Verdades e mitos sobre a reforma da Previdência
Presidentes fortes tiveram medo
de reformar a Previdência. Fernando Henrique Cardoso, o domador da
hiperinflação, eleito e reeleito no primeiro turno, fez uma reforma leve. Lula o
presidente do povo, promotor da grande queda de pobreza do Brasil
contemporâneo, apenas começou uma reforma mais leve ainda. Dilma Rousseff, em
seu primeiro mandato, a recordista de aprovação popular entre presidente, limitou-se a concluir o que seu antecessor começara.
Eis que Michel Temer , um presidente sem voto próprio, com taxa de aprovação de
apenas 14%, e caindo, que em três meses de governo perdeu seis ministros
(quatro suspeitos de corrupção e dois suspeitos de impedir corrupção), à frente
de um país em crise política e econômica, resolve encarar a mais importante das reformas
do Estado brasileiro. Existem muitos mitos em torno da reforma da Previdência,
que hoje atende pelo nome de PEC 287/2016. Seja por conta de interesses de
corporações, como os sindicatos do funcionalismo público, que visam a
manutenção de privilégios, ou por pura desinformação, a verdade é que o debate
anda pautado por meias-verdades, ou mentiras inteiras. Como bem sabe o leitor,
é comum, nos dias de hoje, a construção de histórias bonitas, bem completas e
detalhadas, mas sem aderência à realidade, a fim de justificar posições
ideológicas. Na chamada “era da pós-verdade”, mais vale o feeling, o “eu acho”,
do que a realidade concreta. Aqui preferimos os fatos. Acreditamos que o bom
debate deve ser pautado em argumentos sólidos, sem falácias ou desonestidades.
Como disse certa vez William Deming: “In God we trust, all others must bring
data“, do português “Nós confiamos em Deus, todos os outros devem trazer
dados”.
Por
isso, decidimos expor, aqui, 8 grandes mitos sobre a reforma da Previdência:
1º Mito: “A Previdência faz parte da Seguridade
Social, que não é deficitária. Logo, não há problema”
Você com certeza já
deve ter ouvido isso por aí. Essa narrativa é muito repetida pelas redes, e foi
criada pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do
Brasil – ANFIP, bem como pela pesquisadora Denise Gentil.Segundo os autores, a
Previdência Social faz parte de um guarda-chuva maior, a Seguridade Social.
Isso é verdade, como diz o artigo 194 da Constituição de 1988:Art. 194 A seguridade
social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes
Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde,
à previdência e à assistência social. Dizem os autores que
a Seguridade Social não apresenta déficit. Prossegue a narrativa, ainda,
afirmando que, caso eliminemos a incidência da DRU – desvinculação das receitas
da União, instrumento criado para flexibilizar o gasto do governo federal –
obteríamos até mesmo um superávit na Seguridade.Em primeiro lugar, é
questionável tal proposta de eliminar a incidência da DRU. Isso porque ela foi
criada por meio de emenda à Constituição; sendo assim, é tão constitucional
quanto a atribuição de recursos à Seguridade. Em segundo, os dados oficiais mostram
que, na verdade, a história não é bem assim. Eles mostram o resultado da
Seguridade Social, com e sem DRU. Note que, com ela, o déficit chega a
incríveis R$256 bilhões em 2016, ou 4,1% do PIB. Sem ela, o déficit segue alto:
R$165 bilhões, ou 2,6% do PIB.“Como eles chegam num superávit, então?”, você
deve estar se perguntando. É simples: a conta feita pela ANFIP faz uso de
medidas “pouco ortodoxas”, digamos assim; o pulo do gato é a eliminação do
Regime Próprio de Previdência dos servidores (RPPS), como se ninguém precisasse
pagá-los.Como a Previdência dos servidores públicos federais é fortemente
deficitária, o resultado líquido desse truque contábil é diminuir o déficit da
Seguridade e até transformá-lo em superávit.Entretanto, mesmo sob esse critério
(isto é, mesmo desconsiderando os gastos do RPPS), em 2016 obtemos um déficit
de R$97 bilhões, segundo a IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado.Além
disso, é importante lembrar que o déficit per se não importa tanto. O mais
importante é o total de despesas, e o quanto elas pesam em relação ao
orçamento.É sabido que o Brasil é um país jovem que gasta como país velho. As
despesas com Previdência já consomem metade do orçamento primário da União.
Gastamos, com essa rubrica, o mesmo que o Japão, ainda que a sociedade japonesa
seja 3x mais idosa que a nossa.Sem a reforma, esse gasto só irá crescer, e
precisaremos de novas rodadas de grandes aumentos de carga tributária, além de
termos que gastar menos em outras áreas tão importantes quanto – como Saúde,
Educação e Segurança. Os criadores desse mito parecem ter esquecido o Artigo
201, da mesma Constituição, que trata da obrigação de garantia de equilíbrio
financeiro e atuarial da Previdência:Art. 201 A previdência social será organizada sob a forma de regime
geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios
que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial.Problemas dificilmente
são resolvidos sendo ignorados e jogados para de baixo do tapete. Esse,
infelizmente, é um problema que obedece a essa regra.
2º Mito: “Vamos trabalhar até morrer sem nos
aposentarmos, já que a expectativa de vida é de 75 anos”
É verdade que a expectativa
de vida ao nascer, no Brasil, é de cerca de 75 anos. Também é verdade
que, em muitos lugares do país, a expectativa de vida ao nascer é bem menor:
pouco superior a 65 anos. Mas por que esse dado não é relevante? Justamente
pelo termo negritado: ao nascer. A expectativa de vida ao
nascer não é um dado apropriado para o debate previdenciário. O
dado adequado, sim, é a expectativa de sobrevida.“Até quando uma pessoa que
chegue a determinada idade deverá viver?”. Note que, no Brasil,
espera-se que alguém que chegue aos 65 anos – idade mínima proposta, tenha uma
sobrevida de aproximadamente 85 anos. Estudos comprovam que em todas as regiões
do Brasil a expectativa de sobrevida aos 65 é superior a 81 anos. Como já
mostramos aqui, o brasileiro está vivendo cada vez mais – o que é ótimo!;
portanto, não é verdade que “vamos trabalhar até morrer”.É bom lembrar, também,
que a idade mínima ao redor de 65 anos é regra no mundo todo. Há, inclusive,
países que discutem elevá-la para até 70 anos. Por que, em terras tupiniquins,
fazemos diferente?
3º Mito: “Basta cobrar a dívida ativa das
empresas que o problema da Previdência se resolve”
Foi o jornalista
americano Henry Mencken quem cunhou a frase “para todo problema complexo,
existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”. Essa
parece ser mais uma das soluções às quais Mencken se referia.Segundo dados da
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, as 250 maiores devedoras da Previdência
devem, ao todo, R$51,4 bilhões.Acontece que 33% dessa dívida é por parte de
empresas que já faliram, estão em vias de (algo conhecido como “Recuperação
Judicial”) ou fecharam. Logo, sobram algo como R$34,4 bilhões, o suficiente
para cobrir gastos do RGPS (Regime Geral de Previdência Social) por 25 dias.Desconsiderando
a dificuldade em recuperar tais dívidas – segundo Mansueto Almeida,
especialista em finanças públicas, apenas 4% de toda a dívida ativa tem chance
alta de recuperação -, esse valor – de R$51,4 bilhões – só cobriria 36 dias de
gastos do RGPS.Ademais, como se sabe, só seria possível, ao governo, cobrar
tais dívidas uma única vez. Elas não constituem um fluxo, mas sim um estoque. E,
como é sabido, o problema da Previdência é de fluxo: gastamos muito e, ano após
ano, gastamos cada vez mais. Sequer faz sentido teórico comparar fluxos com
estoques.Em outras palavras: o governo, se cobrasse a dívida, teria
esses recursos disponíveis para gastar apenas uma vez, por óbvio. No período
seguinte, voltaria a enfrentar o mesmo problema. É como vender o carro para pagar
as contas do mês: no mês seguinte, não se tem outro carro para vender.Algo
mais correto, portanto, seria comparar estoques num mesmo instante no tempo.
Foi o que fizemos abaixo: o déficit atuarial da Previdência (isto é, trazido a
valor presente) é de 9,58 trilhões. A dívida ativa, por sua vez, é de 375
bilhões.Mas, lembre o leitor que não é a totalidade dessa dívida que é
recuperável.
4º Mito: “O problema são só os servidores, não
os trabalhadores do setor privado”
É fato, sim, que os
servidores públicos são beneficiados. A literatura sobre as vantagens salariais
do setor público, ante o setor privado, é vasta.Tais vantagens também são
verdadeiras no que tange à Previdência Social. Como se pode ver abaixo,
enquanto o déficit anual por beneficiário do setor privado (RGPS) foi, em 2016,
de R$5.130, o déficit anual por beneficiário do setor público federal (RPPS)
foi de R$78.526.As aposentadorias do setor público são bem mais generosas.Dito
isso, o problema da Previdência não é apenas os servidores. Para entendermos o
porquê, é preciso olharmos não apenas uma parte, mas o filme inteiro.Enquanto
os gastos com os aposentados do setor público cairão, como % do PIB, os do
setor privado aumentarão de 8% para mais de 17% do PIB. E, como dito
anteriormente, o gasto total importa mais do que o déficit.Em resumo: é
preciso, sim, rever o regime de previdência dos servidores (RPPS), que é
extremamente injusto e regressivo. Mas, este não é o único problema. Como bem
mostram os estudos especializados, é inevitável mexer na Previdência dos
trabalhadores privados.
5º Mito: “A idade mínima prejudica os mais
pobres”
Para começar, temos
que lembrar que há três tipos de aposentadoria no Brasil: a por tempo de
contribuição; a por idade; e, por fim, a por invalidez. Tratemos das duas
primeiras:A começar, a aposentadoria por tempo de contribuição
representa, apenas, 30% do total de aposentadorias. A aposentadoria por
idade, por sua vez, representa mais da metade do total.Quase 90% dos benefícios
da aposentadoria por idade são de até 1 salário mínimo. Hoje, quem se aposenta por tempo
de contribuição, no Brasil, são os trabalhadores mais ricos. Por terem
carteira assinada ao longo de toda sua vida laboral, esses trabalhadores – que
também são os mais qualificados -, conseguem comprovar tempo de contribuição e
se aposentam pela primeira modalidade de aposentadoria, bem mais cedo que na
segunda modalidade.Já que ocupam
empregos informais pela maior parte de suas vidas, os mais pobres, por não
conseguirem comprovar tempo de contribuição suficiente, se aposentam por idade:
aos 65 para homens, e aos 60, para mulheres, com um mínimo de 15 anos de contribuição,
no caso dos trabalhadores urbanos; e aos 60 para homens e 55 para mulheres, com
15 anos de trabalho, no caso dos trabalhadores rurais.Ou, então, estes
trabalhadores, quando não conseguem cumprir (ou comprovar) os 15 anos mínimos
de contribuição/trabalho, se aposentam pela Lei Orgânica de Assistência Social
(LOAS), aos 65, e passam a receber o chamado Benefício de Prestação Continuada
(BPC).A CLT protege apenas metade dos trabalhadores do setor privado. A outra
metade, por sua vez, fica à margem das leis trabalhistas e, também, excluída da
aposentadoria por tempo de contribuição.Em outras palavras: na prática, já
temos idade mínima, só que apenas para os trabalhadores informais. Como mostram
vários estudos, esses trabalhadores – os não protegidos pela CLT – ganham bem
menos que os trabalhadores protegidos.
6º Mito: “A reforma vai prejudicar os estados
mais pobres, onde a expectativa de vida é menor”
Como já provado no Mito 2, a estatística adequada para se debater a
Previdência não é a expectativa de vida ao nascer, mas a expectativa de
sobrevida.Mostramos, naquele
mito, que a expectativa de sobrevida aos 65 não difere muito entre as grandes
regiões. Mas, é claro, as regiões são bem diferentes entre si. Logo, é prudente
que analisemos esses dados por estado. Antes, analisamos até quando esperava-se
que o indivíduo vivesse. Os estudos mostram exatamente a mesma coisa, com uma
pequena diferença: “quantos anos adicionais espera-se que a pessoa viva?”.Comparemos
como a diferença entre o estado com maior expectativa de sobrevida aos 65 anos
(Espírito Santo) e o com menor (Rondônia) é de meros 4 anos. Não há, portanto,
uma diferença elevada entre ricos e pobres que justificasse o mito. Em todas as
regiões do Brasil, a expectativa de sobrevida aos 65 anos deverá subir,
continuamente, até 2030. Na média, espera-se que, em 2030, um brasileiro que
chegue aos 65 anos viva até os 85.Logo, conclui-se que não só a idade mínima de
65 não prejudica os estados mais pobres, como também precisará ser reajustada,
ao longo do tempo, em razão da evolução da expectativa de sobrevida – e esse
mecanismo de reajuste já está incluso na PEC.
7º Mito: “Vamos ter que trabalhar 49 anos para
nos aposentarmos”
Num primeiro momento,
esse mito pode até parecer verdadeiro. De fato, a proposta de reforma
estabelece que a regra de cálculo é 51% sobre a média salarial, mais 1 p.p.
para cada ano de contribuição. Por que, então, esse mito é falso? Como você pôde
notar no Mito 5, a maior parte das aposentadorias é de 1 salário mínimo. Isso
porque o salário mínimo é o piso previdenciário: ninguém pode receber menos do
que isso.Logo, para quem ganha o salário mínimo, a taxa de reposição será de
100%, ou ainda maior: como o mínimo vem crescendo ao longo dos últimos anos,
quem o recebe e se aposentar recebendo o piso, na verdade, terá uma taxa de
reposição maior do que 100% da média salarial de sua vida, já que se aposentará
pelo último valor – este, maior do que a média.Portanto, os 49 anos são necessários para se aposentar com 100% da média
salarial (e essa média será explicada a seguir), como mostra a fórmula descrita
no parágrafo anterior e também aqui. Para simplesmente se aposentar, são necessários
25 anos de contribuição.Mas não é verdade que, para aqueles que ganham acima do
mínimo, será necessário trabalhar 49 anos para receber 100% de reposição.
Lembre-se que o cálculo da média salarial, para efeitos de aposentadoria, exclui
os 20% menores salários.E, como os salários crescem ao longo da vida, será
possível se aposentar com 100% da média salarial efetiva (isto é: a média
salarial verdadeira) com menos de 49 anos de contribuição. Por uma questão
puramente aritmética, isso só não seria verdade caso o salário do trabalhar
permanecesse o mesmo ao longo de toda sua vida.Por fim, é sempre importante comparar o Brasil com as
melhores práticas internacionais em Previdência:A taxa de reposição
mínima proposta pelo governo – de 76%, que corresponde a 51% da média salarial
mais 1 p.p por ano, com 25 anos de tempo mínimo de contribuição – já é bem
maior que a média dos países da OCDE.Suponha, portanto, um
exemplo (mas, nesse caso, desconsidere o crescimento salarial): alguém que
começou a trabalhar aos 25 anos de idade. Quando chegar aos 65, essa pessoa
terá trabalhado por 40 anos, e terá direito a 91% de reposição.Essa taxa de
reposição é bem maior, inclusive, que a de países como Finlândia, Noruega e
Suécia, conhecidos pelos seus Estados de bem-estar social (Welfare State)
8º Mito: “A reforma não ataca os privilégios
dos políticos”
Tornou-se quase
senso-comum, neste debate, o argumento que diz “a reforma não está atacando os
privilégios”. Será mesmo?Está lá, nos artigos 1º e 6º, da PEC 287/2016, que
trata da reforma da Previdência (que pode ser lida aqui):
Art 1º
§ 13. Ao agente público ocupante,
exclusivamente, de cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e
exoneração, de outro cargo temporário, incluídos
os cargos de mandato eletivo, ou de emprego público aplica-se o regime geral de
previdência social.
Art 6º
As alterações estabelecidas no
art. 40, § 13, da Constituição, aplicam-se
de imediato aos titulares de novos mandatos eletivos que forem diplomados após
a promulgação desta Emenda.Portanto, há um esforço de harmonização de regras na proposta de
reforma; trabalhadores da iniciativa privada, servidores públicos e políticos:
todos passam a observar as mesmas regras de acesso à aposentadoria.
Conclusão:
O debate sobre a
reforma da Previdência precisa de mais realismo e menos fantasia. É necessário
não apenas reconhecer o problema, coisa que, aparentemente, alguns relutam em fazer,
mas também ler a PEC e debater propostas sérias, amparadas na realidade dos
dados. Muitas corporações e grupos privilegiados estão interessados em manterem
seus privilégios, às custas da maioria invisível, que não tem coluna nos
jornais, tempo na TV ou lobby junto aos congressistas.Criar inimigos comuns –
como “os banqueiros”, “os ricos”, “as elites”, apenas para citar os candidatos
mais comuns – não vai resolver o problema. É preciso maturidade para encara-lo
e discuti-lo, superando as dificuldades das decisões coletivas.Caso contrário,
corremos o risco de acabarmos como o país que envelheceu antes de se tornar
desenvolvido.
Fonte: CARTA CAPITAL
: 8-mitos-sobre-a-reforma-da-previdencia
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