Segundo a
definição de Platão, Deus que é a Causa não causada e suprema de todas as
coisas, imprimiu sua marca em cada uma de suas criaturas. Cada uma encontra em
si por onde dar testemunho de Deus. De cada ser partem raios que convergem até
Deus. Nós conhecemos cada ser por suas propriedades particulares, que podem ser
vistas, tocadas, sentidas. Mas, como todas as características particulares que
cada ser possui, provêm de sua forma, uma vez que a forma dá o ser com tudo o
que ele tem, então também, podemos dizer que estas características próprias de
cada ser são o resplendor da forma deste ser, portanto, quanto mais um ser for elevado na hierarquia dos seres, mais
ele será belo. Sua forma lhe dará mais ser, suas características poderão ser
mais manifestas e nós poderemos ter mais conhecimentos dele. Haverá tantas
formas de beleza quantos modos de resplendor possíveis, para um determinado
ser:
1)-Assim, o resplendor da forma sobre as diversas
partes proporcionadas da matéria constituirá a beleza
sensível.
2)- O resplendor da forma sobre as capacidades
espirituais produzirá o belo intelectual.
3)- Finalmente, o resplendor da forma sobre as ações produzirá a beleza moral.
A forma
substancial do homem é a alma. Consequentemente, o resplendor da alma sobre as partes proporcionadas do corpo produz a
beleza física do homem; o esplendor da alma sobre as capacidades espirituais
gera no homem a beleza intelectual; finalmente, o esplendor da alma sobre os
atos humanos causa a beleza moral. Uma vez constituído perfeitamente
pela forma unida à matéria bem proporcionada, cada ser terá uma perfeição
intrínseca e será fundamentalmente belo. Ele
se tornará belo, no sentido próprio e pleno do termo, quando essa perfeição,
dada pela forma substancial, resplandecer e se revelar com clareza.
Como vemos, este resplendor consiste na nítida compreensão, pela inteligência,
do ser conhecido. Ela consiste no conhecimento manifesto da perfeição e da
ordem que possui aquele objeto apresentado à inteligência, e esta perfeição pode ser física,
intelectual e moral. E quanto mais um ser for facilmente compreensível
pela inteligência, quanto mais facilmente ele permitir essa visão de toda a
ordem que foi posta na realidade e a ascensão da alma até a Causa primeira de
tudo, então haverá nela o resplendor de seu ser. Quanto mais perfeito for o ser
de algo, quanto mais a disposição exterior e a ordem interior de um objeto
facilitar seu conhecimento, tão mais claro ele aparecerá à inteligência e a
iluminará mais facilmente. Fica mais fácil compreender o que Santo Tomás quer
dizer quando afirma que:“O belo pertence
propriamente à noção da causa formal” e que “se refere ao entendimento” (Suma
Teológica I, q. 5, a.4, ad 1).Este
conhecimento é agradável e dá prazer ao indivíduo que o tem. Todo homem deseja naturalmente conhecer e
fica feliz, chegando até a sorrir, quando compreende algo com clareza.
A
beleza que salva o mundo - A experiência
religiosa do Belo
A reflexão
teológica no Ocidente está marcada por uma racionalidade preocupada em
expressar da forma mais objetiva possível os enunciados da fé cristã. Essa
característica permite conjugar os verbos crer e pensar de forma inseparável. A
dimensão mais sensível da fé, entretanto, historicamente foi mais trabalhada
pela tradição oriental. Foi em meio às liturgias bizantinas, os ícones russos e
o incenso oriental, que nasceu e cresceu uma reflexão atenta aos sentidos
humanos, absorta na contemplação do mistério inefável e ligada à experiência
mística. Hoje, quando se pensa em termos globais e num contexto de
intensa integração, Oriente e Ocidente podem unir suas perspectivas para iluminarem-se
mutuamente sem, contudo, perder o específico de cada tradição. É por
isso que se desenvolve, aqui uma reflexão na linha da Teologia da Beleza,
buscando conjugar a experiência estética, tão própria do ser humano, à
abordagem teológica, não menos inerente à humanidade. Toda pessoa sente o fascínio pelo
belo, onde encontra-se o sentido da vida, a razão da alegria e a conquista da
verdade. O título «A Beleza salvará o mundo» é uma afirmação
provocante, que estimula a dizer mais uma palavra sobre «Qual beleza salvará o mundo?»[1]Vivemos num tempo fascinante. Há um excessivo apelo ao belo.
A publicidade, a juventude, os modelos e atores, os artistas e até o mercado
deixam-se pautar pelo ideal estereotipado do que se convenciona como belo.
Estamos na cultura da imagem. O virtual e o real se confundem,
revolucionando os conceitos e mudando comportamentos. Entre as muitas imagens
que desfilam diante do homem moderno, há muitas banais e deformadas, há outras
interessantes e atraentes e, ainda, há as instrumentalizadas pelo mercado.
O visual tornou-se determinante na vida das pessoas, das instituições e das
empresas. Trata-se não só de ser, mas de «parecer» ser. A publicidade veicula ideias de
progresso, evolução e desenvolvimento. O campo profissional procura pessoas
«alinhadas», bem apresentáveis e esteticamente interessantes. O mundo dos
cosméticos pretende colocar harmonia e ordem no que pode parecer um caos no
corpo humano. Academias moldam, esculturalmente, pernas, braços e abdômem.
«Malhar» é a palavra de ordem. Chega-se a uma idolatria do físico.
Vale, no entanto, lembrar: «nem tudo que reluz é ouro». Há
beleza que não é boa e nem verdadeira. É a beleza que compra o corpo da mulher
e a explora. É o sentido do belo para cantores e artistas que usam o corpo
seduzindo suas plateias para um erotismo sem limites. É o belo apresentado em
anúncios de carros importados num país que passa fome. É o luxo das festas
sociais que exageram nas despesas e ignoram o menino de rua. É o
«bonito» das colunas sociais dos jornais e das revistas especializadas em
«ostentar» o poder das pessoas e seu dinheiro ignorando e desprezando as sérias
dificuldades por que passam os pobres nas periferias das grandes cidades. Nem
sempre a beleza veiculada pelo meios de comunicação social revela a vocação do
ser humano. Não se refere ao belo de Deus que o homem tanto procura,
muitas vezes, sem nem mesmo saber.Será preciso recuperar o sentido da beleza e da
contemplação. Encontrar as raízes que permitam viver nos tempos do mundo
virtual sem, contudo, perder o fio condutor da vida que tende ao Belo. Não
basta, porém, denunciar a brutalidade do mundo. Em nossa época desencantada e
carente de sentido, o discurso sobre justiça, deveres e bem comum soa pouco
atraente. Num mundo sem beleza, ou mais precisamente equivocado do sentido do
belo, até o bom e o bem perderam sua força. O ser humano permanece perplexo
diante das múltiplas opções e se questiona por que não escolher o mal, o prazer
sem limites, a vida sem compromisso e os sentimentos sem responsabilidades.«Num mundo que não acredita ser mais capaz de afirmar o belo, os
argumentos em favor da verdade esgotaram sua força de conclusão lógica». [2]O terceiro milênio desponta com suas sombras e trevas,
brutalidades e horrores que clamam por um significado, por uma leitura e
interpretação desses sinais que se revelam como um enigma conturbado e
doloroso. É bom e belo encontrar uma luz para a situação.O que é o belo? Bela é somente
uma top model que fatura
altíssimos salários porque tornara-se a número um do mundo? Ou bela não será
também a Madre Teresa de Calcutá em cujo olhar é possível contemplar o rosto de
Cristo que socorre o irmão sofredor? Mais, será que estes dois tipos de beleza
se comparam?Uma passa com o tempo, a velhice, as oportunidades e a moda.
A glória do mundo é passageira (sic transit gloria mundi). A
outra, atravessa a história e o espaço, supera as barreiras da cultura e da religião,
eterniza-se porque atrai pela beleza que não passa: o amor. Por maior
que seja a sua identificação da beleza como algo perene, supérfluo e
discriminatório, a justa valorização da beleza permitirá resgatar o
encantamento por este mundo, pelo universo e pela própria humanidade. Apesar de
todas as frustrações dos sonhos de um mundo melhor, de uma civilização mais
justa e fraterna, de uma planeta harmonizado, permanece o desafio de salvar a
vida e o globo através da Beleza, pois só ela é necessária, como bem alerta
Dostoievski:«Sabeis que a humanidade pode
fazer pouco dos ingleses, poderá fazer pouco da Alemanha, que nada é mais fácil
para ela do que fazer pouco dos russos, que para viver não precisa nem de
ciência e nem de pão, mas que apenas a beleza é indispensável porque sem beleza
não existirá nada mais a fazer neste mundo» [3].
O bom, o belo e o verdadeiro!
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(Duas belas mulheres) |
A palavra beleza remonta sua gênese ao sânscrito: BET EL ZA (o lugar em que Deus
brilha). Trata-se de um conceito religioso. Na
cultura hebraica, o seu correspondente é a Shekiná, a Glória de Deus manifestada em todo seu esplendor na
feliz convivência com as criaturas. É o ideal do paraíso primitivo
quando Deus viu que tudo era bom (Gn). Bom e belo. A tradução grega dos Setenta
expressa bem este vínculo entre beleza e bondade. Há uma semelhança estreita
entre tob (bom, do texto hebraico) com o termo kalón (belo, do
grego). A beleza é a expressão visível do bem, como o bem é a condição
metafísica do belo. É por isso que os gregos cunharam uma locução que abraça os
dois conceitos: kalokagathía (beleza-bondade) [4].No grego, o belo é traduzido por Kalos, expressão
usada por Platão e depois, período patrístico para afirmar que a beleza é o
esplendor da verdade. Consequentemente, a mentira é feia. O conceito de Kalos
reúne os significados de Bom, Belo e Verdade. Platão afirma que «a potência do
Bem refugia-se na natureza do Belo»[5]. A beleza, portanto, tem uma dimensão objetiva que se
confronta com o sujeito e se impõe independente do subjetivismo. A
beleza tem uma essência. Verdade, Belo e Bom são sinônimos com dependência
mútua. No mundo antigo, por exemplo, um objeto só passava a ser feito em ouro
depois de constatada sua utilidade e função. A beleza constitui, portanto, uma
das faces da trindade ideal do verdadeiro, do bom e do belo. Se recorrermos a
Aristóteles e a São Tomás de Aquino, chegamos ao conceito de beleza como
satisfação dos sentidos. Trata-se de uma definição racional que afirma
o belo pelo belo. Reduz-se à sentença: o que me dá prazer é belo. Os
escolásticos diziam que o belo é «id quod visum placet»; aquilo que
agrada quando se vê.Kant, alarga o conceito, referindo-se à beleza divina como «uma nobre elevação além da simples
predisposição ao prazer sensível»[6]. Isto nos leva a concluir que a beleza não é apenas uma
propriedade formal externa, mas uma dimensão que eleva o ser humano ao seu
ideal mais profundo. É a glória (palavra bíblica que melhor
expressa a beleza de Deus que se manifesta a nós), esplendor e fascínio.
É atração alegre, grata surpresa, enamoramento e entusiasmo. É aquele amor que
se descobre na pessoa amada e permitindo que se cometam loucuras para
conquistá-lo.O belo é o que agrada universalmente, é ideia desprovida de qualquer
conceito, é o que suscita um prazer desinteressado, porque o belo é uma
finalidade sem fim, seja de tipo utilitarista ou moral[7]. A
filosofia kantiana afirma a noção de belo convertida em noção do ser, o que
significa que a beleza está na plenitude e identifica-se com a integralidade
ideal do ser. A feiura, entretanto, é uma
deficiência do ser, a sua perversão pela indigência (faltam portanto neste ser
a beleza sensível, ou física, moral, intelectual e espiritual).A beleza está presente na harmonia de todos os elementos e
nos coloca diante de uma evidência indemonstrável, que não pode ser
justificada, apenas, contemplada. O belo vem ao nosso encontro, torna-se
íntimo, próximo e familiar à própria substância do nosso ser. Não se trata de
uma ilusão ou de uma projeção das nossas emoções subjetivas. Nós não agregamos
nada à realidade objetiva de uma revelação, simplesmente somos tomados sem nem
sempre poder encontrar as palavras poéticas adequadas à nossa experiência. Os
grandes pintores afirmam de não terem visto nada de feio na natureza. Um
artista, através de seus olhos, nos faz ver um fragmento onde o «Todo belo»
está presente.Como um ser vivente, o mundo se volta sobre nós, nos fala e nos
confia seus cantos e segredos. Comunicamo-nos com a beleza de uma paisagem,
de um rosto ou de uma poesia como nos comunicamos com um amigo, e
experimentamos uma estranha consonância com uma realidade que parece ser a
pátria de nossa alma, perdida e reencontrada. É a arte que
desfenomeniza a realidade concreta; e o mundo inteiro se abre ao seu mistério.
Ali se encontra a experiência estética.«O belo não é só o que agrada.
Além de ser uma festa para os olhos, o belo nutre o espírito e o ilumina» [8].O homem quando pensa e contempla, imagina e cria beleza.
Seus símbolos e ícones integram sua natureza à experiência com as coisas do
alto. «Por natureza, os homens desejam o belo» [9].
A ambiguidade da beleza
Por causa de sua aparência sensível, a beleza também é
ambígua. O ser humano tem sede de plenitude, por isso a beleza pode tornar-se
uma armadilha. Na sua essência, ela é simbólica (sim-bolós), que une e integra, dando
sentido à existência do ser. Pervertida, ela se torna diabólica (diabolós), que
divide, separa e rompe. Ora, a beleza não é apenas uma realidade
estética, mas também metafísica. O esteticismo puro, que reconhece apenas os
valores estéticos, representa o momento mais distante da beleza. Em
sua autonomia, o belo é indefeso e facilmente exposto aos desvios diabólicos.
A beleza pode ser frequentemente enganosa e o seu fascínio pode esconder a
falta de moral e uma indiferença para com a verdade: «o mal se prende nos laços
da beleza, como um escravo coberto de correntes de ouro; estes laços o escondem
até que sua realidade seja invisível aos deuses, até que não seja mais
percebido pelo olhar humano» [10].O mal também se reveste de beleza
para seduzir. O paradigma mais antigo dessa
realidade é o relato bíblico do fruto proibido: «a mulher viu que o fruto da
árvore era bom de comer, de agradável aspecto e desejável». (Gn 3,6). Trata-se
da sedução do prazer que brilhou mais do que a distinção entre o bem e o mal. A beleza fascinou o ser humano, usurpou o
lugar do Divino, tornou indiferente o bem e a verdade. O que é agradável aos
sentidos e estético no mais alto grau, nem sempre é verdadeiro. A falta de
senso moral e o caos interior do homem se formam num modo natural, através de
forças irresistíveis que abalam a alma. Não é somente Deus quem se reveste
de Beleza, o mal lhe imita e torna a beleza profundamente ambígua.O capítulo 28 de Ezequiel apresenta o julgamento contra o
rei de Tiro que seguiu o caminho da perversão humana, prejudicando a pessoa e a
sociedade. Condena a atitude do rei que tudo constrói com a mentira e perde
seus bens mais preciosos:«Criatura humana, entoe uma lamentação contra o rei de Tiro, e diga:
Assim diz o Senhor Javé: Você era um modelo de perfeição, cheio de sabedoria e
beleza perfeita. Seu coração se exaltou
com sua beleza, e sua sabedoria se corrompeu por causa do seu esplendor.
Por isso eu o atirei no chão, fazendo de você um espetáculo para os reis» (vv.
12 e 17).O rei que tem o esplendor e a beleza pretende ser mais do
que Deus, sua falsidade e corrupção tomam conta de sua pessoa e por isso
torna-se um opróbrio. A tradição cristã muitas vezes interpretou essa passagem
à queda de Lúcifer (Cf. Is 14,13). No mito que origina o demônio, valendo-se do
modelo fenício, explica-se que Lúcifer era um anjo da primeira grandeza, muito
belo, que perverteu-se, quis ocupar o lugar de Deus e por isso foi derrotado
junto com o seu séquito. Há, portanto, um acento sobre a perversão da beleza
para explicar a origem do mal no mundo.A desconsideração pelo belo se dá em
situações de caos e fraqueza. A guerra, a fome e a injustiça mascaram e
destroem a beleza circundante. Se o conceito de belo for separado do
sentido da bondade e da verdade, tornar-se-á uma ilusão, uma mágica, uma
pseudo-beleza. É a manipulação da estética em favor de interesses
maquiavélicos que distorcem o próprio sentido da vida. É uma beleza que leva à
morte do bom e do verdadeiro. É a transformação da beleza em sedução e paixão. «Se a
beleza é sempre bela, a beleza nem sempre é verdadeira» [11]. É a beleza sedutora que distancia o ser humano de sua
verdadeira meta.
A
negação da beleza favorece o avanço da mediocridade!
Ela ocorre quando o cálculo egoísta ocupa o lugar da
generosidade, quando a rotina substitui a criatividade, quando caducam os costumes para
cumprir normas que matam. Quando princípios, a memória e o respeito à
dignidade humana são esquecidos, extinguem-se o brilho e o esplendor da beleza.
Quando
se tolhe o direito à liberdade, exila-se o sentido do belo na vida humana.
O
dinamismo desencadeado pelas paixões arrasta tudo em função de uma libertação
total de todo princípio normativo, e é justamente a esfera estética quem
oferece a maior liberdade. A sua potência animalesca liberta de todo
constrangimento. Ao eros da criação se opõe o eros da destruição.
A experiência religiosa e a experiência estética
Com o esplendor do ser, o belo coloca o homem todo em uma
espécie de conivência com o transcendente. Enquanto realidade metafísica o belo é também realidade
religiosa, na medida em que se torna lugar cósmico de irradiação do divino. O
valor metafísico da beleza, como também sua importância religiosa, está no fato
de ela ser mais do que um sinal ou uma alegoria. Ela «contém» a presença
daquilo que simboliza. É o exemplo dos ícones e da cruz que
revelam o mistério e a presença de Deus para além da madeira que lhes dá
subsistência. A experiência de fé se configura como uma relação com o inefável.
Deus, que está além do mundo palpável, da realidade natural e sensível, não
pode ser jamais capturado pelo nosso conhecimento. Essa inefabilidade,
entretanto, não se traduz num silêncio absoluto. Na relação com Deus, o ser humano
expressa na arte e na beleza a «presença» de Deus e sua glória. O ser
humano é, ao mesmo tempo, uma totalidade espiritual e sensível em função da
encarnação; os sentidos afinados percebem sensivelmente o invisível, ou melhor:
o transsensível.
Beleza
e ritos religiosos!
Os ritos religiosos expressam a beleza de seu significado.
Sons, gestos e símbolos entrelaçam-se para constituir uma realidade maior, mais
próxima do transcendente. A música quer o enlevo e procura agradar os
ouvidos, as cores tendem ao descanso da mente, o incenso inebria o olfato, os
símbolos enchem os olhos, o comer e o beber saciam a fome e a sede do bom
paladar; o toque e o ósculo revelam ao tato uma sensação mística . Tudo
concorre para apresentar, liturgicamente, o bom e o belo, expressões veladas do
único e verdadeiro Belo e Bom. Para o teólogo oriental, tudo é virtualmente
sagrado, pois tudo pode tornar-se sacro mediante a experiência do divino. Por
outro lado, nada é profano e nem neutro, porque tudo se refere a Deus.Deus e o
homem assemelham-se, resta saber e discernir reconhecendo o lugar do criador e
da criatura. «Deus vem ao nosso encontro: da ética ele faz a ascese da criação;
da estética, a manifestação de sua beleza» [12]. A
contemplação, portanto, não estética, mas religiosa, revela-se como
enamoramento de cada criatura. É evidente que não é na natureza que se
situa a verdadeira Beleza, mas na epifania do transcendente que faz da natureza
a irradiação do seu fogo divino inextinguível.A experiência da
contemplação da beleza divina, não é um êxtase que remete para fora do mundo,
mas é a antecipação da transfiguração de todo o ser humano. A participação dos
sentidos é um dos elementos mais surpreendentes. É nessa direção que a
afirmação de Rubem Alves se sustenta: «Experiência mística não é ver seres de
um outro mundo. É ver esse mundo iluminado pela beleza» [13].
Por uma teologia da Beleza
«Durante séculos, os teólogos, seres cerebrais, haviam se
dedicado a transformar a beleza em discurso racional. A beleza não lhes
bastava. Queriam certezas, queriam a verdade. Mas os artistas, seres de
coração, sabem que a mais alta forma de verdade é a beleza» [14].
Rubem Alves pode, até, estimular uma reflexão menos racional e mais sensível
onde a beleza torna-se um tema nucleador da Teologia. Essa proposta, no
entanto, em diferentes momentos históricos fez parte da ocupação de pensadores
cristãos. Não dá para esquecer as iniciativas que já deram significativos
passos nessa direção.Ao longo dos tempos, o ser humano expressou a sua
experiência com a divindade, exclamando sua beleza.Maomé dizia: «Deus é belo e ama a beleza». São Francisco, após receber
os estigmas no Monte Alverne exclama: «Tu és beleza... Tu és beleza!» [15]. Ainda sobre Francisco de Assis, comenta São Boaventura: «Contemplava
nas coisas belas o Belíssimo e, segundo os traços impressos nas criaturas,
perseguia por todo lado o Dileto» [16]. A beleza é uma cifra do
mistério e um apelo ao transcendente. É um convite a saborear a vida e sonhar o
futuro. É por isso que a beleza das
coisas criadas não pode apagar a saudade do Belo da qual fala Santo Agostinho:
«Tarde te amei, beleza tão antiga e sempre nova, tarde te amei” [17]. Agostinho confessa a beleza
como objeto do seu amor purificado pela conversão: a beleza de Deus. Dante Alighieri, na sua Divina Comédia, contempla Maria no Paraíso e menciona a beleza da mãe de Jesus [18]. O prefácio da missa da Imaculada louva o Pai bendizendo-O por Maria: «Nela, nos destes as primícias da Igreja,
esposa de cristo, sem ruga e sem mancha, resplandecente de beleza». Sobre
Maria, escreve São Gregório de Palamas: «Era
preciso que aquela que pariu o mais belo entre os filhos de homem, tivesse ela
mesma uma maravilhosa beleza» [19].Para os Pais da Igreja, a Beleza divina é uma categoria
fundamental, bíblica e teológica. Partindo dela, a beleza no mundo é tida como
uma realidade teologal, uma qualidade transcendental do ser, análoga ao bom e
verdadeiro. A harmonia da verdade divina personalizou-se em Cristo, crido, mas
também visto e contemplado, porque a humanidade deificada pelo Verbo é a chama
que irradia a luz trinitária. A epifania, o Tabor, a Cruz, a Ressurreição e o
Pentecostes são irrupções fulgurantes que se deixaram ver. Nestas revelações é
o objeto que determina inteiramente o sujeito. O belo aparece como um clarão da
profundidade misteriosa do ser, daquela interioridade que testemunha a relação
íntima entre corpo e espírito. A natureza ordenada e divinizada, faz ver a
beleza de Deus através do rosto humano de Cristo.Santo Atanásio, Macário do Egito, João Climaco, Mássimo o confessor,
Simão o novo teólogo, Gregório de Palamas e Serafin de Sarov, desenvolveram uma teologia da beleza que
acentua a graça na vida e é sentida como doçura, paz, alegria e luz. Integram o
espiritual e o corpóreo. Quem participa da luz torna-se ele próprio luz. A
tradição de Alexandria insiste sobre a beleza do divino. São Cirilo afirma que
a característica do Espírito Santo é de ser o Espírito da Beleza, a forma das
formas; é no Espírito, escreve, que participamos da beleza da natureza divina [20]. A tradição patrística acentua o aspecto real, pode-se dizer
materializado do Reino de Deus. É uma espécie de deomaterialismo cuja beleza se
manifesta já através das formas deste mundo e prepara para o novo céu.A beleza de Deus, bem como a sua luz não é
nem material, nem sensível e nem intelectual, mas se doa em si mesma ou através
de formas deste mundo e se deixa contemplar pelos olhos abertos do corpo
transfigurado. Esta não é nem a mística sensível, nem a redução ao somente inteligível,
nem uma materialização espiritual, mas a comunhão mais concreta da natureza
criada pelo homem inteiro, com as energias divinas incriadas. É o mistério do
oitavo dia, do dia pascal. Sua realidade já é experimentada nos sacramentos
e iniciada na experiência dos santos.Entre os teólogos católicos destaca-se Hans Urs von Balthasar como um
arauto do pensamento estético-teológico. Através de duas categorias
fundamentais, glória e amor, o teólogo suíço deixa uma herança preciosa
para quem pretende refletir a teologia na perspectiva da Beleza. Sua
abordagem trata principalmente da glória de Deus vinculada ao seu amor. Deus se
glorifica humilhando-se, esvaziando-se, despojando-se de sua efetiva glória.
Esta se manifesta na Cruz e não no triunfo e na potência. Somente é possível
compreender a glória de Deus, contemplando a beleza da «Cruz». Na Cruz
revela-se o amor infinito e absoluto de Deus para com a humanidade: à luz da
Cruz o mundo se explica. Sua essência, suas formas incoativas e as estradas do amor
que correm o risco de perderem-se, encontram o fundamento na verdadeira causa
transcendente [21].
Balthasar une os conceitos de glória, amor e cruz e estabelece a base para uma
teologia da beleza que vê no Crucificado a manifestação mais perfeita da
Beleza.
São Tomás de Aquino ensina que Jesus é o horizonte onde
repousa o Belo: «A beleza assemelha-se com aquilo que é próprio do Filho» [22]. E
acrescenta a explicação desta tese que, para que exista beleza, é preciso três
coisas: a totalidade (integritas), a proporção ou harmonia das partes
(proportio) e o esplendor (claritas). Tomás reconhece a presença destes
três elementos no Filho, especialmente o «todo» da divindade se faz presente e
resplende no fragmento que é a humanidade do Salvador. Em Jesus a beleza se faz
carne, porque ele é o ícone perfeito do Pai,é a revelação do mistério divino
que se faz conhecer e amar por nós e, ao mesmo tempo, é a porta que nos
introduz no seio do amor trinitário e nos comunica esse amor.A encarnação do
Verbo permite contemplar a beleza de Deus que se revela sobre a terra. E, aqui,
no entanto, que a figura do Bom Pastor atrai especial atenção. Sempre vemos a
tradução do Pastor com o adjetivo «bom», mas vimos que em grego também o «belo»
equivale ao bom. Portanto, não há nada que impeça os cristãos de invocarem o
Belo Pastor. A beleza do Pastor está no amor pelo o qual entrega a si mesmo à
morte pelas suas ovelhas e estabelece, com todo seu rebanho, uma relação
pessoal estreitíssima de amor. Isto significa que a experiência da sua
beleza é feita, deixando-se amar por Ele, entregando-lhe o próprio coração para
que o inunde com sua presença, e correspondendo ao amor assim recebido, com o
mesmo amor que o próprio Jesus nos torna capazes de ter. Através do povo do
Belo Pastor, a luz da salvação poderá atingir a muitos , atraindo-os a Ele e a
sua beleza salvará o mundo. Os santos não só creram no Bom Pastor e o amaram,
mas, sobretudo se deixaram amar e plasmar por ele. A sua caridade
tornou-se a deles, a sua beleza se efundiu neles, nos seus corações e se
irradiou nos seus gestos.É no mistério da Cruz e Ressurreição de Cristo, contudo, que
a beleza se manifesta como salvação. É na cruz, que o mais belo dos filhos do
homem se oferece, no sinal paradoxal do contrário, «como o homem das dores»,
diante do qual se cobre a face (Is 53,3). Um espírito potente pode assumir um
corpo enfermo, pela imperfeição do nosso mundo, como aconteceu na Kênosis
do servo de Javé, do qual fala o profeta Isaías. (53,2). «Não há aparência nem
beleza para atrair os nossos olhos»: é o véu quenótico jogado sobre o esplendor
indicado pelo salmo: “tu és o mais belo entre os homens” (44,3). Nesse caso, a
própria enfermidade torna-se inefavelmente bela, porque, na superação, que é
verdadeira transfiguração, o obstáculo é colocado a serviço do espírito com uma
misteriosa conformidade ao destino secreto do ser. «No limite, os ‘loucos por
Cristo’ embrutecem-se por vocação e descem à raiz do opróbrio para nela
encontrar luz» [23].A Beleza é o Amor Crucificado, revelação do coração divino
que ama: do Pai fonte de todo Dom, do Filho entregue à morte por amor a nós, do
Espírito que une o Pai e o Filho e é efundido sobre a humanidade para conduzir
os distantes de Deus para o Reino do Pai.
A divina beleza se apresenta na cruz e na ressurreição do Filho do Homem,
quando a Beleza é crucificada. Sobre a cruz, a dor e a morte entram em Deus por
amor aos sem Deus: o sofrimento divino, a morte em Deus, a fraqueza do
Onipotente são algumas das muitas revelações do seu amor pelos homens. É este
amor incrível, manso e atraente que nos envolve e nos fascina, que exprime a
verdadeira beleza que salva. Este amor é fogo devorador. A ele não se resiste
senão com uma obstinada incredulidade ou com uma persistente rejeição, no
silêncio, diante do seu mistério, isto é, a rejeição da dimensão contemplativa
da vida. O Deus cristão não dá, na cruz, uma resposta teórica à pergunta sobre o
porquê da dor do mundo. Ele simplesmente nos oferece solidariedade, acolhida e
comunhão nesta dor. É o Deus que não deixa que se perca nenhuma lágrima
de seus filhos, porque a faz sua. Na Cruz encontra-se o fundamento do amor pelo
belo, que embeleza os sofredores e revoluciona o conceito de beleza. Pela fé,
experimenta-se na dor e paixão de Cristo um amor de Deus totalmente diferente:
o amor totalmente altruísta. «Não há maior amor do que dar a vida pelos amigos»
(Jo 15,13). É o amor que torna tudo o que é pecaminoso, malvado e débil, em
beleza, sabedoria e justiça. Os pecadores
tornam-se belos porque são amados e não são amados porque são belos. É a beleza da Cruz que introduz no mundo da
metafísica um elemento novo. A divindade não é mais vista a partir de conceitos
estáticos de onisciência, onipotência e onipresença, pois a paixão de Jesus
revela a potência de Deus e a morte de Cristo expressa o infinito amor do qual
Deus é capaz. A dor e a morte, realidades totalmente humanas, são santificadas
em Cristo e elevadas à dignidade divina. Aqui, a teologia cristã não se empenhará em
explicar a morte de Cristo a partir de conceitos metafísicos ou morais, mas
procurará compreender o ser divino a partir do evento amoroso da paixão. A
beleza da cruz revela-se no amor da Trindade para com as criaturas humanas.
Pela fé é possível ver o Nazareno pregado no madeiro da vergonha como o mais
belo dos seres humanos. O seu amor transfigura toda realidade, supera
as expectativas e revoluciona os conceitos do belo.O amor revelado sobre a cruz indica para todos, crentes e
não crentes que estão em busca da verdade, a beleza que salva e se oferece como
luz e força também para superar os tormentos e dores do presente. O que nos leva a procurar intensamente a beleza de Deus
revelada na Páscoa é também o seu contrário, isto é a negação da beleza. A
verdadeira beleza é negada onde o mal parece triunfar, onde a violência e o
ódio tomam o lugar do amor e a prepotência da justiça. Mas a
verdadeira beleza é negada, também, onde não existe mais alegria, especialmente
lá onde o coração do crente parece ser preso à evidência do mal, onde falta o
entusiasmo da vida de fé e não se irradia mais o fervor de quem crê e segue o
Senhor da história. Apropriadamente, nesse contexto, cantam as
comunidades brasileiras por ocasião da Quaresma: «Brilhando sobre o mundo, que vive sem tua luz, tu és um sol fecundo
de amor e de paz, ó Cruz! Vitória tu reinarás, ó Cruz, tu nos salvarás!»Pode-se pensar no Crucifixo como a negação da Beleza. Porém,
nenhuma beleza é mais intensa do que aquela que provém de quem, com a sua vida
inteira, foi chamado a ser testemunha do amor crucifixo, e portanto, tornar-se
um apóstolo da beleza que salva. Viver a dor transformado em amor e sentir a
ambiguidade da beleza que salva é admitir com Teresa de Lisieux:«Nosso Senhor, no Horto das
Oliveiras, gozava de todas as alegrias da Trindade, e todavia a sua agonia não
era menos atroz. É um mistério; mas posso assegurar-lhe que compreendo alguma
coisa desse mistério a partir do que sinto em mim mesma» [24].Nesse escrito, dirigido à sua Superiora, Santa Terezinha
revela a experiência de quem saboreia «já» as premissas da Beleza que salva. A
beleza do Ressuscitado liberta e transfigura toda pessoa, ilumina-a com uma
beleza indizível e a torna-a repleta do Espírito Santo, transformando-a
totalmente [25]. A
Páscoa faz resplandecer a beleza que salva, a caridade que se difunde no mundo.
A beleza da Páscoa é ao mesmo tempo totalidade, harmonia e esplendor: nela se
encontram os três aspectos da beleza que a tradição clássica sempre acentuou.
«Como em Sexta-feira e Sábado Santo, a Igreja não cessa de contemplar este
rosto ensanguentado, no qual se esconde a vida de Deus e se oferece a salvação
do mundo». Mas a sua contemplação do rosto de Cristo não pode deter-se na
imagem do Crucificado. Ele é o Ressuscitado! Se assim não fosse, seria vã a
nossa pregação e a nossa fé (cf. 1 Cor 15,14). A ressurreição foi a resposta do
Pai à sua obediência, como recorda a Carta aos Hebreus:«Quando vivia na carne, [Cristo]
ofereceu, com grande clamor e lágrimas, orações e súplicas Àquele que O podia
salvar da morte, e foi atendido pela sua piedade. Apesar de Filho de Deus,
aprendeu a obedecer, sofrendo, e, uma vez atingida a perfeição, tornou-Se para
todos os que Lhe obedecem fonte de salvação eterna» (Heb5,7-9)” [26.O rosto que diante do qual se cobre a face para não ver, na
ressurreição, aparece como o rosto belo, aquele mesmo rosto que Madre Teresa de
Calcutá contemplava, com ternura, nos seus pobres e moribundos. É na luz pascal
que Oscar Romero opta pelos escolhidos de Jesus e posiciona-se ao lado dos mais
fracos. Enfrentando as contradições e misérias da realidade brasileira, Helder
Câmara tornou-se profeta da esperança, arauto da beleza que floresce no meio do
sertão nordestino. Foi por causa do Ressuscitado que Irmã Dulce brilhou no meio
dos excluídos e revelou à Bahia e ao Brasil, quem é o Salvador. São
rostos marcados pela dor transformada em amor. Do alto da Cruz eles
contemplaram a luz e atraíram todos à causa de Cristo.A beleza de Cristo está na coexistência da transcendência e
a imanência divina. A figura de Cristo é o rosto humano de Deus; o Espírito
repousa sobre ele e nos revela a beleza absoluta: divino-humana. É a beleza de
luz tabórica que brilhou na transfiguração. O seu esplendor é inerente à sua verdade:
«A luz da face de Deus resplandece em toda a sua beleza no rosto de Jesus
Cristo, «imagem do Deus invisível» (Cl 1,15), «resplendor da sua glória» (Hb
1,3), «cheio de graça e de verdade» (Jo 1,14): Ele é «o caminho, a verdade e a
vida» (Jo 14,6). «Por isso, a resposta decisiva a cada interrogação do homem, e
particularmente às suas questões religiosas e morais, é dada por Jesus Cristo» [27]. E
esta não existe no abstrato. Em nível de plenitude, ela exige uma
personificação ao que Cristo responde: «Eu sou a verdade»; o que equivale, pela
unificação dos conceitos, à afirmação: «Eu sou a beleza». Por isso, cada beleza
no mundo é uma figura da Encarnação. Não existe e não pode existir nada mais
belo e perfeito que o Cristo, afirma Dostoievski.A contemplação puramente da beleza de Cristo, no entanto,
não é suficiente e exige o ato religioso de fé, participação ativa e
incorporação à beleza transformante do Senhor. A experiência da Cruz
transformada em antecipação da Ressurreição depende de uma adesão incondicional
ao Cristo: «Na realidade, por mais que se olhasse e tocasse o seu corpo só a fé
podia penetrar plenamente no mistério daquele rosto» [28]. A
beleza de Cristo remete à contemplação de seu rosto. A face do Crucificado e o
esplendor da face do Ressuscitado permitem conhecer o aspecto mais paradoxal do
mistério que se revela em Cristo.No Tabor, a luz do Filho glorifica o Pai,
fonte da Beleza, revelada pelo Espírito da Beleza. É o belo em Deus, que nós
contemplamos no Verbo encarnado. A luz é o objeto da visão e é também
instrumento. A Transfiguração do Senhor era na realidade a transfiguração dos
apóstolos. Naquele momento os seus olhos podiam ver, para além da Kênose, a glória do Senhor; ele viram
a divindade que se escondia naquela humanidade. Ele adoraram o Deus que se lhes
aparecia como homem: «Mediante uma transmutação dos seus sentidos, estes passam
da carne ao Espírito» [29]. Deus quer que a sua epifania seja percebida pelo homem
integral pois também o corpo é passível das experiências de encontro com o
sagrado.Em Cristo encontra-se não só a verdade em pessoa e o bem maior, mas
somente ele nos revela a beleza divina da qual o coração humano está inquieto,
tem saudades e intenso desejo.
Considerando a reflexão feita até aqui, retornemos à questão
inicial:«Qual beleza salvará o mundo?»
Em seu romance «O Idiota», Dostoievski coloca nos lábios do
ateu Ipolit uma pergunta intrigante feita ao príncipe Mynski: «É
verdade, príncipe, que vós dissestes um dia que o mundo seria salvo pela
beleza? Senhores, gritou forte a todos, o príncipe afirma que o mundo será
salvo pela beleza... Qual beleza salvará o mundo?» O príncipe não
responde à pergunta. O silêncio de Mynski recorda a atitude de Jesus diante de
Pilatos que lhe interroga: «O que é a verdade?» (Jo 19,38). O príncipe
permanece em silêncio, junto de um jovem de 18 anos que está morrendo. Ele
revela, então, uma infinita compaixão, respondendo à provocação de Ipolit, sem
falar, que a beleza que salva o mundo é o amor que codivide a dor.Para Dostoievski belo é o que é normal, o que é sadio [30].
Por isso ele afirma que a beleza salvará o mundo, e logo se pergunta: qual
beleza? Percebe-se que a beleza é um enigma porque fascina e faz sofrer. Também
os niilistas amam a beleza, os ateus, talvez mais do que qualquer outros,
experimentam a necessidade de um ídolo e logo o fabricam. Antes ainda
de compreender e viver a beleza e o amor, o homem já a profana. A beleza tem em
si mesma uma potência salvadora e, ambiguamente, precisa ser salva e protegida.
Como
filósofo, Dostoievski pensa na unidade original entre verdade, bem e beleza.
Ele analisa como estes três aspectos são integrados ou não, no princípio
religioso. Quando cada dimensão se torna autônoma, cada uma expressa a mais
profunda ambiguidade: o coração encontra a beleza também na vergonha, como
ocorreu em Sodoma. Diante deste cisma ontológico, a psicanálise de
Dostoievski passa a psicossíntese. Com uma visão aguda do problema, ele procura
uma luz no túnel. Sua percepção unifica o estético com o religioso, afirmando
que a aspiração pela beleza coincide com a busca do Absoluto e do infinito.
Aqui se desenvolve uma pneumatologia: o Espírito de vida da Sagrada Escritura é
identificado com o princípio moral e estético dos filósofos.Ao lado de uma
civilização técnica altamente prática e utilitarista é preciso afirmar a
cultura do espírito, campo este que é predestinado a cultivar os valores
«inúteis», mais precisamente, «gratuitos», até o momento da última superação
para o «único não útil», mas necessário, segundo o Evangelho de Jesus Cristo. A
beleza salvará o mundo. Mas qual beleza? A beleza procurada pelo ser humano
ferido pelo amor e pelo desejo do Senhor.Para encantar novamente um mundo que
tende a perder o significado de seu esplendor, o Papa João Paulo II, escrevendo
aos artistas afirma:«A beleza que transmitireis às
gerações de amanhã, seja capaz de despertar nelas o estupor! Diante da
sacralidade da vida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, a única
atitude adequada é a do estupor» [31].O êxtase da criatura diante da criação e do criador, a
ascese mística perante o sofrimento inocente, a espiritualidade do «ora et
labora», enquanto interação fé e vida, tornam-se desafios constantes da
recuperação do sentido do Belo para homens e mulheres cansados pela história
marcada por brutalidades e frustrações.Adquire renovado vigor, para tanto, a
arte como expressão da Beleza. No momento que o Espírito Santo fala na beleza,
como falou nos profetas, a salvação «mediante a beleza» não é mais o princípio
autônomo da arte, mas uma fórmula religiosa. É, na santidade, no espírito, que
o homem encontra a intuição imediata da verdadeira beleza. Repleta do Espírito
Santo, a natureza humana de Cristo é imagem positivamente e absolutamente
bela.A beleza natural é real, apesar de frágil. Por isso, o vértice do
ser está na beleza personalizada num santo que torna o centro hipostatizado
pela natureza como microcosmo e microthéos. A natureza espera, gemendo, que a
sua beleza seja salva pelo homem tornado santo. A beleza que salva o
mundo situa-se na realidade da qual fala a oração que Dionísio Pseudo
Areopagita dirige a Theotókos: «Eu desejo que o teu ícone se reflita
continuamente no espelho das almas e as conserve até o fim dos séculos, reerga
aquelas que estão curvadas por terra e dê esperança àquelas que consideram e
imitam o eterno modelo da beleza».O escândalo da dor no mundo é tão grande que impede a busca
de uma conciliação harmoniosa entre sofrimento e beleza. A dificuldade de
compreender a dor, não pode impedir o ser humano de ver a beleza escondida na
essência dos seres . Muitas vezes é somente no final de tudo que se percebe o
sentido, o belo e o eterno. O tempo redime a eternidade justamente porque passa
com uma inexorável fugacidade. Somente a morte confere ao «instante» a
profundidade de uma totalidade e de uma eternidade. Somente quando o homem
aproxima-se do nada que representa a morte, então torna-se capaz de perceber a
maravilha do tempo e a alegria da vida.A beleza, como vimos, oferece sua
ambiguidade na fronteira entre o ser e o nada. Dostoiewski reflete essa
dualidade na sua conhecida obra Os irmãos Karamazov:«A beleza, diz Dimitrij Karamazov, é uma coisa terrível que amedronta,
porque é indefinível, e defini-la não se pode, porque Deus nos deu apenas
enigmas. Aqui as duas margens se unem, aqui todas as contradições coexistem. A coisa temível é que a beleza não só é
terrível, mas é também um mistério. É aqui que Satanás luta com Deus, e o seu
campo de batalha é o coração dos homens» [32]. Para ele, somente no final a
beleza será vitoriosa. É no futuro, portanto, que se
encontra a salvação: «Quando passar o presente e virá o futuro, então o futuro
artista encontrará formas belíssimas também para representar a desordem e o
caos» [33].É no presente, entretanto, que permanece a possibilidade da
beleza converter-se ao coração. Para Dostoievski há uma estreita ligação entre
as várias expressões da tragédia existencial: ao plano teorético une-se o plano
ético, e este une-se à busca da beleza. Ora, se é a decisão da fé que abre à única
verdade revelada no Deus crucificado, o caminho da verdade, então, encontra-se
na decisão moral. E se é a conversão do coração que abre ao reconhecimento da
beleza que salva, então o caminho da estética é conjugado ao da ética.Santo Agostinho
conjuga a beleza e o amor assim:«Deus nos amou primeiro e nos deu a capacidade de amá-lo. Não nos amou para deixar-nos feios como
éramos, mas para mudar-nos e tornar-nos belos. Em que modo seremos belos?
Amando a Ele, que é sempre belo. Quanto mais cresce em ti o amor, tanto mais
cresce a beleza; a caridade é justamente a beleza da alma» [34].
Conclusão
O belo, o bom e o verdadeiro são aspirações humanas que se
unificam para dar sentido à vida. É nessa perspectiva que Jesus de Nazaré,
mediante gestos e palavras, constitui a mais perfeita expressão do que as
pessoas esperam do ideal realizado. O Crucificado-ressuscitado abriu o
futuro para Deus e antecipou no tempo a eternidade. Nele está toda beleza
salvadora.Chegamos assim ao final da nossa análise sobre os principais elementos
característicos e constitutivos da beleza, que nos levam a concluir que a
beleza é algo estreitamente relacionado com a ordem, com a proporção, a
integridade e, consequentemente, com a inteligência. Quanto mais uma
inteligência estiver formada para ver estes elementos num ser (escultura,
pintura, música, poesia, na natureza, etc.) mais claramente ela os conhecerá,
com mais agrado, e poderá se satisfazer com eles de modo muito mais frutuoso. É
possível, e necessário, educar a inteligência para discernir o belo do feio. A
inteligência saberá também passar do inferior ao superior, partir das criaturas
para chegar até Deus.
“Não basta que um ser seja
íntegro, proporcionado e uno para ser belo, mas é preciso que ele tenha verdade
e caridade...” (Pierre de Craon Lejeune)
NOTAS
[1] A
interrogação remonta ao romance O Idiota de DOSTOIEVSKI – Rio de Janeiro, 1976.
[2] H. URS VON BALTHASAR, La percezione
della forma, vol.1 di Gloria, Milão, 1985,11.
[3]
DOSTOIEVSKI F.N, I Demoni, Milão, 1963, c.3.
[4]
Cf. JOÃO PAULO II, Lettera agli artisti, Turim, 1999, 7.
[6]
KANT, I. Crítica del Giudizio, Bari, 1971, 59.
[8]
JACQUES ROUSSE, in P.N. EVDOKÍMOV, Teologia Della Bellezza, L’Arte dell’icona,
Milão, 1990, 21.
[9]
S.BASÍLIO, Regulae Fusuis Tractae, P.G. 31.
[10] Cf. PLOTINO, Enneadi, Bari,
1947-1949. VIII. Trattado della Eneade.
[11]
PASTRO, C. Arte Sacra, o espaço sagrado hoje, São Paulo, 1993, 102.
[12] EVDOKIMOV,P.N., Op. cit. , 47.
[13]
ALVES,R. Fora da Beleza não há salvação. Revista Isto é, dezembro, 2000.
[15]
Lodi di Dio altíssimo, vv.7 e 10: Fonti Francescane, n.261, Pádua, 1982, 177.
[16]
Legenda maior, IX, 1: Fonti Francescane, n.1162, 911.
[17]
«Sero te amavi, pulchitudo tam antiqua et tam nova, sero te amavi!» Confissões
10, 27.
[18]
Cf. Paraíso XXXI, 134-135.
[19]
Homilia 53 in S. Oiknomos, Atenas, 1861, 131-180.
[20] In
Johannis Evangelium, 16, 25, PG 73.
[21]
Cf. BALTHASAR, H.U. Solo l`amore é credibile, Turim, 1965,140.
[22]
«Pulchritudo habet similitudinem cum propriis Filii»: Summa Theologica I, q. 39
a, 8c.
[23] EVDOKIMOV,P.N Op. cit. , 39.
[24]
Últimos colóquios. Caderno amarelo (6 de Julho de 1897): Opere complete
,Vaticano, 1997, 1003.
[25]
Cf. MACÁRIO o GRANDE, Homilia I,2: Patrologia Greca 34, 451.
[26]
JOÃO PAULO II , Tertio Millenio Ineunte, n.28.
[27]
JOÃO PAULO II, Splendor veritatis, 2.
[28]
IDEM , Tertio Millenio Ineunte, n.19.
[29]
S.GREGÓRIO DE PALAMAS, Homilia 35, P.G. 151, 433B.
[30]
Podemos prever muito bem no Evangelho segundo São João ‘o milagre da Encarnação
na revelação da Beleza’ e esta limpidez se encontra em todo o trabalho de
Dostoievski. Ele se inspirava nas belas igrejas ortodoxas que costumava
freqüentar.” PASTRO, C. Arte sacra: o espaço sagrado hoje, São Paulo, 1993,
103.
[31]
JOÃO PAULO II, Lettera agli artisti, Turim, 1999,23.
[32]
DOSTOIEVSKI, I fratelli Karamazov, II, 5, 174.
[33]
IDEM, L´adolescente, II, 4,661.
[34]
Santo Agostinho, Comentário à Carta de João, IX,9.
Fonte:
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