Nas redes sociais, é comum
encontrar a frase “Bandido bom é bandido morto”. Embora vivamos numa época em
que a impunidade está propagada, precisamos refletir sobre o assunto. Temos a tendência
de julgar as pessoas somente pelos seus atos. Sentenciamos negativamente o
próximo apenas porque comete erros diferentes dos nossos, e pensamos “Ah, mas
eu nunca roubei um banco ou matei alguém”. Entretanto, é necessário lembrar que
todos os tipos de transgressões/erros levam o homem à condenação e entristecem
a Deus. “Porque todos pecaram e afastados estão da glória do Senhor, sendo
justificados por sua graça, mediante o perdão que há em Cristo Jesus” (Romanos
3. 23-24). Ainda que alguém se encontre
num estado de extrema culpa e infelicidade por ter cometido uma falta grave ou
por ter abraçado as vias do mal, o divino juiz nos recebe de braços abertos e
se alegra ao reconduzir filhos pródigos à casa paterna. Mas é preciso ressaltar
que, para isso, é necessário haver genuíno arrependimento e mudança de vida,
uma conversão de caminho. Pois, apesar de perdoar a mulher adúltera, na
conhecida passagem, Jesus não disse a ela que poderia continuar com seu erro:
“Vá e não peques mais” (João 8. 11). A
nós, seres humanos, resta o bom senso de sermos benignos e misericordiosos para
com os outros, ainda que não sejamos condescendentes com suas ações. Desejemos
a redenção de todos – inclusive a nossa – e não castigos. E como já diz o nosso querido papa Francisco: “Sejamos doadores da
misericórdia e não administradores.”
Foi em uma
sexta-feira qualquer que a professora Rosângela da Silva, 29 anos, deixou a
morte entrar em casa. Armado com um facão e um desejo sexual intenso, o
trabalhador rural Edvaldo dos Santos, 19 anos, batia à sua porta. Por ser um
antigo aluno da escola em que lecionava, no Sertão de Canudos, na Bahia,
Rosângela resolveu abrir. Visitas assim eram normais em um lugar no qual os
educadores muitas vezes fazem o papel de pai e mãe.Ao entrar, dispensando
a educação que aprendera, o jovem propôs ir para a cama com a professora — sem
nem se importar com a avó cega de Rosângela, que também estava no local. Tendo
sua masculinidade ferida com um não, Edvaldo quis feri-la de volta. A avó
tentou evitar o pior, mas acabou machucada e presenciou um espetáculo de
horrores: a professora pulou a janela, foi pega, esfaqueada, teve o rosto
cortado e morreu. O próprio agressor foi atrás da polícia e ajudou o sargento “a
procurar o assassino”. Percebendo a incoerência na história, o oficial deu voz
de prisão a Edvaldo, que acabou confessando o crime. Com receio de que o rapaz
fosse linchado, o sargento levou-o para uma guarnição da Polícia Militar em
outro município, Euclides da Cunha, onde ele supostamente estaria a salvo.Não
foi o suficiente: quando tomaram conhecimento do crime, os moradores dos
povoados próximos vieram de caminhão para se assegurar de que a justiça seria
feita. “Para eles, a morte da professora na tentativa de estupro transformara
Edvaldo em um desconhecido, um estranho, um diferente, outro ser”, escreveu o
sociólogo José de Souza Martins, da Universidade de São Paulo, no livro
Linchamentos: A Justiça Popular no Brasil (Editora Contexto). Edvaldo já não
era mais humano.
O que acontece quando as pessoas decidem fazer justiça
com as próprias mãos?
Para tentar
compreender por que pessoas comuns e supostamente bem-intencionadas, como os
moradores do Sertão dos Canudos, acabam cometendo crimes ainda mais bárbaros do
que aqueles praticados pelos criminosos que desejavam punir, sugerimos que você
leia a matéria até o final.Casos como o do
adolescente amarrado nu a um poste por cometer furtos no bairro do Flamengo, no
Rio de Janeiro, revelam muito mais do que as partes íntimas do agredido.
Mostram também a complexidade da crise de confiança no Estado, a perda da
legitimidade das instituições, a deterioração da ordem social e a persistência
de uma cultura escravocrata que não foi abolida com uma canetada em 1888.Nem
sempre é preciso chegar ao extremo de amarrar outro ser humano a um poste. Em
dezembro, durante uma manifestação pró-impeachment também no Rio de Janeiro,
uma criança acusada de furto quase foi espancada. Um dos adultos envolvidos na
agressão gritava: “E o guarda quer me levar preso”. Outra mulher concordava:
“Isso é inversão de valores”. Recebendo bofetadas por todos os lados e sob o
coro de “tem que metralhar” e “filho da puta, vai roubar da tua mãe”, o garoto
entrou rapidamente no camburão e sumiu do olhar da orda enfurecida. Mas o
problema não desapareceu. Ao agredir e metralhar ideologicamente supostos criminosos, as vítimas
se igualam aos bandidos no crime. “Dizem que todos nós nascemos heróis. Mas, se
você deixar, a vida irá fazê-lo passar do limite até que se torne um vilão. O
problema é que nem sempre você sabe que passou do limite”, explica a (anti)
heroína Jessica Jones, protagonista da série homônima da Netflix, ainda
atormentada por um assassinato que acabara de cometer.Cidadãos que buscam
justiça por meios que não sejam os legais obviamente ultrapassam esse limite.
Mas há a sensação de que, por ser feito às claras e em grupo, o linchamento não
é crime. “[A ideia que se tem é de que] crime é o que se faz escondido, às
ocultas, e traiçoeramente. Por isso, o linchamento é público, à vista e com a
cumplicidade, voluntária ou não, de todos. É o que inviabiliza a apuração de
responsabilidade e o prosseguimento de inquéritos”, diz Martins, que para
escrever seu livro passou mais de 20 anos fazendo um levantamento sobre a história
desses atos no Brasil.Nem as estatísticas policiais contabilizam esse tipo de
crime — o que não significa que ele não seja ilegal. Quem explica é o
presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP Martim de Almeida Sampaio:“Não é apenas um crime, podem ser vários, como formação de quadrilha ou
bando (quando várias pessoas se unem para atos criminosos), lesões corporais,
tentativa de homicídio ou homicídio e até sequestro e cárcere privado,
dependendo da ação concreta. O ato do linchamento é uma atitude tão criminosa
quanto o crime que o incentivou.”
O Encanto está ausente
Segundo José de Souza
Martins, cerca de um milhão de brasileiros já participaram de linchamentos ou
tentativas de lichamento nos últimos 60 anos. Não surpreende, portanto, que de
acordo com uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 50% da população
brasileira concorde com a sentença “bandido bom é bandido morto”. “Considerando
a margem de erro, temos um empate. Se está dividido, temos um espaço para
mudança, basta encontrar alternativas”, explica o sociólogo Renato Sérgio de
Lima, vice-presidente do Fórum. “Temos um país extremamente violento, que
até gasta bastante com segurança, mas isso não quer dizer que esse gasto seja
revertido em uma boa situação.”De acordo com o
Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve um crescimento nos gastos com
segurança no país entre 2013 e 2014. O problema é que não se sabe quanto disso
foi utilizado de fato na infraestrutura e no treinamento de profissionais. A
julgar pelo exemplo de Minas Gerais, não muito.Os mineiros foram os que mais investiram em segurança pública, com um
aumento de 69% em relação ao ano anterior. Mas isso só aconteceu porque o
estado incluiu na conta o gasto de R$ 3 bilhões da previdência — o que nenhum
outro estado fez. Ou seja, “os estados estão gastando cada vez mais com
salários e aposentadorias de policiais. Sendo assim, os investimentos nas
condições de trabalho das organizações policiais, em termos de capacitação,
armamentos, viaturas e equipamentos diversos, possivelmente não estão
caminhando no mesmo sentido”, escreveu no anuário Luis Flávio Sapori,
secretário municipal de segurança pública em Betim e professor da PUC Minas.
Para Renato Sérgio, isso evidencia a insatisfação da população com a forma como
o Estado administra os conflitos. “O Estado brasileiro, por meio de sua polícia,
não convence a população”, afirma.
Mas não é
necessariamente por causa da falta de infraestrutura que alguns infratores
continuam soltos mesmo depois de cometer delitos recorrentes. O “princípio da
insignificância” ou “bagatela”, por exemplo, prevê a liberdade para crimes que
não causem lesão à sociedade, como pequenos furtos. Logo, há casos em que
assaltantes são pegos, soltos e voltam a cometer crimes, gerando sensação de
insegurança e impunidade — que, na verdade, é constitucional. Muitas vezes, no caso
de menores de idade, policiais passam mais tempo na delegacia resolvendo
medidas burocráticas do que o próprio infrator.Ou seja, a sensação de impunidade também existe dentro da própria
corporação, que, não raro, sente-se estimulada a exercer uma autoridade que não
tem e entende como legítima uma manifestação de justiça que de justa não tem
nada. Nessa lógica, não surpreende que dois policiais militares recentemente
tenham sido presos por matar um adolescente que cometia frequentes furtos no
centro do Rio de Janeiro. Os PMs subiram até um morro, na floresta da Tijuca,
com o jovem que acabou executado e outro que só sobreviveu para relatar o caso
porque fingiu que estava morto. Tem-se aí a receita rápida para o caos e a
crise de confiança nas instituições.É verdade que o mesmo
recurso que protege uma senhora que roubou um pão para almoçar também estimula
a recorrência de pequenos furtos, mas, segundo Martim Sampaio, da OAB, não se
pode culpar a Constituição.“Individualmente, o número de pequenos assaltantes tem aumentado, mas é
preciso entender esse fenômeno”, explica. “Todas as medidas que o governo toma
são no sentido de criminalizar o jovem. Se ele quer melhores condições de
estudo, o governo chama a polícia e resolve com surra e bomba; se não aceita
pagar mais pelo transporte público, não pode protestar que é levado a uma
ratoeira e massacrado. Não oferecem alternativa. O que precisamos é de uma
política pública inclusiva, de educação e renda. São coisas que falamos há mais
de cem anos e não fizemos até hoje."Para a pesquisadora
do Núcleo de Estudos de Violência da USP Ariadne Natal, os linchamentos são o
produto de uma soma perigosa:“Por um lado, temos essa percepção, compartilhada por parte da
população, de que o Estado não é capaz cumprir suas funções e de garantir a lei
e a ordem; por outro, predomina um discurso que deslegitima os direitos humanos
e os valores civis básicos, como o direito à vida e à dignidade daqueles que
são suspeitos de cometer crimes. Essa é uma combinação que estimula as soluções
violentas”, afirma ela.
A justiça popular é a pior solução para o problema da
violência urbana!
“O pessoal não está
mais botando muita fé [nas autoridades], por isso acontecem essas coisas. O
Estado está muito ausente”, disse ao portal G1 o porteiro Jailson Alves das
Neves, marido de Fabiane Maria de Jesus, morta a pauladas, pedaços de concreto
e bicicletadas, em 2014. Ela era acusada de sequestrar crianças, arrancando os
olhos e o coração, para realizar rituais de magia negra no Guarujá, litoral de
São Paulo — o boato surgiu em uma página de Facebook e ganhou corpo nas ruas.
Nenhuma criança havia desaparecido na região. Fabiane era inocente. E esse é
apenas um dos motivos pelos quais Martim Sampaio afirma: “A justiça popular é a
pior solução para o problema da violência urbana”.Como Edvaldo dos
Santos, que tentou estuprar sua antiga professora no sertão baiano, pessoas
prestes a ser linchadas são vistas como animais. Segundo José de Souza Martins,
“os linchadores atuam sempre em nome de uma identidade de pertencimento contra
o estranho, ainda que provisória e súbita”. Por não fazerem parte do grupo, o
estuprador, o assaltante e a bruxa merecem morrer. Assim, na visão do filósofo
René Girard, a pessoa linchada seria uma espécie de bode expiatório. Para
identificá-lo, bastaria perceber quatro elementos: a existência de uma crise
cultural e social; uma conduta capaz de deixar a comunidade unida e homogênea,
como um caso de roubo; que esse comportamento seja atribuído a alguém com características
diferenciadoras; e a canalização da agressividade do grupo contra esse alguém.
Nesse sentido, José
de Souza Martins afirma que a hipótese mais provável para os linchamentos seria
a punição, “mas sobretudo como forma de mostrar seu desacordo com alternativas
de mudança social que violam concepções, valores e normas de conduta
tradicionais”. O linchamento não seria, portanto, uma manifestação de desordem, mas um
questionamento da desordem.Você tem uma
sociedade de mercado aguçada, que vai ganhando corpo. A parte da população que
está fora do mercado, esses supérfluos, passam a ser vistos como uma ameaça.E o
limite entre o supérfluo e o criminoso é muito tênue. Não precisa cometer um crime para
ser uma ameaça. Se você não circula nos shoppings e não é um cidadão
consumidor, não tem direitos, vira uma ameaça.Por isso, seria inocente
afirmar que o linchamento decorre apenas do desejo de pena de morte.Nos linchamentos, está envolvido o julgamento de que: “quem não consegue
refrear o desejo, o ódio e a ambição, e não vê limites para o desejar, o odiar
e o ter, não pode conviver com os demais nem tem direito a uma punição justa e restitutiva
que o devolva à sociedade depois de algum tempo de castigo”, diz Martins.Não é à toa crimes de
roubo ou furto geralmente são tidos como uma afronta pessoal. Delitos que
deveriam ser tratados como crime contra a propriedade se tornam uma ofensa à
pessoa e a sua forma de sobrevivência. Nessa lógica, enquadra-se um exemplo
dado pelo sociólogo da tentativa de linchamento de um rapaz de uma favela do
Espírito Santo que encontrou uma maleta com dinheiro de um sequestro e devolveu
à polícia. Os membros da comunidade queriam que ele dividisse o valor entre os
pobres, já que se tratava de um dinheiro perdido, sem dono, que não faria falta
e que não era necessário à sobrevivência de quem o perdera.De acordo com o
sociólogo, para os trabalhadores, o dinheiro não é quantitativo, mas
qualitativo: existe o dinheiro bom, fruto do suor, e o dinheiro ruim, de ganho
fácil. “A honestidade de quem devolveu o montante fora interpretada como falta
de solidariedade em relação a seus iguais”, explicou Martins.
Não se pode esquecer do caráter simbólico do linchamento
Não se trata apenas
de um assassinato coletivo — se fosse só isso, um simples tiro resolveria o
problema. A ideia é negar a integridade do culpado, violar seu corpo e humilhá-lo
em público. “Mais do que matar, o linchamento promove a perdição da vítima, seu
extravio no caminho dos mortos, na mutilação que o aliena para sempre no grande
momento da desalienação que é, nessa crença, o da ressurreição dos mortos”, diz
Martins. Só isso explica o caso de uma senhora carioca que, com muito
custo, foi tirada de cima da vizinha já morta enquanto tentava arrancar os
olhos dela com uma colher.E, claro, há também o preconceito — como ficou
evidente no caso da estudante de arquitetura Mikhaila Copello que, ao tentar
impedir um linchamento, no Rio de Janeiro, colocou-se entre uma turma
enraivecida e um assaltante já ensanguentado. “Tive sorte de ser uma mulher branca de classe média. Tenho certeza que,
se fosse um cara negro, teria apanhado junto”, diz a estudante à GALILEU. “As
pessoas não conseguem ver o racismo que está ali, o que elas estavam vendo era
um assaltante, menos do que um ser humano, de acordo com algumas.”No seu livro, Martins
afirma que, diferentemente dos séculos passados, em geral não se lincha mais
apenas por causa da cor da pele. Mesmo assim, os dados de sua pesquisa mostram
que a prontidão para linchar um negro é, quase sempre, maior do que para
linchar um branco que tenha cometido o mesmo delito. A cor da pele pode não ser
a principal motivação para o linchamento, mas no fim contribui para a decisão
de linchar ou não.A questão é que o linchamento é apenas mais uma manifestação
de violência — e violência, você sabe, só gera mais violência.“O levantamento feito até agora indica com clareza que a ocorrência de
um simples linchamento numa localidade rompe certos constrangimentos sociais à
prática da violência direta: em muitos lugares, um primeiro linchamento é, com
facilidade, seguido de outros, ainda que com o passar do tempo”, pontua
Martins.Somando a recorrência
com o clima de “limpeza social” representado pela máxima do “bandido bom é
bandido morto”, tem-se um cenário que justifica a posição do Brasil como o país
sem guerra declarada no qual houve mais assassinatos. Isso pode estimular o
aparecimento de outros tipos de crimes. Temos a experiência dos grupos de
extermínio, que são formados por policiais pagos por comerciantes para eliminar
assaltantes. E também as milícias, um projeto de máfia, que estão a um passo do
crime organizado.Em 1996, dois jovens
invadiram a casa da pedagoga Dagmar Rivieri Garroux, a Tia Dag, e mataram o pai
dela a tiros. Na época, ela já coordenava a Casa do Zezinho, um espaço no Capão
Redondo, na periferia de São Paulo, dedicado a estimular e a desenvolver o
aprendizado de crianças carentes. Como se o destino estivesse esfregando a
ironia da situação em sua cara, ela pensou em desistir do projeto e ficou um
mês afastada.Até que recebeu a ligação de um de seus alunos: “Tia Dag, a senhora quer
que a gente mande matar o menino que atirou no seu pai?...”A pedagoga viu nessa
ameaça uma convocação e resolveu voltar. “Ele prometeu me esperar com a ‘maior
flor do mundo’: um girassol. Então, eu voltei com tudo ao trabalho”, lembra
ela.
Vingança e justiça são coisas diferentes! JUSTIÇA NÃO É VINGANÇA!
Para a pesquisadora
Ariadne Natal, da USP, essa subversão da justiça é extremamente perigosa porque
a força bruta faz prevalecer a injustiça, uma vez que o réu não tem
possibilidade de defesa. “Apesar de muitas vezes ser apresentado como uma forma
de justiça, o que move o linchamento é um desejo de vingança, uma compulsão
punitiva que é imediata e visa atingir o corpo daquele que é considerado
criminoso para humilhar, fazer sofrer e, por fim, eliminar”, afirma ela.Para o psicólogo americano Leon F. Seltzer, é fácil confundir justiça
com vingança, mas elas jamais podem ser usadas como sinônimo. “Justiceiros’
como estes não estão preocupados em resolver o problema, mas apenas em expurgar
a sua raiva”, diz Selzer. Em um artigo que escreveu para a revista Psychology
Today, ele diz: “Basicamente, podemos afirmar que a justiça é justa, já a
vingança não”.O problema é que,
muitas vezes, os dois conceitos estão próximos demais para serem distinguidos,
o que é especialmente problemático para uma sociedade com hipermetropia como a
nossa. Em seu livro, Martins cita o caso de um morador de São Paulo que, depois
de protagonizar vários delitos, foi submetido a um tribunal popular. Uma manhã,
todas as pessoas que chegavam à padaria do bairro iam sendo convidadas a opinar
sobre o que fariam com o infrator. Depois de decidirem, buscaram-no em casa e o
levaram até a padaria. “Ali mesmo ouviu a acusação, deram-lhe a palavra,
perguntaram se queria que chamasse a família para dela se despedir,
ofereceram-lhe um último cigarro, levaram-no para a rua e o mataram a pedradas
e a pauladas.” Parece justiça, mas não é.
A vingança é guiada
por emoções — nem sempre boas — e, na maior parte dos casos, expressa um desejo
sanguinolento de causar sofrimento a outra pessoa. Segundo Seltzer, existe aí,
de fato, o prazer em causar dor a alguém, algo completamente pessoal. Já a
justiça é racional e impessoal. Não se trata de retaliação, e sim de corrigir
algo que a sociedade julga como moralmente inaceitável.A vingança vive de ciclos e, segundo a concepção de Girard, só acaba
quando encontra um bode expiatório que assuma toda a culpa. Às vezes, nem
assim. Já a justiça busca restaurar um equívoco negativo. Quando ela é devidamente aplicada, o
conflito acaba. Vingança é Tarantino com Kill Bill; justiça é Sidney Lumet com
12 Homens e uma Sentença.
É interessante notar também o comportamento das multidões
nesses casos:
Segundo o psicólogo
social Gustave Le Bon, em sua obra Psicologia das Multidões (WMF Martins
Fontes), é como se, ao se unirem, as pessoas deixassem de lado a razão, as suas
aptidões intelectuais e as suas personalidades para dar lugar à ignorância. A
estudante Mikhaila Copello, que impediu o linchamento no Rio de Janeiro, viu
isso de perto: “Nos olhos daquelas pessoas tinha um ódio nunca visto. Eles não
paravam para pensar, era tipo ‘eu não sei o que esse cara fez, mas o que ele
fez me afeta, é uma afronta a minha pessoa’. Foi muito assustador.”Era o mesmo ódio que
os moradores do Sertão de Canudos carregavam no caminhão que se dirigia à
delegacia onde estava preso Edvaldo, o assassino da professora Rosângela. Os
moradores arrombaram a porta, renderam os guardas e “fizeram justiça” ali
mesmo. Depois de espancarem Edvaldo com pedaços de pau, facas, facões e
revólveres, levaram-no para o caminhão. Ali, ele teve partes do rosto e os
testículos arrancados, como que para privá-lo da identidade e da masculinidade.
Enquanto ainda estava vivo, outros pedaços de seu corpo iam sendo decepados. À
medida que era esquertejado, Edvaldo ia deixando de existir. Já quase desfeito,
os moradores o jogaram no local do crime e atearam fogo em seus restos com
gasolina. A professora continuou morta. A cidade continuou triste. Isso tudo
aconteceu em 1996. Mas poderia ter sido hoje. Pode ser amanhã.
É aceitável a ideia de que bandido bom é bandido morto?
Não, não é, e antes
que você pense em escrever “tá defendendo bandido, quero ver quando um matar
sua mãe”, bem, eu não estou defendendo bandido, aliás, ninguém está e nem deve.Todos
somos responsáveis pelas nossas ações e temos que pagar por cada uma delas. Mas
quando o assunto é a antiga e superada lei de Talião: “olho por olho, dente por
dente”, fica claro que as pessoas não estão enxergando uma solução justa e sim
uma forma extremista de lidar com os conflitos.Partindo do princípio de que a inclusão social e a educação escolar
fragilizada, são dois grandes fatores que contribuem para a violência, fica
claro que querer resolver o problema da criminalidade com pena de morte é
isentar o estado do compromisso com a juventude e com o sistema penitenciário.
Isso porque, cerca de 70% de presidiários voltam ao crime quando ganham
liberdade. Não existe, no país, política penitenciaria, nem intenção do estado
de recuperar essas pessoas, mas apenas de puni-las e priva-las do convívio
social.
conclusão:
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