O ainda Padre
Cantalamessa, nessa reflexão, vê a realização do Concílio e a intervenção do Espírito Santo nos
movimentos eclesiais, nas paróquias, nas novas comunidades!
Por Antonio Gaspari - CIDADE DO VATICANO, sexta-feira, 14 dezembro de 2012
"Jesus
não nos deu palavras mortas, mas nos deu palavras vivas que alimentam, que se deve fazer viva e alimentar e manter vivas ao longo do tempo”.
Com esta citação do poeta francês Charles Péguy, Padre Raniero
Cantalamessa, O.F.M.Cap., Pregador da Casa Pontifícia, tentou explicar o
significado mais profundo de uma "tradição viva", como a chamava
Santo Irineu, que se expressa no Concílio Vaticano II.Na segunda pregação de Advento pronunciada hoje na Capela
Redemptoris Mater na presença do Papa Bento XVI, padre Cantalamessa explicou que existem pelo menos três chaves de
leitura do Concílio Vaticano II: atualização, ruptura, novidade na continuidade.
A palavra "aggiornamento" (atualização) foi introduzida
pelo Beato João XXIII quando anunciou ao mundo o Concílio.“O
vigésimo primeiro Concílio Ecumênico – disse o então Pontífice – quer
transmitir de forma intacta, não diminuída, sem distorções, a doutrina católica. É necessário que esta doutrina certa e imutável, à qual deve-se dar uma
adesão fiel, seja aprofundada e exposta de acordo com o que é pedido pelos
nossos tempos”.
Como se sabe, durante os trabalhos foram delineados dois lados
opostos, e, - explica o Pe. Cantalamessa - "a
palavra “aggiornamento” (atualização) acabou sendo substituída pela palavra
ruptura”. De acordo com o pregador da Casa Pontifícia entre essas duas
frentes coloca-se a posição do Magistério pontifício que fala de "novidade na continuidade."
Paulo
VI, na Ecclesiam suam retoma a palavra "atualização" de João XXIII, e
fala de querer tê-la presente como “endereço programático”:
Quem deu uma nova interpretação do Concílio foi Bento XVI que no seu discurso programático à Curia Romana do 22 de Dezembro de
2005, falou de “novidade na continuidade”. O Papa Bento XVI esclareceu
como os problemas da recepção dos ensinamentos do Concílio nasceram do fato de
que “duas hermenêuticas contrárias lutaram entre si. Uma causou confusão, a
outra, silenciosamente mas sempre mais visivelmente, trouxe frutos.”
O Papa Bento XVI não vê “a hermenêutica
da descontinuidade e da ruptura” e indicou pelo contrário a “hermêutica da
reforma”
A leitura do Concílio feita precisamente pelo Magistério, é para o
padre Cantalamessa aquela da “novidade na continuidade” ilustrada no “Ensaio
sobre o desenvolvimento da doutrina cristã” do Cardeal Newman, definido muitas
vezes, também por este, “O Padre ausente do Vaticano II”.A fim
de compreender o sentido profundo da "novidade na continuidade" padre
Cantalamessa disse que "Jesus falava a linguagem do seu tempo; não o
hebraico que era a língua nobre e das Escrituras (o latim do tempo!), mas o
aramaico falado pelas pessoas”."A fidelidade a este dado inicial – acrescentou – não podia
consistir, e não consistiu, no continuar a falar em aramaico a todos os futuros
ouvintes do Evangelho, mas no falar grego aos gregos, latim aos Latinos,
Armênio aos Armênios, copto aos coptos, e assim até os nossos dias.
Como dizia
Newman: é justamento mudando que muitas vezes se é fiel ao dado original”!
Depois de ter notado que já seja os tradicionalistas que os
progressistas faltam no captar a intervenção do Espírito Santo no Concílio, padre
Cantalamessa indica os frutos do Concílio, relevando que enquanto “nós
olhávamos para as mudanças nas estruturas e instituições, para as diferentes
distribuições do poder, para a língua usada na liturgia, não nos dávamos conta
de quanto estas novidades fossem pequenas com relação à que o Espírito Santo
estava obrando”.O
Pregador nota que no Concílio “houve um novo Pentecoste” cujos frutos evidentes
devem ser reconhecidos nos movimentos eclesiais, nas paróquias, nas associações
de fieis, nas novas comunidades, e nas comunidades de base, cujo fator político
não se sobrepôs ao religioso.João Paulo II – disse o Pe. Cantalamessa – via nestes movimentos e
comunidades paroquiais vivas “os sinais de uma nova primavera da Igreja” e a
confirmação “da presença e da ação eficaz do Espírito Santo”.Neste
contexto o Pregador da casa Pontifícia indicou a Renovação carismática como uma
“corrente de graça destinada a se dispersar na igreja como uma descarga
elétrica na massa."
Os movimentos eclesiais não estão insentos de
fraquezas e às vezes de desvios parciais, indagou Cantalamessa:
Mas
qual é a grande novidade que apareceu na história da Igreja sem imperfeições
humanas? Não aconteceu a mesma coisa, no século XIII, quando apareceram as
ordens mendicantes? - Os movimentos eclesiais e as novas comunidades,disse,não
esgotam toda a potencialidade e as expectativas da renovação do Concílio, mas
respondem às mais urgentes e essenciais: Nada antepor a Cristo”.Embora tenha se confessado de ter-se libertado dos prejuízos
contra os judeus e contra os protestantes, absorvidos nos anos da formação, não
por ter lido Nostra aetate, mas “por ter feito também eu, no meu pouco e por mérito de alguns irmãos, a experiência
do novo Pentecostes”, padre Cantalamessa afirma que sobre os documentos do
Concílio, o Espírito Santo “move a estudá-los e a colocá-los em prática”.O pregador da Casa Pontifícia concluiu a pregação do Advento,
relatando as palavras de João XXIII ao longo do fechamento da primeira sessão
na qual falou do Concílio como de “um novo desejado Pentecostes, que
enriquecerá abundantemente a Igreja de energias espirituais”.
(Tradução Thácio Siqueira)
O
Concílio Vaticano II: 50 anos depois - Uma chave de leitura!
Segunda Pregação do Advento 2012 do Padre Raniero Cantalamessa,
OFM Cap - (CIDADE DO VATICANO, sexta-feira, 14 de dezembro de 2012)
Publicamos a seguir a segunda pregação do Advento de 2012 feita
pelo Pe. Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia, nesta manhã no
Vaticano.
O
Concílio Vaticano II: 50 anos depois - Uma chave de leitura!
1)- O Concílio: a hermenêutica da
ruptura e a da continuidade
Nesta meditação, gostaria de refletir sobre o segundo maior motivo
de celebração deste ano: o 50º aniversário do começo do Concílio Vaticano II.Nas últimas décadas aumentaram as tentativas de fazer uma
avaliação dos resultados do Concílio Vaticano II[1].Não é o caso agora de continuar nesta linha, e nem sequer o tempo
disponível nos permitiria. Em paralelo com estas leituras analíticas, houve,
desde o começo do Concílio, a tentativa de uma avaliação sintética, a busca, em
outras palavras, de uma chave de leitura do evento conciliar. Gostaria de
inserir-me neste esforço e tentar, até mesmo, uma leitura das diversas chaves
de leitura.Principalmente foram três as chaves de leitura: atualização
(aggiornamento), ruptura, novidade na continuidade.Ao anunciar o Concílio ao mundo João XXIII usou repetidamente a
palavra “aggiornamento” (atualização), que, graças a ele, entrou para o
vocabulário universal. Em seu discurso de abertura do Concílio, deu uma
primeira explicação do que ele quis dizer com esse termo:"O 21º Concílio Ecumênico quer transmitir integralmente, não em partes, sem distorções, a doutrina católica [...]. Mas nós não devemos somente preservar este tesouro precioso, como se nos preocupássemos apenas da antiguidade, mas vigorosos, sem medo, devemos continuar no trabalho que a nossa época exige, seguindo o caminho que a Igreja percorreu por quase 20 séculos. É necessário que esta doutrina certa e imutável, à qual devemos dar uma adesão de fé, seja aprofundada e exposta como exigido pelos nossos tempos"[2].
Na medida em que os trabalhos e as sessões do Concílio progrediam
surgiram duas linhas opostas dependendo, de acordo com as exigências
expressadas pelo Papa, acentuava-se a primeira ou a segunda: ou seja, a
continuidade com o passado ou a novidade com relação a ele.No meio desses últimos a palavra aggiornamento
(atualização) acabou sendo trocada pela palavra ruptura.Mas com um espírito e com tentativas bem diferentes, de acordo com
a própria orientação.Para a
ala, assim chamada progressista, tratava-se de uma conquista a ser comemorada
com entusiasmo; para o lado oposto, tratava-se de uma tragédia para toda a
Igreja.Entre essas duas frentes – que concordavam com a afirmação do
fato, mas estavam opostos no juízo sobre ele – coloca-se a posição do
Magistério papal que fala de “novidade na continuidade”.Paulo VI, na Ecclesiam suam retoma a palavra
“aggiornamento” (atualização) de João XXIII e fala que queria tê-la presente
como “endereço programático”[3]. No começo do seu pontificado João Paulo II
confirmou o juízo do seu antecessor[4] e se expressou muitas vezes nessa mesma
linha.Mas, foi principalmente o atual Sumo Pontífice Bento XVI que
explicou o que o Magistério da Igreja entende por “novidade na continuidade”.
Foi o que ele fez poucos meses depois da sua eleição, no conhecido discurso
programático à Curia Romana do dia 22 de Dezembro de 2005.
VEJAMOS algumas passagens de Bento
XVI:
“Surge a pergunta: por que a recepção do Concílio, em
grandes partes da Igreja, até agora teve lugar de modo tão difícil? Pois bem,
tudo depende da justa interpretação do Concílio ou como diríamos hoje da sua
correcta hermenêutica, da justa chave de leitura e de aplicação. Os problemas
da recepção derivaram do facto de que duas hermenêuticas contrárias se
embateram e disputaram entre si. Uma causou confusão, a outra, silenciosamente
mas de modo cada vez mais visível, produziu e produz frutos. Por um lado,
existe uma interpretação que gostaria de definir "hermenêutica da
descontinuidade e da ruptura"; não raro, ela pôde valer-se da simpatia dos
mass media e também de uma parte da teologia moderna. [...] A hermenêutica da
descontinuidade opõe-se à hermenêutica da reforma ".
O papa admite que uma certa
descontinuidade e ruptura ocorreu, mas ela não abarca os princípios e as
verdades fundamentais da fé cristã, mas algumas decisões históricas.
Entre as quais se encontra a situação de conflito que se criou
entre a Igreja e o mundo moderno, que culminou na condenação total da
modernidade sob Pio IX, mas também situações mais recentes, como aquela criada
pelos progressos da ciência, da nova relação entre as religiões com as
implicações que isso tem para o problema da liberdade de consciência; e não por
último, a tragédia do holocausto que exigia um repensamento de atitudes para
com o povo judeu.
Escreve Bento XVI:
“É claro que em todos estes setores, que no seu conjunto
formam um único problema, podia emergir alguma forma de descontinuidade que, de
certo modo, se tinha manifestado, de fato uma descontinuidade, na qual todavia,
feitas as diversas distinções entre as situações históricas concretas e as suas
exigências, resultava não abandonada a continuidade nos princípios fato que
facilmente escapa a uma primeira percepção. É exatamente neste conjunto de
continuidade e descontinuidade a diversos níveis que consiste a natureza da
verdadeira reforma” - Se do plano
axiológico, ou seja dos princípios e dos valores, passamos ao plano
cronológico, poderemos dizer que o Concílio representa uma ruptura e uma
descontinuidade com relação ao passado próximo da Igreja e representa ao
contrário uma continuidade com relação ao seu passado remoto.Em muitos pontos,
sobretudo no ponto central que é a idéia da Igreja, o concílio quis fazer um
retorno às origens, às fontes bíblicas e patrísticas da fé. A leitura do
Concílio assumida pelo Magistério, ou seja, a da novidade na continuidade,
tinha tido um ilustre precursor no “Ensaio sobre o desenvolvimento da doutrina
cristã” do cardeal Newman, definido muitas vezes, também por este, “o Pai
ausente do Vaticano II”.
Newman demonstra que, quando se trata
de uma grande ideia filosófica ou uma crença religiosa, como é o cristianismo:
"não é possível julgar pelo seu começo qual seja a
sua virtualidade e as metas às quais tende. [...]. De acordo com as novas
relações que ela chega a ter, surgem perigos e esperanças e princípios antigos
reaparecem sob nova forma. Ela muda junto com eles para ficar sempre idêntica a
si mesma. Num mundo sobrenatural as
coisas acontecem de forma diferente, mas aqui sobre a terra viver é
transformar-se e a perfeição é o resultado de muitas transformações”[5].São Gregório Magno antecipava, de certa forma, esta convicção
quando afirmava que a Escritura “cum legentibus crescit”, cresce com
aqueles que a lêem”[6]; ou seja, cresce a força de ser lida e vivida, na medida
que surgem novas perguntas e novos desafios da história.Portanto,
a doutrina da fé evolue, mas para ficar fiel a si mesma; muda nas contingências
históricas, para não mudar na substância, como dizia Bento XVI.Um exemplo trivial, mas indicativo é aquele do idioma. Jesus
falava a língua do seu tempo; não o hebraico que era a língua nobre e das
Escrituras (o latim do tempo!), mas o aramaico falado pelo povo. A fidelidade a
este dado inicial não podia consistir, e não consistiu, no continuar a falar em
aramaico a todos os futuros ouvintes do evangelho, mas no falar grego ao Gregos,
latim aos Latinos, armênio com os Armênios, copto com os cóptos, e assim até os
dias de hoje.Como
dizia Newman, é justamente mudando que muitas vezes se é fiel ao dado original.
2)- A letra mata, o Espírito vivifica!
Com todo o respeito e admiração devidos à imensa
e pioneira contribuição do Cardeal Newman, a distância de um século e meio do
seu ensaio, e com o que o cristianismo viveu nesse meio tempo, não é
possível, ainda, não relevar também uma lacuna no desenvolvimento do seu
argumento: a quase total ausência do Espírito Santo.Na dinâmica do progresso da
doutrina cristã, ele não tem em conta com suficiente clareza o papel de
destaque que Jesus tinha reservado para o Paráclito ao revelar aos discípulos
aquelas verdades que eles ainda não podiam “carregar o peso” e no conduzí-los
“à toda a verdade” (Jo 16, 12-13).De fato, o que é que permite resolver este
paradoxo e falar de novidade na continuidade, de permanência na mudança, a não
ser o Espírito Santo na Igreja?Santo Ireneu o tinha percebido perfeitamente
quando afirma que a revelação é como um “depósito precioso contido num vaso de
valor que, graças ao Espírito de Deus, rejuvenesce sempre e faz rejuvener
também o vaso que a contém”[7].O Espírito Santo não fala palavras novas, não
cria novos sacramentos, novas intituições, mas renova e vivifica perenemente as
palavras, os sacramentos e as instituições criadas por Jesus.Não faz coisas novas, mas faz novas
todas as coisas!A insuficiente atenção ao papel do Espírito Santo explica muitas
das dificuldades surgidas na recepção do Concílio Vaticano II.A Tradição, em nome da qual alguns rejeitaram o Concílio, era uma
Tradição onde o Espírito Santo não desempenhava nenhum papel. Era um conjunto
de crenças e de práticas fixadas uma vez por todas, e não a onda da pregação
apostólica que avança e se propaga nos séculos e, como toda onda, só pode ser
percebida em movimento.Congelar a Tradição e fazê-la partir, ou terminar, a um certo
ponto, significa fazer uma morta tradição e não como a define Ireneu uma “viva
Tradição”. Charles Péguy expressa, como poeta, esta grande verdade teológica:
"Jesus não nos deu palavras mortas
Que devamos colocar em pequenas caixas (ou em grandes)
E que devemos conservar em óleo rançoso...
Como as múmias do Egito.
Jesus Cristo não nos deu enlatados de palavras para
conservar.
Mas deu-nos palavras de vida para alimentar ...
Depende de nós, doentes e de carne,
Fazer viver e alimentar e manter vivas no tempo
Aquelas palavras pronunciadas vivas no tempo”[8]
Porém rapidamente é
necessário dizer que também na frente de batalha do extremismo oposto as coisas
não são diferentes.Aqui se falava voluntariamente do “espírito do Concílio”,
mas não se tratava, infelizmente, do Espírito Santo.Por “espírito do Concílio
entendia-se o de mais entusiasmo, de coragem inovadora, que não teria sido
possível entrar nos textos do Concílio por causa das resistências de alguns e
do necessário compromisso entre as partes.Gostaria agora de ilustrar aquela
que, para mim, parece ser a verdadeira chave de leitura pneumática do Concílio,
ou seja, qual é o papel do Espírito Santo na atuação do Concílio.Retomando um
pensamento ousado de Santo Agostinho sobre o jargão paulino da letra e o
Espírito (2 Cor 3, 6), São Tomás de Aquino escreve:"Por letra entende-se
toda lei escrita que permanece fora do homem, também os preceitos morais
contidos no Evangelho; pelo qual a letra do Evangelho mataria, se não se
acrescentasse, dentro, a graça da fé que cura”.[9] - No mesmo contexto, o
santo doutor afirma:"A nova lei é principalmente a mesma graça do Espírito
Santo que é dada aos crentes”[10]. Os preceitos do Evangelho são também a nova
lei, mas em um sentido material, quanto ao conteúdo; a graça do Espírito Santo
é a nova lei em sentido formal, enquanto que dá a força de colocar em prática
os mesmos preceitos evangélicos. É aquela que Paolo define “a lei do Espírito
que dá a vida em Cristo Jesus” (Rm 8, 2).Este é um princípio universal que
se aplica a toda lei. Se até mesmo os preceitos evangélicos, sem a graça do
Espírito Santo, seriam “letra que mata”, o que dizer dos preceitos da Igreja, e
o que dizer, no nosso caso, dos decretos do Concílio Vaticano II?A
"implementação", ou a atualização do Concílio não acontece portanto
diretamente, não necessita procurá-la na aplicação literal e quase mecânica do
Concílio, mas “no Espírito”, entendendo com isso o Espírito Santo e não um vago
“espírito do concílio” aberto a todo subjetivismo.
O Magistério papal foi o primeiro a
reconhecer esta exigência. João Paulo II, em 1981, escrevia:
"Todo o trabalho de renovação da Igreja, que o
Concílio Vaticano II providencialmente propôs e começou – renovação que deve
ser ao mesmo tempo “atualização” (aggiornamento) e consolidação no que é eterno
e constitutivo para a missão da Igreja – não pode realizar-se a não ser no
Espírito Santo, ou seja com a ajuda da sua luz e do seu poder”[11].
3)- Onde buscar os frutos do Vaticano
II?
Aconteceu
mesmo este suspirado “novo Pentecostes”? Um célebre estudioso de Newman,
Ian Ker, ressaltou a contribuição que pode ser dada por ele não só para o
entendimento do desenrolar-se do concílio, mas também para o entendimento do
pós-concílio[12].Depois da definição da infalibilidade papal no Vaticano I, em
1870, o cardeal Newman refletiu sobre os concílios em geral e sobre o sentido
das suas definições.Sua conclusão: “os concílios podem ter efeitos não
pretendidos por quem participou deles. Os participantes podem enxergar muito
mais, ou muito menos, do que os resultados que vão ser produzidos por essas
decisões.”Desta forma, Newman aplicava às definições conciliares o princípio do
desenvolvimento, que tinha proposto acerca da doutrina cristã em geral.Um
dogma, como qualquer outra grande ideia, não pode ser entendido por completo
antes de serem avaliadas as suas consequências e desenvolvimentos históricos;
para usar a sua comparação, só depois que o rio parte do terreno acidentado em
que nasceu e desce até encontrar o seu leito mais amplo e profundo[13].Aconteceu
assim com a definição da infalibilidade papal, que, no calor do momento, foi
entendida por muitos como algo maior do que aquilo que a Igreja e o próprio
papa quiseram apresentar. Ela não tornaria inútil qualquer futuro concílio
ecumênico, como alguns temiam ou esperaram. E disto, o Vaticano II serve como
confirmação[14].Achamos uma singular confirmação no princípio hermenêutico de
Gadamer sobre a "história dos efeitos" (Wirkungsgeschichte), segundo
o qual, para se compreender um texto, deve-se levar em conta o conjunto de
efeitos que ele produziu na história, inserindo-se nessa história e dialogando
com ela[15].
Isto é o que acontece de forma
exemplar na leitura espiritual das Escrituras:
Ela não explica o texto apenas à luz das coisas que o precederam,
como ocorre na leitura histórico-filológica ao pesquisar as fontes, mas também
à luz do que se seguiu, explicando a profecia à luz do seu cumprimento em
Cristo, e o Antigo Testamento à luz do Novo. Tudo isso lança uma luz única sobre o período pós-conciliar. Aqui
também as realizações reais se posicionam, talvez, de modo diferente do que
considerávamos inicialmente.Nós olhávamos para a mudança nas estruturas e nas instituições,
para uma distribuição diferente do poder, para a língua a ser usada na liturgia,
e não percebíamos o quanto essas mudanças eram pequenas em comparação com o que
o Espírito Santo estava fazendo. Nós achávamos que romperíamos os odres velhos
com as nossas próprias mãos, quando Deus, na verdade, nos propunha o seu método
de romper os odres velhos pondo neles vinho novo.
Quando perguntados se houve um novo
Pentecostes, devemos responder sem hesitação: sim! Qual é o sinal mais
convincente dele?
a)- A renovação da qualidade da vida cristã, em todo lugar em que
esse Pentecostes foi acolhido.
b)- O fato doutrinariamente mais qualificativo do Vaticano II são
os dois primeiros capítulos da Lumen gentium, que definem a Igreja como que sacramento universal de salvação e como povo de Deus a caminho, sob a orientação do Espírito Santo,
inspirada pelos seus carismas, sob a orientação da hierarquia.
c)- A Igreja, enfim, como mistério e instituição; como koinonia
mais do que hierarquia. João Paulo II relançou esta visão fazendo da sua
implementação a prioridade no começo no novo milênio[16].
Perguntamos:
-Onde é que esta imagem de Igreja passa dos documentos para a
vida?
-Onde é que ela ganha “carne e sangue”[17]?
-Onde é que a vida cristã é vivida de acordo com "a lei do
Espírito", com alegria e convicção, por atração e não por obrigação?
-Onde é
que a palavra de Deus é tida na mais alta honra, e manifestam-se os dons, e
sente-se mais forte a ânsia da nova evangelização e da unidade dos cristãos? (
Não exclusiva, nem excludente e nem antagônicas ?).Tratando-se de fatos interiores, do coração das pessoas, a resposta definitiva
para estas questões somente Deus possui.
Devemos repetir, sobre o novo
Pentecostes, o que Jesus disse do reino de Deus:
"Ninguém
dirá ‘Ei-lo aqui’, ou ‘Lá está ele’. O reino de Deus está no meio de vós"
(Lc 17, 21). - Podemos, no entanto, captar os seus sinais, auxiliados pela
sociologia religiosa que lida com essas coisas. A partir deste ponto de vista,
a resposta para muitas daquelas perguntas é: nos movimentos eclesiais!
Há algo que devemos precisar:
a)- Dos movimentos eclesiais, se não na forma, certamente em
substância, também fazem parte as paróquias, associações de fiéis e novas
comunidades em que se vive a mesma koinonia e a mesma qualidade de vida
cristã.
b)- Deste ponto de vista, movimentos e paróquias não devem ser vistos
em contraposição ou em competição uns com os outros, mas unidos na realização,
de um modo diferente, do mesmo modelo de vida cristã.
c)- Entre eles, há também algumas das comunidades ditas “de base”,
aquelas em que o fator político não assumiu a precedência sobre o religioso.
Devemos insistir no correto nome:
Movimentos "eclesiais", não movimentos
"leigos". A maioria deles é formada não por apenas uma, e sim por
todas as partes da Igreja: leigos, é claro, mas também bispos, padres, freiras.
Eles representam todos os carismas, o "povo de Deus" da Lumen
Gentium. É apenas por razões práticas que o Conselho Pontifício para os
Leigos se ocupa deles, dado que já existem as congregações para o clero e para
os religiosos.João Paulo II viu nesses movimentos e comunidades paroquiais
"os sinais de uma nova primavera da Igreja"[18]. O mesmo foi
manifestado, várias vezes, pelo papa Bento XVI [19]. Na homilia da missa
crismal da quinta-feira santa de 2012, ele disse:“Quem olha para a
história do pós-concílio pode reconhecer a dinâmica da verdadeira renovação,
que tantas vezes tomou formas inesperadas em movimentos cheios de vida e que
torna quase tangíveis a inexaurível vivacidade da santa Igreja, a presença e a
ação eficaz do Espírito Santo”.Falando dos sinais de um novo Pentecostes, não podemos deixar de
mencionar em particular, ainda que fosse apenas pela extensão do fenômeno, a
Renovação Carismática, que, mesmo não sendo um movimento eclesial no sentido
estrito e sociológico do termo (não tem um fundador, uma estrutura e uma
espiritualidade própria), é, ainda assim, uma corrente de graça destinada a se
dispersar na Igreja como uma descarga elétrica na massa.Em 1973, quando um dos arquitetos do concílio Vaticano II, o
cardeal Suenens, ouviu falar do fenômeno pela primeira vez, ele estava
escrevendo o livro "O Espírito Santo, fonte da nossa esperança", e
nos conta o seguinte em suas memórias:"Eu parei de escrever o livro. Considerei uma questão de coerência básica prestar atenção ao Espírito Santo, que pode se manifestar de maneiras surpreendentes. Eu estava particularmente interessado no despertar dos carismas, uma vez que o concílio tinha impulsionado esse despertar".
E, depois de verificar em pessoa e
viver de dentro aquela experiência, compartilhada por milhões de outras
pessoas, ele também escreveu:
"Paulo e os Atos
dos Apóstolos parecem de repente ganhar vida e se tornar parte do presente. O
que era realmente verdadeiro no passado parece estar acontecendo de novo diante
dos nossos olhos. É uma descoberta da verdadeira ação do Espírito Santo, sempre
atuante, como Jesus prometeu. Ele mantém a sua palavra. É mais uma vez uma
explosão do Espírito de Pentecostes, uma alegria que tinha se tornado
desconhecida para a Igreja"[20]. - Os movimentos eclesiais e as novas
comunidades não esgotam todo o potencial e as expectativas de renovação do
concílio, mas respondem à mais importante delas, pelo menos aos olhos de Deus.Eles
não estão livres de fraquezas e desvios parciais, mas que outra grande novidade
na história da Igreja não sofreu as falhas humanas?Não foi a mesma coisa
quando, no século XIII, apareceram as ordens mendicantes? Foram os papas
romanos, especialmente Inocêncio III, que reconheceram e acolheram aquela graça
pela primeira vez, incentivando o resto do episcopado a fazer o mesmo.
4)- Uma promessa cumprida!
Qual é, então, o significado do concílio como conjunto dos
documentos produzidos, Dei Verbum,
Lumen Gentium, Gaudium et Spes, Nostra Aetate, etc.? Vamos deixá-los
todos de lado e esperar tudo do Espírito?A resposta está contida na frase com que Agostinho resume a
relação entre a lei e a graça:"A lei foi dada para buscarmos a graça, e a graça foi
dada para observarmos a lei"[21].O Espírito não dispensa o valor da letra, ou seja, os decretos, o
Vaticano II. Ao contrário, é ele quem nos leva a estudá-los e a colocá-los em prática. E, de fato,
fora do ambiente acadêmico, onde são objeto de discussão e de estudo, é nas
realidades da Igreja mencionadas acima que eles são tidos de fato em maior
consideração.
Eu mesmo experimentei isto:
“Eu me livrei de preconceitos contra judeus e
protestantes, acumulados durante os anos de formação, não pela leitura da Nostra Aetate, mas por ter feito
também, à minha humilde maneira e graças a alguns irmãos, a experiência do novo
Pentecostes. Depois eu senti a necessidade de reler a Nostra Aetate, como reli ainda a Dei Verbum após o Espírito incutir em mim um novo amor pela
palavra de Deus e pela evangelização. O movimento, entretanto, pode acontecer
nas duas direções: alguns, para usar a linguagem de Agostinho, são incentivados
a partir da letra para buscar o Espírito, e outros são movidos pelo Espírito a
observar a letra.”
O poeta Thomas S. Eliot compôs versos
que podem nos iluminar quanto ao significado das celebrações do 50º aniversário
do Concílio Vaticano II:
"Não devemos nos deter em nossa exploração,
E o fim do nosso explorar
Será chegar ao ponto donde partimos
E conhecer o lugar pela primeira vez" [22].
"Paulo e os Atos
dos Apóstolos parecem de repente ganhar vida e se tornar parte do presente. O
que era realmente verdadeiro no passado parece estar acontecendo de novo diante
dos nossos olhos. É uma descoberta da verdadeira ação do Espírito Santo, sempre
atuante, como Jesus prometeu. Ele mantém a sua palavra. É mais uma vez uma
explosão do Espírito de Pentecostes, uma alegria que tinha se tornado
desconhecida para a Igreja"[20]. - Os movimentos eclesiais e as novas
comunidades não esgotam todo o potencial e as expectativas de renovação do
concílio, mas respondem à mais importante delas, pelo menos aos olhos de Deus.Eles
não estão livres de fraquezas e desvios parciais, mas que outra grande novidade
na história da Igreja não sofreu as falhas humanas?Não foi a mesma coisa
quando, no século XIII, apareceram as ordens mendicantes? Foram os papas
romanos, especialmente Inocêncio III, que reconheceram e acolheram aquela graça
pela primeira vez, incentivando o resto do episcopado a fazer o mesmo.
REFERÊNCIAS:
[1] Cf. Il Concilio Vaticano II. Recezione e attualità alla
luce del Giubileo (O Concílio Vaticano II. Recepção e atualidade á luz do
Jubileu), aos cuidados de R. Fisichella, Ed. San Paolo 2000.
[2] João XXIII, Discurso de abertura do Concílio, n. 6,5 (Os
textos do Concílio são tirados da versão que se encontra no site oficial do
Vaticano).
[3] Paolo VI, Enc. Ecclesiam suam, 52; cf. também Insegnamenti
di Paolo VI, vol. IX (1971), p. 318.
[4] João Paolo II, Audiência Geral do 1 Agosto 1979.
[5] J.H. Newman, Lo sviluppo della dottrina cristiana, (O
progresso da doutrina cristã), Bolonha, Il Mulino 1967, pp.46 s.
[6] Gregorio Magno, Commento a Giobbe (Comentário a Jó)
XX,1 (CC 143 A,
p. 1003).
[7] S. Ireneo, Contra as heresias III, 24,1.
[8] Ch. Péguy, Le Porche du mystère de la deuxième vertu, La Pléiade, Paris 1975,
pp. 588 s. (trad. ital. di M. Cassola,
Milano 1978, pp. 60-62).
Ces paroles prononcées vivantes dans le temps ».
[9] Tomas de Aquino, Summa theologiae, I-IIae, q. 106, a. 2.
[10] Ibid., q. 106, a. 1; cf já Agostinho, De Spiritu et
littera, 21, 36.
[11] Joao Paulo II, Carta apostólica A Concilio
Constantinopolitano I, 25 março 1981, in AAS 73 (1981) 515-527.
[12] I. Ker, Newman, the
Councils, and Vatican II, in “Communio”. International Catholic Review, 2001, págs. 708-728.
[13] Newman, op. cit. p.46.
[14] Exemplo ainda mais claro aconteceu no concílio ecumênico de
Éfeso, em 431, com a definição de Maria como Theotokos, Mãe de Deus. O
concílio queria unicamente afirmar a unidade de pessoa de Cristo. No entanto,
deu imenso impulso ao crescimento da devoção mariana e à construção das
primeiras basílicas dedicadas a ela. A unidade de pessoa de Cristo foi definida
depois, em outro contexto e com mais equilíbrio, no concílio de Calcedônia, em
451.
[15] Cf H.G. Gadamer, Wahrheit
und Methode, Tübingen 1960.
[16] Novo millennio ineunte,
42.
[17] I. Ker, art. cit. p.727.
[18] João Paulo II, Novo millennio ineunte,46.
[19] Cf. discurso na vigília de Pentecostes em 2006.
[20] Card. L.-J. Suenens, Memories
and Hopes, Dublin, Veritas 1992, pág. 267.
[21] Agostinho, De Spiritu et littera ,19,34.
[22] T.S. Eliot, Four Quartets
V , The Complete Poems and Plays, Faber & Faber, Londres 1969,
p.197.
[23] João XXIII, Discurso de abertura, Vaticano II, 11 de outubro
de 1962, núm 3,1
[24] João XXIII, Discurso de encerramento do primeiro período do
concílio, 8 de dezembro de 1962, núm. 3,6.
[Tradução Equipe ZENIT]
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