AGÊNCIA BRASILEIRA
DE INTELIGÊNCIA (Abin)
Após a desativação do Serviço Nacional de Informações (SNI) pelo governo
Collor em 1990, os serviços de informação foram alocados na Secretaria de
Assuntos Estratégicos (SAE) de modo a desmilitarizar a
função.
A mudança do conceito
de informação para o de inteligência reafirmava também o propósito de livrar
a atividade do setor do estigma causado pela ação do SNI e dos órgãos a ele
vinculados nas décadas anteriores.
Assim, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foi instituída em
1999 pelo governo Fernando Henrique Cardoso como órgão central do Sistema
Brasileiro de Inteligência, com a função de planejar,
executar, coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência e
contra-inteligência e executar a Política Nacional de Inteligência de mais alto
nível do governo, integrando os trabalhos dos demais órgãos setoriais do
gênero em todo o país.
CRIAÇÃO
Em janeiro de 1995, através da medida provisória nº. 813 o Poder
Executivo foi autorizado a criar a Abin como órgão de assessoria direta da
Presidência da República.
A mesma medida
provisória manteve a Subsecretaria de Inteligência (SSI) subordinada à
Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), porém supervisionada pelo Secretário
Geral da Presidência da República, então ocupada por José Eduardo Jorge. O objetivo por trás dessas mudanças era iniciar o processo de
criação de um novo órgão de inteligência para o país. Inicialmente,
o encarregado de coordenar e implementar o projeto foi o general Fernando
Cardoso, ex-chefe do Centro de Informações do Exército, nomeado Assessor
Especial do presidente da República e subordinado ao chefe da Secretaria Geral.
Porém, em março de 1996, o general Fernando
Cardoso deixou a função após desentendimentos com José Eduardo Jorge;
suas responsabilidades foram transferidas para o general Alberto Mendes
Cardoso, ministro-chefe da Casa Militar e que, a partir de então, acumulou
também a chefia da SSI, agora vinculada à Casa Militar.
A ordem dada pelo
presidente da República, segundo o general Alberto Cardoso, foi a de criar um
órgão de inteligência do Estado brasileiro e não do governo, com a finalidade de produzir conhecimentos para o processo
decisório do chefe do Executivo; o futuro órgão, chamado de
Agência Brasileira de Inteligência, seria o centro do Sistema Brasileiro de
Inteligência (Sisbin) também a ser criado.
Diferentemente do antigo SNI, as informações coletadas pela Abin seriam
usadas na condução das políticas governamentais e não para análises políticas e
partidárias.
O general Alberto Cardoso
também disse que a Abin e seus agentes não realizariam operações de caráter
policial e que a atividade de inteligência exigia rigoroso compromisso ético e
moral tanto dos seus profissionais como das autoridades que utilizam os seus
produtos.
Nesse momento inicial, houve a preocupação de apresentar publicamente o
projeto da Abin, através de conferências no Congresso, nas universidades e
associações da sociedade civil e na imprensa, tarefa essa que coube principalmente
ao general Alberto Cardoso.
Em setembro de 1997,
o Executivo enviou ao Congresso o projeto de lei nº. 3651, que instituía o
Sisbin e criava a Abin.
Dentre as emendas
apresentadas ao relator do projeto na Comissão de Relações Exteriores e Defesa
Nacional (Creden) da Câmara, deputado José Aníbal, do
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB-SP), estava o
substitutivo elaborado pelo deputado José Genoíno, do Partido dos Trabalhadores
(PT-SP), cujas propostas envolviam a ampliação do controle exercido pelo
Legislativo sobre as atividades da Abin através de uma comissão parlamentar
mista e da co-gestão do Congresso sobre a Política Nacional de Inteligência a
ser definida pelo presidente da República; o relator aceitou
parcialmente as propostas desse substitutivo. No Senado, a única emenda aceita
foi a do senador Romeu Tuma, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB-SP),
relator do projeto na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE).
Por essa emenda, se definia que a comissão mista de controle sobre a
Abin seria composta pelos líderes da maioria e da minoria da Câmara e do Senado
e pelos presidentes da Creden e da CRE. Finalmente, após retornar para a Câmara
em virtude da última alteração, o projeto foi aprovado e deu origem à lei nº.
9883, sancionada pelo presidente da República em 7 de dezembro de 1999, já no
seu segundo mandato. A SSI foi extinta.
Baseando-se na
definição feita pelo deputado José Genoíno em seu substitutivo, o conceito de
inteligência apresentado no texto da lei nº. 9.883 dizia que “entende-se como inteligência a atividade que objetiva a
obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território
nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o
processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança
da sociedade e do Estado”. Por
sua vez, definiu-se a contra-inteligência como “a atividade que objetiva
neutralizar a inteligência adversa”. Segundo a crítica de Antunes, essa
conceituação pecou pela falta de precisão, visto que não foram explícitos quais
são os “fatos e situações” passíveis de influenciar o processo decisório nem
quais são os interesses da sociedade que devem ser resguardados.
ESTRUTURA
A lei também
instituiu o Sisbin, cuja responsabilidade seria integrar as ações de
planejamento e execução das atividades de inteligência do país, de modo a
fornecer subsídios ao presidente da República nos assuntos de “interesse
nacional”.
O Sisbin foi ainda fundamentado na preservação da soberania nacional, na
defesa do Estado Democrático de Direito e na dignidade da pessoa humana,
subordinando-se aos ditames da Constituição, aos tratados, acordos e afins dos
quais o Brasil seja signatário internacionalmente e à legislação ordinária. Deveriam compor o Sisbin os órgãos e entidades da
administração pública que produzissem, direta ou indiretamente, conhecimentos
de interesse da inteligência nas áreas de defesa externa, segurança interna e
relações exteriores.
Inicialmente, não
houve definição sobre qual seriam exatamente esses órgãos, o que só foi feito a
partir do decreto nº. 4.376 de 13 de setembro de 2002,
quando se especificou a participação da Casa Civil, do GSI, da Abin, dos
ministérios da Justiça, Defesa, Relações Exteriores, Fazenda, Trabalho,
Previdência Social, Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente e Integração Nacional. Já Abin, como órgão
central do Sisbin, ficou com a função de planejar, executar, coordenar,
supervisionar e controlar as atividades de inteligência do país, cujos limites de extensão e uso de técnicas sigilosas
deveriam se dar em “irrestrita observância” aos direitos e garantias
individuais, sem desrespeitar as instituições e os princípios éticos que regem
os interesses e a segurança do Estado. A
lei ainda determinava o papel do Legislativo no controle externo da atividade
de inteligência, através da comissão mista a ser criada para esse fim, dotada
também da responsabilidade de examinar e fazer sugestões à Política Nacional de
Inteligência a ser fixada pelo presidente da República; no entanto, não houve
referência sobre o nível de acesso dos parlamentares sobre as informações e
documentos sigilosos.
A direção da Agência caberia a um diretor-geral,
escolhido pelo presidente da República e aprovado pelo Senado Federal. O
primeiro diretor-geral da Abin, nomeado quando da sua criação, foi o coronel
Ariel Rocha de Cunto.
A estrutura
regimental da Abin foi regulamentada pelo Gabinete de Segurança Institucional
(GSI, como foi rebatizada a Casa Militar em 1999), originando o decreto nº.
3493 de maio de 2000.
Posteriormente, a medida provisória nº. 2.216-7 de 31 de agosto de 2001
estabeleceu que as informações e documentos produzidos
pela Abin ou em custódia dela só poderão ser fornecidos às autoridades
competentes pelo chefe do GSI com exceção daqueles cujo sigilo fosse
considerado imprescindível à “segurança da sociedade e do Estado”.
Basicamente, a
dinâmica de serviço da Abin funcionava da seguinte maneira:
O material recolhido
pelos agentes distribuídos entre os escritórios e agências regionais era
enviado ao Departamento de Inteligência do órgão, que
selecionava as informações que podiam ser de interesse do presidente da
República. A partir daí, era
feito um relatório dirigido ao diretor-geral da Abin que, por sua vez, o
repassava ao ministro-chefe do GSI, que enfim apresentava a resenha das
informações ao presidente.
DO RECRUTAMENTO DE
FUNCIONÁRIOS PARA A ABIN:
O recrutamento de funcionários para a agência era feito através de
concurso público ou via requisição e redistribuição de
servidores de outros órgãos da administração pública. O primeiro
concurso, realizado em 1999, atraiu 2.064 candidatos para 120 vagas.
Dos candidatos a
agente, ou “analistas de informações”, exigiam-se atributos como:
-A capacidade de
análise e síntese.
-Raciocínio lógico e
prospectivo.
-Flexibilidade de
raciocínio.
-Criatividade.
-Capacidade de
trabalhar sob pressão.
-Idealismo, lealdade
e responsabilidade.
-Além disso, para
evitar a infiltração do serviço, os candidatos tinham sua vida investigada pela
Abin.
Uma vez aprovado, o
agente fazia um curso de formação na Escola de Inteligência (Esint) da Abin, em
Brasília, cujo currículo incluía disciplinas como:
-Fundamentos da
Atividade de Inteligência,
-Produção de
Conhecimentos,
-Contra-Inteligência,
-Ciência Política,
-Relações
Internacionais,
-Direito,
-Psicologia,
-Comunicação,
-Sociologia,
-Administração,
-Informática,
-Idiomas e Protocolo
e Etiqueta.
Ao longo da carreira, também eram previstos cursos de aperfeiçoamento.
No entanto, a lei que regulamentava o plano de carreira da Abin só seria
aprovada em abril de 2004, através da lei nº. 10.862. Até
então, a ausência de tal plano era tida como razão para a evasão dos
concursados, cujos salários eram inferiores aos de outras categorias do
funcionalismo estatal, o que prejudicava a continuidade da formação dos
quadros, gerava algumas ameaças de greve e colocava em risco a segurança das
informações. Em setembro de 2008, a lei nº. 11.776 estabeleceu nova
estruturação do plano de carreiras e cargos da Abin, criando a carreira de
oficial de inteligência, oficial técnico de inteligência, agente de
inteligência e agente técnico de inteligência.
PRIMEIROS ANOS DA
ABIM
Pouco antes da oficialização da Abin, o serviço de inteligência seria
destaque na imprensa através do “caso dos grampos do BNDES”. Tudo começou em agosto de 1998, mês seguinte ao término do
leilão que privatizou a Telebrás, quando surgiram indícios de que conversas
gravadas por grampo clandestino mostrariam que o governo agiu de modo a
favorecer um dos consórcios participantes do leilão.
A então SSI foi
encarregada pelo governo de apurar essas gravações e descobrir quem foi o autor
dos grampos. Meses depois o órgão declarou ter recebido anonimamente duas fitas
com o conteúdo das gravações, deixadas num viaduto em Brasília; segundo
o general Cardoso, a audição do material mostrou que o conteúdo não provava
nada a respeito da privatização da Telebrás, sendo apenas um “caso típico de
espionagem comercial”. O caso foi dado por encerrado. Porém,
em meio a manifestações de desconfiança por parte do Ministério Público, a
imprensa acabaria por encontrar mais fitas que confirmavam as suspeitas de
manipulação no processo de privatização; as conversas envolviam o presidente
Fernando Henrique Cardoso, o ministro das Comunicações Luís Carlos Mendes e o
presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
André Lara Resende. Diante de tal situação, os dois últimos ministros foram
demitidos junto com mais cinco funcionários do governo.
O prosseguimento das investigações, agora a cargo da Polícia Federal,
revelou que os grampos clandestinos foram instalados por agentes da SSI lotados
no Rio de Janeiro.
Os indiciados pelo
Ministério Público Federal foram:
-O agente Temílson
Antônio Barreto, conhecido pelo codinome “Telmo” e que trabalhava no ramo da
inteligência desde os tempos do SNI.
-O ex-agente do Cenimar
Adílson Alcântara dos Santos.
-O coordenador da SSI
no Rio, João Guilherme Almeida.
-E o coordenador de
operações da SSI Gerci Firmino da Silva, que fora o responsável por buscar as
fitas no viaduto, segundo a versão dada pela SSI anteriormente.
Apenas os dois
primeiros foram condenados. O general Alberto Cardoso negou que a
instalação dos grampos fosse uma ação institucional ou que tivesse conhecimento
das ações de seus agentes. João Guilherme Almeida e Gerci Firmino foram
absolvidos por falta de provas de que houvessem coordenado a operação. Dez anos
depois desse episódio, as ações de improbidade administrativa propostas pelo
Ministério Público Federal sobre a manipulação no processo de privatização
continuavam paradas.
Em entrevista dada em 2008, o agente Adílson Alcântara negou a versão
sustentada pelo MPF de que o grampo foi obra da Abin a mando do governo;
segundo ele, tudo partiu de empresas com a finalidade de pressionar no governo
na venda da Telebrás.
Em maio de 2000, o
decreto 3.448 determinou a criação do Subsistema de Inteligência de Segurança
Pública
Órgão vinculado à Abin responsável por promover a coleta, busca e
análise de dados e produzir informações úteis às esferas federal, estadual e
municipal com a finalidade de reduzir ao máximo as incertezas referentes à
segurança pública.
A adesão dos Estados
e de suas respectivas Secretarias de Segurança Pública ao subsistema seria
feita voluntariamente através de convênios. O conselho do órgão seria presidido
pelo diretor-geral da Abin e integrado por representantes dos ministérios da
Justiça, Defesa, Integração Nacional e do Gabinete de Segurança
Institucional.
A princípio, essa medida foi acusada de tentar reviver o sistema de
coleta de informações promovido pelo SNI; o general
Cardoso respondeu argumentando que o subsistema não era voltado contra inimigos
internos, pois esses não existiriam e sim contra o crime organizado, o
que gerava a necessidade de organização do fluxo de informações entre os
Estados, cuja participação não mais seria imposta como nos tempos do SNI.
Outra crítica
referente ao subsistema era a de que ele teria funções concorrentes com a
Secretaria Nacional de Segurança Pública, pertencente ao Ministério da Justiça;
de fato, em dezembro do mesmo ano o decreto 3.695 tornou a Secretaria Nacional
de Segurança Pública o órgão central do Subsistema, passando a Abin a
participar dele apenas com representação no conselho.
Em novembro de 2000, a revista Veja publicou reportagem denunciando
ações da Abin que não corresponderiam às suas funções regulamentadas.
Dentre os casos
citados, o levantamento da ficha ideológica do jornalista Andrei Meirelles, que
investigava desvios do ex-secretário-geral da Presidência da República, José
Eduardo Jorge; a espionagem política feita sobre o ex-presidente e então
governador de Minas Gerais Itamar Franco, opositor do governo, que foi objeto
de um relatório enviado ao chefe do GSI e por ele destruído, por se tratar de
“denúncia anônima”; e a vigilância feita sobre o procurador da República Luís
Francisco de Sousa, que apurava o uso de jatinhos da Força Aérea por parte de
ministros, na qual foi empregada uma “andorinha” – termo que designa as agentes
que se envolvem amorosamente com os investigados de modo a obter informações
sobre eles.
As fontes da reportagem, segundo a revista, foram “oito funcionários da
Abin, todos de médio escalão para cima, e sete que pertenceram à agência e hoje
estão oficialmente afastados”.
O general Alberto
Cardoso disse não ter conhecimento sobre desvios de conduta da Abin e negou a
realização de investigações conforme as
denunciadas pela reportagem, que de acordo com ele, estaria repleta de afirmações
falsas e meias verdades. Diante da repercussão negativa do
episódio entre os parlamentares e no propósito de evitar eventuais desvios por
parte da agência, o general Cardoso entrou em contato com o então presidente do
Congresso, Antônio Carlos Magalhães, do Partido da Frente Liberal (PFL-BA),
pedindo para que a comissão mista de controle sobre o setor de inteligência
fosse finalmente instalada, conforme previsto na lei de criação da Abin.
No dia 21 de novembro foi instalado o Órgão de Controle e Fiscalização
Externos da Política Nacional de Inteligência, em breve rebatizado de Comissão
Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI).
Em sua primeira
formação, a comissão teve os seguintes membros:
-O senador José
Sarney, presidente da CRE e, por isso, da CCAI;
-Os senadores Jader
Barbalho e Heloísa Helena, respectivamente líderes da maioria e da minoria no
Senado;
-O deputado Luís
Carlos Hauly, presidente da Creden;
-E os deputados Aécio
Neves e Aluísio Mercadante, respectivamente líderes da maioria e da minoria na
Câmara.
Ao ser ouvido alguns dias depois pela comissão mista sobre os episódios
da reportagem, o general Cardoso teria admitido a
possibilidade de que investigações paralelas tivessem acontecido e que
as denúncias provavelmente foram feitas por ex-funcionários do SNI.
No dia 1º de dezembro
o diretor-geral da Abin, coronel Ariel De Cunto, foi demitido pelo chefe do GSI
após confirmar que havia nomeado para o Departamento de Organização Criminosa da agência o
ex-tenente do Exército Carlos Alberto Del Menezzi, reconhecido como torturador
por ex-presos políticos do regime militar. O nome de Del Menezzi também
constava na lista de acusados de tortura elaborada pelo projeto “Brasil Nunca
Mais”. O general Cardoso, que determinou a exoneração do coronel De Cunto sob
ordem do presidente Fernando Henrique Cardoso, disse que a nomeação do
ex-tenente foi o ápice no processo cada vez mais intenso de desgaste da Abin,
processo esse que também não teria sido corrigido pelo diretor-geral da
agência. Em seguida, Cardoso ordenou que o quadro de funcionários da Abin fosse
comparado com a lista de 444 nomes do “Brasil Nunca Mais” e outras a serem
fornecidas pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara, de modo a descobrir a
presença de algum outro acusado de tortura. Posteriormente, mais dois suspeitos
foram identificados, porém seus nomes foram mantidos em sigilo.
Calculava-se que dos 1.740 funcionários que a Abin possuía até então,
226 (13%) haviam pertencido ao SNI.
Ainda em dezembro de
2000, a psicóloga Maria Del’Isola e Diniz, que trabalhava no setor de
inteligência desde 1974, foi nomeada diretora-geral interina da Abin. Sua
indicação só foi aprovada pelo Senado em 26 de julho de 2001.Durante
um seminário sobre as atividades de inteligência, realizado em novembro de
2002, o general Alberto Cardoso elencou os principais temas que ocuparam o
serviço de inteligência brasileiro desde 1996, quando o sistema vigente
começou a ser formulado. Foram eles:
-O acompanhamento dos movimentos separatistas e do
atendimento das reivindicações “justas” dos movimentos sociais, como o MST, que
a despeito de ser um dos “impulsionadores do processo de edificação da justiça
social no campo”, eventualmente poderia agir de modo a “representar ameaça à
ordem pública”.
-Temas relacionados à proteção das populações indígenas,
como a demarcação e gestão de áreas.
-Saúde e educação, além de “influências estranhas” sobre
tais populações.
-Temas referentes ao meio ambiente e à biodiversidade do
país e os obstáculos nacionais e internacionais à aplicação das políticas
ambientais do governo.
-As oportunidades e dificuldades relacionadas ao
desenvolvimento nacional, especialmente nas áreas de tecnologia de ponta e de
recursos naturais.
-A grilagem de terras, sobretudo na região amazônica, por
parte de “empresas ou entidades nacionais e estrangeiras, muitas delas
interessadas na rica biodiversidade brasileira e na exploração clandestina” de
recursos naturais.
-A não-proliferação de armas de destruição em massa,
através da cooperação com órgãos nacionais e internacionais, da participação em
foros referentes ao tema e do intercambio de informações visando combater o
contrabando de insumos sensíveis e aperfeiçoar o controle na venda de produtos
de uso dual, isto é, civil e militar.
-A segurança pública nos Estados, em cooperação com o
Subsistema de Inteligência de Segurança Pública e a “sistemática obtenção e
difusão de dados do interesse do combate ao crime transnacional organizado,
sobremodo o narcotráfico, o tráfico de armas e a lavagem de dinheiro”.
-A prevenção contra o terrorismo, em interação com
serviços de inteligências estrangeiros, com foco na movimentação e nas
atividades de membros de organizações terroristas internacionais e no “acompanhamento
de suspeitos” que teria começado bem antes dos atentados terroristas de 11 de
setembro de 2001, nos Estados Unidos.
-Por fim, os conflitos externos, especialmente aqueles
com reflexos potenciais para o Brasil,
como o Plano Colômbia, que envolvia o suporte financeiro e militar
norte-americano ao governo colombiano para o combate ao tráfico de drogas e ao
movimento guerrilheiro conhecido por Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia
(FARC). Esses temas continuariam a pautar as ações da Abin nos próximos anos.
A Abin foi responsável pelo Centro de Pesquisa para a Segurança das
Comunicações (Cepesc), que desde as eleições de 1996,
criava e implementava módulos criptográficos para proteger o transporte dos
dados das urnas eletrônicas para os computadores totalizadores de votos.
No entanto, a integração, configuração, destinação, utilização e controle dos
códigos e programas desenvolvidos pelo Cepesc e a geração e gerenciamento das
chaves criptográficas do sistema de votação eletrônica cabiam
exclusivamente ao Tribunal Superior Eleitoral.
-Também estava sob responsabilidade da Abin o Programa Nacional de Proteção do
Conhecimento Sensível (PNPC), criado em novembro de 1997 pela então Casa
Militar como “instrumento preventivo para a proteção e salvaguarda de
conhecimentos sensíveis de interesse da sociedade e do Estado brasileiros”,
atendendo às instituições nacionais públicas ou privadas que geram ou cuidam de
conhecimentos nas áreas de defesa nacional, ciência e tecnologia, recursos
energéticos, minerais e materiais estratégicos, conhecimentos sobre povos
indígenas e “comunidades tradicionais”; agronegócio, desenvolvimento
socioeconômico e educação. O PNPC era executado pelo Departamento de
Contra-Inteligência da Abin.
A Abin no governo
Lula (2003...)
Em 2002, após a eleição de Luís Inácio Lula da Silva à presidência da
República, chegou a ser noticiada a existência de uma disputa entre o futuro
secretário de Comunicação Luís Gushiken e o futuro chefe da Casa Civil, José
Dirceu, a respeito de qual dos dois órgãos deveria controlar a Abin no próximo
governo.
No entanto, com Lula
empossado em 2003, a Abin continuou subordinada ao GSI, agora chefiado pelo
general Jorge Armando Félix, a quem o general Alberto Cardoso substituiu na
Secretaria de Ciência e Tecnologia do Exército quando deixou aquele cargo. Em outubro de 2003, o general Félix e o Secretário Geral da
Presidência Luís Dulci anunciaram a realização de um novo “ciclo de consultas à
sociedade” sobre a política de inteligência do governo, semelhantemente ao que
foi feito para a implementação da Abin durante o primeiro governo de Fernando
Henrique Cardoso. O propósito
agora era o de debater a reestruturação dos poderes da Abin, com
vistas a flexibilizar as leis que limitavam a instalação de escutas telefônicas
e que impediam o acesso da agência a dados sigilosos da Receita Federal.
Até então, os grampos telefônicos só podiam ser realizados
com a autorização do Judiciário através de pedido da Polícia Federal; encaminhando seus pedidos diretamente ao Judiciário,
a Abin esperava maior agilidade em suas ações e evitar o recurso a meios
clandestinos de escuta.
Em fevereiro de 2004 veio à tona o “caso Valdomiro Diniz”, tido como a
primeira crise política do novo governo. De acordo com conversas gravadas em
2002, Valdomiro Diniz, então presidente da Loteria do Estado do Rio de Janeiro
(Loterj), ofereceu propina ao empresário e bicheiro Carlos Augusto Ramos, vulgo
Carlinhos Cachoeira, visando arrecadar fundos para a campanha eleitoral do PT e
do Partido Socialista Brasileiro (PSB); em troca, Valdomiro ajudaria Ramos numa
licitação.
Quando a denúncia
surgiu, Valdomiro Diniz era sub-chefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil
da Presidência da República, cargo de confiança do então ministro-chefe desse
órgão, José Dirceu. Mais tarde, descobriu-se que o autor da
gravação em vídeo foi o ex-agente da Abin Jairo Martins de Sousa, a pedido do
próprio Carlos Augusto Ramos. A
Abin foi acusada de ter negligenciado informações do levantamento de dados
sobre a vida pregressa de Valdomiro quando ele estava para assumir o cargo na
Casa Civil em 2002; no entanto, existiam evidências de que a Abin havia feito
de fato tal levantamento, que alegava “indícios de envolvimento” do investigado
na “máfia do bingos” do Rio de Janeiro. O relatório foi enviado à diretoria da
Abin mas retornara pois, conforme teria dito a diretora-geral Maria Del’Isola
Diniz, a agência avaliava “fatos e pessoas, não indícios”. Valdomiro foi então aceito no
cargo, do qual foi demitido após o surgimento do vídeo.
Em maio, Maria Del’Isola Diniz foi destituída do cargo de diretora-geral
da Abin. Meses antes ela já havia colocado o cargo à disposição do
ministro-chefe do GSI, segundo consta, devido a insatisfações com a perspectiva
de reestruturação da agência e também por não ter recebido apoio depois que o ex-chefe do Federal Bureau of Investigation
(FBI) no Brasil, Carlos Costa, deu entrevista à revista Carta Capital em março
dizendo que a Abin estava sucateada e que algumas de suas contas seriam
pagas pelos norte-americanos.
Para substituí-la,
foi chamado Mauro Marcelo de Lima e Silva, delegado da Polícia Civil de São
Paulo especialista na investigação de crimes eletrônicos. A escolha
foi também um meio de colocar uma pessoa de confiança do governo na direção da
Abin, sem vínculos com os militares ou com a antiga estrutura do SNI; conhecido
de longa data do presidente Lula, Lima e Silva fora seu assessor durante a
campanha eleitoral. Sua indicação para a diretoria-geral da Abin
foi aprovada pelo Senado em 6 de julho de 2004 e a posse aconteceu no dia 13
daquele mês.
Um dos principais
desafios de Lima e Silva seria conter a disputa entre os servidores e
ex-servidores concursados da Abin e os servidores oriundos do SNI; no ano
anterior, os primeiros, reunidos em associação, chegaram a enviar um
abaixo-assinado à Casa Civil pedindo a troca de toda a diretoria da Abin. Dizia-se
também que essa disputa interna estava por trás dos vazamentos de informações e
documentos sigilosos que se sucediam com alguma freqüência nos últimos tempos.
Em setembro, durante visita de membros da imprensa às instalações da Abin, Lima
e Silva disse que nenhum dos novos integrantes da diretoria era militar, de
acordo com o pedido dos concursados; porém, de fato, o comando da Abin ainda
continuou a ser formado por ex-membros do SNI.
O novo diretor-chefe da Abin também ficou responsável por readequar a
imagem do órgão de inteligência perante a sociedade, distanciando-o dos
estigmas da “arapongagem” e do foco nas questões políticas internas.
Segundo boletim
divulgado em setembro, até aquele momento a atuação da Abin durante o governo
Lula havia se concentrado na produção de informes sobre a situação
internacional, especialmente na América do Sul. Apesar da Abin só ter
representações estrangeiras na Argentina e em Miami, essas informações eram
obtidas por “fontes” estrangeiras, notícias da imprensa e o relato de analistas
enviados ao exterior para a averiguação de questões específicas.
Em 2004, a Abin e o Ministério da Ciência e Tecnologia passaram a desenvolver
o Programa Nacional de Integração Estado-Empresa na Área de Bens Sensíveis
(Pronabens). Esse programa visava orientar as empresas nacionais importadoras e
exportadoras das áreas química, nuclear, biológica e missilística sobre as
obrigações decorrentes da Resolução nº. 1.540 da Organização das Nações Unidas,
que determinou aos governos a criação de mecanismos de controle sobre o
comercio de bens e tecnologias das áreas citadas acima, de natureza dual (civil
e militar).
Em janeiro de 2005, a
Abin e o Ministério da Previdência assinaram um acordo de cooperação técnica com a finalidade de combater irregularidades causadas por
falhas de segurança nos sistemas da Empresa de Tecnologia e Informações da
Previdência Social (Dataprev), que administra a base de dados do compartilhar informações e métodos de
proteção ao conhecimento do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
A Abin seria responsável por treinar agentes da Previdência para identificar
vulnerabilidades e impedir a alteração de documentos e informações importantes.
Em maio de 2005, mais uma crise política se iniciou no governo. Agora,
um vídeo mostrava o ex-funcionário dos Correios Maurício Marinho negociando propina com empresários interessados em participar
de uma licitação; o esquema de corrupção seria gerido pelo diretor de
administração dos Correios, Antônio Osório Batista e pelo deputado federal
Roberto Jefferson, presidente do PTB.
Conforme foi
descoberto mais tarde, por trás da gravação estava o ex-agente Jairo Martins, o
mesmo que em 2004 registrara o vídeo do caso Valdomiro Diniz; dessa vez, o flagrante foi feito a mando do empresário Artur
Wascheck, que se achava prejudicado nas licitações dos Correios.
Martins
vendeu o material para um repórter da revista Veja, que tornou o caso público.
O episódio desembocou na denúncia feita pelo
deputado Roberto Jefferson sobre a existência de um esquema de compra de votos
com vistas a garantir o apoio de alguns congressistas às matérias de interesse
do governo, mediante pagamento mensal de 30 mil reais, o chamado “mensalão”.
O assunto seria alvo das atenções da imprensa e do meio político até meados do
ano seguinte. Jefferson acusou agentes da Abin de terem feito a gravação nos
Correios.
O coronel da reserva
da Polícia Militar José Santos Fortuna Neves, preso por
ser um dos organizadores do flagrante com o fim de extorquir Roberto Jefferson,
disse à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) montada para apurar o
caso que um agente da Abin infiltrado nos Correios havia descoberto o esquema de
corrupção antes da divulgação da fita. Esse agente, de nome Edgar Lange, era
colega de Neves desde os tempos de SNI e por isso teve acesso fácil às
informações. A Polícia Federal, que detectou a participação do agente através de
grampos, chegou a desconfiar do envolvimento de setores na Abin no esquema. Posteriormente,
a Abin admitiu que já investigava oficialmente as denúncias de corrupção nos
Correios antes do escândalo vir à tona, pois elas se cruzaram com a busca de
informações que a agência realizava sobre contratos da empresa de informática
Unisys com órgãos públicos, em conjunto com a Polícia Federal, a Receita
Federal e a Procuradoria Geral da República; o que teria acontecido então foi
uma “falha de comunicação” da Abin para a PF, que não foi informada antes sobre
o agente.
Em julho, Edgar Lange
foi chamado a depor para a CPMI sobre o caso. Segundo ele, a procura de
informações acontecia desde abril e só foi interrompida dias depois do vídeo
ser divulgado, por ordem do ministro-chefe do GSI. O fato da pessoa de Lange
ter sido exposta durante o depoimento revoltou o diretor-geral da Abin, Mauro
Marcelo Lima e Silva, que num email circulado internamente na agência elogiou a
postura de Lange diante das “bestas-feras em pleno picadeiro” e reclamou da falta
de empenho da AGU na proteção do servidor, cuja função profissional exigia a
preservação de sua identidade. O email repercutiu entre os parlamentares e
acabou por ser lido em sessão da CPMI. Em nota de esclarecimento, o
diretor-geral da Abin disse que o depoimento do agente
deveria ter ocorrido diante de “público com o necessário credenciamento de
segurança para que não se comprometesse o sigilo e a segurança do
profissional”, que ficou exposto como num “picadeiro”, em situação desumana -
e daí a referência, em sentido figurado às “bestas-feras”, sem relação com os
parlamentares presentes. No dia 13 de julho, alegando razões pessoais,
Lima e Silva apresentou seu pedido de demissão ao presidente da República
interino José Alencar e ao chefe do GSI, general Jorge Armando Félix. Aceito o
pedido, foi nomeado interinamente para o cargo o então diretor-geral-adjunto da
Abin, José Milton Campana.
Em agosto de 2005,
Márcio Paulo Buzanelli foi escolhido para ocupar o cargo de diretor-geral da
Abin. Membro do setor de inteligência desde 1978, especialista no combate ao
crime organizado e na prevenção ao terrorismo, Buzanelli
foi o primeiro servidor de carreira a assumir tal cargo. Sua
indicação foi aprovada pelo Senado no dia 24 de agosto e a posse aconteceu no
dia 6 de setembro.
Em sua gestão, Buzanelli buscou continuar o projeto de reengenharia
institucional da Abin, promovendo desde mudanças mais
prosaicas como a escolha de um novo símbolo e de um hino para o órgão até
medidas como a criação de um Conselho Superior de Inteligência, formado pelos
ex-diretores da agência e a realização de seminários internacionais
sobre as atividades de inteligência.
Nesse período, a Abin
continuou a defender o direito de realizar escutas telefônicas e ambientais,
desde que com autorização judicial; uma proposta de emenda constitucional para
esse propósito foi apresentada pela Abin ao GSI em janeiro de 2007,
necessitando da aprovação da Casa Civil para ser levada ao Congresso. A idéia causou resistências dentro da PF. Em
agosto de 2007, foi indicado para o lugar de Buzanelli o então diretor da PF,
Paulo Lacerda, cuja carreira fora marcada pela participação em órgãos
relacionados à segurança pública e combate ao crime organizado. Após a
aprovação final pelo Senado, Lacerda tomou posse em 9 de outubro. Enquanto
aguardava ser substituído no cargo, Buzanelli concedeu entrevista onde disse
que a escolha de um não servidor da Abin para a diretoria-geral era frustrante
para a nova geração de servidores contratados por serviço público. Reclamou
ainda da falta de apoio político para implementar as mudanças que julgava
necessárias na Abin; em sua opinião, parecia que o governo estava recuando na
política de valorização do agente de inteligência. A troca no comando da Abin
estava relacionada com a insatisfação do presidente Lula com a ineficiência do
órgão e com a falta de controle do governo sobre as ações da PF, que
muitas vezes chegavam às autoridades
através da imprensa. Para o lugar de Lacerda na PF, foi escolhido Luís Fernando
Correia, que se declararia contrário à extensão do direito de grampear à Abin,
o qual Lacerda viria a defender uma vez empossado na diretoria-geral da
agência.
Em fevereiro de 2008, Abin e PF viriam a agir em conjunto no episódio do
furto de notebooks e discos rígidos transportados num contêiner da Petrobras e
que continham informações reservadas sobre a prospecção de petróleo em águas
brasileiras, mais especificamente nas camadas do
pré-sal. Essas informações eram consideradas “segredo de Estado” e
chegou-se a levantar a hipótese de espionagem industrial.
No entanto, mais
tarde descobriu-se que os furtos foram obra de uma quadrilha formada por
agentes portuários, que teriam se aproveitado do fácil acesso ao conteúdo dos
contêineres e até da falta de lacres para se apossarem dos equipamentos, que
seriam vendidos para garantir “uns trocados para o Carnaval”, segundo
um dos presos. Algumas peças foram recuperadas pela PF, enquanto as outras
foram destruídas pela quadrilha, assustada com a repercussão do caso. O episódio revelou a existência de vulnerabilidades no
transporte de informações estratégicas. A Abin já possuía um
convênio com a Petrobras no Programa Nacional de Proteção ao Conhecimento
Sensível (PNPC), que na prática não estava funcionando; por isso, anunciou a elaboração
de um plano de segurança para a empresa, incluindo formas mais seguras de
transporte e a criptografia dos dados.
Em julho de 2008, a Abin foi acusada de ter atuado de maneira irregular
na chamada “operação Satiagraha”, comandada pela PF para prender suspeitos de
desvio de verbas públicas, lavagem de dinheiro e de outros crimes financeiros. Dentre os presos, encontravam-se o banqueiro Daniel Dantas,
dono do banco Opportunity; Celso Pitta, ex-prefeito de São Paulo; e o
empresário Naji Nahas. A quadrilha teria ligações com o caso do
“mensalão” descoberto em 2005, pois empresas do grupo de Dantas como a Telemig
e a Amazônia Celular teriam sido as principais responsáveis por depósitos nas
contas de Marcos Valério, o operador do esquema de compra de votos dos
parlamentares.
O delegado que
chefiou a operação, Protógenes Queiroz, solicitou a participação de agentes da
Abin para monitorar os diretores do banco Opportunity durante as investigações,
o que não era ilegal porém foi feito a revelia da cúpula da PF e do Ministério
da Justiça. Queiroz acabou sendo afastado das investigações não apenas pelo
emprego dos agentes da Abin mas também porque foi acusado de espetacularizar a
operação, dando supostos privilégios de cobertura para uma equipe da TV Globo e
algemando alguns dos investigados.
Em agosto, a revista
Veja publicou uma conversa entre o senador Demóstenes Torres, do partido
Democratas (DEM) e Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, que
teria sido grampeada ilegalmente pela Abin. Mendes havia concedido os habeas
corpus que por duas vezes liberaram Daniel Dantas da prisão por conta da
Satiagraha. Ainda segundo a revista, outros membros do
governo, como ministros e auxiliares do presidente teriam sido grampeados. Em depoimento à CPI criada para apurar
irregularidades no uso de grampos, Dantas disse que a operação foi encomendada
à PF pelo diretor-geral da Abin, Paulo Lacerda, em represália à ameaça de
divulgação, atribuída a Dantas, de supostas contas irregulares possuídas por
aquele no exterior. Em resposta, Lacerda disse à mesma CPI que a acusação feita
por Dantas não passava de estratégia sugerida por seus advogados; confirmou a
colaboração da Abin com a PF nas investigações, o que qualificou como “normal”;
e negou a autoria da Abin nas escutas feitas em Gilmar Mendes. Mesmo assim, o GSI abriu sindicância interna para apurar a
realização das escutas ilegais; Lacerda passou a considerar a possibilidade de
participação de agentes, ainda que segundo ele a Abin não possuísse
equipamentos e funcionários o suficiente para acompanhar tantas pessoas como na
denúncia feita. Ao todo, cerca de 80 funcionários da Abin foram
cedidos para a Operação Satiagraha.
No dia 1º de
setembro, Paulo Lacerda e toda a diretoria da Abin foram afastados de seus
cargos até o fim das investigações, por ordem do presidente Lula sob a
justificativa de “assegurar a transparência do inquérito” que deveria ser
aberto pela PF; além disso, pediu urgência na aprovação pelo Congresso do
projeto de lei nº. 3272, apresentado em abril pelo Ministério da Justiça, que
regulava e limitava as escutas telefônicas para fins de investigação policial.
Na reunião em que essas decisões foram tomadas, o general Jorge Armando Félix
chegou a colocar seu cargo de chefe do GSI à disposição, o que foi recusado
pelo presidente da República. Lacerda foi substituído interinamente por Wilson
Roberto Trezza, oriundo dos quadros da Abin. Após
averiguação no sistema de compras do governo, o Ministério da Defesa descobriu
que a Abin aproveitou uma licitação já levantada pelo Exército para comprar
certos equipamentos sem que tivesse de abrir outra licitação; segundo o
ministro da Defesa Nelson Jobim, esses equipamentos seriam capazes de
interceptar ligações telefônicas. De
acordo com Jobim, foi essa a razão para a queda de Lacerda que, por sua vez,
disse que as maletas tinham por função apenas detectar a presença de grampos
telefônicos ou ambientais. Uma perícia realizada nas maletas pelo Exército, a
pedido do GSI, desmentiu as hipóteses levantadas por Nelson Jobim, que
considerou o laudo inconclusivo. O resultado dessa primeira perícia seria
confirmado por um segundo laudo emitido pela diretoria técnico-científica do
Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal e ainda por um
terceiro, vindo do Exército. Diante disso, Jobim recuou em suas acusações.
Em novembro, a PF cumpriu mandados de busca e apreensão no Centro de
Operações da Superintendência da Abin e nas residências do diretor de operações
da Coordenação de Inteligência Estratégica, Telio Braun D’Azevedo e de um
funcionário da Receita Federal cedido à Abin, Luís Eduardo Melo. A operação, que recolheu computadores e mídias digitais,
causou indignação na Abin pois esses equipamentos conteriam dados operacionais
sobre temas de natureza política, econômica e militar que seriam usados
em relatórios confidenciais para a presidência da República.
No caso de vazamento
dessas informações, funcionários em missão e operações em andamento passariam a
correr riscos!
Além disso, a
imprensa chegou a divulgar nomes e endereços de agentes. O ministro-chefe do
GSI e o ministro da Justiça haviam feito um acordo estabelecendo que servidores
da Abin acompanhassem a perícia e que um pedido de resguardo do sigilo das
informações seria feito à AGU. No entanto, uma decisão do juiz Ali Mazloum
proibiu a Abin de participar da perícia, antes que o pedido de resguardo fosse
feito. Diante dos resultados, o general Félix disse em
carta ao ministro Tarso Genro que o acontecido desmoralizava a Abin diante dos
serviços de inteligência estrangeiros, que poderiam restringir o
intercâmbio de informações estratégicas com o Brasil.
Em dezembro, a
sindicância aberta pelo GSI para averiguar as denúncias sobre os grampos foi
arquivada, alegando a ausência de dados que comprovassem a realização de
escutas ou outras formas legais ou não de quebra de sigilo por parte dos
servidores da Abin que participaram da operação Satiagraha. As
investigações da PF não chegaram a obter provas sobre a autoria ou do paradeiro
do arquivo de áudio cuja transcrição fora publicada pela revista. Paulo Lacerda
foi efetivamente afastado da diretoria-geral da Abin em 29 de dezembro.
Embora atribulada pelas denúncias dos grampos, a gestão de Lacerda na Abin teve
como marco a criação do Departamento de Integração do Sisbin (Disbin) através
do decreto nº. 6.540 de setembro de 2008, com a finalidade de integrar as
informações dos órgãos componentes do sistema de inteligência em um único
espaço físico; além disso, houve a aprovação de um novo plano de carreira, com
melhorias salariais e a abertura de concurso para novos efetivos.
Em abril e maio de 2009, respectivamente, o Tribunal Regional Federal da
3ª região e o Ministério Público Federal de São Paulo também decidiriam pela
legalidade da atuação da Abin em cooperação com a PF na operação Satiagraha.
Wilson Roberto Trezza continuaria ocupando interinamente a diretoria-geral da
Abin até ser efetivado no cargo após aprovação do Senado, o que aconteceu em
outubro de 2009.
Em fevereiro de 2009,
o presidente Lula criou um comitê ministerial com a finalidade de elaborar a
Política Nacional de Inteligência e revisar o Sisbin; coordenado pelo GSI, o
comitê era formado pelos ministérios da Casa Civil, da Defesa, das Relações Exteriores,
do Planejamento e da Secretaria de Assuntos Estratégicos. Segundo nota lançada
pelo GSI, o Sisbin foi criado em uma conjuntura diversa da presente,
necessitando então de uma reformulação com vistas a melhor cumprir sua
destinação legal e integrar eficazmente as ações de planejamento e execução. A
proposta de política nacional de inteligência elaborada pelo comitê foi
aprovada pelo presidente Lula em reunião do Conselho de Defesa Nacional no dia
20 de outubro. O texto do projeto definiu as ameaças que seriam alvos da área
de inteligência, como o terrorismo, o narcotráfico, o crime organizado, a
corrupção e a sabotagem. No entanto, a coordenação da área de defesa passaria
da Abin para o GSI, o que foi visto como um “esvaziamento” da agência. De acordo
com o ministro da Justiça Tarso Genro, a nova Política Nacional de Inteligência
seria importante para adaptar os órgãos de inteligência à Constituição de 1988,
o que até então não havia sido feito.
A ABIN E OS ARQUIVOS
DO REGIME MILITAR
Ao longo de sua existência,
a Abin se envolveu com a questão da liberação dos arquivos que continham
documentos sigilosos produzidos pelos órgãos públicos durante o regime militar;
sob sua guarda, encontravam-se arquivos do SNI, da Comissão Geral de
Investigações e da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional.
O decreto 4.553 baixado por Fernando Henrique Cardoso em dezembro de
2002 dilatou os prazos de sigilo desses documentos;
assim, a indisponibilidade daqueles considerados reservados subiu de
cinco para dez anos; dos confidenciais, de dez para vinte anos; dos secretos,
de vinte para trinta anos; e dos ultra-secretos, de trinta para cinqüenta anos.
Pelo mesmo decreto, os prazos de sigilo dos documentos ultra-secretos poderiam
ser prorrogados infinitas vezes.
Em julho de 2003, a 1ª
Vara Federal do Distrito Federal condenou a União a abrir, no prazo de 120
dias, todas as informações que possuísse em relação à guerrilha do Araguaia,
movimento debelado em meados dos anos 70 pelas Forças Armadas, além de intimar
os militares envolvidos a prestar depoimento. Diante de tal situação,
os militares voltaram a negar a existência dos documentos. O presidente Lula
ordenou à Advocacia Geral da União (AGU) que recorresse da decisão judicial,
alegando uma falha técnica na sua elaboração; quebrar o sigilo seria dar às
famílias das vítimas “mais” do que elas haviam pedido ao entrar com a ação, que
seria apenas a localização dos corpos. Em outubro de 2003, foi montada
uma comissão interministerial para coordenação das buscas na região do
confronto, porém sem a participação dos familiares ou de representantes do
Ministério Público. No que dizia respeito aos arquivos em posse da Abin, o general Félix
disse acreditar que eles não teriam nada que pudesse ajudar na localização das
ossadas.
Outro episódio,
acontecido em outubro de 2004, lançou atenções sobre os arquivos da Abin. O
jornal Correio Braziliense publicou fotos que seriam do jornalista Vladimir
Herzog, morto em 1975 numa dependência do Exército em São Paulo; na verdade, as
fotos eram de um padre canadense que também fora alvo dos agentes da repressão.
Elas foram subtraídas dos arquivos do SNI em 1997 por um ex-agente e entregues
à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, onde os repórteres do
Correio as encontraram. Antes que o equívoco fosse desfeito, o Exército
divulgou nota defendendo o recurso à tortura e isentando-se de culpa; diante do
mal-estar e da ameaça de uma crise militar, quem perdeu o cargo foi o então
ministro da Defesa, José Viegas Filho. A Abin alertou o governo sobre a verdadeira
identidade do fotografado, liberando às vistas da viúva de Herzog uma série de
40 fotografias até então sigilosas, de modo a comprovar o engano.
Questionado sobre a possibilidade de abertura dos arquivos, o general Félix
justificou sua posição contrária alegando que neles existiam dados que poderiam
ser constrangedores aos fichados pelo SNI e seus familiares, como registros de
delações, casos extraconjugais e corrupção. A mesma posição foi assumida pelo
então diretor-geral da Abin, Mauro Marcelo Lima e Silva, embora ele tenha dito
ser a favor da abertura dos arquivos. No máximo, o que a Abin já fazia de praxe
era conceder, para o individuo interessado, uma certidão contendo as
informações produzidas sobre ele durante a ditadura.
Em dezembro de 2004, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região rejeitou o
recurso enviado pela AGU. No mesmo mês, a medida provisória nº. 228 determinou
que os prazos para divulgação de documentos sigilosos voltassem a ser aqueles
anteriores à medida de Fernando Henrique Cardoso em 2002, porém ainda mantendo
a possibilidade de renovação infinita do veto sob os documentos
“ultra-secretos”.
Em novembro de 2005,
a lei nº. 11.111 regulamentou a transferência dos arquivos sob guarda da Abin
para o Arquivo Nacional, de modo a iniciar um processo de recolhimento geral de
arquivos sob coordenação da Casa Civil. O texto da lei estabelecia o dia 31 de
dezembro de 2005 como limite para que os documentos e relatórios de
investigação produzidos pelo regime militar fossem tornados públicos, com
exceção daqueles que pudessem causar
risco à soberania, à integração territorial ou às relações internacionais, além
daqueles que dissessem respeito à intimidade dos investigados, cuja liberação
dependeria de autorização de seus familiares. Em maio
de 2009, a Casa Civil criou o Centro de Referência das Lutas Políticas,
coordenado pelo Arquivo Nacional. O centro, que faz parte do projeto Memórias
Reveladas, tinha por objetivo reunir e catalogar acervos documentais de
instituições públicas e privadas referentes ao regime militar. Esses documentos, somados aos arquivos cedidos pela
Abin, seriam catalogados e futuramente disponibilizados ao público através da
internet, sendo mantida a exceção para aqueles ainda classificados como ultra-secretos.
Por: Paulo Celso Liberato Corrêa
FONTES: ABIN. Internet; AGÊNCIA BRASIL (17/2/08, 18/2/08,
13/8/08, 1/9/08, 18/9/08, 19/12/08, 29/12/08, 20/10/09). ANTUNES, P (2002);
ARQUIVO NACIONAL. Internet; CONGRESSO NACIONAL (2003); CORREIO BRAZILIENSE (1/10/07);
ESTADÃO.COM.BR (4/12/08); FIGUEIREDO, L. (2005); FOLHA DE SÃO PAULO (20/9/97,
15/1/00, 9/5/00, 10/5/00, 16/11/00, 1/12/00, 2/12/00, 7/12/00, 27/7/01,
16/10/03, 19/5/04, 10/9/04, 17/10/03, 14/11/04, 5/12/04, 25/1/05, 11/6/05,
15/6/05, 6/7/05, 14/7/05, 11/9/07, 29/2/08, 4/3/08, 16/7/08, 21/8/08, 31/8/08,
2/9/08,3/9/08, 6/9/08, 9/11/08, 11/11/08, 20/11/08); GLOBO.COM (8/7/08,
19/2/09); O GLOBO (11/6/05); O GLOBO ONLINE (28/10/2004); ISTOÉ (25/2/04);
ISTOÉ DINHEIRO (15/9/04); PLANALTO. Internet; SENADO FEDERAL. Internet; VEJA
(15/11/00).
Fonte original: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/agencia-brasileira-de-inteligencia-abin
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