O cântico do irmão sol é o cântico das criaturas, escrito
por São Francisco de Assis:
Altíssimo, onipotente, bom
Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a
honra
E toda a bênção
Só a Ti Altíssimo, são devidos;
e homem algum é digno
De te mencionar.
Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as Tuas criaturas,
Especialmente o Senhor irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos alumia.
E ele é belo e radiante
Com grande esplendor.
De Ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste claras
E preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado
Ou sereno, e todo o tempo,
Pelo qual às Tuas criaturas dás
sustento.
Louvado sejas, meu Senhor
Pela irmã Água,
Que é mui útil e humilde
Preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão fogo.
Pelo qual iluminas a noite.
E ele é belo e jucundo
E vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a mãe Terra,
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos
E coloridas flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por Teu amor,
E suportam enfermidades e
tribulações.
Bem aventurados os que sustentam
a Paz,
Que por Ti, Altíssimo, serão
coroados.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a Morte corporal,
Da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrerem em pecado
mortal!
Felizes os que ela achar
Conformes à Tua santíssima
vontade,
Porque a morte segunda não lhes
fará mal!
Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-Lhe graças,
E servi-O com grande humildade.
Caso queira ver o cântico acompanhado de imagens e um belíssimo fundo
musical, veja tudo isto no link abaixo:
Inverno 1224-1225.
Francisco de Assis é um homem de pouco mais de quarenta anos, que viveu de acordo com os
preceitos do santo Evangelho. O Senhor havia lhe
dado alguns irmãos, aos quais entregou uma regra que a Igreja aprovou, embora
tenha continuado a reiterar que a única verdadeira Regra é "observar o
santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo" (Regula bullata 1). Quando sua comunidade torna-se grande, em 1220 ele
deixa a direção aos irmãos, mas não renuncia a ser seu guia espiritual, embora
verifique que o projeto que o Senhor tinha revelado agora já não era mais
seguido por seus irmãos, e ele havia se tornado objeto de contestação e também
de desprezo. Frequentemente, em retiro com algum irmão, vive a
"grande tentação", enquanto a saúde física deteriora-se e a doença o
torna fraco e tira-lhe a visão. Em sua enfermidade, é acolhido por Clara no
jardim do mosteiro, cada vez mais provado e tentado, mas confortado pela
presença da mulher que se dizia "plantinha de Francisco."Agora já
muito parecido ao seu Senhor humano, depois de uma noite terrível, de trevas
até mesmo interiores, na manhã levantou-se e disse aos irmãos que estavam com
ele:"Pela graça e bênção tão
grande que me foi dada (...) quero, em
louvor Dele, para o meu consolo e para a edificação do próximo, compor um novo
Louvor ao Senhor por suas criaturas "(Legenda Perusiana [ Compilatio
Assisiensis] 43; Fontes franciscanas 1591). E assim, um silêncio,
com o rosto voltado para o sol que já não podia mais ver, porque seus olhos
estavam vendados depois de ter sidos cauterizados, começou a dizer:Altissimu onnipotente bon
Signore, Tue so’ le laude, la gloria e l’honore et onne benedictione. Ad Te
solo, Altissimo, se konfane et nullu homo ène dignu Te mentovare (o texto é tirado de Fontes franciscanas
263). Eis como nasceu o Cântico do Irmão Sol ou Cântico das Criaturas: de um
homem, um cristão doente, fraco, pobre e em tentação, já cego, impossibilitado
de ver o sol e as outras criaturas. Com esse cântico,
alimentado pela oração, inspirado pelos salmos bíblicos (e não por um
gnosticismo panteísta) e gerado por seu coração capaz de ver e observar com os
olhos a beleza de cada criatura animada ou inanimada, Francisco diz
primeiramente um "amém", um "sim" à vida e a este mundo, em
seguida, louva, agradece ao seu Senhor que chama com intimidade e amor
"mi’ Signore', o meu Senhor. Como nos testemunha Tomás de Celano:Francisco “já não era mais um homem que orava, havia se tornado uma
oração viva” (non tam orans, quam oratio factus; o texto é de Segunda Vida 95;
Fontes franciscanas 682).Ao Altíssimo, ao bom
Senhor, ao mi’ Signore - epítetos divinos dispostos em uma escala de decrescente,
do céu à terra - Francisco em primeiro lugar confessa que o louvor é devido à
glória, à honra e à bênção, em uma doxologia que lhe foi inspirada pelas
aclamações das liturgias celestes narradas no Apocalipse (cfr. Apocalipse 4,
11; 5, 9-10.12-13, etc).Deus é aquele que é
Altíssimo, porque Francisco sente-se muito baixo (o très-bas de Christian
Bobin) e sente que nenhum homem, nem mesmo ele, é digno de
"mentovarlo", de nomeá-lo, porque Deus permanece inefável, indizível,
de acordo com todos os Escrituras do Antigo e do Novo Testamento: "Deus
nunca foi visto" (Jo 1, 18):"Ninguém jamais viu a Deus" (1 Jo 4, 12). Por isso não deve
ser nomeado, sendo o seu Nome impronunciável, misterioso, e sendo uma operação
arriscada dar nomes a Deus. Nesse primeiro verso do Cântico existe, portanto,
apenas uma confissão de louvor a Deus e de humildade-indignidade de quem se
atreve a rezar.
Eis aqui a possibilidade do louvor "através" e
"com" todas as criaturas!
O louvor cósmico não
é feito de palavras sonoras, mesmo assim é uma mensagem que um dia fala a
outro dia e uma noite a revela a outra noite (cfr. Salmo 19, 2-3), de modo que
o cosmos está repleto de louvor que se eleva a Deus. Não convocam, por fim, os
salmos as criaturas do céu, da terra e das profundezas a louvar ao Senhor?
No livro de Enoque está escrito: "O sol e a lua dão graças e louvam
incessantemente. Para eles, de fato, o agradecimento é repouso "(41, 6-7).
Então, o cântico de Francisco respira o ritmo de aleluia do convite ao louvor
do Senhor, tornando-se voz de cada criatura.Francisco ama todas
as criaturas que vê, encontra, com que interage. Ele as vê, não só as olha,
contempla-as até exultar e alegrar-se por sua existência ou presença.Francisco busca pela beleza, é um amator pulchritudinis (cfr. Regra de
Agostinho 8, 1), um visionário que penetra além da matéria, não negada, não
desprezada, mas percebida como reflexo, um sinal do Criador.Gregório Magno afirma em uma homilia:"O homem tem algo de todas
as criaturas. Com as pedras têm em comum o fato de ser, com as árvores, a vida,
com os animais, os sentidos e com os anjos, a inteligência. Se, portanto, tem
algo em comum com todas as criaturas, ele é, em certo sentido, toda criatura "(Homilia 29, 2, Sources Chrétiennes
522.202).O ser humano está, portanto,
habilitado não só a ordenar e a subjugar, mas principalmente a tutelar, a ser
responsável, a unir a sua voz com àquela das criaturas - cum tucte le tue
creature – até tornar-se a sua voz. Depois, então, o cântico prossegue:Laudato sie, mi’ Signore, cum tucte le Tue creature, spetialmente messor
lo frate sole, lo quale è iorno, et allumini noi per lui. Et ellu è bellu e
radiante cum grande splendore: de Te, Altissimo, porta significatione. Para quem, para o que deve ser "spetialmente" –
ou seja, em primeiro lugar, acima de tudo, de uma maneira especial - louvado o
Senhor? Para "messor",
"o meu senhor," irmão sol. O sol, o sol sem o qual não haveria vida,
sem o qual reinaria a escuridão da morte! Foi a primeira criatura adorada pelos
homens e leve será a repreensão para aqueles que o transformaram em ídolo,
porque seduzidos pela beleza, luz, pelas possibilidades de vida que traz com
ele (cfr. Sabedoria. 13, 1-7).Para Francisco, o sol é
"significatione", porque no sol ele contempla a ação luminosa e
vivificante de Deus. O sol nos dá todas as manhãs o dia, ilumina as nossas
vidas e é belo, glorioso no seu irradiar esplendor. Quem entre nós nunca sentiu
em si a necessidade de se ajoelhar na frente do Irmão Sol em gratidão a Deus, e
não por adoração? Quem entre nós nunca disse para si mesmo, ao acordar
pela manhã e ver o sol, que aquele dia era melhor do que um dia nublado,
sombrio? Claro, só os puros de coração veem Deus nas criaturas, especialmente
no sol, não como aquele gnosticismo panteísta.Francisco também tinha praticado
cantar o louvor de Deus ao amanhecer, quando o sol aparece no horizonte,
estrela da manhã; ao meio-dia, quando ele reina no céu e aquece a terra e o
coração; à noite, quando ele se põe e desaparece, como memória que para cada um
de nós há um fim para o seu dia. A sua oração, cadenciada pelos movimentos do
sol, levou-o a considerá-lo "messor", "meu senhor", e lê-lo
como um grande sinal de Deus, de Cristo, o sol da justiça (cf. Mc 3, 20; Lucas
1, 78; Apocalipse 2, 28; 22, 16). Após o louvor ao sol, Francisco
continua:Laudato si’, mi’ Signore, per sora luna e le stelle: in celu l’ài
formate clarite et pretiose et belle. Depois do sol, que
permite o dia, eis também os luminares da noite, a lua e as estrelas. Foram
moldadas pelo Criador “clareadas", claras, com uma luz branca, são
preciosas como pérolas que pontilham a noite e também são lindas de se olhar,
de contemplar. Olhar para o céu estrelado, observar seu lento movimento, seguir
o aparecimento e desaparecimento dos planetas, decifrar as fases da lua em seu
crescer e minguar, é operação de reconhecimento da abóbada celeste que os seres
humanos sempre fizeram, ouvindo extasiados a aceleração dos próprios batimentos
cardíacos. A lua, tão fiel aos seus encontros, a Lua que desde os tempos
antigos marca o tempo, a lua em cujo brilho noturno pode-se ouvir o silêncio e a
natureza que geme e sofre. Até mesmo Clara, era luminosa como as estrelas na
noite de Francisco: luminosa, discreta e fiel! Laudato si’, mi’ Signore, per frate vento et per aere et nubilo et
sereno et onne tempo, per lo quale a le Tue creature dài sustentamento. Depois do sol, da lua
e das estrelas, o louvor sobe ao Senhor para o vento e para o tempo que está
nublado ou sereno, conforme o necessário. O vento é a respiração do mundo, faz cantar
as criaturas inanimadas quando as acaricia ou flagela: picos e desfiladeiros
das montanhas, vales, árvores, folhas... Como o Espírito, não se sabe de onde
vem nem para onde vai: símbolo de liberdade, de força que você não pode
segurar, de realidades invisíveis, mas experimentáveis, que não podem ser
detidas (cfr. Jo 3, 5-8). Graças ao vento que traz nuvens carregadas de
chuva e, depois, as varre trazendo de volta o céu sereno, Deus dá sustento a
todas as criaturas, porque assim "derrama chuva sobre justos e
injustos" (Mt 5, 45), como Pai misericordioso. "No vento, se você souber ouvi-lo, tem Alguém", dizia Gaston
Bachelard. Francisco sabe que Deus "faz seus mensageiros os ventos"
(Salmo cf. 104: 4) e que o vento é sinal da presença do Senhor, porque é
invisível, mesmo assim pode ser experienciado. Não teve, de fato, vento no
início da criação, quando soprava sobre as águas primordiais (cfr. Gn 1, 2)?
Não teve vento na saída de Israel do Mar Vermelho (ver Êxodo 15: 8.)? Não teve
brisa silenciosa no rosto de Elias no Horebe (cf. 1 Reis 19, 12)? Não teve um
vento veemente na descida do Espírito no dia de Pentecostes (cf. At. 2, 1-2)?Portanto, seja
louvado o Senhor por esta criatura, o vento, criatura invisível, mas cuja
presença é evidente quando chega sobre as criaturas visíveis, que estremecem à
sua passagem. Segue o louvor para os outros elementos: água, fogo, terra.
Começa pela água:Laudato si’, mi’ Signore, per sor’aqua, la quale è multo utile et humile
et pretiosa et casta.
“Louvado sejas, meu Senhor
Pela irmã Água,
Que é mui útil e humilde
E preciosa e casta!”
Para a água sobe a
Deus o louvor, porque é muito útil, útil como o sol para a vida. Sem água só é
possível uma terra desolada, o deserto, enquanto nos lugares chega a água flui
a vida. É por isso que é destinada para todos, não pode submeter-se à lógica do
meu e do teu! Além disso, se destina a todos aqueles que vivem na terra,
animais, vegetais, mas também minerais que, graças à água, se transformam, e
podemos dizer que eles também vivem, não biologicamente, mas mudando ao longo
dos séculos.Francisco sente a necessidade de
dizer que a água não é apenas útil, mas
também humilde, humilde na sua simplicidade, humildade, porque sempre vai para
baixo, contorna obstáculos sem dicutir com eles. Também é preciosa porque fecunda a terra; e dessa preciosidade só
nos apercebemos quando falta, na seca, mas justamente por isso Francisco lembra
sua preciosidade. Por fim, a água é casta, porque transparente, límpida. A castidade, de fato, é a transparência em
todas as relações, exclui toda fusionalidade, toda ocultação, toda turbidez e
misturas que não condizem com a verdade de Cristo.Laudato si’, mi’ Signore, per frate focu, per lo quale ennallumini la
nocte: et ello è bello et iocundo et robustoso et forte.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão fogo.
Pelo qual iluminas a noite!
E ele é belo e jucundo
E vigoroso e forte.
Raramente agora vemos
o fogo e quase nunca o acendemos. No entanto, até um século atrás, todas as
noites, os homens e as mulheres acendiam o fogo para iluminar a noite, mas
também, para se aquecer e cozinhar seus alimentos. Cada casa tinha uma lareira,
a ponto de usar sua presença para indicar o número de famílias: "Essa
aldeia tem tantas lareiras, tantos fogos". Acender o fogo foi considerado
uma ação sagrada, e quando o fogo ardia, a alegria enchia o coração. Para
Francisco o fogo, como o sol, a lua e as estrelas, é lindo de se olhar,
contemplar. Parece robusto, forte, porque queima qualquer coisa, coloca em
brasa e torna dúctil o ferro, discerne e purifica o ouro.É preciso ser
capaz de ler o fogo para apreciá-lo devidamente: as cores brilhantes de sua
chama que dependem da madeira seca ou ainda verde com que é alimentado, das
diferentes árvores de onde é tirada a madeira; o seu crepitar que desprende
faíscas, que parecem estrelas e que, em vez de descer, sobem e dançam para o
alto; o calor que sabe emanar a brasa coberta pelas cinzas para manter o fogo
para o dia seguinte. O fogo é um sinal daquilo que Jesus queria
trazer para a terra e ver arder (cf. Lucas 12, 49), é sinal de paixão, de amor,
de ardor dos nossos corações (cf. Cântico dos Cânticos 8: 6). Como o fogo,
também o amor se acende, se inflama, queima, aquece, deve ser alimentado,
conservado e às vezes se apaga. E, por fim, a irmã e mãe terra:Laudato si’, mi’ Signore, per sora nostra matre terra, la quale ne
sustenta et governa, et produce diversi fructi con coloriti flori et herba. Se o sol era chamado,
"messor", "meu Senhor," a terra é a chamada irmã e mãe, porque nós, humanos, de acordo com a Bíblia
somos "terrosos", extraídos da terra (adam tirado da 'adamah: cfr
Gênesis 2, 7 ), que é uma criatura como nós, portanto, irmã. Mas tendo sido
tirados da terra, voltamos à terra (cfr. Gn 3, 19), para os braços da mãe
terra, em suas vísceras. A terra, essa terra
que nós amamos, essa terra que nos acolheu e que nos sustenta dando-nos
alimentos, essa terra que habitamos e sobre a qual nos movemos, essa terra à
qual nos apegamos até sofrer no momento de deixá-la. Essa é a mesma terra que
também Deus quis habitar através de seu Filho, Jesus, que a amava: amava a
Galileia, terra de seus pais; amava os campos onde se semeia o trigo, as
figueiras nas quais procurava os frutos, as parreiras das quais bebia o vinho,
as flores dos campos que contemplava vestidos mais gloriosamente que Salomão
(cfr Mt 6, 29;Lc 12, 27); amava aquela terra que seus pés pisaram, cobrindo-se
de poeira. Francisco canta-a
como mãe que nos dá o alimento como sustento, uma terra que como
uma mãe, mana de suas entranhas leite e mel (Êx 3,8) como também os frutos
da terra que chegam até nossas mesas, mas também as flores tão gratuitas, que
com a sua beleza alegram nossos olhos e olfato.Sobre esta terra Francisco,
agonizante, quis estender-se nu, para morrer em contato e comunhão com ela como
filho, irmão e mãe.Este é o Cântico do
Irmão Sol que Francisco compôs e quis que fosse cantado. Mas em 1225-1226
nasceu um dissídio entre o podestà e o bispo de Assis. Francisco, doente, quis
intervir para trazer a paz e, adicionando um verso ao Cântico, envia um de seus
frades para cantá-lo diante dos dois contendores (cfr. Legenda Perusina
[Compilatio Assisiensis] 44; Fontes franciscanas 1593), mostrando como, para
ele, a atenção para as criaturas não poderia ser separada da atenção aos
assuntos humanos, da cidade e da história. Este é o verso que ele compôs e fez
cantar:Laudato si’, mi’ Signore, per quelli ke perdonano per lo Tuo amore, et
sostengo infirmitate et tribulatione. Beati quelli che ‘l sosterrano in pace,
ka da Te, Altissimo, sirano incoronati... Francisco sabe louvar
a Deus com as criaturas do céu e da terra, mas também sabe que o louvor sobe
para Deus quando os seres humanos na terra entram em acordo, perdoam-se,
reconciliam-se e celebram a paz. São o perdão e a misericórdia que, acima de
tudo, louvam a Deus, porque é principalmente essa a vontade do Senhor: que os
seres humanos se sintam irmãos e amem-se uns aos outros, como Cristo os amou
(cfr. Jo 13, 34; 15, 12). A paz é o bem supremo para a humanidade e, ao mesmo
tempo é o mais verdadeiro louvor, glorificação, bênção que se eleva a Deus.Outono de 1226, na
véspera da morte de Francisco. Sua vida já foi transcorrida e o que a
caracterizou foi a fraternidade e a irmandade. Sim, a vida de Francisco foi
fraternidade com os pobres, os ricos cheios de bens e vazios na alma, os
doentes, os pecadores, os rejeitados pela sociedade como ladrões e leprosos, e
também a fraternidade com todas as criaturas do céu e da terra. Nunca desprezou
qualquer criatura, nunca procurou nos outros o mal, mas tentou ler o seu
sofrimento e desejo. Não foi um monge ascético que desprezava o
mundo, mas também não foi tentado a aderir aos cátaros, angustiados pelas
realidades desse mundo frágil e pecador e dedicados a um ascetismo sem medida.
Disse "amém" à vida, julgou boas e belas as obras da criação.
Havia rezado com a Bíblia, mas ao ser inspirado por ela foi ainda mais longe,
encontrou um vínculo de fraternidade e irmandade entre as criaturas e o homem
que a Bíblia não havia explicitado.Sim, existe um
vínculo universal entre todas as criaturas, uma irmandade que Francisco revela
e canta em seu cântico. Se Adão deu nome às criaturas (cfr. Gn. 2: 19-20),
Francisco as convoca a um Conventum (de cum-vir) porque convento e claustro era
para ele o mundo, não o mosteiro fortaleza e claustrum da Idade Média! À
imitação de Jesus nu na cruz na hora da morte, Francisco pede para ser colocado
nu sobre a terra nua, porque na nudez viveu a comunhão com todas as criaturas,
por ele amadas em sua nudez, naquela sua simplicidade que ele sabia ler como
beleza. E assim, fazendo uma anamnese da própria vida, e encontrando
nela a irmandade e a fraternidade que ele sempre viveu, com tudo e todos, até
mesmo a morte que chega pode ser chamada de irmã:Laudato si’ mi’ Signore per sora nostra morte corporale, da la quale
nullu homo vivente pò scappare: guai a quelli che morrano ne le peccata
mortali; beati quelli che trovarà ne le Tue sanctissime voluntati, ka la morte
secunda no ‘l farrà male.Mesmo a morte para
Francisco é irmã. E que a nossa irmã morte seja bem acolhida depois de um dia bem
dedicado. E nós aqui olhamos para ele e não comentamos porque somos
incapacitados de dizer uma palavra a mais. De fato, ainda não somos capazes de
chamar a morte de irmã! Então, em silêncio, com todas as criaturas, louvamos e
bendizemos o Senhor, agradecendo-o e permanecemos diante dele no serviço e na
humildade, como Francisco conclui em seu Cântico:Laudate et benedicete mi’ Signore’ et rengratiate et serviateli cum
grande humilitate.
Carlos María Galli,
da Universidade Católica da Argentina e membro da Comissão Teológica
Internacional, comentou na edição do jornal L’Osservatore Romano, o terceiro
capítulo do Documento de Aparecida de 2007, redigido pela Comissão presidida
pelo então cardeal Jorge Mário Bergoglio, em cujo texto se encontram os
ensinamentos do Papa Francisco contidos na encíclica Laudato sì e muitas
questões tratadas no último Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia.Em 2007,
realizou-se no Santuário de Aparecida, Brasil, a V Conferência Geral do
Episcopado da América Latina e do Caribe sobre o tema "Discípulos e
Missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida".Tive a graça de ser
um dos peritos teólogos daquela assembleia e de colaborar com a Comissão para a
redação do Documento conclusivo presidida pelo cardeal Jorge Mario Bergoglio,
SJ. O seu terceiro capítulo ilustra a alegria de ser discípulos missionários
que anunciam o Evangelho e, entre as boas novas nascidas da Boa Nova, anuncia
"o destino universal dos bens e da ecologia". Um parágrafo
significativo pertence a esta seção. "Com os povos originários da
América, louvemos ao Senhor que criou o universo como um espaço para a vida e a
convivência de todos os seus filhos e filhas, deixando-nos como sinal de sua
bondade e da sua beleza. A criação é
também uma manifestação do amor providente de Deus; foi-nos dada para que a
cuidemos e a transformemos numa fonte digna de vida para todos. Embora hoje uma
cultura de maior respeito pela natureza tenha se espalhado, percebemos
claramente de quantas maneiras o homem ainda ameaça e destrói o seu habitat.
‘Sora nostra matre terra’ é a nossa casa comum e o lugar da aliança de Deus com
os seres humanos e com toda a criação. Não levar em consideração as mútuas
relações e o equilíbrio que o próprio Deus estabeleceu entre as coisas criadas,
constitui uma ofensa ao Criador, um atentado contra a biodiversidade e, em
última análise, contra a vida. O discípulo missionário a quem Deus deu a
criação deve contemplá-la, conservá-la e utilizá-la, respeitando sempre a ordem
que lhe foi dada pelo Criador" (Documento de Aparecida, n. 125).
Neste texto, e em
outros parágrafos do documento (nn. 83-87, 470-475), há uma antecipação dos
ensinamentos do Papa Francisco contidos em sua encíclica sócio-ambiental
Laudato si e dos temas tratados na Assembleia especial do Sínodo dos Bispos
para a região amazônica sobre o tema "Amazônia: Novos caminhos para a
Igreja e para uma ecologia integral". No cuidado da casa comum vemos que
Bergoglio cooperou com Aparecida e que Aparecida coopera com Francisco.No precioso parágrafo acima mencionado, gostaria de
chamar a atenção apenas para a frase "Sora nostra madre terra". Estava já presente no
projeto do segundo esboço desse documento. Uma dos mais de 2.400 modos ou
propostas de modificação que chegaram à Comissão pediam que a frase fosse
eliminada, porque, dizia, continha uma ideologia indígena
ecologista, hostil à Igreja Católica, que idolatrava a mãe terra na figura da
Pachamama. A comissão rejeitou o
modus apresentado por um prelado latino-americano e decidiu colocar em nota a
fonte da frase entre aspas. Portanto, a nota de rodapé 58 do documento diz:
"Francisco de Assis, Cântico do Irmão Sol, versículo 20".Lembro-me deste
episódio pouco conhecido, que aconteceu há doze anos, porque na fase de
preparação do sínodo sobre a Amazônia, foram ditas e lidas afirmações
semelhantes às do modus citado pelos prelados que questionavam os parágrafos do
Instrumentum laboris sobre a mãe terra (nn. 17 e 84). Então me perguntei se
esses detratores, devido a uma inexplicável falta de cultura cristã, ignoraram
o Cântico ou o iludiam em sua dialética ofensiva. Durante o sínodo, no qual
participei como perito, pensei muito sobre o conteúdo dessa expressão
franciscana.O documento final não menciona o Cântico e se refere a São Francisco
somente no número 17 como "exemplo de conversão integral vivida com
alegria e alegria cristã", sem mencionar que foi nomeado patrono da
assembléia. Em vez disso, ele faz duas referências à mãe terra na busca de uma
ecologia integral (nn. 25 e 101).Desejo recordar aqui
a bonita estrofe (original), porque ilustra a sabedoria cristã no que diz respeito à
terra:
"Louvado sejas, meu Senhor,
pela nossa irmã, a mãe Terra,
que nos apoia e governa,
e produz diversos frutos
com coloridas flores e ervas."
A oitava estrofe do
Cântico é mencionada pelo Papa Francisco no início da Laudato si porque liga
familiarmente o ser humano à terra. A nossa casa comum é como uma irmã, com
quem partilhamos a nossa existência, e como uma bela mãe que nos acolhe nos
seus braços. Na poesia do Pobrezinho ouvimos o eco do canto dos três jovens
mártires que louvavam a Deus pelas suas maravilhas, narrado em um fragmento do
livro de Daniel, conservado em traduções gregas (cf. Dn 3, 53-90). Este hino de
bênção é fonte de inspiração para o cântico de São Francisco. Em dois versículos desse texto bíblico lemos:"Abençoa a terra, o Senhor, louvai-o e exaltai-o ao longo dos
séculos" (v. 74). A terra participa no coro de todas as criaturas que,
através da voz humana, louvam o Criador. Ela contém todos os seus frutos:
"Abençoai, todas as criaturas que germinam na terra, o Senhor" (v.
76).
Neste horizonte
sapiencial podemos identificar três relações do ser humano com a terra, duas
das quais são expressas em ambos os cantos de louvor. A estes acrescento um
terceiro, o filial:
1)- A terra é como
uma irmã,
porque nós, criaturas, viemos do único Deus, Pai Todo-Poderoso, Criador do céu
e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. A criação é um livro
aberto - o clássico liber creaturae -
que comunica ou revela, à sua maneira, a Verdade, a Bondade e a Beleza de Deus.
Contemplando a obra de arte conhecemos um pouco do Artista, o seu Autor (cf.
Sabedoria 13,5). O Pobrezinho de Assis dava a todas as criaturas o doce nome de
irmãs e as convidava a louvar a Deus.
2)- A Terra é como
uma mãe, porque alimenta nós seres que nascemos e crescemos neste mundo e, em particular,
aqueles que dela germinam. A terra recebe a luz, o calor e o carinho do irmão
sol, da irmã lua e do irmão fogo. É fecundada pela irmã água e, por sua vez,
fecunda o irmão vento, ar em movimento. A sabedoria da Palavra de Deus e de
todos os povos abençoa o Senhor, dizendo-lhes: "com o fruto das tuas obras
enche a terra" (Sal 103, 13).
3)- A terra nos
precede e nos é confiada. É também como uma filha para o ser humano, que é o
único a ter sido criado na terra à imagem e semelhança de Deus, a quem o Senhor
ama de modo pessoal e a quem entrega a obra das suas mãos (cf. Sl 8, 4-7). O irmão mais velho
tem a missão de cultivar e conservar a natureza (cf. Gn 2, 15), de a cultivar
sem a abandonar e de a salvaguardar sem a destruir.O Papa recorda a nossa
responsabilidade diante de Deus pela terra: "Isto implica uma relação
responsável de reciprocidade entre os seres humanos e a natureza" (Laudato
si, n. 67).
A Igreja invoca São
Francisco de Assis, o irmão universal, para encontrar uma ecologia integral na qual se
aprende e se ensina a amar e cuidar da terra como irmã, mãe, e filha!
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Shalom!
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