-se
extremamente rico” (Gn 26, 12-13);
-Jacó “tornou-se extremamente rico, e teve muitos rebanhos”
(Gn 30, 43);
-Deus promete ao povo eleito que o conduzirá a uma terra
“excelente, cheia de torrentes”, “de trigo e de cevada, de vinhas”, “onde não
será racionado o pão que comeres e onde nada faltará”, pelo que poderão “comer
à saciedade” e bendizer o Senhor “pela boa terra” que lhe deu (Dt 8, 7-10).
-Quando a realeza for instaurada em Israel, a riqueza dos
reis será considerada um sinal da proteção divina, com a condição de que sejam
fiéis a Yahvé.
-Mais ainda, Deus enriquece os simples judeus que O amam,
como Jó, por ter sido fiel na provação; Deus “tornou-lhe em dobro tudo quanto
tinha possuído”, chegando a acumular “catorze mil ovelhas, seis mil camelos,
mil juntas de bois e mil jumentas” (Jó 42, 10-12).
Esses exemplos mostram
como para o Antigo Testamento a riqueza é um dom de Deus, sinal da generosidade divina e
merecida recompensa do homem justo. Mas a riqueza não é considerada o
bem mais elevado, pois o homem sábio prefere as riquezas espirituais às
materiais. Isso fica muito patente nos Provérbios, onde abundam conselhos como:
“Vale
mais o pouco com o temor do Senhor que um grande tesouro com a inquietação”
(Prov. 15, 16)
“Bom
renome vale mais que grandes riquezas; a boa reputação vale mais que a prata e
o ouro” (Prov. 22, 1)
Além
disso a riqueza é um valor relativo, onde “rico e pobre se encontram: foi o
Senhor quem criou ambos” (Prov. 22, 2).
O que os textos
sagrados realmente reprovam é a riqueza obtida de maneira desonesta, como
também quando ela apodrece o coração do homem e o leva a lesar seus semelhantes
e a não dar esmola aos pobres. As invectivas de São Tiago contra os avaros e os
injustos são dignas dos antigos profetas:
“Vós, ricos, chorai e gemei por
causa das desgraças que virão sobre vós. Vossas riquezas apodreceram e vossas
roupas foram comidas pela traça. Vosso ouro e vossa prata enferrujaram-se, e a
sua ferrugem dará testemunho contra vós e devorará vossas carnes como fogo.
Entesourastes nos últimos dias. Clama contra vós o salário que defraudastes aos
trabalhadores que ceifavam os vossos campos, e os gritos dos ceifadores chegaram
aos ouvidos do Senhor dos exércitos” (Tg
5, 1-4).
Note-se que ele
não condena a riqueza em si mesma, mas sim o egoísmo e a injustiça. As
admoestações do Novo Testamento contra os ricos de coração tomam maior relevo
quando comparadas aos ensinamentos de Nosso Senhor. Ele é muito claro quando
diz que ninguém pode servir a dois senhores – Deus e o dinheiro (Mt 6, 24);
para adquirir a pérola preciosa é preciso vender tudo (Mt 13, 45-46); a sedução
das riquezas impede que seja ouvida a Palavra de Deus (Mt 13, 22). Estimula o
jovem rico a vender tudo o que possui, dar aos pobres e segui-Lo (Mt 19,
21-22), e a recusa do convite leva-O a declarar:
“É
mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no
Reino de Deus” (Mt 19, 24).
Está muito claro aí que não se referia aos que são ricos, mas aos que têm apego às próprias riquezas ou às que gostariam de possuir. À luz das bem-aventuranças, isso se torna ainda mais evidente:Nosso Senhor não diz bem-aventurados os que morrem de fome, mas “bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus” (Mt 5, 3).Na sua vida pública, o Redentor esteve rodeado de pessoas abastadas. José de Arimateia, por exemplo, era proprietário do túmulo que recebeu o divino Corpo (Mt 27, 57). São Lucas conta que as mulheres que acompanhavam Jesus e seus discípulos “os assistiram com as suas posses” (Lc 8,2), porque o Evangelho não ordena desprender-se da riqueza, mas usá-la para dar esmolas, fazendo para si “bolsas que não se gastam, um tesouro inesgotável nos céus” (Lc 12, 33). A generosidade não deve ser vista como um mérito próprio, mas como um dom de Deus. Diz S. Paulo a Timóteo:
“Exorta os ricos deste mundo a que
não sejam orgulhosos nem ponham sua esperança nas riquezas volúveis, mas em
Deus, que nos dá abundantemente todas as coisas para delas fruirmos. Que
pratiquem o bem, enriqueçam-se de boas obras, sejam generosos, comunicativos,
ajuntem um tesouro sólido e excelente para seu futuro, a fim de conquistarem a
verdadeira vida” (1 Tim. 6, 17-19).
Os ricos além da oportuna, necessária e justa caridade para com os pobres, podem também, contribuir na construção de belas igrejas, na confecção de belos ornamentos e para o esplendor da sagrada liturgia. Nisso a Igreja imita Maria, a irmã de Lázaro, que ungiu os pés de Jesus com “uma libra de bálsamo de nardo puro, de grande preço”, e foi reconfortada pela repreensão do Mestre ao ganancioso Judas: “Sempre tereis convosco os pobres, mas a mim nem sempre me tereis” (Jo 12, 3-8). E São João ainda explicita um comentário esclarecedor para todas as épocas da Cristandade: “[Judas] disse isso, não porque se importasse com os pobres, mas porque era ladrão” (Jo 12, 8). Eis aí a verdade profunda, quando muitos falam em pobreza evangélica. O pobre que entrava numa igreja sabia que todos aqueles esplendores — os muros suntuosos, as imagens imponentes nos altares, os quadros magníficos, a música sublime — estavam lá para ele, à sua inteira disposição, a serviço de sua alma; além da ajuda para o corpo, que ele podia receber em alguma obra da caridade.Ao entrar no templo, o pobre ignorante se tornava um rei, para cuja compreensão e edificação os maiores artistas pintaram e esculpiram todas aquelas maravilhas, os músicos compuseram músicas sublimes, os organistas tocaram e os coros cantaram, os sacerdotes realizaram minuciosamente cerimônias belas e compassadas. Toda a beleza e mistério da Igreja e dos templos constituía de fato um “patrimônio dos pobres”.Nos “Princípios e fundamentos” dos Exercícios Espirituais, Santo Inácio de Loyola convida os que fazem um retiro espiritual a meditar nas seguintes verdades:“O homem foi criado para louvar, prestar reverência e servir a Deus Nosso Senhor, e mediante isto salvar a sua alma; as outras coisas sobre a face da Terra foram criadas para o homem, para que o ajudem a conseguir o fim para o qual foi criado. Donde se segue que o homem há de usar delas tanto quanto o ajudem para o seu fim, e tanto deve deixá-las quanto disso o impedem. Por isso é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas criadas, em tudo o que é concedido à liberdade do nosso livre arbítrio e não lhe está proibido; de tal maneira que, da nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que vida curta, e consequentemente em tudo o mais. Mas somente desejemos e escolhamos o que mais nos conduz ao fim para o qual fomos criados”.
A inversão e a conseqüente instrumentalização do pobre e da
pobreza de forma ideológica e não evangélica:
Que acontece então na prática teórica da TdL? Acontece uma "inversão" de primado epistemológico. Não é mais Deus, mas o pobre, o primeiro princípio operativo da teologia. Mas, uma inversão dessas é um erro de prioridade; por outras, é um erro de princípio e, por isso, de perspectiva. E isso é grave, para não dizer fatal.Que o pobre seja um princípio da teologia ou uma perspectiva (ótica ou enfoque), é possível, legítimo e mesmo oportuno. Mas apenas como princípio segundo, como prioridade relativa. Se assim é, a teologia que arranca daí, como é a TdL, só pode ser um "discurso de segunda ordem", que supõe em sua base uma "teologia primeira".Contudo, não parece que a TdL tenha essa consciência, pois se pensa, para todos os efeitos, como uma teologia inteira à parte, substituindo ou dispensando a "teologia primeira" e fundindo ou, melhor, confundindo o nível "transcendental" com o "categorial". Em sua prática teórica, continua a pôr o "pobre" como seu princípio, centro e fim. E ainda que não o faça com plena consciência e consentimento epistemológico, o resultado, na prática, é o mesmo, e isso, como dissemos, por causa da ambigüidade com que esta questão essencial é aí tratada. Ora, quando o pobre adquire o estatuto de primum epistemológico, o que acontece com a fé e sua doutrina no nível da teologia e também da pastoral? Acontece a instrumentalização da fé em função do pobre. Cai-se no utilitarismo ou funcionalismo em relação à Palavra de Deus e à teologia em geral. Que a fé seja útil, isso é certo, mas essa não é sua parte maior nem a mais importante. Uma fé usada principalmente de modo instrumental, sofre fatalmente uma capitis diminutio: é submetida a uma seleção e a uma interpretação de acordo com o que interessa à "ótica do pobre". Sem dúvida, a fé preenche plenamente também esta ótica, mas também dela transborda por todos os lados, infinitamente. Este é, pois, o ponto fraco da TdL: a falta de clareza quanto ao alcance epistemológico da opção pelos pobres. Esta é clara como tema, mas não como princípio de constituição e construção teológicas.Ora, a falta de clareza sobre o princípio leva necessariamente à falta de clareza sobre o caráter teológico do discurso. Daí a indefinição do atual discurso da TdL, balançando entre um discurso religioso e um discurso social e político.Nada manifesta melhor a ambigüidade e confusão em que labora neste ponto a TdL do que a polêmica que levanta toda a vez que se trata do "ponto de partida" da teologia e da pastoral. Para a TdL é líquido e certo: o ponto de partida tem que ser a "realidade dos pobres". Mas não vê que está aí confundindo dois sentidos de "ponto de partida": como mero começo (material, temático, cronológico ou ainda prático) e como princípio (formal, hermenêutico, epistemológico ou ainda teórico). Ora, "pobre" pode ser "ponto de partida" como "começo" (começo de conversa), mas não como "princípio" (critério determinante).Por certo, "pobre" pode ser também um princípio, fornecendo o que se chama de "ótica dos pobres". Mas, mesmo aí, trata‐se apenas de um princípio segundo e regido, e nunca do princípio primeiro e regente, como dissemos acima. Ora, a TdL, nesta discussão, cai nesse qüiproquó, investindo inconscientemente seu ponto de partida, o pobre, com a dignidade de princípio primeiro ou fundamental. Daí o equívoco subseqüente de se tomar por uma teologia subsistente por si. Existe, contudo, uma razão mais ampla para explicar a concentração da TdL na questão da pobreza e de sua superação. É o tributo que ela pagou, de modo, aliás, bastante ingênuo, à decantada Modernidade e à sua glorificada "revolução copernicana".De fato, a Modernidade pôs o homem no centro, em lugar de Deus. É a virada antropocêntrica: o homem, com sua razão, liberdade e poder, como o novo axis mundi.Deixemos aqui de lado a tendência fática do homem pós-lapsário (e que não é só do homem moderno) para essa inversão e também as tentativas teóricas para justifica-la, como a dos Sofistas com seu lema "o homem, medida de tudo", refutados por Platão, bem como a do estóico Varrão e sua "teologia política", esse, contradito por Santo Agostinho. À diferença dessas tentativas, a da Modernidade reveste um caráter macroscópico, vale dizer, civilizacional.Foi assim que a teologia se "modernizou", antropologizando-se: o homem como o sol, e Deus, seu satélite. Omnia ad maiorem hominis gloriam, etiam Deus. O nosso catolicismo popular, embora exaltado em Aparecida (n. 258‐265), inclusive como o "tesouro mais precioso que tem o povo", é um catolicismo feito mais de tradição que de convicção pessoal, mais de cultura que experiência espiritual. Daí sua vulnerabilidade aos avanços, tanto das "seitas" e de seu proselitismo, quanto do atual "secularismo" e de suas seduções sensual-materialistas. E daí também o déficit, que, desde Medellín, diminuiu, mas que permanece ainda grande, em termos de consciência social e de compromisso político. E mesmo o Catolicismo das minorias ou elites (bispos, padres, freiras, agentes, militantes, intelectuais) é mais doutrinário que experiencial, mais ideológico que personalista, mais gnóstico que existencial, mais moralista que místico, mais muscular que cordial, enfim, mais prático que teopático.
QUAL O MAIOR DESAFIO DA IGREJA HOJE ?
“Certamente, a Igreja já fez, está
fazendo muito no campo social, e precisará fazer mais ainda. Mas, é preciso que fique claro: não é essa
a missão originária, "própria” da Igreja, como repete expressamente o
Vaticano II (cf. GS 42,2; e ainda 40,2-3 e 45,1). A missão social é, antes, uma
missão segunda, embora derivada, necessariamente, da primeira, que é de
natureza "religiosa”. Essa lição nunca foi bem compreendida pelo
pensamento laico. Foram os Iluministas que queriam reduzir a missão da Igreja à
mera função social. Daí terem cometido o crime, inclusive cultural, de
destruírem celebres mosteiros e proibido a existência de ordens religiosas, por
acharem tudo isso coisa completamente inútil, mentalidade essa ainda forte na
sociedade e até mesmo dentro da Igreja. Agora,
se perguntamos: Qual é o maior desafio da Igreja?, Devemos responder: É o maior
desafio do homem: o sentido de sua vida. Essa é uma questão que transcende
tanto as sociedades como os tempos. É uma questão eterna, que, porém, hoje, nos
pós-moderno, tornou-se, particularmente angustiante e generalizada. É, em
primeiríssimo lugar, a essa questão, profundamente existencial e hoje
caracterizadamente cultural, que a Igreja precisa responder, como, aliás, todas
as religiões, pois são elas, a partir de sua essência, as "especialistas
do sentido”. Quem não viu a gravidade desse desafio, ao mesmo tempo
existencial e histórico, e insiste em ver na questão social "a grande
questão”, está "desantenado” não só da teologia, mas também da história.”(Frei Clodovis M. Boff).
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