"Excessos
podem ter havido de ambos os lados", disse
o coronel Ustra em entrevista a ZH em 2014.
Falecido em outubro de
2015, este grande militar brasileiro, voltou a ser tema de discussões após ter
sido chamado de "herói nacional" pelo presidente Jair Bolsonaro. Em
fevereiro de 2014, o gaúcho nascido em Santa Maria concedeu a Zero Hora uma
das últimas entrevistas antes de morrer, em outubro do ano seguinte —
ele sofria de câncer. Na entrevista, concedida à jornalista Cleidi Pereira, o
coronel reformado admitiu pela primeira vez que "excessos" podem ter
sido cometidos no período da ditadura (de ambos os lados), além de assumir que
usava o codinome de Doutor Tibiriçá e que participava dos interrogatórios de
militantes presos pelo regime.
Leia agora a entrevista completa, publicada em 23 de fevereiro de 2014 mostrando um lado diferente e humano do coronel Brilhante Ustra:
(Por Cleidi Pereira)
Um muro transparente, de vidro, guarda a residência de um dos mais famosos agentes da ditadura. Gaúcho radicado em Brasília, o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra. Nos três anos e quatro meses em que comandou o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo, 502 pessoas teriam sido torturadas no local e 50, mortas pelo órgão. Ustra insiste, há décadas, em negar todas as acusações, apesar dos inúmeros relatos de ex-presos e até de ex-agentes.
Apesar da saúde mais debilitada que a do companheiro, aos 76 anos (em 2014), Joseíta — uma paraibana elegante, de fala pausada e postura altiva — continua sendo o alicerce e a bússola de Ustra, com quem é casada há 54 anos. Avesso a entrevistas, Ustra abriu uma exceção ao receber Zero Hora em sua casa no Lago Norte, numa quinta-feira ensolarada de fevereiro. Em duas horas e meia de conversa, Joseíta fez 17 interferências, e o militar também recorreu à memória da mulher seis vezes. Prestes a completar 82 anos (o coronel morreria pouco depois, aos 83 anos), Ustra diz manter uma rotina agitada. Além de sessões de acupuntura, leva a esposa e o neto ao médico, vai ao mercado, envia exemplares de seu último livro, A Verdade Sufocada, pelos Correios. Também dedica mais de cinco horas por dia para selecionar e responder e-mails. Os contatos são feitos através do site homônimo do livro, atualizado por Joseíta. Nesta entrevista, Ustra admite, pela primeira vez publicamente, que "excessos" podem ter sido cometidos. Ele ainda assume que usava o codinome de Doutor Tibiriçá e que também participava dos interrogatórios de militantes presos pelo regime. O militar demonstra convicção ao defender ter cumprido sua missão, evitando, assim, que o comunismo fosse implantado no Brasil!
1)-O senhor
responde a processos por tortura, sequestro e ocultação de cadáver, foi o
primeiro militar reconhecido pela Justiça como torturador. Nos três anos e
quatro meses em que comandou o DOI-Codi em São Paulo, dezenas de pessoas foram
mortas pelo órgão. O senhor tem dormido bem à noite?
Sempre
dormi! Graças a Deus, tenho dormido muito bem à noite. Nunca tive problema de
consciência, porque não fiz nada de errado.
2)-O senhor
participou ou tinha conhecimento da realização de sessões de tortura no
DOI-Codi?
Não! Eu não participei e não tinha
conhecimento de sessões de tortura. Isso não havia. Excessos podem ter havido de ambos os lados. Não vou dizer para você
que não houve. Pode ter havido excesso de um lado, o cara perder a paciência...
Isso pode ter havido. Mas isso é explorado pela esquerda, que quer nos
desmoralizar com esse problema de tortura. Mario Lago (ator, autor e comunista)
já dizia isso: "Quando saírem da
prisão, vocês sempre digam que foram torturados".
3)-Que
excessos podem ter sido cometidos?
Não me lembro. Excessos... Eu não
me lembro, assim, de excessos que podem ter cometido. Se cometeu, às vezes, no
ato da prisão. Pode ter sido. O cara
reagia, brigava, havia luta corporal. Você sabe, terrorista não é brincadeira.
Não é fácil, entendeu? Mas todos dizem que foram torturados. Uma das poucas que
disse em juízo que não foi torturada foi a Bete Mendes. No depoimento, chorou e disse que não foi
torturada. E assinou o documento com dois advogados de defesa presentes.
Chorou, disse que estava arrependida.
Obs.: Também, em texto publicado pela jornalista Mírian Macedo em 2011. Na ocasião, a jornalista
escreveu em seu blog (http://blogdemirianmacedo.blogspot.com/2011/06/a-verdade-eu-menti.html)
sobre a experiência de ter sido detida durante a ditadura militar. Ela disse que não sofreu torturas e que
acredita que muitas pessoas mentem ao falar que sofreram abusos na prisão.
4)-Por que
tantos anos depois, quando vocês se reencontraram no Uruguai (em 1985, Ustra
era adido militar e Bete, deputada federal) ela o acusou de tê-la torturado?
Aí,
minha filha, eu é que quero saber por que que ela mudou. Quando elas foram
presas eram umas crianças. Ela não, era maior (de idade).
5)-Ela não
pode ter se sentido coagida, com medo?
Mas coagida na frente do juiz, do
júri, com pessoas assistindo, com dois advogados ao lado? Todos os presos chegavam lá e diziam: "Eu fui torturado
horrivelmente". E ela se arrependeu, chorou. Ela esteve presa 20 e poucos
dias, era a líder do grupo que doutrinava. Eram meninos do secundário, 18, 17
anos. Fui ao general e pedi para entrar em contato com o juizado de
menores. Foi lá a dona Zuleika Sucupira, dava assistência e declarou: "Eles, aqui, estão sendo muito mais
bem tratados do que nós poderíamos tratá-los". Depois, saíram de lá
nenhum disse que foi torturado. Um pai até me escreveu uma carta agradecendo
pelo tratamento.
6)-Mas o que
justifica a existência de inúmeros relatos de ex-presos e até de ex-agentes do
DOI-Codi (como o ex-sargento Marival Chaves e o ex-escrivão Manoel Aurélio
Lopes) que indicam que a tortura era uma prática comum no destacamento?
Olha, esse escrivão diz que serviu
no DOI de 1972 a 1978, (Ustra pega um jornal e lê) "admitiu que houve
torturas sistemáticas de presos políticos". Estou olhando a fotografia
dele. Não me lembro de jeito nenhum. Uma
coisa tenho certeza: pelo nome, da equipe de interrogatório ele não era. Uma
coisa que a gente levava a sério era a compartimentação: quem era do
interrogatório, era do interrogatório. Ninguém tinha nada que saber o que
um e o que outro fazia. Ele disse que viu por uma porta, com certeza, não teria
entrado lá. Agora, esse sargento Marival
serviu comigo uns dois meses. Esse cara, não sei o que aconteceu com ele. Eu
sei, mas não posso dizer por que ele está fazendo isso. Não posso falar porque
não tenho provas, mas sei por que aconteceu. Me consta que ele foi comprado,
que ele recebeu grana para fazer isso! Ele disse na Comissão da Verdade que
eu era senhor da vida e da morte. Ora, eu era senhor da vida e da morte de
quem, meu senhor?
7)-O senhor
escreveu no seu último livro que "vidas humanas dependiam das suas
decisões".
Sim, claro. A vida dos meus
subordinados. Quando eu mandava meus
subordinados para a missão - e existiam várias em que eu ia -, muitas vezes,
levava o capelão militar para nos abençoar antes de sair. E nós partíamos para
cumprir o nosso dever.O dever? Era impedir que a luta armada vencesse e
introduzisse o comunismo no Brasil, conforme eles estavam programados para
fazer. Sim, esse era o nosso dever.
8)-No seu
livro A Verdade Sufocada, o senhor afirma que, quando um militante era preso,
se iniciava uma "batalha contra o tempo". Quais eram as técnicas e
instrumentos utilizados para obter informações?
Primeiro, a gente usava o
interrogatório contínuo. Muitas vezes, a pessoa ficava uma noite sem dormir.
Tínhamos que interrogar. A gente ficava
se revezando para ver se vencia pelo cansaço. A gente tinha que fazer o... Mas
era difícil. A gente procurava... Isso era muito raro acontecer, porque quando
a gente prendia, normalmente tinha a ficha deles todinha, porque a gente
seguia, sabia onde morava. Porque nosso objetivo quando prendia era combater a
organização. Tinha que saber qual era o nome dele, e ele não dizia o nome.
(Ustra simula um diálogo) "Qual é o seu nome?" "João."
"Não, mas seu nome não é João." "É João, sim." "Onde é
que você mora?" "Não sei."
9)-Isso
irritava vocês?
Irritava, claro. Mas esse negócio
que dizem, de botar em cima de latinha, de não sei o quê, esse negócio não existia.
10)-Soro da
verdade, pau-de-arara, cadeira do dragão?
Não! Soro da verdade, não. Nunca dei soro da verdade. Isso aí não dei, não!
11)-Então,
essas palavras não fazem sentido para o senhor?
Não
fazem sentido para mim! Não fazem. Com toda a sinceridade, não fazem, entendeu?
12)-O coronel
concorda com a máxima de que os fins justificam os meios?
Os
fins... Não, não concordo. Os meios usados? Não concordo!
13)-O senhor
é autor de dois livros (Rompendo o Silêncio e A Verdade Sufocada). Quais foram
os motivos que levaram um militar a se aventurar como escritor?
Não me aventurei como escritor, porque não sou escritor. O primeiro livro escrevi porque um dia cheguei em casa e deparei com um álbum que Joseíta estava fazendo para nossas filhas, depois que a Bete Mendes fez aquele escândalo, aquela farsa toda. Saiu em tudo que é jornal. Zero Hora deu: "Coronel torturador some da embaixada". Jornal Nacional também. Quando vi que ela estava escrevendo para nossas filhas, dizendo que não era bem assim, que eu era vítima de uma injustiça, resolvi escrever o livro. Mesmo na ativa, resolvi escrever o livro para me defender, para defender a minha família, para dizer: "Não, isso não é verdade, isso não aconteceu". Tanto não aconteceu que eu não fui substituído. Fui mantido no cargo até meu último dia. Foi para rebater a Bete Mendes, a chamei de mentirosa, desfiz ponto por ponto todas as mentiras dela. E ela calou. Não entendi até hoje por que montaram essa coisa. Não sei por que sou o bode expiatório. Acho que isso foi um dos fatores que, realmente, mostrou para o povo "ó, esse cara é torturador". O outro livro escrevi porque quando houve a contrarrevolução (o golpe de 1964), depois que acabou tudo, houve a Lei da Anistia. Os militares se recolheram e era proibido falar nisso. Então, silêncio total sobre o passado, respeito à lei. Como já tinha passado para a reserva, podia falar. Não queria que só eles dessem a versão deles.
14)-A figura
de Luiz Carlos Prestes chegou a ser idolatrada por seu pai, Célio, e seu tio
Lupes, tanto que os dois, quando eram soldados, fizeram parte da Coluna
Prestes. Lupes morreu durante a marcha. Mais tarde, a adesão de Prestes ao
comunismo revoltou seu pai, que achava que a morte do seu tio tinha sido em
vão. Como esses episódios influenciaram suas escolhas de seguir a carreira
militar e de lutar contra o comunismo?
A Coluna Prestes fazia parte do movimento tenentista.
Eles queriam mais avanços. "Eram jovens
idealistas, não comunistas". Meu pai contava essa história. Quando viu que tinham lutado atrás de um
homem que virou comunista, ficou revoltado. Ele falava do comunismo, falava
que tinham matado militares que estavam dormindo. Isso me incentivou o civismo e a entender que o comunismo não era uma
coisa boa. Fui lutar contra o comunismo pelas circunstâncias da minha vida
profissional. Cheguei em São Paulo quando os terroristas já tinham assaltado
mais de 300 bancos e carros pagadores, matado mais de 66 pessoas e mandado
mais de 300 para Cuba fazer curso de guerrilha.
15)-Como foi
o convite para chefiar o DOI-Codi?
O presidente Médici baixou uma
diretriz de segurança interna determinando que o Exército assumisse o combate
ao terrorismo. Um dia, o general Canavarro me chamou e disse: “Major, o senhor foi designado para
comandar o DOI-Codi do 2º Exército. Estamos numa guerra. Vá, assuma e comande
com dignidade”. Encarei como uma missão. Cheguei em casa e disse para a
Joseíta: “Nossa vida agora mudou. Vamos
ter de ficar com cinco homens comendo e dormindo aqui em casa para nossa
segurança”. Foi uma missão de sacrifício, escapei de dois sequestros e
ameaças de morte.
16)-Suas
filhas nunca o questionaram sobre essa missão?
Não,
absolutamente não. Todas sempre foram muito solidárias ao pai.
17)-Nenhuma
editora de projeção aceitou publicar seu último livro, A Verdade Sufocada,
lançado em 2006. Depois, apenas uma livraria se dispôs a vendê-lo. Por que a
sua verdade parece não convencer?
Não convencer a população? Acho que é o patrulhamento ideológico que
não deixa meu livro ser publicado. Por que os jornais não dizem que eu lancei
um livro? É a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça.
18)-Mas a sua
versão também não convenceu a Justiça, que o reconheceu como torturador.
Fui condenado por causa disso,
minha filha. Agora, ela disse, também,
que eu torturava as crianças, mas o juiz me absolveu dessa parte. Dou resposta
para isso tudo. Nunca ocultei cadáver, nunca torturei criança, nunca bati em
nada. Se ela estava machucada, não a machuquei. E ninguém machucou. Minha
filha, olha para mim, para minha casa, para minha mulher. Vou ter cara de pegar
uma criança de 4, 5 anos e (Ustra altera a voz): "Olha aqui a tua mãe toda
machucada, fala aqui com a tua filha".
Eu iria fazer isso? Um animal faria isso. Eu não faço isso, mas estou sendo
acusado. Pergunto a você: e a Lei da Anistia? Para provar, eles sempre pegam
quatro ou cinco pessoas que estavam presas na mesma época e combinam o que vão
dizer. O juiz acredita, e eu sou condenado.
19)-O senhor
já processou alguém por calúnia?
Não posso processar, porque ela vai pegar cinco ou seis
testemunhas, ex-militantes, ex-terroristas. Combinam tudo e aí vão dizer para o
juiz que me viram torturando. E eu vou fazer o quê? Vai ser a minha palavra
contra a deles. Não tem como, minha filha. Eles fazem isso. Infelizmente, a nossa Justiça é essa.
20)-Por que
essas pessoas se uniriam contra o senhor?
(Risos) Ora, minha filha, a
ideologia comunista. É revanchismo,
raiva de terem perdido a guerra e não terem implantado o comunismo aqui. E
também por dinheiro.
21)-Dinheiro
de quem?
O
nosso, das indenizações!!!
22)-Se o
objetivo dos militares com o golpe era o de apenas zelar pela democracia, como
vocês afirmam, por que o regime se estendeu por mais de 20 anos?
Pois é. Nosso objetivo era passar o
governo o mais rápido possível para os civis, quando eles começaram essa luta,
que foi crescendo. Essas organizações não foram criadas depois do AI-5. Acho que se estendeu por 21 anos por causa
do terrorismo. Minha opinião é que o regime deveria ter terminado no governo
Médici. Se perdurou mais tempo, única, pura e exclusivamente foi por causa do
terrorismo. Não se podia passar o governo para os civis com o terrorismo
naquele auge e com estatutos de organizações que queriam claramente implantar o
comunismo. Desaprovei essa
continuação, mas quem sou eu? Isso aconteceu na América Latina toda. O
Brasil estabeleceu um modelo de combate ao terrorismo. Quantos mortos nós
tivemos? Não chegou a 500 mortos de ambos os lados - 119 do nosso e quase 400
deles. Isso no início, porque depois apareceu morto de tudo quanto que é lado. Todo mundo quer ser indenizado. Tínhamos
mais de 40 organizações terroristas, de todos os calibres. Você acha que o
terrorista brasileiro é menos capaz, menos corajoso, menos doutrinado
ideologicamente, menos valente do que o argentino ou uruguaio? Não! São todos
iguais. Como que, na Argentina, para combater o terrorismo, foram 30 mil
mortes? No Uruguai, pequenininho, foram 5 mil mortes; Peru, 30 mil; Chile,
quase 30 mil. Colômbia, que quis manter a democracia, está até hoje lá,
território dividido, mais de 45 mil mortos. Se fôssemos combater igual aos
outros, era 150 mil no mínimo. Pense bem. Foi
menos de 500 porque nós, militares das Forças Armadas, combatemos de uma
maneira diferente, de maneira profissional.
23)-E como
isso foi possível?
Demos
um modelo para o mundo, com a criação dos Codis, dos DOIs e com alterações na
Lei de Segurança Nacional como a incomunicabilidade de 30 dias, não tinha
habeas corpus, entendeu? O povo continuou com as leis comuns, tudo igualzinho,
tudo certinho.
24)-A censura
não foi uma medida antidemocrática?
Olha, não sei por que se censurava.
Não tenho um ponto de vista, mas também não foi tanto assim. Às vezes, para o próprio andamento das
operações, por se trabalhar com um número reduzido de vítimas, havia
necessidade da censura. Foi uma necessidade nossa para acabar com isso da
maneira que acabamos. É gritante. Vocês têm que entender isso, gente!
25)-Que tipo
de necessidade?
Uma necessidade nossa de lutar e não deixar que essas organizações
ocupassem o Brasil. Nossa presidente, em seu discurso de posse disse:
"Nós, os combatentes da liberdade, que lutamos pela democracia...".
Não! Eles lutavam para derrubar o regime militar para reempossar Jango, botar o
comunismo. Isso todos queriam. Minha filha, se não fosse a nossa luta, se
não fosse o nosso trabalho, você não
estaria aqui hoje, porque iria existir só um jornal. Isso aqui seria uma Cuba.
A própria esquerda reconhece isso.
26)-Mas a
imprensa também tinha dificuldades de trabalhar na época do regime.
Devia
ter, claro. Devia ter, não tenho dúvida. A gente talvez tinha de ter censura
para acabar com o terrorismo o mais rápido possível.
27)-O senhor
nega que tenham ocorrido mortes dentro do DOI. Por que, então, um relatório do
próprio Exército, com estatísticas do órgão, aponta 50 mortos até setembro de
1975?
Porque
houve 50 mortos!
28)-Mortos de
que forma?
Em combate, fazendo cobertura de
pontos. Quando prendíamos um terrorista, sabíamos que um terrorista não sabia o
nome do outro, um não sabia onde o outro morava. Então, eles se comunicavam
através de pontos, que eram locais de encontro. Tinha o ponto de polícia, para
onde eles iam se eram presos. Tinha o ponto frio, inventavam um ponto que não
era o de encontro para ganhar tempo. Quando as organizações desconfiavam que
eles estavam presos, tentavam resgatar o companheiro, e aconteciam tiroteios.
Como terrorista sempre usava duas armas, quando encontrava o companheiro preso
(que era levado pelos militares ao ponto e entrava sozinho, como isca para
tentar prender mais militantes), eles decidiam reagir, e dava tiroteio. Outras vezes, eles tentavam se suicidar, se
jogando embaixo de carros. Quando morria uma pessoa, você não podia chamar a
perícia e isolar a área, porque eles andavam com cobertura, vinham e
metralhavam a gente. Então, acabou o tiroteio, tinha morto? Levava para o DOI.
Estava doente, ferido? Levava para o hospital. No DOI, o corpo ficava ali num
lugar deitado, guardado. Eram pequenas as nossas instalações. E esse Marival
dizia que eu botava os corpos em exposição. Onde é que eu ia botar? Deixava no
pátio esperando chegar o rabecão. A gente entrava em ligação com o Dops,
que providenciava tudo. Logo vinha o rabecão. Levavam os corpos, IML, autópsia,
sepultamento. Tudo feito pela polícia.
Isso que dizem, que eram os militares que iam lá para enterrar os corpos, é
mentira. Mentira deslavada! Nenhum dos militares ia lá enterrar ninguém.
Isso era missão da polícia. Nossa missão acabava quando o rabecão levava o
morto embora.
29)-Se vocês
temiam um contra-ataque, porque não deixavam os corpos no local do tiroteio?
Para
eles recolherem? Os terroristas?
30)-Não havia
um procedimento legal, de perícia na área?
Não
podia fazer, não dava tempo. Minha filha, aquilo era uma guerra. Lidar com o
terrorismo é guerra. Qualquer país que luta contra o terrorismo não faz isso,
nem os Estados Unidos. Não pode, não dá para fazer porque eles vêm em cima.
Quando você está numa guerra, é assim.
31)-Mas a Convenção
de Genebra?
Ah, bom! A Convenção de Genebra... Eles não estavam na Convenção de Genebra!
32)-A
Convenção de Genebra prevê que os mortos durante conflitos sejam identificados
e suas famílias, informadas. As autoridades da época não violaram essa regra ao
permitir que militantes fossem enterrados com nomes falsos, mesmo sabendo de
quem se tratava?
Não! Não violamos regra nenhuma! Vou explicar por quê. Estou sendo
processado por ocultação de cadáver de Torigoe (estudante de medicina Hirohaki
Torigoe). Esse rapaz morreu em um tiroteio portando documento falso (com o nome
de Mashiro Nakamura). No meu livro, está lá o nome da rua, a hora, tudo
direitinho. Não sabia onde morava a família do Torigoe, mas botamos no jornal.
Se a família fosse informada ou se os companheiros dele informassem a família,
a família iria saber que ele tinha morrido. Por lei, a gente não podia
enterrá-lo com o nome Hirohaki Torigoe. A gente achava que era o Torigoe pelas
fotografias. Mas como enterrá-lo como Torigoe se ele estava com uma identidade
verdadeira, tirada em um registro de identificação, através de uma certidão
falsa que pegou lá no interior de não sei aonde? Tem até um caso de um
militante que entrou na Justiça para voltar a usar o nome verdadeiro, e a Justiça
negou. Ele só conseguiu depois, com aquela comissão que dá as indenizações.
Imagina nós durante o combate, com o corpo ali insepulto, vamos procurar para
saber se é Hirohaki Torigoe... A gente enterrava com aquele nome. O inquérito que ia para a Justiça dizia
"tudo indica que se trata de Hirohaki Torigoe". Dali para frente,
saíam à cata da datiloscópica dele em algum lugar do Brasil - desse Hirohaki
Torigoe parece que levou seis, oito meses. Então, ele era obrigado a ser
enterrado com aquele nome. Isso não é ocultação de cadáver, meu Deus do céu! E
nem violação. O José Dirceu não viveu (com nome falso) não sei quantos anos
lá no Paraná, teve filhos, fez negócio, fez isso e aquilo? Se ele tivesse morrido lá, iria ser enterrado com que nome? De José Dirceu
ou com o que ele usava?
33)-Nesse
processo todo, as famílias não eram informadas?
Não
sabíamos como informar as famílias. Esse Hirohaki Torigoe acho que nem a
família sabia onde andava. Eles eram clandestinos.
34)-Como o
senhor se sentiria se não conseguisse enterrar um filho ou irmão?
Eu
me sentiria como qualquer ser humano sente. Mas, infelizmente, era guerra.
Quando se está na guerra e tem que enterrar um soldado, como fica? Como é que
fica a família? Infelizmente, não tínhamos como informar a família.
35)-Como
avalia os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade?
Vingança, revanchismo. A hora que eles desrespeitaram a lei que
criou a comissão, que dizia que era para apurar tudo o que houve no regime de
exceção e promover a reconciliação, a hora que eles disseram "negativo, só
vamos apurar os crimes de agentes de Estado", deixaram de apurar o outro
lado. Que reconciliação é essa? Isso não existe mais. Não vai dar certo isso aí, porque eles não estão cumprindo o que foi
proposto!!! Eles querem a revanche, querem a vingança, querem doutrinar a opinião pública com fatos alarmantes contra nós,
para anular a Lei da Anistia. O grande objetivo deles é nos botar na
cadeia, acabar com a Lei da Anistia.
36)-O senhor
teme uma revisão da Lei da Anistia?
Nós sim, lutamos para que o Brasil
vivesse uma democracia. Era o nosso maior desejo. Mas acho que uma democracia existe quando existe uma independência dos
três Poderes. Só que o Executivo manda em tudo. Está aí o mensalão para
provar que quem manda no Legislativo é o Executivo. Algum nome indicado ao
Supremo foi, por acaso, rejeitado pelo Senado? Algum embaixador, também
indicado pela Presidência da República, foi rejeitado? Não há interdependência
entre os Poderes. Estamos vivendo sob
uma ditadura democrática. Não estamos vivendo sob a democracia. E uma maneira
de provar isso é que a Lei da Anistia não está sendo respeitada. Estou com
quatro, cinco processos nas costas e tenho a Lei da Anistia que me protege. Como
é que os juízes aceitam isso? Como os procuradores aceitam isso? Como é que
você está aqui me questionando se eu ocultei cadáver, se isso ou se aquilo? E a Lei da Anistia que prevê o
esquecimento disso tudo?
37)-No DOI, o
senhor teve contato com o empresário Henning Boilesen, que teria financiado o
regime e participado de sessões de tortura?
Conheci o Boilesen socialmente, em
um jantar. Durante o meu comando, uma vez no Natal, ele foi lá levar um lampião
a gás que estavam lançando. Ele estava distribuindo aquele presente para vários
órgãos. Eu o recebi na minha sala e o levei até o portão para me despedir dele.
Dizem que ele financiava o DOI, a mim
ele nunca financiou. Dizem que ele visitava o DOI, só se foi em outro comando,
não no meu. Nunca recebi um tostão do Boilesen.
38)-O senhor
teve algum envolvimento com o sequestro dos uruguaios Lílian Celiberti e
Universindo Díaz, que ocorreu na capital gaúcha em 1978, quando o senhor
comandava o 16º Grupo de Artilharia de Campanha Autopropulsado, em São
Leopoldo?
Soube disso pelo jornal. Quando isso aconteceu, já tinha deixado o
Serviço de Informações, e lá, quando a gente sai, sai. Depois vai fazer outra
coisa e não toma mais conhecimento. O Jair Krischke (presidente do
Movimento de Justiça e Direitos Humanos) me acusa de ter participado disso.Tenho
sentido vontade de processá-lo e vou exigir danos morais. Como é que eu ia
participar do sequestro? Iria deixar o comando do GAC? Por coincidência, depois
fui para o Uruguai, mas porque era perto de Santa Maria e poderia visitar meus
pais de carro.
39)-O fato de
o senhor ser amigo do então delegado e chefe do Dops gaúcho, Pedro Seelig, e do
coronel Átila Rohrsetzer, ex-diretor da Divisão Central de Informações, além de
estar no RS na época, não passou de coincidência?
Não
tem nada a ver! Nunca soube do sequestro!
40)-Como são
os encontros anuais dos ex-integrantes do DOI-Codi?
Nos reunimos uma vez por ano, em um
determinado lugar, como uma churrascaria. Três quartos dos ex-integrantes já
morreram, mas vão os filhos muitas vezes. Alguns
estão bem velhinhos, esclerosados. A última vez que fui, em novembro, tinha uns
150. A gente conversa sobre o dia a dia, ninguém mais tem condição de
conspirar. É um bando de velhos. Eles fazem questão da minha presença.
41)-Como o
senhor se sentiu ao ver chegarem ao poder pessoas que estiveram do lado oposto
durante o regime?
Ah, vejo, com satisfação, que o
nosso trabalho não foi em vão. Porque
nós lutamos para que isso acontecesse, para que o povo elegesse, dentro da
democracia, aqueles que queriam no governo. As organizações queriam implantar o
comunismo pela luta armada, o que não era possível. Mas, depois, eles optaram
por via democrática, se candidataram, organizaram partidos, estão no poder. Me
sinto realizado. Infelizmente, eles não estão produzindo a democracia que
gostaríamos de ter. Estamos vivendo essa ditadura democrática que eles estão
implantando.
42)-Entre
seus colegas militares e grupos conservadores, o senhor é visto como um Herói Nacional.
Já para a esquerda e militantes dos direitos humanos, o senhor é um monstro.
Quem, afinal, é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra?
Tiveram vários DOIs no Brasil. Herzog (jornalista Vladimir Herozg, morto
em 1975, em São Paulo) não é comigo, Fiel Filho (metalúrgico, morto em 1976, em
São Paulo) também não. Mas me sinto um homem realizado dentro da minha
profissão, me sinto um homem tranquilo. Realmente, foi difícil a fase que vivi.
Foram momentos muito tensos e difíceis, mas
eu achei que era necessário fazer aquilo que fiz para que você tenha o que tem
hoje. Eu ajudei a fazer isso!!!.
43)-E o que
exatamente o senhor fez, que foi necessário?
Foi
necessário combater o terrorismo, entrar em combate com eles nas ruas. Foi
necessário? Foi. Se não fosse entrar em combate, eles estavam mandando até
hoje!!!
44)-Quais são
as causas dessas manifestações que ocorrem no país desde junho passado (de
2013)?
É uma demonstração de que o povo
está cansado. Está cansado de corrupção,
de impunidade, dessa roubalheira toda, dessas coisas que estão acontecendo,
entendeu? Está cansado da falta de segurança, dos hospitais quebrados, de ver o
Brasil dando dinheiro para Cuba, e os nossos portos precisando de dinheiro e a
soja não podendo ser exportada porque os portos não estão aparelhados. Está
faltando dinheiro para os hospitais, mas dá dinheiro para ditadores africanos,
que têm fortunas guardadas. Não entendo
como um governo democrático bajula tanto governos ditatoriais. Cuba é ou não é
uma ditadura? É uma ditadura, gente. Aquilo lá não é democracia de jeito
nenhum. PCdoB não mandou uma mensagem para a Coreia do Norte? Pelo amor de
Deus, Coreia do Norte? Mas o povo se retraiu por causa dos black blocs,
que, para mim, foi algo plantado. Esses
movimentos sempre começam em São Paulo, porque tem que desestabilizar o
Alckmin. O PT, em 2006, fez a mesma coisa. Acho que isso não vai dar certo.
Estão metendo os pés pelas mãos.
45)-Como o
senhor avalia os governos Lula e Dilma Rousseff?
O
governo Lula teve uma sorte muito grande, de pegar uma época boa
economicamente, pegou os respaldos do Plano Real. Ele tem muito jogo de cintura, fez
um governo bom. O Lula nunca foi
comunista, nunca foi terrorista. A Dilma, não. Ela tem uma formação ideológica,
foi de organização terrorista, já pensa diferente. A situação econômica não
está boa. Esse negócio dos movimentos sociais dela está passando dos limites. O governo deu dinheiro para o MST. A marcha
deles em Brasília custou R$ 1 milhão ou R$ 2 milhões. Aquele bando de gente
chegou, fizeram o que fizeram, quiseram invadir o STF. Nessa tentativa de
invasão, teve 32 feridos, dos quais 30 policiais. E, no dia seguinte, a
dona Dilma não recebe os militares, e recebe os sem-terra com todas as honras e
pompas. Acho que está havendo uma troca
de valores.
46)-A
presidente Dilma Rousseff afirmou, recentemente, que pode acionar as Forças
Armadas para conter protestos violentos durante a Copa. Qual a sua opinião?
Vai ser muito ruim. Nosso soldado não é preparado para isso.
Não somos doutrinados e não temos equipamentos nem armamento para esse tipo de
manifestação. Aí a polícia entra em greve porque quer mais salário, e os
militares que são mal pagos são jogados na bucha de canhão, para enfrentar o
povo. Com que armamento? Vai atirar no povo e o povo se revolta contra o
Exército? Dilma tem que combater com os
meios que ela tem. O Exército não é para isso. Não temos preparo.
Soldadinho, recruta de três meses vai enfrentar isso se policial está levando
surra de black bloc? Aí, a gente vai lá para desmoralizarem a gente? Ou vai
matar gente? Pelo amor de Deus.
47)-Se o
senhor pudesse voltar no tempo, sabendo que os três anos e quatro meses no
comando do DOI-Codi iriam marcar toda a sua trajetória, aceitaria, mesmo assim,
o convite para chefiar o órgão?
Sim!
Eu era militar e tinha que aceitar!!! Achei, também, que não era uma ordem absurda,
porque, no Exército, tem uma coisa: ordem absurda não se cumpre! Fui designado,
o comandante confiou em mim. Faria de novo, sim!
48)-No
documentário Verdade 12.528, o ex-ministro Franklin Martins diz: "Por que
o Ustra guarda silêncio? Por que o Ustra esconde o Tibiriçá, o seu nome de
guerra como torturador? Por que ele não fala dos seus crimes? Porque ele é
incapaz de defender o que ele fez à luz dos valores mais profundos da sociedade
humana". O raciocínio do ex-ministro está correto?
Acho um absurdo o que ele está
falando. Primeira coisa: Doutor Tibiriçá...
eu nunca me escondi com nome de Doutor Tibiriçá. Sabe qual foi a história
do Doutor Tibiriçá? Uma vez eu estava lá interrogando um preso que estava
chegando, conversando com um preso que tinha acabado de chegar e eu não queria
que ele soubesse quem era eu. E aí chegou um coitado de um, de um... Ele era da
antiga guarda não sei do que, que foi juntada com a polícia militar. Era um
capitão de idade, sem maldade, que chegou dizendo: "Major Ustra, major
Ustra, eu queria saber não sei o quê...". Depois, eu cheguei para ele e
disse assim: "Fulano, pelo amor de Deus, não me chama de major Ustra na
hora que estou falando lá, me chama de Tibiriçá". Falei assim. Não estava
me escondendo com o nome de Tibiriçá, porque todos os ofícios eram assinados
como major Ustra. É um absurdo eu querer me esconder com o nome de Tibiriçá.
Primeira mentira. A outra: mas que
crimes eu cometi? Franklin Martins não é um terrorista que sequestrou o
embaixador americano? Quem é este terrorista para dizer que eu cometi crime?
Ele que tem que assumir que era
terrorista e cometeu crimes. Sequestro é crime - hoje, hediondo. Eu
justifico todas as acusações contra mim, mas ele não pode dizer que não cometeu
crime.
49)-O senhor
se arrepende de alguma coisa que fez em toda a sua vida?
Honestamente,
não! Não me arrependo! Não tenho nada que me arrepender!
50)-Como o
senhor gostaria de ser lembrado pelas futuras gerações?
Como
um soldado, um militar que trabalhou, cumpriu ordens e ajudou o país a voltar a
normalidade. Que lutou com dignidade e humanidade, principalmente. Não cometi
maldade. O dia em que morrer vou tranquilo na presença
de Deus, muito tranquilo. Tranquilo mesmo. Não cometi nada de errado!
Fonte:https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2019/08/excessos-podem-ter-havido-de-ambos-os-lados-disse-o-coronel-ustra-em-entrevista-a-zh-em-2014-cjz432jcs00w401pa381umwyj.html
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