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Magistério Tradicional da Igreja e magistério do Papa Francisco: Ruptura, ou continuidade?

Written By Beraká - o blog da família on terça-feira, 20 de outubro de 2020 | 14:46

 


 

A Igreja sempre se ocupa das questões humanas, e tem seu fundamento na prática do amor a Deus e ao próximo. No decorrer de sua história colhemos belos exemplos de pessoas que doaram suas vidas em favor do outro, seguindo, assim, o exemplo de Jesus Cristo. A comunidade cristã primitiva foi alicerçada no sangue dos apóstolos e mártires, projetando essa realidade no decorrer de sua história.

 

 

“Não há maior exemplo de amor que doar a vida pelo irmão”

 

 

 

Ao situar o cenário  onde  acontece  a  experiência  eclesial  do  Papa Francisco, não podia ficar fora o contexto antropológico latino-americano e do Concílio Vaticano II, fonte abundante na qual ele bebe seus ensinamentos.  Este trabalho ocupa-se também da visão de homem apresentada pela eclesiologia de Francisco. Ou seja, o Papa, diante da crise antropológica do mundo atual, procura  em  seus  ensinamentos  propor  uma  abordagem  humana:  humanista, solidária   e   verdadeiramente   forjada   nos   fundamentos   cristãos.   Uma antropologia   do   amor.   Finalmente   para   tentar   aprofundar   os   valores  antropológicos presentes nos ensinamentos de Francisco, o estudo se dedica em especial (não exclusivamente) a dois documentos: Amoris Letitia e Laudato-Si, buscando explorar os elementos fundamentais da antropologia do Papa presentes aí.

 

 

 

Tópicos sobre os grandes temas do pontificado do papa Francisco

 

*Por João Décio Passos

 

 

É inegável que o papa Francisco já apresentou temas que definem seu perfil como papa e, em grande medida, os rumos de seu pontificado. Estamos inegavelmente diante de um personagem renovador que, como tal, desperta paixões dentro e fora da Igreja. Como todo personagem de perfil carismático, provoca divisões entre quem é a favor e contra. É fato visível que Francisco opera com um novo paradigma teológico no âmbito do magistério papal. E é também evidente que toda plataforma renovadora exige um discurso legitimador capaz de justificar e direcionar as mudanças pretendidas, sem o que prevaleceria a cisão institucional, ainda mais em se tratando de uma instituição de dinâmica tradicional como a Igreja católica. Nesta, um novo paradigma só é legítimo se ancorado na longa tradição: o novo deve ser buscado no meio do antigo, jamais como um paradigma renovador, puro em si mesmo, que nega ou dispensa o anterior.

 

"Se enxerguei mais longe é porque me apoiei em ombros de gigantes" - Isaac Newton

 



Gigantes do passado e do presente. As temáticas adotadas como eixos, plataformas e objetivos por Francisco podem ser analisadas por distintos vieses, uma vez que precisam ser fundamentadas naquilo que constitui a Igreja como instituição gerada pela fé cristã ao longo da história e que compõem um conjunto coerente, sem o qual tudo se fragmenta e perde a legitimidade. O magistério papal é a colocação da palavra autorizada que visa orientar o conjunto da Igreja sobre temas variados e numa determinada direção. Dentre as várias possibilidades de verificar os temas do pensamento de Francisco, escolhemos como hipótese quatro tópicos, a nosso ver constitutivos do magistério dele:

 

 

O ponto de partida e o centro permanente de seus ensinamentos (a Igreja em saída), o método de construção permanente de seus discursos (a volta às fontes, às Escrituras e ao Vaticano II), o valor fundamental (a postura da misericórdia) e o interlocutor principal (os pobres).

 

 

Em nosso entender, essas temáticas não são meramente estruturantes do pensamento dele, mas expressam, antes de tudo, a dinâmica centrífuga que o movimenta e ativa em relação às temáticas por ele abordadas: que coloca a Igreja em saída para além de si mesma, referenciada pelo evangelho e em contado com o outro, particularmente com os pobres (de forma evangélica e não ideológica). Essa dinâmica se assenta e se articula sobre uma base cristológica: o Cristo encarnado que impulsiona e chama a Igreja para encarnar-se na realidade presente, tocando a carne de Cristo na carne dos que sofrem.

 

 

O ponto de partida: a Igreja em saída

 

 

 

A Igreja em saída é a superação da Igreja autorreferenciada. Eis o ponto de partida, a pedra fundamental do pensamento de Francisco. A Igreja em saída já estava latente como eclesiologia capaz de superar a crise da Igreja, cuja raiz era o seu autocentramento, nas reflexões feitas pelo cardeal Bergoglio durante as congregações que prepararam o conclave. E desde a exortação Evangelii Gaudium se mostra como a ideia mestra ou a fonte que lança a Igreja para fora de si mesma, na direção de suas origens primeiras e na direção do mundo e dos outros, particularmente dos mais fragilizados. De fato, essa postura/propositura teve um papel fundamental na construção da própria figura no novo papa, na medida em que fez parte de seus pronunciamentos durante as referidas congregações. O cardeal Bergoglio insistia que a crise que se abatia sobre a Igreja católica naquele momento se devia ao seu autocentramento e que essa postura equivocada deveria ser superada com urgência. De fato, a figura do novo papa emergiu investida da missão de reformar a Igreja. A crise que se abatia sobre a Igreja produzia um personagem carismático-reformador, estratégia prevista pela sociologia do poder, conforme já explicou Max Weber. Na ótica da fé, há que professar que o Espírito renovou a Igreja com um personagem adequado para o momento. Em momentos de crise, o sistema antigo não goza mais de legitimidade para oferecer saídas e sujeitos para dar continuidade a seu projeto; é preciso, então, um novo personagem, um profeta vindo de fora para assumir o comando e garantir a continuidade da tradição que transmite um carisma fundamental. E lembramos todos que Francisco dizia ter vindo do “fim do mundo”, logo após sua eleição. Era o papa do sul, não europeu, fora dos quadros curiais e, pela primeira vez, um jesuíta. Um personagem, de fato, novo e investido da legitimidade política e espiritual de renovar a Igreja.

 

 

A volta às fontes: o coração do evangelho     

 

 

 

Toda empreitada de renovação de uma tradição e de uma instituição precisa ser feita a partir de uma referência legítima, ou seja, a partir de um fundamento que garanta a sua verdade e assegure um consenso mínimo em torno de sua proposta.

 

 

A renovação não pode basear-se unicamente nas palavras do líder renovador, mas nas Palavras sobre as quais se assenta a instituição e com base nas quais a tradição existe e se põe a transmiti-las às gerações.

 

 

Na fenomenologia da religião se fala em volta ao tempo das origens, na sociologia se fala em volta ao carisma, e no cristianismo se costuma falar em “volta às fontes”. No caso deste, as fontes já estão codificadas num cânon que as comunica e testemunha.

 

Voltar às fontes é voltar ao carisma que fundou e funda a Igreja. Numa palavra, voltar a Jesus Cristo e a tudo o que ele ensinou e comunica como salvação para a Igreja atual.

 

 

Os grandes reformadores fizeram de alguma forma esse movimento e, precisamente por essa razão, obtiveram êxitos em suas propostas.Francisco fundamenta todos os seus discursos e projetos, antes de tudo, no evangelho. Fala constantemente em “coração do evangelho”. Todo o edifício e o conjunto da doutrina nascem diretamente do coração do evangelho e a ele devem submeter-se.

 

 

Nesse núcleo fundamental, encontra “a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado” (EG 36). É a partir desse núcleo que se deve hierarquizar as verdades, conforme o Vaticano II ensinou (UR 11), de forma a sair ao encontro de todos, onde Deus já habita (EG 36-39).

 

 

Na encíclica Laudato Si’, dá o primeiro passo do momento do julgar (segundo o método ver-julgar-agir adotado) precisamente no evangelho da criação. Na sequência, aprofunda o julgamento da crise planetária, a partir das ciências humanas (capítulo III) e da própria ecologia (capítulo IV). As fontes bíblicas são o ponto de partida que oferece um primeiro horizonte para as demais análises. Na tradição que articula fé e razão, adota um caminho indutivo e não dedutivo. Não parte dos conteúdos oferecidos pela tradição e pelos “predecessores”, conforme costume dos discursos papais, mas dos conteúdos oferecidos pelas fontes bíblicas. Francisco sabe que quer falar para um público que está fora da Igreja, mas insiste em buscar nas fontes escriturísticas elementos que permitam ir ao encontro da terra como dom de Deus (LS 62). A sua teologia ecológica é, antes de tudo, bíblica. Os compromissos ecológicos dos cristãos brotam das convicções de fé (LS 64). O primeiro sentido de todas as coisas da fé reside nessa fonte primeira, de onde tudo pode renovar-se. O evento Cristo renova todas as coisas com sua morte e ressurreição e permite ao cristão rever suas posturas e converter-se ecologicamente. De fato, a espiritualidade ecológica nasce “das convicções de nossa fé, pois aquilo que o evangelho nos ensina tem consequências em nosso modo de pensar, sentir e viver” (LS 216).

 

 

Na exortação Amoris Laetitia, a postura é exatamente a mesma. Contudo, a problemática se mostra ainda mais complexa e mais grave, tendo em vista o objeto em questão: a participação dos casais recasados. A doutrina formulada e estabelecida como regra não vacila no que tange à participação deles na comunhão eucarística. A norma definida e transmitida pelo magistério afirma a situação de pecado desses casais e, por conseguinte, o impedimento de sua participação nos sacramentos. Essa questão constituiu, de fato, o nó a ser desatado pelos Sínodos da Família realizados em 2014 e 2015.

 

-Como recolocar essa questão, resolvida do ponto de vista da norma moral na dinâmica da misericórdia?

 

-Como superar a situação de pecado sem haver perdão?

 

-De onde retirar as orientações capazes de avançar, sem negar a doutrina moral?

 

 

A exortação pós-sinodal recolhe a orientação fundamental dos padres sinodais e avança com cuidado e firmeza na orientação. A raiz vem do evangelho. É dele que vem o valor e a norma fundamental da misericórdia a ser adotada antes de qualquer outra orientação doutrinal, por mais coerente e precisa que esta possa ser. A estrutura geral do documento expressa essa fundamentação. Começa, no primeiro capítulo, “à luz da palavra” para dar “o tom adequado” (AL 6), e após analisar a realidade, no segundo capítulo, julga-a a partir do Novo Testamento: o olhar fixo em Jesus (capítulo III), o amor, tendo como base 1Cor 13 (capítulo IV). De fato, fora da fundamentação bíblica, que outra hermenêutica poderia recolocar os problemas urgentes das famílias atuais legislados por normas rígidas e consolidadas? Em nome do evangelho, Francisco critica a rigidez e sugere que as comunidades façam o discernimento e integrem a fragilidade (capítulo VIII). A crítica é apresentada logo na introdução, quando reconhece que é necessário continuar aprofundando o assunto (AL 2), que há maneiras diferentes de interpretar a doutrina e de aplicá-la, e que há que  buscar soluções mais inculturadas, conforme as peculiaridades das regiões (AL 3). A crítica se torna mais aguda quando diz que é preciso haver uma conversão missionária que supere a aplicação do “anúncio teórico desligado dos problemas reais das pessoas” (AL 201) e que “ninguém pode ser condenado, porque esta não é a lógica do evangelho” (AL 297). O número 305 faz uma denúncia profética a certas práticas consolidadas na Igreja:

 

 

Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais aos que vivem em situações “irregulares”, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem atrás dos ensinamentos da Igreja para sentar-se na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas.

 

 

 

É do evangelho que vem o fundamento de toda e qualquer formulação moral e de sua aplicação concreta. Nenhuma norma se impõe pela força da autoridade (AL 35), e o matrimônio é sempre um aprofundamento gradual das exigências do evangelho (AL 38). No coração do evangelho se encontra o amor, de onde o casal retira a força e o rumo de sua vida. Os números 58 e 59 da exortação expõem de maneira clara o primado do evangelho no ensino sobre a vida familiar:

 

 

“Dentro da família e no meio dela, deve ressoar sempre de novo o primeiro anúncio”. Porque não há nada mais sólido, profundo, seguro, consciente e sábio, afirma Francisco. E conclui que “O nosso ensinamento sobre o matrimônio e a família não pode deixar de se inspirar e transfigurar à luz desse anúncio de amor, se não quiser tornar-se mera defesa de uma doutrina fria e sem vida”.

 

 

 

O imperativo da misericórdia

 

 

No coração do evangelho reside a misericórdia como dom de Deus e como valor fundamental dos seguidores de Jesus. A Igreja que sai na busca do outro segue o caminho da misericórdia. Portanto, a misericórdia é, ao mesmo tempo, princípio, caminho e meta da vida cristã. Se for possível afirmar a noção teológica axial do pontificado e do pensamento de Francisco, será sem dúvida a misericórdia. Não é necessário demonstrar a presença dessa noção nos discursos e propósitos dele. De fato, ela atravessa seu pensamento como força que permite tudo repensar e tudo reformar, como valor que desafia a Igreja à conversão permanente e como categoria em torno da qual ele articula as reflexões. Na misericórdia se encontram, de modo indissociável, Deus e o ser humano, a espiritualidade e a inserção social, a Igreja e o mundo, a doutrina e o discernimento.

 

 

A indiferença é o principal antônimo da misericórdia. É a atitude pecaminosa que nos isola em nós mesmos e faz esquecer os outros, de modo escandaloso os pobres e o planeta; mas também os que estão à margem da Igreja. A indiferença está instalada como cultura, ou seja, como modo de ser que, de algum modo, envolve a todos. Francisco fala reiteradamente em globalização da indiferença, fruto do isolamento individualista e hedonista que caracteriza o consumismo da sociedade atual. A indiferença nos impede de ver o sofrimento do outro, de chorar, diz Francisco. É preciso “revigorar a consciência de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização da indiferença” (LS 52).

 

 

 

A misericórdia exige conversão, mudança não somente das convicções – algo unicamente espiritual – mas mudança em nossos hábitos centrados em práticas de bem-estar cada vez mais acentuadas e que fazem esquecer tudo mais. Esse relativismo prático, mais perigoso que o teórico e que tem como absoluto somente o eu satisfeito, significa “agir como se Deus não existisse, decidir como se os pobres não existissem, sonhar como se os outros não existissem” (EG 80). A atitude de misericórdia rompe com esses modos de vida; é conversão para o encontro, conversão ecológica, conversão para a solidariedade e para a inclusão do outro. A Igreja precisa “chegar às periferias humanas e ser uma mãe de “coração aberto” e acolher quem “ficou caído à beira do caminho” (EG 46).A misericórdia constitui a dinâmica central da economia salvífica e, por conseguinte, a razão de ser da Igreja. Esta tem “a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa humana” (MV 12). Constitui, por essa razão, o critério de identificação dos filhos de Deus (MV 9), o imperativo anterior a todas as regras dirigido a todos os seguidores de Jesus (MV 13) para que adotem esse valor como “estilo de vida” (MV 13).

 

 

A opção pelos pobres

 

 

“A renovação inadiável se faz também na medida em que a Igreja se encarna nas limitações humanas” (EG 40).

 

 

O outro pode converter-nos com seus apelos; pode ajudar a renovar a Igreja, muitas vezes fechada em si mesma, segura de suas estruturas e definida em suas normas. A misericórdia leva antes de tudo aos pobres. O Deus amor revelado por Jesus Cristo acolhe, perdoa e integra os pobres e sofredores.

 

 

“Os sinais que realiza, sobretudo para com os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes e atribuladas, decorrem sob o signo da misericórdia” (MV 9).

 

 

 

a) Os pobres no coração de Deus. A sensibilidade, a atenção e a opção pelos pobres não são simplesmente uma opção social e política; são, antes de tudo, uma questão de fé: “há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres” (EG 48). O anúncio do evangelho aos pobres é o sinal da profecia de Jesus. Jesus Cristo é o Deus que se fez pobre com os pobres (EG 186). Os pobres ocupam um lugar preferencial no coração de Deus, e por essa razão fazem parte do mistério de nossa redenção (EG 197).

 

b) Os pobres produzidos socialmente. Francisco faz indicações diretas claras sobre a origem estrutural da pobreza: “Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum” (EG 202).Há um sistema tecnocrático globalizado que privilegia o lucro sem limites, que destrói o planeta e gera pobreza. Esse regime deverá ser superado por outro capaz de garantir a vida e a igualdade. Eis o recado fundamental da encíclica Laudato Si’ (106-114). Esse regime, injusto em sua raiz, reproduz uma sociedade desigual que se volta contra si mesma, ao gerar mecanismos de violência e de corrupção (EG 59-60).

 

 

c) A cultura da indiferença descarta os pobres. O modo de vida consumista é inerente ao sistema econômico; nesse regime, os pobres são descartados. A cultura individualista resulta no relativismo, que faz com que as pessoas ajam como se Deus não existisse e decidam como se os pobres não existissem (EG 80). Além dessa indiferença, adotam-se muitas vezes formas de “educação” que visam tranquilizar os pobres, tornando-os domesticados e inofensivos (EG 60).

 

 

d) O imperativo da opção pelos pobres. O evangelho ensina a superar a indiferença e a colocar a Igreja em sintonia e solidariedade com os pobres. Sem os pobres, o anúncio do evangelho, que é a razão de ser da Igreja, corre o risco de ser compreendido ou de perder-se no excesso de palavras das mídias atuais (EG 199). A primeira atitude é ouvir o clamor dos pobres, o que significa sensibilidade e compreensão de sua condição, mas também solidariedade com a sua condição. Por essa razão, ninguém na Igreja pode sentir-se exonerado da solidariedade para com os pobres (EG 201), e a opção por eles não pode ser relativizada por nenhuma hermenêutica eclesial (EG 194). Cada cristão e as comunidades estão, desse modo, chamados a ser “instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar plenamente a sociedade” (EG 187).

 

 

e) Eliminar as causas da pobreza. A sensibilidade e a opção pelos pobres exige conversão: mudança no modo de ver a realidade e mudança de postura. Mas trata-se de uma postura que significa ouvir clamor de povos inteiros e buscar os meios de superação do modelo econômico que gera a pobreza. “Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado” (EG 204). É preciso construir um novo modo de vida e de gestão do planeta que garanta a vida da terra e dos pobres (LS 194).

 

 

A teologia da encarnação

 

 

Os quatro temas expostos podem ser vistos a olho nu nos pronunciamentos oficiais e espontâneos de Francisco. Embora não esgotem a amplitude e profundidade de seu pensamento vivaz e provocante, constituem os eixos transversais em torno dos quais se movem seu coração e sua lógica, estando presentes, de forma explícita ou implícita, em seus discursos. Mas, se é possível buscar uma teologia fundamental do pensamento do papa Francisco, ela parece advir do mistério da encarnação. Por certo, essa hipótese deverá ser ainda aprofundada pelos que estudam o pensamento dele. Ela se mostra de modo muito claro nas posturas e nas ideias do papa, a começar pelo seu modo pastoral de expor os fundamentos e as exigências práticas da vivência da fé. É, de fato, dessa verdade fundadora da fé cristã que seu pensamento bebe e se expande de dentro para fora da Igreja, avança da doutrina para a vida, da teoria para a prática e da fixidez para o movimento. A doutrina da Igreja é o próprio Cristo carne macia, afirma aos bispos italianos. O coração do evangelho conduz ao coração do outro. Acolher a Palavra e fazê-la carne (EG 150). A solidariedade se faz carne (EG 189). Francisco elabora nessa chave uma teologia do contato, da carne, da sensibilidade e do encontro que supera todas as formas de dualismo que separam a fé da história. O mistério da encarnação é a ponte que liga Deus e a humanidade na pessoa de Jesus Cristo, na pessoa do próximo e nas ações missionárias da Igreja. Na exortação Evangelii Gaudium, a palavra carne aparece dezesseis vezes, e o verbo encarnar, outras dezesseis. O Cristo feito carne se faz presente na carne do outro (EG 88, 270), e a palavra anunciada por todos os discípulos é uma oferta de misericórdia: “com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até a humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo” (EG 24).

 

 

A misericórdia constitui a postura fundamental da vida cristã; ela agrega em seu significado a acolhida, a sensibilidade e a solidariedade para com os mais fracos e sofredores; liga o seguidor ao próprio Mestre misericordioso. Nesse eixo, encontram-se o Cristo vivo e o homem vivo, o Cristo que sofre com os sofredores concretos, o Cristo pobre com os pobres de hoje, e o Cristo que perdoa com os pecadores.É também na prática encarnatória que emerge o outro em sua condição concreta, quando a realidade se mostra anterior às ideias e o contato pessoa a pessoa torna-se o caminho de evangelização. O outro é o lugar teológico, o verdadeiro irmão, antes de qualquer distinção social, política ou religiosa; o outro tem sua verdade, que deve ser respeitada e com a qual se deve sintonizar na busca da Verdade em todo o processo de evangelização: “A graça supõe a cultura, e o dom de Deus se encarna na cultura de quem o recebe” (EG 115). A Igreja em saída leva a encontros concretos com sujeitos que estão fora da Igreja, fora da sociedade, fora da norma moral instituída, fora das normalidades sociais e políticas. A teologia da carne supera as teologias das estruturas, das fixações e das regras que dispensam o encontro, o afeto, a acolhida e a solidariedade, onde, na experiência primeira da fé, que é o amor, Deus se encontra com o ser humano.

 

*João Décio Passos, é livre-docente em Teologia, professor da PUC-SP e do ITESP, membro da equipe de reflexão da Comissão Episcopal para o laicato da CNBB e editor assistente na Editora Paulinas.

 

 

Sete anos de Francisco: novo magistério, positivo e negativo.

 

Artigo de Andrea Grillo

 

 

A redescoberta da autoridade do presente e do futuro para instituir plenamente a experiência da tradição me parece ser o maior ganho eclesial desses sete anos.A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado por Come Se Non, 12-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

 

Eis o texto:

 

 

Às 20h11 desta sexta-feira, 13, terão passado sete anos desde aquela bendita noite de 13 de março, desde aquele evento inesperado que nunca poderemos esquecer. Um balanço do pontificado de Francisco, pelo que vimos até agora, nos compromete com um julgamento que deve tentar ir ao coração do evento.Depois de ler o livro mais bonito que foi escrito até agora – Ghislain Lafont, “Piccolo saggio sul tempo di papa Francesco. Poliedro emergente e piramide rovesciata” [Pequeno ensaio sobre o tempo do Papa Francisco. Poliedro emergente e pirâmide invertida], EDB, 2017 – encontrei, no site Settimana News, a bela introdução que Marcello Neri escreveu para uma coletânea, que está sendo publicada para a ocasião, intitulada “Profezia di Francesco. Traiettorie di un pontificato” [Profecia de Francisco. Trajetórias de um pontificado], pela EDB.Neste texto introdutório breve, mas denso, Neri diz algo de grande importância, e a partir da qual gostaria de começar para oferecer algumas considerações a mais.Marcello Neri concentra a sua atenção naquilo que podemos identificar de específico nesses sete anos de pontificado. E expressa assim:

 

 

“Porque o ponto de ruptura em relação aos seus dois antecessores não está tanto, ou não apenas, na visão da Igreja, mas, acima de tudo, na consciência histórica do fim de alguns processos seculares e do início de outros que estão levando a transformações profundas da socialidade humana e da antropologia moderna.”

 

Isso implica inevitavelmente uma profunda mudança, que encontra em Francisco o seu início e que pode ser bem descrita com estas palavras:

 

 

“Em comparação com João Paulo II e Bento XVI, Francisco não pensa e não age mais como se a modernidade ainda existisse; e, portanto, começa a delinear uma visão da Igreja e do catolicismo coerente com a efetividade histórica dentro da qual eles projetam a sua fidelidade ao evangelho do Reino e à criação desejada por Deus. Fidelidade que não pode mais ser unívoca e uniforme, a mesma e idêntica onde quer que a fé se encontre sendo vivida no cotidiano dos homens e das mulheres de hoje.”

 

 

Tudo isso implica, como consequência, uma “reescritura” da tradição, uma tradição que renuncie a alguns dos “lugares comuns modernos”, que, depois de Trento, haviam se imposto a tal ponto que se identificaram com a própria essência da fé:

 

 

“A decisão de Francisco é exatamente esta: apoiar a saída da Igreja Católica da luta contra os moinhos de vento da modernidade, reativando, no coração institucional da Igreja, a dinâmica original da notícia evangélica de Deus. Por muito tempo, a condição histórica permitiu que o catolicismo latino (aquele que se espalhou por todo o mundo) construísse um aparato conceitual, institucional, canônico e pastoral que podia renunciar formalmente ao corpo a corpo cotidiano com as Escrituras testemunhais.”

 

 

Esse é o quadro de compreensão que M. Neri delineia como basilar no pontificado, pelo menos nos seus primeiros sete anos de exercício. Parece-me que se trata de uma análise muito lúcida e convincente, da qual faria derivar, quase como corolários, duas consequências bastante importantes: por um lado, a superação do “dispositivo de bloqueio” que havia caracterizado a época de João Paulo II e de Bento XVI; por outro, a afirmação de um “novo equilíbrio” entre magistério positivo e magistério negativo.Para ser preciso, esclareço que utilizo as expressões “magistério negativo” e “magistério positivo” em sentido “técnico”: ou seja, como aquele magistério que consiste em “condenar proposições errôneas” ou em “definir proposições de fé”. O primeiro é “negativo” porque nega erros, o segundo é “positivo” porque faz proposições de verdade.

 

 

A tradição não está mais bloqueada   

 

 

O primeiro aspecto do magistério de Francisco que é bom enfatizar é o fato de que, desde o início, ele se move em vista da recuperação urgente de um conceito “dinâmico” de tradição. Muitas das expressões mais características da Evangelii gaudium, ainda em 2013, derivam precisamente dessa leitura “não estática” da tradição.Nessa intenção, Francisco não faz nada mais do que retomar a grande intuição do Concílio Vaticano II, que, ainda no fim do papado de Paulo VI, mas principalmente durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, havia sofrido um drástico redimensionamento, até encontrar, indiretamente, a sua negação na implícita teorização de um “dispositivo de bloqueio” mediante o qual a Igreja só podia encontrar a tradição no seu passado, despojando-se de toda autoridade sobre o novo.A redescoberta da autoridade do presente e do futuro para instituir plenamente a experiência da tradição me parece ser o maior ganho eclesial desses sete anos. A relevância do tempo sobre o espaço e da realidade sobre a ideia – de acordo com dois dos famosos princípios introduzidos pela Evangelii gaudium – são a tradução mais clara dessa perspectiva, precisamente, que reage com autoridade contra a tendência à espacialização e à idealização da tradição.A resistência e a oposição a Francisco ao longo desses sete anos podem ser compreendidas como a inércia de uma visão da Igreja em que o “controle do espaço” exclui a relevância do tempo e em que a “defesa da ideia” imuniza da realidade. O fato de ter dado uma nova evidência aos “sinais dos tempos” e à “força do real” no anúncio do Evangelho é o primeiro dado qualificador do exercício do magistério desses sete anos.

 

 

Novo magistério positivo, novo magistério negativo

 

 

O segundo aspecto que gostaria de destacar e que está conectado com o primeiro implica uma reavaliação da “forma magisterial”. Para entender bem, é preciso uma premissa.Ao longo da história, o exercício do “magistério pontifício” foi caracterizado pela predominância de um “magistério negativo” sobre o “magistério positivo”, de acordo com o significado dos termos que já esclareci acima. De fato, foram poucas as “formulações dogmáticas”, mas muito numerosas as “condenações”. E isso não era apenas um limite do exercício clássico do magistério. Um magistério que “condena proposições” condena apenas estas. Nada mais. Deixa um espaço de liberdade muito grande. Até o Concílio Vaticano I, assim se moveu o magistério.Com os dois Concílios Vaticanos, as coisas mudam radicalmente, até a emergência, com o Vaticano II e depois dele, de uma predominância absoluta do magistério positivo sobre o magistério negativo. De fato, um dos fenômenos mais interessantes, a partir dos anos 1960, é a progressiva extensão da competência positiva do magistério, que se torna até “invasivo”. E esse não é um fenômeno desprovido de limites.Poderíamos dizer que, paradoxalmente, a extensão do magistério positivo não é apenas um fato positivo. Porque isso modifica profundamente as lógicas eclesiais, determinando uma relevância desproporcional do magistério pontifício em relação às outras formas de exercício de autoridade eclesial. E é, no fundo, a sombra longa da lógica ordenamental imposta pelo Código de Direito Canônico de 1917, assim como em 1983.Criou-se, assim, depois do Vaticano II e até Bento XVI, um “sistema” em que o magistério papal absorvia em si toda a autoridade, até se definir não apenas positivamente, mas também negativamente: onde não se reconhecia autoridade, não havia outra autoridade.

 

 

Com Francisco, mudam ambos os fronts dessa composição institucional e ideal. Por um lado, de fato, o magistério positivo de Francisco é interpretado com nova liberdade, tanto linguística quanto institucional. É evento linguístico e evento experiencial.Por outro lado, ele assume o elemento “negativo” não mais em termos de “condenação de proposições errôneas” (de acordo com a solução clássica), mas nem mesmo em termos de “exclusão de autoridade” (de acordo com a solução predominante no pós-Concílio), mas como que se referindo a “outras entidades” (e isso parece ser evidente – e, por isso, embaraçoso – especialmente na Amoris laetitia e na “Querida Amazônia”).

 

 

Um “magistério papal” que “não deve resolver todas as questões” é uma leitura “clássica” da função magisterial, que reconhece seu próprio limite, ao qual, porém, não estávamos acostumados há pelo menos dois séculos. Parece-nos uma revolução, ou uma subversão, somente porque somos todos cristãos e católicos de memória curta.Assim, eu poderia dizer que, ao longo desses sete anos cujo aniversário ocorre nesta sexta-feira, conhecemos gradualmente uma forma nova e antiga de exercício do magistério papal, que está se renovando tanto do ponto de vista do exercício do “magistério positivo”, quanto do ponto de vista do exercício do “magistério negativo”.

 

 

Não é de se surpreender que essas novidades não apenas deixem o corpo eclesial com algum constrangimento, mas também encontrem uma objetiva dificuldade de serem elaboradas de modo plenamente eficaz. No entanto, é preciso reconhecer com gratidão que o horizonte está aberto, a linguagem está inaugurada, os gestos são fortes e bonitos, e os princípios de implementação não faltam.Esses sete anos foram não apenas “o início de um início”, mas também, e talvez ainda mais, um “ponto de não retorno”. Com o qual podemos nos alegrar. Mesmo que, imediatamente, esse “início” crie para todos apenas uma complicação, por mais maravilhosa que seja.De fato, ela implica a reavaliação de um aparato conceitual, institucional, canônico e pastoral, ao qual nos dedicaremos – começando por nós mesmos até os nossos bisnetos – por pelo menos um século.Esses sete anos de graça têm o dedo apontado para pelo menos quatro gerações vindouras: assim funciona o primado do tempo sobre o espaço.

 



CONCLUSÃO:

 

 

 

“Precisamos identificar a cidade e partir de um olhar contemplativo, isto é, um olhar de fé que descubra Deus, que habita nas casas, nas ruas e nas suas praças” (EG 71).

 

 

“Na cidade, o elemento religioso é mediado por diferentes estilos de vida, por costumes ligados a um sentido do tempo, do território e das relações que diferem do estilo das populações rurais” (EG 72).

 

 

Francisco nos convida a lançar um olhar contemplativo, pois só um olhar de fé pode identificar, na complexidade urbana, a presença de Deus. É justamente nessa complexidade que se deve identificar sua presença/ausência. Assim, o olhar para a cidade tem de ser um olhar sociológico, capaz de identificar seus problemas e contradições, sem, contudo, deixar de ser um olhar de esperança, de simpatia e de empatia. Um olhar com atitudes proféticas, um olhar de ternura e amor. O nosso olhar para a cidade deve ser portador de vida.Ninguém consegue descrever as cidades. O que é possível é traçar linhas do fenômeno urbano. Conhecer uma cidade não é tarefa fácil, pois sua realidade é muito complexa e inconstante.Nas cidades, deparamos com um ritmo acelerado, com a setorização e fragmentação da vida, com o anonimato, a solidão (vemos pessoas que não nos veem, e pessoas que não vemos nos enxergam), o corre-corre, o consumismo, a busca de realização de sonhos e de felicidade, os devaneios e – inevitavelmente – os desgastes, frustrações e desânimos. Na cidade, imperam relações secundárias e formais, embora se deseje ter relações primárias e pessoais.As cidades são realidades dinâmicas. Precisa-se entender o jeito da cidade e descobrir os seus valores. São mosaicos irregulares com áreas de diferentes tamanhos, formas e conteúdos.Muitos temas estão em jogo; entre eles, o tamanho demográfico e possíveis configurações: cidades industriais, lugares centrais, cidades de setores antigos, de origem colonial, setores modernos, loteamentos murados e condomínios fechados, que constituem algumas das formas pelas quais se apresentam no atual contexto histórico.

 

 

“Deus vive na cidade em meio a suas alegrias, desejos, esperanças, como também em meio a suas dores e sofrimentos. As cidades são lugares de liberdade e oportunidades” (DAp 514).

 

 

Destarte, faz-se necessário um olhar multidisciplinar para as cidades, enxergando-as do ponto de vista antropológico, teológico, eclesiológico, pastoral e profético. O olhar antropológico visa ao reconhecimento do território como área física, considerando suas barreiras geográficas, os dificultadores e facilitadores para o acesso aos serviços de evangelização.

 

O olhar teológico leva a afirmar que na cidade há sinais da presença de Deus.

 

O olhar eclesiológico é a nucleação da comunidade de fé.

 

O olhar pastoral faz com que a Igreja reencontre o seu caminho de ação, reencontre o contemporâneo (viva o tempo real), que é o tempo da informação, da produção, do conhecimento, do saber cego.

 

O olhar profético significa ir em direção à cidade, tomar em consideração suas diversas realidades e os contextos nos quais as pessoas estão inseridas.

 

 

Necessitamos desenvolver olhares, pois Deus se esconde nas cidades e devemos procurá-lo sempre, trabalhando bastante para isso.

 

“A cidade dá origem a uma espécie de ambivalência permanente, porque, ao mesmo tempo que oferece aos seus habitantes infinitas possibilidades, impõe numerosas dificuldades ao pleno desenvolvimento da vida de muitos” (EG 74).

 

 

O papa fala de problemas e desafios nas cidades. Nelas, “facilmente se desenvolvem o tráfico de drogas e de pessoas, o abuso e a exploração de menores, o abandono de idosos e doentes e várias formas de corrupção e crime” (EG 74).Necessitamos de uma evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente e suscite os valores fundamentais. Uma evangelização que leve a Palavra de Jesus aos núcleos mais profundos da alma das cidades. As cidades são multipolares, multiculturais. A Igreja é chamada a ser servidora de um diálogo difícil. Nas cidades, encontram-se cenários de protestos em massa, nos quais milhares de habitantes reclamam liberdade, participação, justiça e fazem várias outras reivindicações que, se não forem adequadamente interpretadas, podem caminhar para uma situação ainda mais crítica, com desfechos imprevisíveis.O melhor remédio para os males urbanos (tráfico de drogas e de pessoas, abuso e exploração de menores, abandono de idosos e doentes, várias formas de corrupção e crimes) é o evangelho. A proclamação do evangelho será base para restabelecer a dignidade nesses contextos, porque Jesus quer derramar nas cidades vida em abundância (cf. Jo 10,10).A Igreja católica tem presença tímida na dinâmica da evangelização nas cidades. Ela está se esfacelando num emaranhado de diferentes composições e abrangências, com cada fiel evangelizando como lhe parece melhor, à luz de seus próprios interesses. Tornamo-nos enorme shopping center de religiosidade católica, onde se encontram produtos para os gostos de todos os fregueses, sem qualquer controle de qualidade.As cidades, com o fenômeno do anonimato e a facilitação do descontrole, tornam-se terreno fértil para a evangelização à la carte.

 

O paradigma da “Igreja em saída” exige, além de um êxodo geográfico e social, sobretudo saídas ideológicas, mudanças culturais e revisões históricas que são de longa duração. A Igreja, que perdeu sua capacidade de voar pela permanência na “gaiola pós-conciliar”, necessita de uma fisioterapia prolongada para recuperar sua capacidade de movimentar-se, de voar e de assumir corajosamente as novas necessidades pastorais. A “Igreja em saída” não pode concentrar-se somente ao aqui e o agora da situação herdada. Ela necessita de critérios para o discernimento do passado e as prioridades do futuro. Para um sucessor provar a sua legitimidade, não bastam citações textuais dos antecessores. Às vezes, é necessário corrigir o passado imediato para conectar-se com a legítima tradição da Igreja, com sua origem e com seus mártires. A causa, pela qual alguém dá a vida, contém, geralmente, um núcleo histórico da verdade.

 

 

Nos imperativos da EG percebe-se resistências internas à “Igreja em saída”. A quem se dirige o Papa Francisco ao nomear essas tensões ou para estimular sua própria vigilância? Com quem pode contar nessa luta ad intra?

 

- “Não deixemos que roubem nosso entusiasmo missionário!” (EG 80).

 

- “Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização!” (EG 83).

 

- “Não deixemos que nos roubem a esperança!” (EG 86).

 

- “Não deixemos que nos roubem a comunidade!” (EG 92).

 

- “Não deixemos que nos roubem o Evangelho!” (EG 97).

 

- “Não deixemos que nos roubem o ideal do amor fraterno!” (EG 101).

 

- “Não deixemos que nos roubem a força missionária!” (EG 109).

 

 


Quem ameaça o Evangelho, a alegria da evangelização, a esperança, o amor fraterno, a comunidade, a força e o entusiasmo missionários? Quem são os inimigos internos da Igreja? O paradigma da “Igreja em saída” não é uma receita nem aponta para um aplicativo virtual. É um horizonte que nos faz caminhar em meio a graças e desafios. Se o magistério do papa Francisco é ruptura ou continuidade? Acredito que ainda é cedo para formar juízo definitivo, portanto, a paciência histórica é quem o revelará, resta-nos sermos fieis a integralidade da Sagrada Tradição, Palavra e Magistério, e usando com o papa Francisco o critério Paulino:

 

 

I Tessal 5, 18-24: “Dai graças em toda e qualquer circunstância, porquanto essa é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco. Não apagueis o fulgor do Espírito. Não trateis com desdém as profecias, mas, examinai todas as evidências, retende apenas o que é bom. Afastai-vos de toda a forma de mal. Que o próprio Deus da paz vos santifique integralmente. Que todo o vosso espírito, alma e corpo sejam mantidos irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Aquele que vos chama é fiel, e Ele também o fará...”

 

 

 

FONTES BIBLIOGRÁFICAS:

 

 

-http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597071-sete-anos-de-francisco-novo-magisterio-positivo-e-negativo-artigo-de-andrea-grillo

 

-AQUINO, Júnior Francisco de. Teologia do Papa Francisco: Igreja dos Pobres. São Paulo: Paulinas, 2018.

 

-FRANCISCO, Papa. Misericordiae Vultus: O rosto da misericórdia – Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia. São Paulo: Loyola, Paulus, 2015.

 

-FRANCISCO, Papa. A Alegria do Evangelho – Exortação Apostólica. São Paulo: Paulinas, 2013.

 

-FRANCISCO, Papa. Laudato SI’: Carta Encíclica sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

 

-FRANCISCO, Papa. Misericórdia et Misera: Carta Apostólica no termino do Jubileu Extraordinário da Misericórdia. São Paulo: Paulinas, 2016.

 

-FRANCISCO, Papa. Amoris Laetitia: Exortação Apostólica Pós-sinodal sobre o amor na família. São Paulo: Paulinas, 2016.

 

-MIRANDA, Mario de França. A Reforma de Francisco: Fundamentos teológicos. São Paulo: Paulinas, 2017.

 

-https://www.vidapastoral.com.br/edicao/os-grandes-temas-do-pontificado-do-papa-francisco/

 

-PASSOS, J. D. A Igreja em saída e a casa comum: Francisco e os desafios da renovação. São Paulo:Paulinas, 2016.

 

-https://www.vidapastoral.com.br/ano/evangelizar-as-cidades-a-luz-do-magisterio-do-papa-francisco/

 

-https://periodicos.pucpr.br/index.php/pistispraxis/article/view/1312/1249

 

 

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