COMENTÁRIOS DO BLOG BERAKASH:Tem um monte de gente
que disputa a “paternidade” do famoso “Plano Real”, esse plano econômico que está
completando vinte anos e que teria estabilizado a economia brasileira de modo
definitivo, de uma vez por todas, erradicando a hiperinflação e todos os males
dela decorrentes. Segundo muitos especialistas, esse plano é realmente
admirável, daí por que compensaria saber quem foi ou quem foram os brasileiros
que o conceberam e o implantaram.Há quem diga que o “pai” do Plano Real foi o
ex-presidente Itamar Franco, que encarregou o seu então Ministro da Fazenda,
Fernando Henrique Cardoso, da hercúlea tarefa de acabar com a nossa persistente
inflação histórica e com as mazelas de uma economia estagnada, dependente do
capital estrangeiro e incapaz de se desenvolver com as suas próprias forças.Mas,
há quem prefira atribuir a “paternidade” (e o sucesso) do Plano Real unicamente
ao então Ministro da Fazenda de Itamar Franco, o sociólogo e professor Fernando
Henrique Cardoso, que então convocou uma renomada equipe de economistas para
elaborar esse plano, implantou uma política monetária das mais austeras e
acabou virando presidente da república do Brasil em 1994.Muita gente portanto, prefere
atribuir a “paternidade” do Plano Real mais precisamente à equipe que
assessorava o Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, e que depois viria
a integrar o seu governo, dentre eles os economistas Pérsio Arida, Armínio
Fraga, Gustavo Franco, Edmar Bacha e Pedro Malan – para citar apenas os mais
conhecidos e mais festejados.Creio que ninguém pode tirar o mérito desses
economistas que tanto fizeram para livrar o Brasil da inflação galopante que
nos afligia até a década de 1990. Mas, creio também que ninguém pode ignorar
que esses técnicos brilhantes, para erradicar a inflação no Brasil, nada mais
fizeram do que, simplesmente, adotar o “receituário” e a ortodoxia do FMI, do
Banco Mundial e do Departamento do Tesouro norte-americano que então formavam
aquilo que o professor inglês, John Williamson, chamou de “Consenso de
Washington”.É isso mesmo, goste-se ou não, para o bem ou para o mal, a estabilização
monetária no Brasil foi levada a efeito com a mais rigorosa obediência aos cânones
do chamado NEOLIBERALISMO, para quem o único meio de conter processos
inflacionários é com disciplina fiscal, contenção de gastos públicos, redução
de impostos, câmbio livre, juros altos, desregulamentação (desproteção) das
economias emergentes e privatizações.Assim,
cabe-nos perguntar, quem é o verdadeiro “pai” do Plano Real: O ex-presidente Itamar Franco, o
seu ex-ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, os economistas que
integravam a equipe desse ministro na época, ou o chamado “Consenso de
Washington” que, sob as bênçãos do FMI, impôs ao Brasil a sua cartilha
genuinamente neoliberal, seguida à risca e com toda a ortodoxia e fidelidade
naqueles idos de 1994?
20 anos depois: quem são os donos do plano Real?
(Por João Sicsú publicado
17/03/2014 – REVISTA CARTA CAPITAL)
A estabilização da inflação
aconteceu ao custo da substituição de produtos nacionais por importados e o
agravamento da situação fiscal. Coube, sim, aos economistas do PSDB patrocinar
o não aprofundamento da fase de sincronização dos preços, a promoção de uma
enorme substituição de produtos nacionais por produtos importados durante a
fase de estabilização e o agravamento da situação fiscal brasileira
O plano Real, lançado em 28 de
fevereiro de 1994, foi um plano influenciado pelas ideias do economista inglês
John Maynard Keynes e pelas experiências hiperinflacionárias europeias (da
primeira metade do século XX), mas que contou com uma questionável
administração de economistas brasileiros e com as (des)orientações do Fundo
Monetário Internacional (FMI). Longe de ter sido “idealizado por Fernando
Henrique Cardoso”, como afirmam O Globo e outros veículos assemelhados, o plano
foi organizado e dirigido exclusivamente pelos economistas do PSDB.
Fernando
Henrique Cardoso (FHC) era o ministro da Fazenda durante o período de
lançamento do Plano. O presidente era Itamar Franco. Um mês após o lançamento
do plano, FHC se desincompatibilizou do cargo para se candidatar à Presidência
da República pelo PSDB. Rubens Ricupero assumiu o ministério da Fazenda.
Ricupero deveria ser o responsável por toda a condução do plano.Em um estúdio
da TV Globo, antes de uma gravação, o ministro da Fazenda revelou
reservadamente ao jornalista Carlos Monforte suas intenções, vontades e ideias
sobre o plano Real.
Antes do lançamento da nova
moeda, o real, a inflação era elevada.Mais do que isso: existia um regime de
alta inflação, isto é, havia uma dança de preços. Alguns preços subiam porque
outros tinham subido. E estes subiam porque aqueles haviam subido. E assim os
preços aumentavam de forma sucessiva. Havia uma corrida de preços, mas de forma
dessincronizada: aumentavam em momentos diferenciados e com percentuais
diferentes. Além disso, nenhum contrato era assinado com a moeda corrente, o
cruzeiro real. Os contratos usavam moedas fictícias (referências) ou algum
índice para indexar o seu valor à inflação e/ou aos desejos dos contratantes.
Muito
foi acumulado em termos de discussões e experiências desde o Plano Cruzado de
fevereiro de 1986 até o lançamento do Real.
Nos meios acadêmicos
fervilhavam artigos e debates sobre o assunto:
O Plano Cruzado havia dado errado
por um simples fato: o seu carro-chefe foi o congelamento de preços. O
raciocínio era simples: se os preços sobem porque outros já subiram, então
congelam-se os preços e não haverá mais motivos para reajustes. Errado: os
preços estavam dessincronizados, então quem ficara “mal na foto” (isto é, ainda
não tinha reajustado o seu preço) no momento em que houve o congelamento não
aceitou aquela situação e reagiu, reajustando seus preços. Aí... os outros
reagiram também. Assim, ruiu o congelamento e o Plano Cruzado.
Utilizado
eleitoralmente pelo PMDB, o congelamento de preços foi mantido (com a Polícia
Federal e fiscais nas ruas) somente até as eleições de novembro de 1986. O
resultado: o PMDB ganhou o governo dos estados de todas as unidades da
federação, exceto Sergipe.
Além da experiência
do Cruzado, havia mais uma lição muito importante na história econômica:
Keynes, o economista inglês, foi
convidado pelo governo alemão, em 1922, a apresentar um plano para derrubar a
hiperinflação alemã.
Os pilares do Plano
de Keynes eram os seguintes:
1)
– A derrubada da inflação deveria ser uma iniciativa do governo, já que
desconfiava de qualquer tipo de ajuda externa.
2)
- Fixação da taxa de câmbio para promover a estabilização, já que os preços
estavam perfeitamente indexados ao dólar (isto é, os preços subiam de forma sincronizada
todos os dias).
3)-
Os déficits públicos seriam curados posteriormente, depois da estabilização e
como consequência do crescimento econômico (que possibilitaria aumento da
arrecadação).
Estas
lições eram bastante conhecidas entre os economistas brasileiros no início dos
anos 1990. Minha dissertação de mestrado, defendida em 1993, intitulava-se “As
lições do Plano Keynes para um projeto de estabilização”. Muitos economistas
escreveram trabalhos acadêmicos relevantes relacionando as ideias de Keynes, os
países que conviveram com a hiperinflação e um plano de estabilização para o
Brasil. Destacavam-se Paulo Nogueira Batista Jr. e Gustavo Franco. Rudner
Dornbusch, um professor americano do MIT – e que com frequência visitava o
departamento de economia da PUC-Rio, ninho dos economistas do PSDB – republicou
parte do Plano Keynes em 1987 em artigo de sua autoria.
Na primeira parte da
década de 1990, havia uma grande lição já apreendida do Plano Keynes e do
fracasso do Cruzado:
Era
preciso sincronizar a dança dos preços com a variação diária do valor do dólar.
Dado este passo, o próximo seria o lançamento de uma âncora cambial (cuja
versão mais recomendada era o congelamento da taxa de câmbio em um patamar de
equilíbrio, isto é, que estimulasse exportações e defendesse o mercado
doméstico da invasão de produtos importados).
O FMI aproveitou este
ambiente para lançar mais uma de suas ideias:
Países
“irresponsáveis” não poderiam ter sequer moeda, deveriam utilizar o dólar
americano como moeda. O FMI foi o principal incentivador da radical dolarização
argentina, que quase extinguiu o peso durante a década de 1990, e do fim da
moeda nacional (o sucre) no Equador, que até hoje está sem sua própria moeda –
apesar de ser governado pelo antineoliberal Rafael Correa.
Os economistas do
PSDB inventaram uma dolarização disfarçada para a economia brasileira:
Uma
boa invenção, originária nas proposições de André Lara Rezende e Pérsio Arida
(proposição conhecida à época por “Larida”). Lançaram no dia 1º de março de
1994 a Unidade Real de Valor (URV), que valia 1 dólar americano e tentaram por
4 meses (de março a junho) “URVerizar” todos os preços. Em
outras palavras, estimularam que os preços subissem todos os dias de forma
sincronizada e referenciada na URV que valia 1 dólar – e que variava de valor
todos os dias.
A tentativa de
dolarização/sincronização de preços à brasileira foi um fiasco:
Somente
os contratos públicos (energia elétricas e outros) aderiram, de fato, à URV.
Existem trabalhos científicos (nunca contestados) publicados na Revista de
Economia Política que demonstram esta afirmação. Na época, surgiu um racha
entre os economistas do PSDB. Uns avaliavam que seria necessário que o período
de dolarização/sincronização tivesse pelo menos um ano para que todos os preços
aderissem à URV. Outros, não.
Óbvio
que uma boa sincronização seria desejada para que a fase seguinte, a da
estabilização, fosse bem sucedida – afinal, a lição do Cruzado estava viva na
memória dos economistas. Mas a parte vencedora argumentou que tal fase deveria
ser curta (não havia tempo, diziam). A fase de estabilização deveria chegar
logo, deveria ocorrer pelo menos quatro meses antes das eleições de novembro de
1994. Caso contrário, perderiam as eleições, já que Lula estava bem na frente
de FHC – em maio, as pesquisas apontavam a vitória do petista no primeiro turno
(43% contra 17% de FHC) – a reviravolta eleitoral somente ocorreu depois de 1º
de julho, quando entrou em cena a nova moeda, o real, em substituição à velha,
o cruzeiro real.
A fase de
sincronização da dança de preços via URV foi um fiasco econômico:
Então,
alguns céticos do plano Real pensaram que tudo daria errado porque os preços
voltariam a dançar e subir, tal como no Plano Cruzado. Os economistas do PSDB
sabiam que isto, de fato, poderia ocorrer.
Lançaram mão de uma “âncora”
inovadora: câmbio megavalorizado e abertura comercial. A âncora lançada em 1º
julho não foi a do câmbio fixo e equilibrado, tal como estava no Plano Keynes,
mas sim a do câmbio flutuante (para baixo) e do câmbio megavalorizado
(inicialmente com R$ 1 comprava-se US$ 1,mas logo em seguida com 84 centavos de
real comprava-se 1 dólar americano).
Com
esse câmbio e com a abertura comercial, as pressões por reajuste foram
dissolvidas de forma truculenta com uma invasão avassaladora de produtos
importados.O caminho foi exatamente aquele anunciado pelo ministro Ricupero na
conversa reservada que foi capitada pelas antenas parabólicas na época. Ele
considerava que quem desejava fazer reajustes eram “bandidos” e que ele daria
uma “pancada” promovendo importações. Disse:
- Eu vou fazer um troço firme.
- É pra tudo quanto é bem de
consumo e tal. Importação de tudo. ... Bens duráveis também.
- Vou fazer uma coisa grande.
- É tudo bandido.
O que manteve os preços estabilizados, após o lançamento
da nova moeda em 1º de julho de 1994, foi a concorrência desleal de produtos
importados – essa foi a principal “âncora” do plano Real – não existiu qualquer
âncora cambial, tal como sugerida por Keynes ou aplicada em diversas
experiências.
Não houve acomodação de preços, mas sim o deslocamento de produtos nacionais e
a introdução de produtos importados no mercado doméstico brasileiro. O valor
das importações de bens de consumo era, em 1993, US$ 3,2 bilhões; em 1998,
alcançou US$ 10,8 bilhões – mais que triplicou!Dessa forma, os preços foram
controlados e as pressões foram, dissolvidas pela exclusão de produtos
domésticos do mercado brasileiro.
Logo
em seguida, para fazer crer que o que estava funcionando era a âncora cambial,
foi permitida a concessão de crédito bancário em dólares – a operação era feita
em real, mas era convertida de acordo com a taxa de câmbio do dia. Também a
dívida pública interna foi, em boa parte, dolarizada para fazer crer que até o
governo não aceitaria uma desvalorização.
Embora
vendessem a fantasia do câmbio fixo, o crucial para os economistas do PSDB, à
época, não era se o câmbio estava congelado, mas sim se ele estava
megavalorizado para ser combinado com uma estratégia de abertura comercial.
As importações cresceram, o saldo
negativo com o exterior aumentou e os preços foram estabilizados, mas com taxas
de juros estratosféricas com o objetivo de atrair dólares para o país. Essas
taxas de juros bancavam a avalanche de importações de bens de consumo. Em 1994,
a taxa de juros Selic média foi superior a 70% ao ano; em 1995, superior a 54%.
No período que vigorou o plano Real, entre 1º de julho de 1994 a meados de 1999
(quando foi implantado o regime de metas de inflação), a taxa de juros Selic
média foi de 38% ao ano.
Em
1998, a taxa de câmbio super-hiper-megavalorizada já não era mais suportável.
Houve muitos debates internos entre economistas do PSDB e foi decidido pelo
presidente-candidato à reeleição que a desvalorização somente ocorreria após as
eleições de novembro. Vitorioso nas urnas com a promessa que não haveria
desvalorização (veja a capa de O Globo de 31 de agosto de 1998: FH GARANTE QUE
NÃO MEXE NOS JUROS NEM NO CÂMBIO). Mas em janeiro de 1999, FHC substituiu o
presidente do Banco Central, que estava provavelmente entre aqueles que não
queriam a desvalorização, e autorizou o desmonte da farsa eleitoral e
econômica: o câmbio foi desvalorizado.
Os céticos erraram
novamente. Pensaram: “agora a coisa afunda”. Não percebiam que a âncora do Real
era outra:
Apesar
da desvalorização ocorrida dentro de uma “banda diagonal transversa”, segundo
os termos quase ininteligíveis do novo presidente do Banco Central, o dólar
continuava muito barato.
Em resumo, esta foi a
história do Plano Real:
Entre
1999 e 2003/4 houve somente o aprofundamento dos fundamentos macroeconômicos
ditados pelos economistas liberais do PSDB e pelo FMI. Os resultados dos anos
de Plano Real foram dramáticos em termos de criação de empregos formais, de
crescimento e concentração de renda.A “responsabilidade” fiscal apregoada (pelo
FMI e os economistas do PSDB) foi transformada em elevação da carga tributária
e da dívida líquida pública como proporção do PIB. Os resultados fiscais somente
viriam a ser vistos e com o crescimento econômico da era Lula – tal como
sugeria o Plano Keynes. A maior herança benigna do Plano Real foi a consciência
antiinflacionária absorvida pela sociedade (para a qual o plano Cruzado também
contribuiu). Sim, a inflação foi controlada, mas isso não isenta os
organizadores e condutores do plano Real de seus graves equívocos.
ETAPAS DO PLANO REAL:
A
primeira fase do Real promoveria um ajuste fiscal e melhoraria os resultados
das contas públicas. Ocorreu o inverso. A segunda fase, a da sincronização do
reajuste de preços, foi apenas “para inglês ver”. E a terceira fase, a da
estabilização, obteve êxito, mas alcançou seu objetivo à custa de juros altos
para conter a perda de reservas, desnacionalização da economia, geração de
poucos empregos formais, baixo crescimento e concentração de renda.Poderia ter
sido bem sucedida sem estes custos.
A
concepção original do Plano Real era excepcional e tinha base teórica e
histórica – contudo, não foi uma invenção de economistas brasileiros. Coube,
sim, aos economistas do PSDB patrocinar o não aprofundamento da fase de
sincronização dos preços, a promoção de uma enorme substituição de produtos
nacionais por produtos importados durante a fase de estabilização e o
agravamento da situação fiscal brasileira.Mas hoje, 20 anos depois, somente
lembram do que chamam de derrubada da inflação, mas a sociedade brasileira
precisa mais que isto.
Fonte: Carta Capital
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