O
ex-presidente do Uruguai diz que a esquerda ficou "presa em um mundo que
mudou"...
Por Leonardo Caldas - Publicado em 20 jan 2023
José “Pepe” Mujica é um ícone da esquerda
latino-americana. Durante a ditadura no Uruguai, ficou quase quinze anos preso,
sete deles isolado numa solitária e longe dos livros que tanto ama.
Ex-guerrilheiro, escreveu uma história de redenção após a redemocratização de
seu país, que governou entre 2010 e 2015. Como presidente, avançou na
legalização do aborto e na descriminalização da maconha, medidas defendidas por
petistas, mas que ainda não saíram do papel no Brasil. Também lidou com
tentativas de corrupção, as quais, segundo ele, foram devidamente rechaçadas.
De fala mansa e pausada, Pepe se orgulha de ostentar o título de o dirigente
mais pobre do mundo, o que lhe daria autoridade para cobrar dos mais ricos que
façam um pouco pelos mais pobres. Conhecido pelo estilo franciscano, o
ex-presidente uruguaio recebeu VEJA em seu sítio na zona rural de Montevidéu.
Em duas horas de conversa, comentou os atentados às sedes dos três poderes no
Brasil, definiu como o maior desafio de Lula a pacificação e reconstrução da
democracia brasileira, reconheceu erros da esquerda na seara da corrupção e
recomendou ao petista, de quem é amigo, que não transija com desvios e
roubalheira. A seguir os principais trechos da entrevista:
-O senhor acompanhou os atentados às sedes dos três poderes em
Brasília?
Vi pelos veículos de comunicação! Havia gente com Bíblia na
manifestação...
É bom ressaltar que não foi o Lula quem colocou a esquerda contra a direita nas eleições. Bolsonaro que instigou essa divisão (???).
...Bolsonaro criou um confronto nacional assustador em um país que sempre foi o reino da alegria. O que tivemos naquele domingo não é o Brasil que conheço... As instituições estão muito fortalecidas no Brasil.O governo acredita que foi uma tentativa de golpe. É evidente que houve colaboração de pessoas de esferas maiores, porque uma mobilização dessa natureza… Os organismos de inteligência serviram para quê? Somente para receber o salário? Se fossem quatro, cinco ou dez pessoas, o movimento poderia ter passado despercebido, mas foi uma multidão, que estava reunida em um acampamento perto do quartel-general do Exército. Tenho certeza de que teve gente da alta esfera que colaborou com isso. Foi algo armado.
-A
América Latina teve sua escalada de golpes militares. Haveria espaço para algo
desse tipo no Brasil?
Aquilo, como disse, foi algo "armado" (?). Deve ter gente da alta esfera com tendência bolsonarista envolvida. Me parece a continuidade do grupo organizado que ficava na porta dos quartéis para pedir ao Exército que desse um golpe de Estado. Foi uma mobilização para desatar um caos enorme com o objetivo de acionar as Forças Armadas. Foi um incentivo às Forças Armadas para que se mobilizassem.
-Mas
o senhor vê algum risco de quarteladas nos dias de hoje?
-A resposta está no que farão os militares. Está escrito que os militares devem respeitar a Constituição e apoiar o governo constituído. Aí está o desafio. Isso não se resolve com discurso nem com declarações. Há que se trabalhar para que os militares tenham a responsabilidade histórica de cumprir a Constituição...Muitos analistas avaliam que a eleição de Bolsonaro foi resultante da "rejeição à esquerda e ao PT". A esquerda brasileira errou, permaneceu estagnada no tempo e presa na literatura de uma época, em um mundo que mudou. Esquerda é empatia, é solidariedade e é preocupação com a desigualdade. É sonhar com um mundo um pouco mais justo e com uma humanidade mais nobre. É o que a esquerda tem de mais bonito.
-A propósito, o PT é
um partido de esquerda?
É um partido de esquerda mais ou menos, com contradições. Vale ressaltar que
nem os partidos nem as instituições falham, quem falha são os humanos. Às vezes
nos desviamos porque somos individualistas. As pessoas se apaixonam pelos
cargos. Tudo isso passa. A coisa não é simples.
-Escândalos
de corrupção entram na conta dos erros da esquerda brasileira?
-Como estamos envolvidos em uma cultura de vencer
na vida e de ser rico, muita gente se apropria dessas tolices. As grandes
empresas utilizam o suborno como método para se apropriar e naturalmente dentro
da burocracia política encontram um caminho para isso. O Brasil teve esse
problema em grande escala porque é gigantesco! A esquerda brasileira não deixa
de ser humana e certamente teve gente que fez besteira e “pisou na bola”, mas
eu não posso me prender somente em relação à esquerda porque isso acontece com
a direita e com todos. O empresário te rodeia e tenta te corromper.
-Tentaram corromper o senhor no Uruguai?
Sim, mas não tiveram êxito. Me disseram que iam casar a filha em Veneza e me
convidaram para ir ao casamento com a minha esposa. Não fui...É apenas um
exemplo.
-Lula
chegou a ser condenado e preso. Vários integrantes do PT tiveram o mesmo
destino. Tudo isso foi apenas “falha”?
O
Brasil tem outro problema, que é da esquerda, da direita e do centro. As
dimensões que tem e a quantidade de particularidades estaduais. Quando querem
aprovar uma lei, os partidos são fundamentais, mas o que pedem? Tem de fazer uma
estrada aqui, uma ponte ali. Mais do que uma discussão política ou ideológica,
é uma bolsa de valores. Isso abre a porta à condição humana. O Brasil tem uma
armadilha constitucional. Isso é terrível. Não sei como fazem.
-Qual
seu conselho a Lula para que eventos do passado não se repitam?
-Que seja implacável com a corrupção, e capaz
de tirar um irmão! Não há remédio, não se pode fazer transação com isso! Ele
tem uma responsabilidade gigantesca! O temor que tenho do Brasil é que ele é
muito grande. É muito majestoso. Veja o Lula que saiu de um bairro operário, um
bairro metalúrgico, um bairro de gente comum...Tudo é possível no Brasil...E agora enfrenta o desafio mais difícil de sua vida: pacificar o Brasil
e defender a democracia.
-Ele
acertou ao apostar numa frente ampla na campanha?
Era a sobrevivência da democracia institucional contra as tendências
autoritaristas. Há uma aliança entre uma quantidade de setores que eram
adversários. Isso significa uma troca, porque essa gente viu que precisava
salvar a democracia. Se deram conta de que só Lula poderia liderar esse
movimento, e o Lula também se deu conta disso. Lula não é um esquerdista radical.
Ele vai apenas fazer com que a economia funcione melhor para ajudar quem tem
fome. São 33 milhões de famintos. Isso não é aceitável.
-A
viagem de três presidentes uruguaios para a posse de Lula (o atual, Lacalle
Pou, e os antecessores Mujica e Sanguinetti), de partidos diferentes, passa
qual mensagem?
Primeiro de tolerância, porque a democracia não é viável se nos
deixarmos levar pelas diferenças que temos, e nem sequer nos falarmos. Na democracia temos de dialogar, falar e trocar experiências. Agir
como inimigos que nem se cumprimentam, como cachorro e gato, não funciona. Como um lago de azeite que não serve para nada. Isso é
terrível.
-Qual a
opinião do senhor sobre a "legalização do aborto" (aborticídio)?
Ninguém gosta do aborto, muito menos a mulher que o faz.
Mas a vida tem suas ciladas e imposições. E o fato é que desde que o mundo é
mundo o aborto existe. Eu fui criado num bairro proletário no qual havia uma
parteira que fazia abortos a uma quadra da delegacia e a duas quadras da
igreja. E as mulheres faziam fila, às vezes na calçada, para fazer o
procedimento. Todo mundo sabia. As mulheres pobres são as que enfrentam as
piores condições.
-Por que o senhor "defendeu a legalização da maconha?"
Porque estavam prendendo jovens que fumavam um cigarro de maconha. A
maneira de combater a droga é deixá-la sem mercado clandestino. Passamos quase
um século fracassando com a política repressiva das drogas, que só serve para
gastar uma fortuna em equipamentos policiais, quando tínhamos de gastar esse
dinheiro com atendimento médico e um bom serviço de recuperação. Ter pessoas
identificadas para poder atendê-las a tempo, não quando estão destroçadas.
Einstein dizia, se você quer mudar, não pode continuar fazendo o mesmo.
-Já fumou maconha?
Não. Nunca! Eu fumo
cigarro de tabaco, que é um veneno pior.
-A
legalização da maconha trouxe algum problema para o Uruguai?
Não, pelo contrário. Agora estão aparecendo empresas
que querem desenvolver a parte medicinal, que é muito importante. Existe um
mercado muito grande (de cracudos e viciados). E o Uruguai está ganhando dinheiro com esse mercado! O
Brasil, se quisesse, teria condições de implementar uma política similar. Teria
de começar em um estado, em um lugar para aprender, e depois estendê-lo de
maneira regionalizada. O Brasil pode fazer qualquer coisa.
-O senhor acredita em Deus?
-Quem, eu?... Se
almoça na mesa do patrão, na minha casa não passou... Mas eu amo a natureza e a
vida. Talvez eu seja um pouco panteísta. Se existe encanto, está aí. Sou um
adorador da natureza. Estive muitos anos preso. Desses, fiquei sete anos sem
livros, sem poder escrever, ler, fazer nada. E, para não ficar louco, tive de
aprender a falar com o meu interior, lá dentro, o que me ensinou o conceito
socrático de conhecer a si mesmo. Deve ser a coisa mais difícil que existe, mas
vale a pena. Agora estamos num mundo com muita informação externa, e as pessoas
não tem tempo de falar nem pensar nisso, que dirá olhar para dentro de si.
-O
senhor tem 87 anos e milita desde os 14. Faria algo diferente em sua
vida?
Sou um líder socialista. Eu obrigaria todo o
pessoal de confiança a colocar 5% a 10% para um fundo para fazer casas para os
pobres. Eu colocava 80% do meu salário de presidente. Não fazia isso para me
mostrar aos outros, mas para ter o direito moral de falar aos ricos que façam
algo. Você tem de dar o primeiro passo!
Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023,
edição nº 2825
Fonte:https://veja.abril.com.br/paginas-amarelas/jose-mujica-a-esquerda-brasileira-errou-permaneceu-estagnada-no-tempo/
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Os esquerdistas elogiam Mujica porque ele dispensa boa parte do salário de presidente (enquanto sua mulher acumula o de senadora). Mas, e o Republicano Michael Bloomberg, que recusou TODO o salário a que tinha direito durante sua longa gestão na prefeitura de NY? E aí, turma, vamos ser coerentes?
José Sanches - SP
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