Por *Paulo Polzonoff Jr.
Estava
mexendo em uns livros velhos, aspirando uns ácaros pré-históricos e chafurdando
naquela nostalgiazinha nada saudável, quando me deparei com uma edição de “O
Rei Lear”, de Shakespeare, em tradução do velho, bom e saudoso Millôr
Fernandes. O livro está todo rabiscado (à caneta, porque sou rebelde) e cheio
de anotações às margens. Não entendo minha própria letra. Aqui e ali, tampouco entendo
por que sublinhei essa ou aquela passagem.
Logo na
segunda cena do primeiro ato, conversam Gloucester e Edmundo sobre os tempos
pouco auspiciosos em que vivem. Diz Gloucester:
“Esses
últimos eclipses do sol e da lua nada de bom nos anunciam; embora as leis da
natureza possam explicá-los de diversos modos, a própria natureza é castigada
pelos seus efeitos. O amor esfria, a amizade se rompe, os irmãos se dividem. Na
cidade, revoltas, nos campos, discórdia; nos palácios, traição; e se arrebentam
os laços entre pais e filhos. Esse vilão que criei caiu nessa maldição; é um
filho contra o pai. O rei desvia-se das leis da natureza: e o pai contra a
cria. Nós vimos o melhor de nosso tempo: perfídias, traições, imposturas e toda
espécie de agitações funestas vão nos acompanhar sem descanso até a tumba.
Revela esse canalha, Edmundo; não perderás por isso. Vai com cuidado. E Kent,
nobre e leal, foi exilado. Seu crime foi a honestidade. É estranho”.
A peça foi escrita nos primeiros anos do século XVII. O que significa que, ao ler esse trecho marcado com dez pontos de exclamação à margem, minha nostalgiazinha nada saudável leva um tapa na cara. Tapa necessário, diga-se passagem.
Porque
cair na armadilha reacionária do “tudo era melhor antes” só não é pior do que
se ver preso às amarras do “eu vivo tempos inéditos”. Reis vêm e vão, guerras
são declaradas, acordos de paz são firmados. E a condição humana continua na
mesma toada trágica, com um ou outro dia de comédia.
E, nós, escravos de uma realidade incontrolável, ainda tentando
contorná-la procurando culpados para mazelas que são da nossa própria lavra!
A
resposta de Edmundo aos lamentos de Gloucester tem como ouvinte apenas o
leitor/espectador. Antes que Edgar entre em cena, diz Edmundo ao que imagino
ter sido uma plateia barulhenta e fedida no Globe Theatre:
“Eis a sublime estupidez do mundo;
quando nossa fortuna está abalada – muitas vezes pelo excesso de nossos
próprios atos – culpamos o sol, a lua e as estrelas pelos nossos desastres,
como se fôssemos canalhas por necessidade, idiotas por influência celeste;
escroques, ladrões e traidores por comando do zodíaco; bêbados, mentirosos e
adúlteros por força da obediência a determinações dos planetas; como se toda a
perversidade que há em nós fosse pura instigação divina. É a admirável desculpa
do homem devasso – responsabiliza uma estrela por sua devassidão. Meu pai se entendeu
com minha mãe sob a Cauda do Dragão e vim ao mundo sob a Ursa Maior; portanto
devo ser lascivo e perverso. Bah! [Por algum motivo, o Edmundo de Millôr
Fernandes parece ser gaúcho]. Eu seria o que sou, mesmo que a estrela mais
virginal do firmamento tivesse iluminado a minha bastardia...”
Pelo que se vê, Shakespeare não era muito fã da astrologia. Mas
ficar nessa interpretação seria comprar briga com leitores de horóscopo. Não
vale a pena!
Melhor entender que a busca humana por desculpas por seus atos de vilania é estratégia velha e nada tem a ver com a “guerra cultural” que se trava hoje. Nisso, aliás, eu e o Paulo de anos atrás ainda concordamos. É o que concluo depois de, com alguma dificuldade, ler o bilhete que cai de dentro do livro, no qual escrevi uma versão para essa fala de Edmundo aplicada ao Brasil atual.
Há dias assim (e, se eles se prolongarem e virarem meses e anos, procure um médico): você olha em volta e só é capaz de enxergar “perfídias, traições, imposturas e toda espécie de agitações funestas que vão nos acompanhar sem descanso até a tumba”. E sai logo encontrando no firmamento ou nas páginas de jornal culpados para o fogo e o sangue que o cercam. Para esses momentos, Shakespeare oferece, na voz do Duque de Albany e algumas páginas mais tarde, umas poucas palavras de consolo - também com a marcação de um leitor que é o mesmo, mas outro:
“Não
sei se seus olhos veem bem ao redor;
É comum
perder-se o bom por querer o melhor”.
*Paulo
Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor.
Fonte - https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/polzonoff/canalhas-por-necessidade-idiotas-por-influencia-celeste/
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