Na primeira
pregação do Advento, o pregador da Casa Pontifícia se inspira na Lumen Gentium
e medita sobre a “Igreja corpo e esposa de Cristo”!
Por ocasião do
"feliz acontecimento" de aniversário da conclusão do Concílio Vaticano II, o
pregador da Casa Pontifícia, padre Raniero Cantalamessa, decidiu dedicar seus
três sermões do Advento à Lumen gentium, reservando-se o direito de dedicar as
meditações da próxima Quaresma a outros importantes documentos conciliares.Como apontado por Cantalamessa no seu primeiro sermão proferido,
o Vaticano II tem sido discutido quase sempre "por suas implicações
doutrinais e pastorais"; muito raramente "por seu conteúdo
estritamente espiritual".
Especificamente, a LG
tem três temas dignos de consideração, tais como:
1)- A Igreja corpo e
esposa de Cristo.
2)- A chamada universal
à santidade.
3)- A doutrina sobre
a Virgem Santa.
O primeiro
aspecto implica uma aceitação da Igreja "por amor de Cristo" e não
vice-versa. "Mesmo uma Igreja desfigurada pelo pecado de muitos de seus
representantes", observa o Pregador da Casa Pontifícia. Foi o então cardeal
Joseph Ratzinger que realçou "a relação intrínseca entre estas duas
imagens da Igreja: a Igreja é o Corpo de Cristo, porque é esposa de Cristo”,
referindo-se à imagem paulina “da única
carne que o homem e a mulher formam unindo-se em matrimônio (Ef 5, 29-32) e
ainda mais a ideia da Eucaristia do único corpo que forma aqueles que comem o
mesmo pão” (cfr 1 Cor 10, 17.). Esta
visão é a que mais aproxima a Igreja Católica da Ortodoxa: “Sem a Igreja e sem
a Eucaristia, Cristo não teria ‘corpo’ no mundo”.A realização do homem
no Corpo da Igreja ocorre principalmente
através dos sacramentos, do batismo e da Eucaristia. Henri de Lubac afirmou que
a "Eucaristia faz a Igreja", assumiu que a "a Eucaristia faz de
cada um de nós o corpo de Cristo, que é a Igreja." - Ratzinger novamente
definiu a Eucaristia uma “fusão das
existências” (a do homem e a de Cristo), segundo um princípio análogo ao da
assimilação alimentar. Esta “fusão” não acontece “hipostaticamente, como na
encarnação, mas misticamente e realmente”.Sempre na base da imagem da Igreja
esposa de Cristo e da fusão dos órgãos dos corpos do esposo e da esposa, a
Eucaristia permite que “a carne incorruptível e dadora de vida do Verbo
Encarnado" se torne também a “carne do homem”. Da mesma forma, “também
Cristo recebe “o nosso corpo e o nosso sangue”. - É graças à "comunhão esponsal da Missa", que Cristo
"ressuscitado" e "no Espírito", vive todas essas
experiências e condições que na sua existência terrena não experimentou: “ser casado, ser mulher, ter perdido um
filho, ser doente, ser ancião, ser negro”.É como se Jesus dissesse: "Eu
estou com fome de você. Por isso tenho que viver em cada um dos seus
pensamentos, em cada um dos seus afetos, tenho que viver da sua carne, do seu
sangue, do seu cansaço, devo
alimentar-me de você, assim como você se alimenta de mim!”
A
“humanidade de Cristo” é motivo de “consolo e maravilha”, mas, ao mesmo tempo,
fonte de grande “responsabilidade” para o homem:
“Se os meus olhos se tornassem os olhos de Cristo, a minha boca a de Cristo, tenho motivos suficientes para não deixar o meu olhar se sujar com imagens indecentes, a minha língua não falar contra o irmão, o meu corpo não servir como instrumento de pecado”, explica Cantalamessa. Além da dimensão “objetiva” e “sacramental” da nossa relação com Cristo e com a Igreja, há também uma “subjetiva e existencial” se concretiza no “encontro pessoal” com o próprio Cristo:Tal conceito, recorda o Pregador , não era muito aceito no pré-Concílio, em quanto que muitos viam nisso "ressonâncias vagamente protestantes"; preferia-se, então, falar de “encontro eclesial”.O “encontro com Cristo”, então, não está em contraposição com o encontro “sacramental” com Ele, mas implica, isso sim, que se trate de um encontro “livremente decidido ou ratificado, não puramente nominal, jurídico ou habitual”.Além disso, no alvorecer do cristianismo, alguém se tornava um membro da Igreja “depois de uma longa iniciação, o catecumenato" e isso era “o fruto de uma decisão pessoal e muito arriscada, por causa da possibilidade do martírio”.
Com o tempo, no entanto, o cristianismo
se tornou religião "tolerada" e depois "favorita, e até
imposta”!
Não se coloca mais o
acento “sobre o modo com que se torna cristãos, ou seja, sobre a chegada na fé, sobre a mudança de costumes; em outras
palavras, sobre a moral”.A situação era "menos grave" do que hoje,
porque "com todas as inconsistências que sabemos, a família, a escola, a
cultura e, gradualmente, também a sociedade ajudavam, quase que
espontaneamente, a absorver a fé”. Além do mais, neste cenário, “tinham nascido
formas de vida, como a vida monástica e, em seguida, as várias ordens
religiosas, em que o batismo era vivido com toda a sua radicalidade e a vida
cristã fruto de uma decisão pessoal, muitas vezes heroica”.Hoje, a situação é
inversa e precisamos de uma "nova evangelização" que determine
"oportunidades" para que os nossos contemporâneos possam tomar “aquela decisão livre e madura que os
cristãos tomavam no início, ao receber
o batismo e que faziam deles cristãos reais e não só nominais”.A este respeito Cantalamessa recorda que, em alguns países, "a
religião mista", mostrou-se "de grande eficácia”, a proposta de “uma
espécie de caminho catecumenal para o batismo de adultos”. No entanto, continua
a enfrentar a questão bem mais problemática da “massa dos cristãos já batizados
que vivem como cristãos puramente de nome e não de fato, completamente
estranhos à Igreja e à vida sacramental”.Uma resposta para
esse problema é representada por "numerosos movimentos eclesiais, grupos
de leigos e comunidades paroquiais renovadas, que apareceram depois do
concílio”: todos realidade que permitem “muitas pessoas adultas fazerem uma
escolha pessoal por Cristo, de levar a sério o seu batismo, de tornar-se
sujeitos ativos da Igreja”.
No
final de sua meditação, o padre Cantalamessa retomou a questão inicial: “O que
quer dizer encontrar e fazer-se encontrar pessoalmente por Cristo?
Significa pronunciar
a frase “Jesus é o Senhor!” como era pronunciada por Paulo e os primeiros cristãos, decidindo,
com essa, para sempre, toda a própria vida”. Jesus, de fato, "não é mais um
personagem, mas uma pessoa; não mais alguém de quem se fala, mas alguém com
quem e a quem se pode falar, porque está ressuscitado e vivo”; Ele não é uma
“memória”, mas uma “presença” e é impossível tomar alguma “decisão importante
sem antes tê-la submetido à ele na oração”.É só amando a Cristo,
portanto, que “teremos realizado o melhor serviço à Igreja” e a teremos feito
fecunda como Esposa que, em quanto tal, “gera novos filhos unindo-se por amor
ao seu Esposo”.
Uma releitura cristológica da Lumen
gentium
(Primeira Pregação de
Advento – Dezembro de 2015)
SENDO CRISTO A LUZ DOS POVOS
1. Uma eclesiologia Cristológica
A ocasião propícia do quinquagésimo aniversário da conclusão do Concílio Vaticano II sugeriu-me a ideia de dedicar as três meditações do Advento a uma revisitação do evento conciliar, nos seus conteúdos principais. Especificamente, eu gostaria de fazer algumas reflexões sobre cada um dos principais documentos do Concílio, que são quatro constituições: sobre a Igreja (Lumen Gentium), sobre a Liturgia (Sacrosanctum Concilium), sobre a Palavra de Deus (Dei Verbum) e sobre a Igreja no mundo (Gaudium et Spes).O que me deu coragem para abordar, em tão pouco tempo, temas tão amplos e debatidos foi uma constatação:Sobre o concílio tem-se falado e escrito muito, mas quase sempre pelas suas implicações doutrinais e pastorais; poucas vezes por causa dos seus conteúdos especificamente espirituais. Portanto, eu gostaria de focar exclusivamente nesses, procurando ver o que o Concílio ainda tem a dizer-nos como textos de espiritualidade, úteis para a edificação da fé.Vamos começar dedicando as três meditações de Advento à Lumen Gentium, deixando os demais para a próxima quaresma, se Deus quiser. Os três temas da Constituição sobre os quais eu gostaria de refletir são: a Igreja corpo e esposa de Cristo, a chamada universal à santidade e a doutrina sobre a Virgem Maria.A inspiração para esta primeira meditação sobre a Igreja surgiu relendo, por acaso, o começo da constituição no texto latino. Diz assim: “Lumen gentium cum sit Christus...”, “Sendo Cristo a luz dos povos...”. Devo confessar que, para minha confusão, nunca tinha prestado atenção nas implicações enormes contidas neste começo. Ter pego como título da constituição só a primeira parte da frase me fez pensar (e acho que não só a mim) que o título “luz dos povos” fizesse referência à Igreja, enquanto que ele, como se pode ver, refere-se a Cristo. É o título com o qual o velho Simão saudou o Messias criança, levado por Maria e José ao templo: “Luz dos povos e glória do seu povo Israel” (Lc 2, 32).Aquela frase inicial contém a chave para interpretar toda a eclesiologia do Vaticano II. Essa é uma eclesiologia cristológica, e, portanto, espiritual e mística, antes que social e institucional. Não se trata, no entanto, de uma relação entre antes e depois, entre mais e menos; mas sim de uma relação semelhante à que existe entre o corpo e a alma que lhe dá vida. Ambos são inseparáveis e necessários um para o outro. É necessário colocar novamente em primeiro lugar esta dimensão cristológica da eclesiologia do Concílio, também em vista de uma evangelização mais eficaz. De fato, não se aceita a Cristo por amor a Igreja, mas aceita-se a Igreja por amor a Cristo. Até mesmo uma Igreja desfigurada pelo pecado de muitos de seus representantes.Desde já devo dizer que, certamente, eu não sou o primeiro a destacar a dimensão essencialmente cristológica da eclesiologia do Vaticano II:Relendo os muitos escritos do então cardeal Ratzinger sobre a Igreja, percebi com quanta insistência ele tentou manter viva esta dimensão da doutrina sobre a Igreja da Lumen Gentium. A mesma chamada às implicações doutrinárias da frase de abertura: "Lumen gentium cum sit Christus...", "sendo Cristo a luz dos povos”, já está em seus escritos, seguida da afirmação: "Se alguém quiser compreender corretamente o Vaticano II, deve sempre começar de novo desta frase inicial"[1].Devemos assinalar de imediato, para evitar mal-entendidos:Essa visão espiritual e interior da Igreja nunca foi negada por ninguém; mas, como sempre acontece nas coisas humanas, o novo corre o risco de ofuscar o antigo, o atual faz perder de vista o eterno e o urgente toma o lugar do importante.Assim aconteceu que as ideias de comunhão eclesial e de povo de Deus foram desenvolvidas, por vezes, só no sentido horizontal e sociológico, ou seja, tendo como pano de fundo a oposição entre koinonia e hierarquia, insistindo mais na comunhão dos membros da Igreja entre si do que na comunhão de todos os membros com Cristo.Isso era, talvez, uma prioridade do momento e um ganho; como tal São João Paulo II o acolhe e o valoriza na sua carta apostólica Novo millennio ineunte[2]. Mas cinquenta anos após o fim do Concílio, talvez seja útil procurar restabelecer o equilíbrio entre esta visão da Igreja condicionada pelos debates do momento, e a visão espiritual e mistérica do Novo Testamento e dos Padres da Igreja. A pergunta fundamental não é "O que é a Igreja", mas é "quem é a Igreja[3]" e é a partir dessa pergunta que eu gostaria de deixar-me guiar nesta meditação.
2. A Igreja corpo e esposa de Cristo
A alma e o conteúdo cristológico da Lumen Gentium (LG) emergem especialmente no capítulo I, onde se apresenta a Igreja como a esposa de Cristo e corpo de Cristo.Ouçamos de novo algumas frases:A Igreja, chamada «Jerusalém do alto» e «nossa mãe» (Gál. 4,26; cfr. Apoc. 12,17), é também descrita como esposa imaculada do Cordeiro imaculado (Apoc. 19,7; 21,2. 9; 22,17), a qual Cristo ‘amou e por quem Se entregou, para a santificar’ (Ef. 5, 25-26), uniu a Si por um indissolúvel vínculo, e sem cessar ‘alimenta e conserva’ (Ef. 5,29), a qual, purificada, quis unida a Si e submissa no amor e fidelidade (cfr. Ef. 5,24), (LG, 6).Isso para o título de esposa; para o de “corpo de Cristo”, se lê:"O filho de Deus, vencendo, na natureza humana a Si unida, a morte, com a Sua morte e ressurreição, remiu o homem e transformou-o em nova criatura (cfr. Gál. 6,15; 2 Cor. 5,17). Pois, comunicando o Seu Espírito, fez misteriosamente de todos os Seus irmãos, chamados de entre todos os povos, como que o Seu Corpo. [...]. Ao participar realmente do corpo do Senhor, na fracção do pão eucarístico, somos elevados à comunhão com Ele e entre nós. ; «Porque há um só pão, nós, que somos muitos, formamos um só corpo, visto participarmos todos do único pão» (1 Cor. 10,17). (LG 7).Também aqui foi mérito do então cardeal Ratzinger o ter destacado a intrínseca relação entre estas duas imagens da Igreja: a Igreja é corpo de Cristo porque é esposa de Cristo! Em outras palavras, na origem da imagem paulina da Igreja como corpo de Cristo não está a metáfora estóica da concórdia das partes no corpo humano (embora as vezes ele utiliza também esta aplicação, como em Rom 12, 4 ss em 1 Cor 12, 12 ss), mas há a ideia esponsal da única carne que o homem e a mulher formam unindo-se em matrimônio (Ef 5, 29-32) e ainda mais a ideia eucarística do único corpo que formam aqueles que comem o mesmo pão: “Uma vez que há um único pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão."(1 Cor 10, 17)[4].É desnecessário mencionar que este era o coração da concepção agostiniana da Igreja, a ponto de dar, às vezes, a impressão de identificar pura e simplesmente o corpo de Cristo que é a Igreja com o corpo de Cristo que é a Eucaristia[5]. Isso é o que atesta a evolução do termo "corpo místico" de Cristo que, de indicar a Eucaristia, passa lentamente a significar, como acontece hoje, a Igreja[6]. Esta, como sabemos, é também a visão que mais aproxima a eclesiologia católica da eclesiologia eucarística da Igreja Ortodoxa. Sem a Igreja e sem a Eucaristia, Cristo não teria "corpo" do mundo.
Um princípio muitas
vezes repetido e aplicado pelos Padres da Igreja reza assim “Ecclesia vel
anima”, a Igreja, ou talvez a alma[7]. O sentido é: o que se fala no geral da
Igreja, façam as devidas distinções, aplica-se em particular a cada pessoa na
Igreja. A Santo Ambrósio era atribuída a afirmação: “A Igreja é bela nas
almas”[8]. Querendo ter fé na tentativa declarada destas meditações de captar
os aspectos mais diretamente “edificantes” da eclesiologia conciliar, nos
perguntamos: o que pode significar para a vida espiritual do cristão viver e
realizar esta ideia de Igreja, corpo de Cristo e esposa de Cristo? Se a Igreja na sua
acepção mais íntima e verdadeira é o corpo de Cristo, eu realizo em mim a
Igreja, sou um “ser eclesial”[9], na medida em que permito a Cristo fazer de
mim o seu corpo, não só na teoria, mas também na prática. O que conta não é o lugar que eu
ocupo na Igreja, mas o lugar que cristo ocupa no meu coração! Objetivamente, isto
se realiza por meio dos sacramentos, especialmente dois desses; o batismo e a
Eucaristia. Recebemos o batismo só uma vez, a Eucaristia, em vez disso,
recebemos todos os dias. Daqui a importância de celebrá-la e recebe-la de forma
que ela possa realmente cumprir a tarefa de nos fazer Igreja. O famoso
princípio lançado por De Lubac “A Eucaristia faz a Igreja” não se aplica
somente a nível comunitário, mas também a nível pessoal: a Eucaristia faz de
cada um de nós o corpo de Cristo, ou seja, Igreja. Também aqui eu gostaria de
servir-me de algumas palavras profundas do então cardeal Ratzinger:"Comunhão significa que a barreira aparentemente impenetrável do
meu ego é quebrada [...] significa, portanto, fusão das existências. Como na
alimentação o corpo pode assimilar uma substância estranha e assim viver, dessa
forma o meu eu é ‘assimilado’ ao próprio Jesus, torna-se semelhante a ele em
uma troca que quebra sempre mais as linhas de separação”[10].Duas existências, a
minha e a de Cristo, tornam-se uma só, “sem confusão e sem divisão”, não
hipostaticamente, como na encarnação, mas misticamente e realmente. De dois
“eu”, fica só um: não o meu pequeno eu de criatura, mas o de Cristo, a ponto de
que cada um de nós, após ter recebido a Eucaristia, pode ousar dizer, com
Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20). Na
Eucaristia, escreve Cabasilas:"Cristo se derrama em nós e se funde conosco, mas mudando-nos e
transformando-nos em si como uma gota de água derramada em um infinito oceano
unguento perfumado"[11].A imagem da Igreja
corpo de Cristo é intrinsecamente ligada, se dizia, à da Igreja esposa de
Cristo e também isso pode ser-nos de grande ajuda para viver em profundidade
mistagogicamente, a Eucaristia. A Carta aos Efésios diz que o matrimônio humano
é um símbolo da união entre Cristo e a Igreja: “Por isso o homem deixará o seu
pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher e os dois formarão uma só carne. Este mistério
é grande; digo-o em referência a Cristo e à Igreja!” (Ef 5, 31-33). Agora, de
acordo com São Paulo, a consequência imediata do matrimônio é que o corpo do
marido se torna da mulher e, vice-versa, o corpo da mulher se torna do marido
(1 Cor 7, 4).Aplicado à Eucaristia
isto significa que a carne incorruptível e doadora de vida do Verbo encarnado
se torna "minha", mas também a minha carne, a minha humanidade, se
torna de Cristo, é tomada por ele. Na Eucaristia nós recebemos o corpo e o sangue
de Cristo, mas também Cristo “recebe” o nosso corpo e o nosso sangue! Jesus,
escreve Santo Hilário de Poitiers, assume a carne daquele que assume a sua[12].
Ele nos diz: “Tomai, este é o meu corpo”, mas também nós podemos dizer a ele:
“Toma, este é o meu corpo”.Na coleção de poesias
eucarísticas intituladas “Canto do Deus escondido”, o futuro papa Karol Wojtyla
chama este novo sujeito, cuja vida foi assumida por Cristo "o eu
eucarístico”:"Vai acontecer agora o milagre da transformação:então, te tornará
mim-eu-eucarístico[13]” - Não há nada da minha
vida que não pertença a Cristo. Ninguém deve dizer: "Ah, Jesus não sabe o
que significa ser casado, ser mulher, ter perdido um filho, estar doente, ser
ancião, ser negro!” Se você sabe, ele também sabe, graças a você e em você. O
que Cristo não pôde viver “segundo a carne”, tendo sido a sua existência
terrena, como a de qual homem, limitada a algumas experiências, vive-o e
“experimenta” agora como ressuscitado “segundo o Espírito”, graças à comunhão
esponsal da Missa. Vive na mulher o ser mulher, no ancião o ser ancião, no
enfermo a condição de enfermo. Tudo isso que “faltava” à plena “encarnação” do
Verbo “cumpre-se” na Eucaristia.
Tinha compreendido o motivo profundo do
que a beata Elisabete da Trindade escrevia:
“A esposa pertence ao esposo. O meu me agarrou. Quer que seja para ele
uma humanidade agregada”[14]. É como se Jesus nos dissesse: “Eu tenho fome de
você, quero viver de você, por isso tenho que viver em cada um dos seus
pensamentos, em cada um dos seus afetos, devo viver da sua carne, do seu
sangue, do seu cansaço cotidiano, devo alimentar-me de você como você se
alimenta de mim!” - Oh inesgotável fonte
de admiração e alegria ao pensar que nossa humanidade se torna a humanidade de
Cristo! Mas também quanta responsabilidade em tudo isso! Se os meus olhos
tornaram-se os olhos de Cristo, a minha boca a boca de Cristo, quantos motivos
para não deixar que no meu olhar permaneçam imagens indecentes, que a minha não
fale contra o irmão, o meu corpo sirva como instrumento de pecado. “Tomarei,
então, os membros de Cristo – diz o Apóstolo - e os farei membros de uma
prostituta?" (1 Cor 6,15). Estas palavras chamam a atenção de todos os
batizados. Mas e o que dizer dos consagrados, dos ministros de Deus, que
deveriam ser os “modelos do rebanho” (1Pd 5,3)? Dá escalafrios pensar no ímpio
que se aproveita do corpo de Cristo que é a Igreja.
4. O encontro pessoal com Jesus
Até agora eu falei
sobre a contribuição objetiva, ou sacramental, do nosso tornar-se Igreja, ou
seja, o corpo de Cristo. Há, porém, também uma dimensão subjetiva e existencial
que consiste no que o Papa Francisco na Evangelii gaudium define “o encontro
pessoal com Jesus de Nazaré”. Ouçamos de novo as suas palavras:"Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se
encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo
menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a
dia sem cessar. Não há motivo para alguém poder pensar que este convite não lhe
diz respeito," (EG, n.3) - Aqui talvez
devêssemos dar um passo adiante também em relação à eclesiologia do Concílio.
Na linguagem católica, "o encontro pessoal com Jesus" nunca foi um
conceito muito familiar. No lugar de encontro "pessoal", se preferia
a ideia de um encontro eclesial, realizado, então, por meio dos sacramentos da
Igreja. A expressão soava, aos nossos ouvidos de católicos, vagamente
protestante.É claro que o que se propõe não é um encontro pessoal com Cristo que
substitua o sacramental, mas de certificar-se de que o encontro sacramental
seja também um encontro livremente decidido ou ratificado, não puramente
nominal, jurídico ou habitual. Se a Igreja é o corpo de Cristo, a adesão
pessoal a Cristo é o único modo de entrar, existencialmente, para fazer parte
dela.
Para
compreender o que significa realizar um encontro pessoal com Jesus, é
necessário dar uma olhada, embora rápida, na história da Igreja:
Como é que alguém se
tornava membro da Igreja nos primeiros séculos? Salvando as diferenças
individuais e de lugar, isso acontecia depois de uma longa iniciação, o
catecumenato, e era o fruto de uma decisão pessoal, muito arriscada por sinal,
por causa da possibilidade do martírio. As coisas mudaram
quando o cristianismo tornou-se, em primeiro lugar religião tolerada e depois,
em breve tempo, religião favorita, ou mesmo imposta. Nesta situação, a ênfase
não é colocada mais no momento e no modo com o qual se torna cristãos, ou seja,
no vir à fé, mas nas exigências morais da própria fé, na mudança dos costumes;
em outras palavras, na moral. A situação, no
entanto, era menos grave do que pode parecer para nós hoje, porque, com todas
as incoerências que sabemos, a família, a escola, a cultura e, gradualmente,
também a sociedade ajudavam, quase espontaneamente, a absorver a fé. Sem conta
que, desde o começo da nova situação, nasceram formas de vida, como o
monarquismo e depois as várias ordens religiosas, em que o batismo era vivido
em toda a sua radicalidade e a vida cristã fruto de uma decisão pessoal, muitas
vezes heroica. Esta situação
conhecida como “cristandade” mudou radicalmente. Daí a urgência de uma nova
evangelização que leve em consideração a situação nova. Trata-se, na prática,
de criar para os homens de hoje ocasiões que permitam-lhes tomar, no novo
contexto, aquela decisão pessoal livre e madura que os cristãos tomavam no
início ao receber o batismo e que faziam deles cristãos reais e não só
nominais.O "Ritual da Iniciação Cristã dos Adultos” de 1972 propõe uma
espécie de caminho catecumenal para o batismo dos adultos. Em alguns países com
religiões mistas, onde muitas pessoas pedem o batismo sendo adultas, este
instrumento mostrou-se de grande eficácia. Mas, o que fazer com a massa de
cristãos já batizados que vivem como cristãos somente de nome e não de fato,
completamente estranhos à Igreja e à vida sacramental? Uma resposta para
este problema são os muitos movimentos eclesiais, grupos laicais e comunidades
paroquiais renovadas, que apareceram depois do concílio. A contribuição comum
de todas estas realidades, apesar da grandíssima variedade de estilo e de
consistência numérica, é que elas são o contexto e o instrumento que permite a
muitas pessoas adultas fazerem uma escolha pessoal por Cristo, de levar a sério
o seu batismo, de tornar-se sujeitos ativos da Igreja. Mas eu não paro só
nesses aspectos pastorais do problema. O que eu gostaria de sublinhar, no final
desta meditação, é mais uma vez o aspecto espiritual e existencial que nos diz
respeito individualmente. O que quer dizer encontrar e fazer-se encontrar
pessoalmente por Jesus? Significa pronunciar a frase “Jesus é o Senhor!” como a
pronunciavam Paulo e os primeiros cristãos, comprometendo, assim, para sempre,
toda a vida. Jesus não é mais um personagem, mas uma pessoa; não mais alguém de quem
se fala, mas alguém a quem e com quem se pode falar, porque ressuscitado e
vivo; não mais somente uma memória, por mais liturgicamente viva e operante,
mas uma presença. Quer dizer também não tomar nenhuma decisão importante sem
antes tê-la submetido a ele na oração. Eu disse no começo
que não se aceita a Cristo por amor à Igreja, mas aceita-se a Igreja por amor a
Cristo. Procuremos, portanto, amar a Cristo e fazê-lo amar e teremos realizado
o melhor serviço à Igreja. Se a Igreja é a esposa de Cristo, como toda esposa,
ela gera novos filhos unindo-se por amor ao seu Esposo. A fecundidade da Igreja
depende do seu amor por Cristo.
[1] J. Ratzinger, L’ecclesiologia del Vaticano
II, in Chiesa, ecumenismo e politica, Edizioni Paoline, Cinisello Balsamo,
1987, pp. 9-16).
[2] Cf. S. João Paulo
II, “Novo millennio ineunte”, 42. 45.
[3] Cf. H. U. von
Balthasar, Sponsa Verbi, Saggi teologici,II, Morcelliana, Brescia 1972, pp. 139 ss. (ed. tedesca Sponsa Verbi,
Johannes Verlag, Einsiedeln 1961).
[4] Joseph Ratzinger,
Origine e natura della Chiesa, in La Chiesa. Una comunità sempre in cammino,
Ed. Paoline, Cinisello Balsamo, 1991, pp. 9-31).
[5] Santo Agostinho,
Discorsi, 272 (PL 38, 1247 s.).
[6] Cf. H. de Lubac, in Corpus Mysticum. L’Eucharistie et l’Eglise au
Moyen Age, Aubier, Paris 1949
(trad.ital. Corpus Mysticum. L’eucaristia e la chiesa nel Medioevo, Jaka Book,
Milano 1996).
[7] Cf. Origene, In cant. cant. III (GCS 33, p. 185 e 190); S. Ambrogio,
Exp. Ps. CXVIII,
6,18 (CSEL 62, p. 117).
[8] Cf. H. de Lubac,
Exégèse mediévale, I, 2, Paris, Aubier,
1959, p.650.
[9] Cf. J. Zizioulas, L’être ecclésial, Labor et fides, Genève 1981
(trad. Ital.
Ed. Qiqajon, Comunità di Bose 2007).
[10] J. Ratzinger,
Origine e natura della Chiesa, cit.
[11] Ni. Cabasilas,
Vita in Cristo, IV,3 (PG 150, 593).
[12] S. Hilário di
Poitiers, De Trinitate, 8, 16 (PL 10, 248): “Eius tantum in se adsumptam habens
carnem, qui suam sumpserit”.
[13] K. Wojtyla,
Tutte le opere letterarie, Bompiani. Milano 2000, p. 75.
[14] B. Elisabetta
della Trinità, Lettera 261, alla mamma (in Opere, Roma 1967, p. 457).
Fonte: Agência Zenit
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