O padre Raniero
Cantalamessa, em sua segunda pregação de Advento à Cúria, explica o chamado à
santidade de todos os cristãos.O tema da segunda meditação de Advento do Pe.
Raniero Cantalamessa à Curia é capítulo V da Lumen gentium, intitulado: "A
vocação universal à santidade na Igreja".
O pregador explicou
que "a primeira coisa que é necessário fazer quando se fala de santidade,
é libertar esta palavra do temor e do medo que infunde, por causa de certas
distorções que temos dela”. E esclareceu que “se todos estão chamados à
santidade é porque a mesma, entendida corretamente, está ao alcance de todos, faz parte da
normalidade da vida cristã”.Repassando o sentido de “santidade” no Antigo
Testamento, depois observou que, no Novo Testamento, “santidade não é mais um
fato ritual ou legal, mas moral, ou mais ainda, ontológico. Não está nas mãos,
mas no coração; não está fora, mas dentro do homem e se resume na caridade”. Os
mediadores da santidade de Deus – destacou – não são mais lugares (o Templo de
Jerusalém ou o Monte Garizim), ritos, objetos e leis, mas uma pessoa, Jesus
Cristo. "Ser santo não consiste tanto em estar separado disso ou daquilo,
mas estar unidos a Jesus Cristo”, garantiu o padre Cantalamessa.Também,
destacou que “dizer que nós participamos da santidade de Cristo, é como dizer
que participamos do Espírito Santo que vem dele”. Cristo fica em nós e nós
permanecemos em Cristo, graças ao Espírito Santo. É o Espírito Santo, portanto,
quem nos santifica, afirmou Cantalamessa. Por isso, “a santidade que está em
nós não é uma segunda e diferente santidade, mas a mesma santidade de Cristo”.
Por outro lado, disse que "as boas obras sem fé não são ‘boas’ e a
fé sem as obras boas não é verdadeira fé”.
No Novo Testamento,
dois verbos se alternam referindo-se à santidade, um no indicativo e outro no
imperativo: “Sois santos”, “Sede santos”. O pregador da Casa Pontifícia
destacou que um ponto permanece inalterado, e até se aprofunda, no passo do
Antigo ao Novo Testamento e á o motivo de fundo do chamado à santidade, o
“porquê” é necessário ser santos: porque Deus é santo.
A santidade – acrescentou – não é, portanto, uma imposição, uma carga
que nos é colocada nos ombros, mas um privilégio, um dom, uma grande honra.
Portanto, se somos “chamados a ser santos”, se somos “santos por vocação”,
então, é claro que seremos pessoas verdadeiras, realizadas, na medida em que
formos santos. Caso contrário, seremos fracassados. O contrário de santo –
advertiu – não é pecador, mas fracassado.E acrescentou que "não depende de
nós sermos fortes ou fracos, bonitos ou menos bonitos, ricos ou pobres,
inteligentes ou menos; depende, porém, de nós sermos honestos ou desonestos,
bons ou maus, santos ou pecadores”.
O Pe. Cantalamessa
explicou que nosso esforço para a santidade é como o caminho do povo eleito no
deserto. "É também um caminho feito de várias paradas e recomeços”,
explicou.Na vida da Igreja, os convites para voltar ao caminho “se escutam
especialmente no começo dos tempos fortes do ano litúrgico ou em ocasiões
particulares, como é o Jubileu da Misericórdia divina”, observou o pregador.Finalmente,
o padre Raniero afirmou que a justiça bíblica, como sabemos, é a santidade. E
assim convidou a concluir a pregação com uma pergunta sobre a qual meditar
neste tempo de Advento:
"Eu tenho fome e sede santidade, ou estou me resignando à
mediocridade?"
VEJA A PREGAÇÃO NA ÍNTEGRA:
“O chamado universal dos cristãos à santidade”
(Fonte: CTV,
OSSERVATORE ROMANO)
Há poucos dias
comemoramos o quinquagésimo aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II
e entramos no ano jubilar da misericórdia, pelo qual, Santo Padre, somos-lhe
muito gratos. Devemos dizer que não é nem um pouco arbitrária a ligação
existente entre o tema da misericórdia e o concílio vaticano II. No discurso de
abertura, no dia 11 de outubro de 1962, São João XXIII indicou na misericórdia
a novidade e o estilo do concílio:
“Sempre, escrevia, a Igreja se opôs aos erros; muitas vezes, também,
condenou-os com a máxima severidade. Agora, porém, a Esposa de Cristo prefere
usar o remédio da misericórdia, mais do que o da severidade”[1]
Em certo sentido, à
distância de meio século, o ano da misericórdia celebra a fidelidade da Igreja
àquela sua promessa. Às vezes, surge a pergunta de se insistir muito na
misericórdia não é correr o risco de se esquecer o outro atributo de Deus que é
a justiça. Mas, a justiça de Deus, não só não contradiz a sua misericórdia, mas
consiste justamente nessa! Deus se faz justiça, fazendo misericórdia. Deus é
amor; por isso faz justiça a si mesmo – ou seja, se demonstra verdadeiramente
por aquilo que é – quando faz misericórdia. Bem antes de Lutero Santo Agostinho
tinha escrito: ‘A justiça de Deus’ é aquela, pela qual, por sua graça, Deus nos
torna justos, exatamente como ‘a salvação do Senhor’ (salus Domini) (Sl 3, 9) é
aquela, pela qual, Deus nos salva[2]”.
Isso não esgota todos
os sentidos da expressão “justiça de Deus”, mas é certamente o significado
principal dela. Um dia existirá, também, uma justiça de Deus retributiva, que
dará a cada um de acordo com os próprios méritos (cf Rom 2, 5-10); mas, não é
dessa que o Apóstolo fala quando diz: “Agora se manifestou a justiça de Deus”
(Rom 3, 21). Aquela é um evento futuro, esta um evento presente. Em outro lugar
o próprio apóstolo explica assim: “Quando se manifestou a bondade de Deus e o
seu amor pelos homens, ele nos salvou, não em virtude de obras de justiça
realizadas, mas pela sua misericórdia” (Tt 3, 4-5).
1. “Sejam santos porque eu, vosso Deus, sou santo”
O tema desta
meditação é o capítulo V da Lumen gentium, intitulado “A vocação universal à
santidade na Igreja”. Nas histórias do Concílio este capítulo só é lembrado por
uma questão, digamos, de redação. Os vários Padres conciliares, membros de
ordens religiosas, pediram com insistência que fosse dedicado um tratado a
parte sobre a presença dos religiosos na Igreja, como tinha sido feito para os
leigos. Foi assim que aquilo que tinha sido lembrado até então como um capítulo
unicamente relacionado à santidade de todos os membros da Igreja, foi dividido
em dois capítulos, dos quais o segundo (VI da LG), dedicado especificamente aos
religiosos[3].
O chamado à santidade foi formulado desde o início com
estas palavras:
“Por isso, todos na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela
sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo:
«esta é a vontade de Deus, a vossa santificação»” (1 Tess. 4,3; cfr. Ef.
1,4)[4].
Este chamado à
santidade é o ponto mais necessário e urgente do concílio. Sem isso, todos os
outros requisitos são impossíveis ou inúteis. De fato, normalmente, isso é
deixado de lado porque só Deus e a consciência que a exigem e pedem, e não as
pressões ou interesses de grupos humanos particulares da Igreja. Às
vezes, parece que em certos ambientes e em certas famílias religiosas, depois
do concílio, focaram mais no compromisso de “fazer os santos” do que no de
“fazer-se santos”, ou seja, mais esforço para levar aos altares os próprios
fundadores ou correligionários do que em imitar os exemplos e as virtudes.
A primeira coisa que
deve ser feita, quando se fala de santidade, é libertar esta palavra da
submissão e do medo que dá, por causa de certas deturpações que fizeram dela. A
santidade pode acarretar fenômenos e provas extraordinárias, mas não se
identifica com essas coisas. Se todos são chamados à santidade, é porque,
devidamente compreendida, ela está ao alcance de todos, faz parte da
normalidade da vida cristã. Os santos são como as flores: não existem só
aqueles que são colocados no altar. Quantos deles desabrocham e morrem
escondidos, depois de terem lançado silenciosamente seu perfume no ambiente!
Quantas dessas flores escondidas floresceram e florescem continuamente na
Igreja.
A motivação de fundo
da santidade é clara desde o início e é que Deus é santo: “Sede santos, porque
eu, o Senhor vosso Deus, sou santo" (Lv 19, 2). A santidade é a síntese,
na Bíblia, de todos os atributos de Deus. Isaías chama Deus de "o Santo de
Israel", aquele que Israel conheceu como o Santo. “Santo, santo, santo”,
Qadosh, qadosh, qadosh, é o grito que acompanha a manifestação de Deus no
momento do seu chamado (Is 6, 3). Maria reflete fielmente essa ideia de Deus
dos profetas e dos Salmos, quando exclama no Magnificat: "Santo é o seu
nome".
Quanto ao conteúdo da
ideia de santidade, o termo bíblico qadosh sugere a ideia de separação, de
diversidade. Deus é santo porque é o totalmente outro com relação a tudo o que
o homem pode pensar, dizer ou fazer. É absoluto, no sentido etimológico de
ab-solutus, solto de tudo e à parte. É o transcendente, no sentido de que está
por acima de todas as nossas categorias. Tudo isso no sentido moral, antes
mesmo que metafísico; diz respeito ao atuar de Deus e não só ao seu ser. Na
Escritura define-se como “santos” principalmente os juízos de Deus, as suas
obras e os seus caminhos[5].
Contudo, santo não é
um conceito principalmente negativo, que indica separação, ausência de mal e de
mistura em Deus; é um conceito sumamente positivo. Indica uma “pura plenitude”.
Em nós, a “plenitude” nunca se mistura totalmente com a “pureza”. Sempre
conquistamos a nossa pureza, purificando-nos e tirando o mal das nossas ações
(Is 1, 16). Em Deus não; pureza e plenitude coexistem e constituem juntas a
suma simplicidade de Deus. A Bíblia expressa perfeitamente esta ideia de
santidade quando fala que a Deus "nada pode ser acrescentado e nada
tirado" (Sir 42, 21). Em quanto suma pureza, nada lhe deve ser tirado; em
quanto suma plenitude, nada lhe pode ser acrescentado.
Quando se procura
entender como o homem entra na esfera da santidade de Deus e o que significa
ser santo, logo prevalece, no Antigo Testamento, a ideia ritualística. Os
trâmites da santidade de Deus são objetos, lugares, ritos, prescrições. Seções
inteiras do Êxodo e do Levítico se intitulam “códigos de santidade” ou “lei de
santidade”. A santidade está contida em um código de leis. É tal esta santidade
que é profanada se alguém se aproxima do altar com uma deformidade física ou
depois de ter tocado num animal imundo: "santificai-vos e sede santos ...,
não se contaminem com qualquer um destes animais" (Lv 11, 44; 21, 23).
É possível ler
diferentes vozes nos profetas e nos salmos. À pergunta; “Quem subirá o monte do
Senhor, quem entrará em sua santa habitação?”, ou: “Quem dentre nós pode
habitar com um fogo abrasador?", responde-se com indicações
requintadamente morais: "Quem tem mãos puras e inocente coração”, e “quem
caminha na justiça e fala com lealdade” (cf. Sl 24, 3; Is 33, 14 s.). São vozes
sublimes que, porém, permanecem isoladas. Ainda no tempo de Jesus, nos fariseus
e em Qumram prevalece a ideia de que a santidade e a justiça consistem na
pureza ritual e na observância de certos preceitos, especialmente o do Sábado,
embora se, na teoria, ninguém esquece que o primeiro e maior mandamento é o do
amor a Deus e ao próximo.
2. A novidade de Cristo
Passando agora para o
Novo Testamento, vemos que a definição de "nação santa" estende-se
bem cedo aos cristãos. Para Paulo, os batizados são "santos por vocação”,
ou “chamados a ser santos”[6]. Ele designa habitualmente os batizados com o
termo “os santos”. Os fieis são “escolhidos para ser santos e imaculados diante
dele no amor" (Ef 1, 4). Mas sob a aparente identidade de terminologia
vemos mudanças profundas. Santidade não é mais um fato ritual ou legal, mas
moral, até mesmo ontológico. Não reside nas mãos, mas no coração; não se decide
fora, mas dentro do homem e resume-se na caridade. "Não é o que entra pela
boca que contamina o homem; o que sai da boca, isso contamina o homem "(Mt
15, 11).
Os mediadores da
santidade de Deus não são mais lugares (o templo de Jerusalém ou o monte
Carizim), ritos, objetos e leis, mas é uma pessoa, Jesus Cristo. Ser santo não
consiste tanto em um estar separado disto ou daquilo, mas em um estar unido a Jesus
Cristo. Em Jesus Cristo está a própria santidade de Deus que nos alcança
pessoalmente, não em uma luz distante dele. "Tu és o Santo de Deus!":
duas vezes ressoa esta exclamação dirigida a Jesus nos Evangelhos (Jo 6, 69; Lc
4, 34). O livro do Apocalipse chama Cristo simplesmente "O Santo” (Ap 3,7)
e a liturgia ecoa exclamando no Glória "Tu solus Sanctus", Só Tu és o
Santo.
Há duas maneiras de entrar em contato com a santidade de Cristo e esta é
comunicada a nós: por apropriação e por imitação. Dessas, a mais importante é a
primeira que se realiza na fé e por meio dos sacramentos. A santidade é, antes
de mais nada, graça e é obra de toda a Trindade. Porque, de acordo com o
Apóstolo, nós pertencemos a Cristo mais do que a nós mesmos (cf. 1 Cor 6,
19-20), segue-se que, inversamente, a santidade de Cristo nos pertence mais do
que a nossa própria santidade. "O que é de Cristo - escreve o teólogo
bizantino Nicolau Cabasilas - é mais nosso do que aquilo que é nosso”[7]. Essa
é a ideia genial, ou ato corajoso, que temos que realizar na vida espiritual. A
sua descoberta não se faz, geralmente, no começo, mas no final do próprio
itinerário espiritual; não no noviciado, mas mais tarde, quando já se
experimentou todas as outras estradas e vemos que não levam muito longe.
Paulo nos ensina como
fazer este “ato corajoso”, quando declara solenemente não querer ser encontrado
com a sua própria justiça, ou santidade, resultante do cumprimento da lei, mas
apenas com aquela que deriva da fé em Cristo (cf. Fl 3, 5-10). Cristo, diz, se
tornou para nós "justiça, santificação e redenção" (1 Cor 1,30).
"Para nós": portanto, podemos exigir a sua santidade como nossa em
todos os efeitos. Um ato corajoso é também o que faz São Bernardo, quando
grita: “eu, quando me falta, o aproprio (literalmente, o usurpo) do lado de
Cristo”[8]. “Usurpar” a santidade de Cristo, “arrebatar o reino dos céus”! Isso
é ato corajoso que deve ser repetido muitas vezes na vida, especialmente, no
momento da comunhão eucarística.
Dizer que nós participamos da santidade de Cristo, é como dizer que
participamos do Espírito Santo que vem dele. Ser ou viver “em Cristo Jesus”
equivale, para São Paulo, ser ou viver “no Espírito Santo”. "A partir
disso - por sua vez, escreve São João – se reconhece que nós permanecemos nele
e ele em nós: ele nos fez o dom do seu Espírito” (1 Jo 4, 13). Cristo permanece
em nós e nós permanecemos em Cristo, graças ao Espírito Santo.
É o Espírito Santo,
portanto, que nos santifica. Não o Espírito Santo no geral, mas o Espírito
Santo que foi em Jesus de Nazaré, que santificou a sua humanidade, que se
recolheu nele como em um vaso de alabastro e que, da sua cruz e em Pentecostes,
ele derramou sobre a Igreja. Por isso, a santidade que está em nós não é uma
segunda e diferente santidade, mas é a mesma santidade de Cristo. Nós somos
verdadeiramente “santificados em Cristo Jesus” (l Cor 1,2). Como no batismo, o
corpo do homem está imerso e lavado na água, assim a sua alma é, por assim
dizer, batizada na santidade de Cristo: “Fostes lavados, fostes santificados,
fostes justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso
Deus”, diz o Apóstolo referindo-se ao batismo (1 Cor 6,11).
Ao lado deste meio
fundamental da fé e dos sacramentos, deve estar também a imitação, as obras, o
esforço pessoal. Não como meio independente e diferente, mas como o único meio
adequado de manifestar a fé, traduzindo-a em ato. A oposição fé – obras é um
falso problema que se manteve por causa da controvérsia histórica. As boas
obras, sem a fé, não são obras “boas” e a fé sem as obras boas não é verdadeira
fé. Basta que por “obras boas” não se entendam principalmente (como
infelizmente era no tempo de Lutero) indulgências, peregrinações e práticas
piedosas, mas a observância dos mandamentos, especialmente o do amor fraterno.
Jesus disse que no juízo final alguns serão excluídos do Reino por não terem
vestido o nu e alimentado o faminto.
Não há salvação, portanto, pelas obras boas, mas não há salvação sem as
obras boas. Podemos resumir assim a doutrina do concílio de Trento.
Acontece igual à vida
física. A criança não pode fazer absolutamente nada para ser concebida no seio
da mãe; precisa do amor dos pais (pelos menos foi assim até hoje!). Uma vez que
nasceu, deve fazer trabalhar os seus pulmões para respirar, sugar o leite; em
suma, deve trabalhar, senão a vida que recebeu morre. A frase de São Tiago:
“A fé, sem as obras é morta” (Tg 3, 26) deve ser entendida neste
sentido, isto é, no presente: a fé sem as obras morre.
No Novo Testamento,
dois verbos são usados para referir-se à santidade, um no indicativo e um no
imperativo: “Sois Santos”, “Sede santos”. Os cristãos são santificados e
santificantes[9]. Quando Paulo escreve: “Esta é a vontade de Deus, a vossa
santificação”, é claro que se refere justamente a esta santidade que é fruto de
compromisso pessoal. Acrescenta, de fato, como para explicar em que consiste a
santificação da qual está falando: “Que vos abstenhais da imodéstia, que cada
um saiba manter o próprio corpo com santidade e respeito” (cf. 1 Ts 4: 3-9).
O nosso texto da Lumen Gentium enfatiza claramente estes
dois aspectos, um objetivo e outro subjetivo, da santidade, baseados
respectivamente na fé e nas obras. Diz:
"Os seguidores de Cristo,
chamados por Deus e justificados em Jesus Cristo, não segundo as suas obras,
mas segundo o desenho e a graça Dele, no batismo da fé foram feitos realmente
filhos de Deus e coparticipantes da natureza divina, e, por isso, realmente
santos. Esses devem, portanto, com a ajuda de Deus, manter e aperfeiçoar,
vivendo-a, a santidade que receberam”[10].
Porque, de acordo com
Lutero, a Idade Média tinha se desviado sempre mais para acentuar o lado de
Cristo como modelo, e ele acentuou o outro, afirmando que ele é dom e que este
dom corresponde à fé aceitar”[11].
Hoje estamos todos de acordo que não se deve contrapor as duas coisas,
mas mantê-las unidas. Cristo é, antes de mais nada, dom a ser recebido por meio
da fé, mas é também modelo a ser imitado na vida. Ele próprio fala isso no
Evangelho: "Eu vos dei o exemplo, para que façais como eu vos fiz (Jo 13,
15); "Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração" (Mt 11,
29).
3. Santos ou fracassados
Este é o ideal novo
de santidade do Novo Testamento. Um ponto permanece inalterado, e é possível
aprofundá-lo na passagem do Antigo ao Novo Testamento e é a motivação de fundo
do chamado à santidade, o “porquê” é necessário ser santos: porque Deus é
santo. “À imagem do santo que vos chamou, sede também vós santos". Os
discípulos de Cristo devem amar os inimigos, “para ser filhos do Pai celeste
que faz chover sobre justos e sobre injustos" (Mt 5, 45). A santidade não
é, portanto, uma imposição, um fardo que nos é colocado sobre os ombros, mas um
privilégio, um dom, uma honra suprema. Uma obrigação, sim, mas que deriva da
nossa dignidade de filhos de Deus. Aplica-se à ela, no sentido pleno, o ditado
francês "noblesse oblige".
A santidade é exigida
pelo próprio ser da criatura humana; não diz respeito aos acidentes, mas à sua
própria essência. Ele deve ser santo para realizar a sua identidade profunda
que é de ser “a imagem e semelhança de Deus”. Para a Escritura, o homem não é
principalmente, como para a filosofia grega, o que é determinado a ser pelo seu
nascimento (physis), ou seja, um “animal racional”, mas o que é chamado a se
tornar, com o exercício da sua liberdade, na obediência a Deus. Não é tanto
natureza, mas vocação.
Se, portanto, somos "chamados a ser santos", se somos
"santos por vocação”, então fica claro que seremos pessoas verdadeiras,
realizadas, na medida em que formos pessoas santas. Caso contrário, seremos
pessoas fracassadas. O contrário de santo não é pecador, mas fracassado!
Pode-se fracassar na vida de muitas formas, mas são fracassos relativos que não
comprometem o essencial; aqui se fracassa radicalmente naquilo que se é, não só
naquilo que se faz. Tinha razão Madre Teresa quando perguntada à queima roupa
por uma jornalista o que ela sentia quando era aclamada santa por todo o mundo,
respondeu: “A santidade não é um luxo, é uma necessidade”.
O filósofo Pascal formulou o princípio das três ordens hierárquicas,
ou níveis de grandeza:
1)- A ordem dos
corpos ou da matéria.
2)- A ordem da
inteligência.
3)- A ordem da
santidade.
Uma distância quase
infinita separa a ordem da inteligência da dos corpos, mas uma distância
“infinitamente mais infinita” separa a ordem da santidade da ordem da
inteligência. Os genes não precisam das grandezas materiais; não podem tirar ou
acrescentar nada a eles.
Da mesma forma, os santos não precisam das grandezas intelectuais; a sua
grandeza é de outra ordem. “Eles são vistos por Deus e pelos anjos, não pelos
corpos e pelas mentes curiosas; basta-lhes Deus”.
Este princípio permite avaliar da forma certa as coisas e
as pessoas que nos rodeiam:
1)- A maioria das
pessoas permanecem paradas no primeiro nível e nem sequer suspeitam da
existência de um plano superior. São aqueles que passam a vida preocupados só
em acumular riquezas, cultivar a beleza física, ou aumentar o próprio poder.
2)- Outros acreditam
que o valor supremo e o vértice da grandeza seja o da inteligência. Procuram se
tornar célebres no campo das letras, da arte, do pensamento.
3)- Só poucos sabem
que existe um terceiro nível de grandeza, a santidade.Esta grandeza é superior
porque eterna, porque é tal aos olhos de Deus que é a verdadeira medida da
grandeza e também porque realiza o que há de mais nobre no ser humano, ou seja,
a sua liberdade. Não depende de nós nascermos fortes ou fracos, bonitos ou menos
bonitos, ricos ou pobres, inteligentes ou pouco inteligentes; depende de nós,
sim, sermos honestos ou desonestos, bons ou maus, santos ou pecadores. Tinha
razão o musico Gounod, ele próprio um gênio, quando dizia que “um gota de
santidade vale mais do que oceano de gênio[12]”.
A boa notícia, sobre
a santidade, é que não se é obrigado a escolher um destes três tipos de
grandeza. Pode-se ser santos em cada um deles. Houve, e há santos entre os
ricos e entre os pobres, entre os fortes e entre os fracos, entre os gênios e
as pessoas sem cultura. Ninguém está excluído desta magnitude do terceiro
nível.
4. Voltar ao caminho da santidade
O nosso tender à
santidade é semelhante ao caminho do povo eleito no deserto. Esse também é um
caminho feito de contínuas paradas e partidas. De tanto em tanto o povo parava
e acampava; ou porque estava cansado, ou porque tinha encontrado água e comida,
ou simplesmente porque cansa caminhar sempre. Mas eis que chega de improviso a
ordem do Senhor a Moisés de levantar as tendas e recomeçar a caminhada:
“Levante, saia daqui, tu e o teu povo, rumo à terra que prometi” (Ex 15, 22;
17, 1).
Na vida da Igreja,
essas chamadas para voltar à caminhar são ouvidas, especialmente, no início dos
tempos fortes do ano litúrgico ou por ocasiões particulares como é o jubileu da
misericórdia divina aberto recentemente pelo Papa. Para cada um de nós, tomados
individualmente, o tempo de levantar as tendas e recomeçarmos a caminhada rumo
a santidade é quando nos damos conta, no íntimo, da misteriosa chamada que vem
da graça. No começo, há como que um momento de parada. A pessoa para no
turbilhão de suas ocupações, toma, como se costuma dizer, as distâncias de tudo
para olhar a sua vida quase que de fora ou do alto, sub specie aeternitatis.
Surgem, então, as grandes perguntas: “Quem sou? O que quero? O que estou
fazendo da minha vida?”.
Embora fosse um
monge, São Bernardo teve uma vida muito movimentada: concílios que presidiu,
bispos e abades que reconciliou, cruzadas que pregou. De vez em quando, diz o seu
biógrafo, ele parava e, quase entrando em diálogo consigo mesmo, se perguntava:
“Bernardo, a que viestes?” (Bernarde, ad quid venisti?)[13]. Por que
deixastes o mundo e entrastes no mosteiro? Nós podemos imitá-lo; pronunciar o
nosso nome (também isso serve) e perguntar-nos: Por que es cristão? Por que es
sacerdote ou religioso? Estás realizando aquilo pelo qual estás no mundo?...”
No Novo Testamento se
descreve um tipo de conversão que poderíamos definir como a
conversão-despertar, ou a conversão da mediocridade. No Apocalipse se leem sete
cartas escritas aos anjos (segundo alguns exegetas aos bispos) de várias outras
Igrejas da Ásia Menor. Na carta ao anjo de Éfeso, ele começa reconhecendo o que
o destinatário fez de bom: “Conheço as tuas obras, o teu cansaço e a tua
constância... És constante e tens sofrido muito pelo meu nome, sem cansar-te”.
Depois passa a listar o que, pelo contrário, não lhe agrada: “Abandonastes o
teu primeiro amor!”. E eis que, neste ponto, ressoa, como uma trombeta entre
adormecidos, o grito do Ressuscitado: Metanòeson, ou seja, converte-te!
Levanta-te! Sacode-te! (Ap 2, 1 ss.).
Essa é a primeira das
sete cartas. Muito mais severa é a última dessas, aquela dirigida ao anjo da
Igreja de Laodiceia: “Conheço as tuas obras: tu não eres nem frio nem quente.
Oxalá fosses frio ou quente!”. Converte-te e volte a ser zeloso e fervoroso:
Zeleue oun kai metanòeson! (Ap 3,15 ss). Também esta, como todas as outras,
termina com aquele misterioso aviso: "Quem tem ouvidos, ouça o que o
Espírito diz às igrejas" (Ap 3, 22).
Santo Agostinho nos dá uma dica de começar a despertar em
nós o desejo de santidade:
“Toda a vida do bom cristão – escreve – consiste em um santo desejo [ou
seja, em um desejo de santidade]: Tota vita christiani boni, sanctum desiderium
est”[14].
Jesus disse:
“Bem aventurados aqueles que tem fome e sede de justiça, porque serão
saciados” (Mt 5, 6). A justiça bíblica, se sabe, é a santidade.
Nos deixamos, por
isso, com uma pergunta para meditar: “Eu tenho fome e sede de santidade, ou
estou me contentando com a mediocridade?”
[Tradução Thácio
Siqueira, ZENIT]
________________________________________
[1] Concilio Vaticano
II. Documenti, Edizioni Dehoniane,
Bologna 1967, p.47.
[2] S. Agostino, Lo
Spirito e la lettera, 32,56 (PL 44, 237).
[3] Cf. Storia del
concilio Vaticano II, organizado por G. Alberigo, vol. IV, Bologna 1999, pp. 68 ss.
[4] Lumen gentium, 39.
[5] Cf. Dt 32,4; Dn 3, 27; Ap 16, 7.
[6] Cf. Rom 1, 7 e 1
Cor 1, 2.
[7] N. Cabasilas,
Vita in Cristo IV, 6 (PG 150, 613).
[8] S. Bernardo,
Omelie sul Cantico, 61, 4-5 (PL 183, 1072).
[9] Cf. 1 Cor 1, 2; 1 Pt 1,2; 2, 15.
[10] Lumen gentium, 40
[11] Cf. Søeren Kierkegaard, Diario X 1,A 154 (ed. Organizada por C.
Fabro, Brescia 1962, vol. I, p. 821).
[12] B. Pascal,
Pensieri 593.
[13] Guglielmo di St.
Thierry, Vita prima, I, 4 (PL 185, 238).
[14] S. Agostinho, In Epist. Joh. 4, 6
(PL 35, 2008).
Fonte: Agência Zênit
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