Artigo completo de Dom Müller,
Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé
Publicamos na integra o artigo
do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Dom Gerhard Ludwig Müller,
sobre matrimônio, família, e cuidado pastoral dos divorciados, publicado no
jornal da Santa Sé, L'Osservatore Romano.
I - Um testemunho sobre o poder da
graça - Acerca da indissolubilidade do
matrimônio e do debate sobre os divorciados recasados e os sacramentos:
O estudo da problemática dos fiéis
que contraíram um novo vínculo civil depois de um divórcio não é novo e foi
sempre guiado com grande seriedade pela Igreja com o propósito de ajudar as
pessoas concernidas, dado que o matrimónio é um sacramento que abrange de modo
particularmente profundo a realidade pessoal, social e histórica do homem.
Considerando o número crescente de pessoas concernidas nos países de antiga
tradição cristã trata-se de um problema pastoral de vasto alcance.
Hoje os crentes questionam-se muito seriamente:
-Não pode a Igreja permitir, sob determinadas condições, o
acesso aos sacramentos aos fiéis divorciados recasados?
-Em relação a tal questão tem a Igreja as mãos amarradas
para sempre?
-Os teólogos já consideraram, deveras, todas as implicações e
consequências em relação a esta matéria?
Questões como estas devem ser
tratadas em conformidade com a doutrina católica sobre o matrimónio. Uma
pastoral plenamente responsável pressupõe uma teologia que se abandone a Deus
que se revela
«prestando-lhe o total obséquio do intelecto e da vontade e
assentindo voluntariamente à Revelação que ele faz» (Concílio Vaticano II,
Constituição dogmática Dei Verbum, 5).
Para tornar compreensível o
ensinamento autêntico da Igreja devemos proceder a partir da Palavra de Deus
que está contida na Sagrada Escritura, ilustrada na Tradição da Igreja e
interpretada de modo vinculador pelo Magistério.
II- O testemunho da Escritura
Não está isento de problemáticas o
facto de apresentar imediatamente a nossa questão no âmbito do Antigo
Testamento, porque naquela época o matrimónio ainda não era considerado um
sacramento.A Palavra de Deus no Antigo
Testamento é contudo significativa em relação a isto também para nós, a partir
do momento que Jesus se coloca nesta tradição e argumenta a partir dela. Encontra-se no
Decálogo o mandamento «Não cometer adultério» (Êx 20, 14), mas noutras partes o
divórcio é considerado possível.
Segundo Dt 24, 1-4, Moisés estabelece
que um homem pode dar à esposa um libelo de repúdio e pode mandá-la embora da
sua casa se ela não achar mais graça diante dos seus olhos. Como consequência
disto, o homem e a mulher podem voltar a casar.
Contudo, em paralelo com a
concessão do divórcio no Antigo Testamento encontra-se também um certo
constrangimento em relação a esta prática. Assim como o ideal da monogamia,
também o ideal da indissolubilidade é entendido no confronto que os profetas
instituem entre a aliança de Javé com Israel e o vínculo matrimonial. O profeta
Malaquias expressa com clareza tudo isto:
«Ninguém atraiçoe a
mulher da sua juventude... a mulher a ti vinculada por um pacto» (Ml 2, 14-15).
Foram sobretudo as controvérsias com
os fariseus que deram a Jesus a ocasião para se ocupar do tema!
Ele
distanciou-se expressamente da prática veterotestamentária do divórcio, que
Moisés tinha permitido por causa da «dureza do coração» dos homens, e ao
contrário indicou a vontade originária de Deus:
«Mas no início da criação varão e mulher os criou; por
isto o homem deixará seu pai e sua mãe e unir-se-á à sua mulher e os dois serão
uma só carne...Por conseguinte, não separe o homem o que Deus uniu» (Mc 10,
5-9; cf. Mt 19, 4-9; Lc 16, 18).
A Igreja católica, no seu ensinamento e na sua prática,
referiu-se constantemente às palavras de Jesus sobre a indissolubilidade do
matrimónio. O Pacto que une íntima e
reciprocamente os dois cônjuges é instituído pelo próprio Deus. Trata-se por
conseguinte de uma realidade que vem de Deus e já não está na disponibilidade
dos homens.
Hoje, alguns exegetas afirmam que estas expressões do
Senhor já teriam encontrado nos tempos apostólicos uma certa flexibilidade na
aplicação!
E precisamente, no caso da porneia/fornicação (cf. Mt
5,32; 19, 9) e no caso da separação entre um cônjuge cristão e outro não
cristão (cf. 1 Cor 7, 12-15). As cláusulas sobre a fornicação foram
objecto de debate controverso desde o início no campo exegético. Muitos estão convictos de que não se trata de exceções em
relação à indissolubilidade do matrimónio, mas antes de vínculos matrimoniais
não válidos.
Contudo, a Igreja não pode basear a
sua doutrina e a sua prática em hipóteses exegéticas controversas. Ela deve
ater-se ao ensinamento claro de Cristo!
Paulo estabelece que a proibição de divórcio é uma vontade
expressa de Cristo:
«Mando aos casados, não eu mas o Senhor, que a mulher se
não separe do marido. Se, porém, se separar, que não torne a casar, ou que se
reconcilie com o marido; e que o marido não repudie a mulher!» (1 Cor 7, 10-11).
Ao mesmo tempo, baseando-se na
própria autoridade, Paulo concede que um não cristão possa separar-se do seu
cônjuge que se tornou cristão!
-Neste caso o
cristão já não está «submetido à escravidão», isto é, já não está obrigado a
permanecer não-casado (1 Cor 7, 12-16).
-A partir desta posição, a Igreja
reconheceu que só o matrimónio entre um homem e uma mulher batizados é
sacramento, em sentido próprio, e só para estes é válida a indissolubilidade
incondicional.
-De facto, o matrimónio
dos não-baptizados está subordinado à indissolubilidade, mas pode contudo ser
dissolvido em determinadas circunstâncias – devido a um bem maior (Privilegium
Paulinum).
Não se trata portanto de uma exceção
ao ensinamento do Senhor!
A indissolubilidade do matrimónio sacramental, do
matrimónio no âmbito do Mistério de Cristo, permanece.
De grande significado para o
fundamento bíblico da compreensão sacramental do matrimónio é a Carta aos
Efésios, na qual se afirma:
«Maridos, amai as
vossas mulheres como também Cristo amou a Igreja e por ela se entregou» (Ef 5,
25).
E mais adiante o apóstolo escreve:
«Por isso, o homem deixará pai e mãe, ligar-se-á à mulher
e passarão os dois a ser uma só carne. É grande este mistério; digo-o porém, em
relação a Cristo e à Igreja» (Ef 5, 31-32).
O matrimónio cristão é um sinal
eficaz da aliança de Cristo e da Igreja. O matrimónio entre baptizados é um
sacramento porque distingue e age como mediador da graça deste pacto.
III - O testemunho da tradição da
Igreja
Os Padres da Igreja e os Concílios
constituem sucessivamente um importante testemunho para o desenvolvimento da
posição eclesiástica. Segundo os Padres as instruções bíblicas são
vinculadoras.Eles não admitem as leis civis sobre
o divórcio considerando-as incompatíveis com o pedido de Jesus. A Igreja dos
Padres, em obediência ao Evangelho, rejeitam o divórcio e o segundo matrimónio,
em relação a esta questão o testemunho dos Padres é inequívoco.
Na época patrística
os crentes separados que se tinham voltado a casar civilmente não eram
readmitidos aos sacramentos nem sequer depois de um período de penitência.
Alguns textos patrísticos deixam
entender que os abusos nem sempre eram rigorosamente rejeitados e que por vezes
foram procuradas soluções pastorais para raríssimos casos-limite.Mais tarde nalgumas zonas, sobretudo por causa da
crescente interdependência entre Igreja e Estado, chegou-se a compromissos
maiores.
No Oriente este desenvolvimento
prosseguiu o seu curso e levou, sobretudo depois da separação da Cátedra de Pedro,
a uma prática cada vez mais liberal. Hoje nas Igrejas ortodoxas existe uma
variedade de causas para o divórcio, que normalmente são justificadas com
referência à oikonomia, a clemência pastoral para cada um dos casos difíceis, e
abrem o caminho a um segundo ou terceiro matrimónio com carácter penitencial.
Esta prática não é coerente com a
vontade de Deus, claramente expressa pelas palavras de Jesus acerca da
indissolubilidade do matrimónio, e isto representa certamente uma questão
ecuménica que não deve ser subestimada.
No Ocidente, a reforma gregoriana contrastou as tendências
de liberalização e voltou a propor o conceito originário das Escrituras e dos
Padres!
A Igreja católica defendeu a absoluta
indissolubilidade do matrimónio até à custa de grandes sacrifícios e
sofrimentos. O cisma da «Igreja da Inglaterra», que se separou do
Sucessor de Pedro, aconteceu não por causa de diferenças doutrinais, mas porque
o Papa, em obediência à palavra de Jesus, não podia favorecer o pedido do rei
Henrique VIII para a dissolução do seu matrimónio.
O Concílio de Trento confirmou a doutrina da
indissolubilidade do matrimónio sacramental e esclareceu que ela corresponde ao
ensinamento do Evangelho (cf. DH 1807).
Por vezes afirma-se que a Igreja
tolerou, de fato, a prática oriental, mas isto não corresponde à verdade. Os
canonistas sempre falaram de uma prática abusiva, e há testemunhos acerca de
alguns grupos de cristãos ortodoxos que, tendo-se tornado católicos, tiveram
que assinar uma confissão de fé na qual era feita referência explícita à
impossibilidade da celebração de segundas ou terceiras núpcias.
O Concílio Vaticano II propôs de novo uma doutrina
teológica e espiritualmente profunda do matrimónio na Constituição pastoral
Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo contemporâneo, expondo com clareza
também o princípio da sua indissolubilidade!
O matrimónio é entendido como uma
completa comunhão corporal e espiritual de vida e de amor entre homem e mulher,
que se doam e se acolhem um ao outro enquanto pessoas. Através do ato pessoal
e livre do consentimento recíproco é fundada por direito divino uma instituição
estável, orientada para o bem dos cônjuges e da prole, e não dependente do
arbítrio do homem:
«Esta união íntima,
enquanto mútua doação de duas pessoas, assim como o bem dos filhos, exigem a
plena fidelidade dos cônjuges e reclamam a sua unidade indissolúvel» (n. 48).
Por meio do sacramento Deus concede aos cônjuges uma graça
especial:
«Com efeito, como outrora Deus tomou a iniciativa de uma
aliança de amor e fidelidade com o seu povo assim agora o Salvador dos homens e
esposo da Igreja vem ao encontro dos cônjuges cristãos através do sacramento do
matrimónio. Além disso, permanece com eles para que, assim como ele amou a
Igreja e se entregou por ela, também os cônjuges possam amar-se um ao outro
fielmente, para sempre, com dedicação mútua» (ibid.).
Mediante o sacramento a indissolubilidade do matrimónio
encerra um significado novo e mais profundo:
“Ela torna-se
imagem do amor de Deus pelo seu povo e da fidelidade irrevogável de Cristo à
sua Igreja.”
Só é possível compreender e viver o
matrimónio como sacramento no âmbito do Mistério de Cristo. Se se seculariza o
matrimónio ou se for considerado uma realidade meramente natural permanece como
que impedido o acesso à sua sacramentalidade.O matrimónio sacramental pertence à
ordem da graça e é inserido na comunhão definitiva de amor de Cristo com a sua
Igreja.Os cristãos estão chamados a viver o
seu matrimónio no horizonte escatológico da vinda do Reino de Deus em Jesus
Cristo, Verbo de Deus encarnado.
IV - O testemunho do Magistério em
época recente
Com o texto ainda hoje fundamental da
Exortação apostólica Familiaris consortio, publicada por João Paulo II a 22 de
Novembro de 1981 depois do Sínodo dos Bispos sobre a família cristã no mundo
contemporâneo, foi expressamente confirmado o ensinamento dogmático da Igreja
acerca do matrimónio. Sob o ponto de vista pastoral a
Exortação pós-sinodal ocupou-se também da cura dos fiéis recasados com rito
civil, mas que ainda estão vinculados por um matrimónio válido para a Igreja. O
Papa demonstrou uma medida alta de solicitude e atenção.
No n. 84 («Os divorciados recasados») são expostos os
seguintes princípios:
1. Os pastores que cuidam das almas
são obrigados por amor à verdade «a discernir bem as diversas situações». Não é
possível avaliar tudo e todos do mesmo modo.
2. Os pastores e as comunidades são
obrigados a ajudar «com caridade solícita» os fiéis concernidos; com efeito
também eles pertencem à Igreja, têm direito à cura pastoral e devem poder
participar da vida da Igreja.
3. A admissão à Eucaristia não lhes pode contudo ser
concedida. Em relação a isto é aduzido um duplo motivo:
a) «o seu estado e condição de vida
estão em contraste objectivo com aquela união de amor entre Cristo e a Igreja,
significada e realizada pela Eucaristia»;
b) «se se admitissem estas pessoas à
Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da
Igreja sobre a indissolubilidade do matrimónio».
Uma reconciliação
mediante o sacramento da penitência – que abriria o caminho ao sacramento
eucarístico – só pode ser concedida com base no arrependimento em relação a
quanto aconteceu, e com a disponibilidade «a uma forma de vida já não em
contradição com a indissolubilidade do matrimónio».
Isto comporta, em concreto, que
quando a nova união não pode ser dissolvida por motivos sérios – como, por
exemplo, a educação dos filhos – ambos os cônjuges «assumem o compromisso de
viver em continência total».
4. Por motivos
teológico-sacramentais, e não por uma constrição legal, ao clero é
expressamente feita a proibição, enquanto subsiste a validade do primeiro
matrimónio, de concretizar «cerimónias de qualquer género» a favor de
divorciados que se recasam civilmente.
A Carta da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a
recepção da Comunhão eucarística por parte de fiéis divorciados recasados de 14
de Setembro de 1994 confirmou que a prática da Igreja sobre este tema «não pode
ser modificada com base nas diferentes situações» (n. 5).
Além disso, é esclarecido que os crentes concernidos não
devem receber a sagrada Comunhão com base no seu juízo de consciência:
«Caso o julgasse possível, os
pastores e os confessores […] têm o grave dever de o repreender porque tal
juízo de consciência está em aberto contraste com a doutrina da Igreja» (n. 6).
No caso de dúvidas acerca da validade de um matrimónio fracassado, elas devem
ser verificadas pelos órgãos judiciários competentes em matéria matrimonial
(cf. n. 9). Permanece de importância fundamental fazer «com caridade solícita
tudo o que pode fortalecer no amor de Cristo e da Igreja os fiéis que se
encontram em situação matrimonial irregular. Só assim será possível para eles
acolher plenamente a mensagem do matrimónio cristão e suportar na fé o
sofrimento da sua situação. Na ação pastoral dever-se-á fazer todos os
esforços para que seja bem compreendido que não se trata de discriminação
alguma, mas unicamente de fidelidade absoluta à vontade de Cristo que nos
voltou a dar e confiou de novo a indissolubilidade do matrimónio como dom do
Criador» (n. 10).
Na Exortação pós-sinodal Sacramentum caritatis de 22 de
Fevereiro de 2007 Bento XVI retoma e relança o trabalho do precedente Sínodo
dos Bispos sobre a Eucaristia. Ele chega a falar da situação dos
fiéis divorciados recasados no n. 29, onde não hesita defini-la «um problema
pastoral delicado e complexo».
Bento XVI reafirma
«a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura (cf. Mc 10, 2-12), de não
admitir aos Sacramentos os divorciados recasados», mas chega até a esconjurar
os pastores a dedicar «especial atenção» em relação às pessoas concernidas «no
desejo de que cultivem, na medida do possível, um estilo cristão de vida
através da participação na Santa Missa, mesmo sem receber a Comunhão, da escuta
da Palavra de Deus, ad adoração eucarística, da oração, da participação na vida
comunitária, do diálogo confidente com um sacerdote ou um mestre de vida
espiritual, da dedicação à caridade vivida, das obras de penitência, do
compromisso educativo dos filhos».
É reafirmado que, em caso de dúvidas
acerca da validade da comunhão de vida matrimonial que foi interrompida, elas
devem ser examinadas atentamente pelos tribunais competentes em matéria
matrimonial.A mentalidade contemporânea está
bastante em contraste com a compreensão cristã do matrimónio, sobretudo em
relação à sua indissolubilidade e à abertura à vida.
Considerando que
muitos cristãos são influenciados por tal contexto cultural, os matrimónios são
provavelmente com mais frequência não válidos nos nossos dias de quanto o eram
no passado, porque é deficitária a vontade de se casar segundo o sentido da
doutrina matrimonial católica e também a pertença a um contexto vital de fé é
muito limitada.
Portanto, uma verificação da validade
do matrimónio é importante e pode levar a uma solução dos problemas. Quando não
é possível comprovar uma nulidade do matrimónio, é possível a absolvição e a
Comunhão eucarística se for seguida a aprovada prática eclesial que estabelece
que se viva juntos «como amigos, como irmão e irmã».
As bênçãos de
vínculos irregulares devem «ser evitadas em qualquer caso […] para que não
surjam entre os fiéis confusões acerca do valor do Matrimónio».
A bênção (bene-dictio: aprovação por
parte de Deus) de uma relação que se contrapõe à vontade divina deve ser
considerada em si uma contradição. Na homilia pronunciada em Milão a 3 de Junho de 2012, por
ocasião do VII Encontro mundial das famílias, Bento XVI voltou a falar deste
doloroso problema:
«Gostaria de dedicar uma palavra também aos fiéis que,
mesmo partilhando os ensinamentos da Igreja sobre a família, estão marcados por
experiências dolorosas de fracasso ou de separação. Sabei que o Papa e a Igreja
vos amparam na vossa fadiga. Encorajo-vos a permanecer unidos às vossas
comunidades, enquanto faço votos por que as dioceses realizem iniciativas
adequadas de acolhimento e proximidade».
O último Sínodo dos Bispos sobre o
tema «A nova Evangelização para a transmissão da fé cristã» (7-28 de Outubro de
2012) ocupou-se de novo da situação dos fiéis que, a seguir ao fracasso da
comunhão de vida matrimonial (não a falência do matrimónio, que subsiste
enquanto sacramento) iniciou uma nova união e convivem sem o vínculo
sacramental do matrimónio. Na mensagem final os Padres sinodais dirigiram-se
com estas palavras aos fiéis concernidos:
«A todos eles desejamos dizer que o
amor do Senhor não abandona ninguém, que também a Igreja os ama e é casa
acolhedora para todos, que eles permanecem membros da Igreja mesmo se não podem
receber a absolvição sacramental e a Eucaristia. As comunidades católicas sejam
acolhedoras em relação a quantos vivem em tais situações e apoiem caminhos de
conversão e de reconciliação».
Considerações antropológicas e
teológico-sacramentais
A doutrina sobre a indissolubilidade do matrimónio encontra com frequência
incompreensão num ambiente secularizado. Onde se perderam as razões
fundamentais da fé cristã, uma mera pertença convencional à Igreja já não é
capaz de guiar as escolhas de vida importantes e de oferecer apoio algum nas
crises do estado matrimonial – como também do sacerdócio e da vida consagrada.
Muitos se questionam: como posso vincular-me por toda a vida a uma só mulher/a
um só homem? Quem me pode dizer como será daqui a dez, vinte, trinta, quarenta
anos de matrimónio? É efectivamente possível um vínculo definitivo com uma só
pessoa? As muitas experiências de comunhão matrimonial que hoje se interrompem
reforçam o cepticismo dos jovens em relação às decisões definitivas da vida.Por outro lado, o ideal da fidelidade entre um homem e uma
mulher, fundado na ordem da criação, nada perdeu do seu fascínio, como
evidenciam os recentes inquéritos entre os jovens.
A maior parte deles deseja uma
relação estável e duradoura, enquanto isso corresponderia também à natureza
espiritual e moral do homem. Além disso, deve recordar-se o valor antropológico
do matrimónio indissolúvel: ele subtrai os cônjuges do arbítrio e da tirania
dos sentimentos e dos estados de ânimo; ajuda-os a enfrentar as dificuldades
pessoais e a superar as experiências dolorosas; protege sobretudo os filhos,
que são vítimas do maior sofrimento da interrupção dos matrimónios.
O amor é algo mais do que o
sentimento e o instinto; na sua essência é dedicação. No amor conjugal duas
pessoas dizem um ao outro consciente e voluntariamente: só tu – e tu para
sempre. A palavra do Senhor: «O que Deus uniu...» corresponde à promessa do
casal: «Recebo-te como meu esposo... recebo-te como minha esposa... Quero
amar-te e honrar-te toda a minha vida, enquanto a morte não nos separar». O sacerdote abençoa o pacto que os
cônjuges estabeleceram entre si diante de Deus. Quem tiver dúvidas sobre o
facto de que o vínculo matrimonial tenha qualidade ontológica, pode deixar-se
instruir pela Palavra de Deus:
«No princípio Deus criou o homem e a mulher. Por isso o
homem deixará seu pai e sua mãe e unir-se-á à sua esposa e os dois serão uma só
carne. De modo que já não são dois, mas uma só carne» (Mt 19, 4-6).
Para os cristãos é válido o facto de
que o matrimónio dos baptizados, incorporados no Corpo de Cristo, tem um
carácter sacramental e representa, por conseguinte, uma realidade sobrenatural. Um dos problemas
pastorais mais graves consiste no facto de que muitos, hoje, julgam o
matrimónio exclusivamente segundo critérios mundanos e pragmáticos.
Quem pensa segundo o «espírito do
mundo» (1 Cor 2, 12) não pode compreender a sacramentalidade do matrimónio!
À
crescente falta de compreensão acerca da santidade do matrimónio, a Igreja não
pode responder com uma adequação pragmática ao que parece inevitável, mas só
com a confiança no «Espírito de Deus, para que possamos conhecer o que Deus nos
doou» (1 Cor 2, 12).
O matrimónio sacramental é um
testemunho do poder da graça que transforma o homem e prepara toda a Igreja
para a cidade santa, a nova Jerusalém, a própria Igreja, pronta «como uma
esposa adornada para o seu esposo» (Ap 21, 2).
O Evangelho da santidade do
matrimónio deve ser anunciado com audácia profética. Um profeta tíbio procura
na adequação ao espírito dos tempos a sua própria salvação, mas não a salvação
do mundo em Jesus Cristo. A fidelidade às promessas do
matrimónio é um sinal profético da salvação que Deus doa ao mundo: «quem pode
compreender, compreenda» (Mt 19, 12).
O amor conjugal é purificado, fortalecido e aumentado pela
graça sacramental:
«Este amor, ratificado por um compromisso comum e
sobretudo consagrado por um sacramento de Cristo, permanece indissoluvelmente
fiel na boa e na má sorte, a nível do corpo e do espírito; por conseguinte
exclui qualquer adultério e divórcio» (Gaudium et spes, 49).
Por conseguinte, os esposos,
participando em virtude do sacramento do matrimónio do amor definitivo e
irrevogável de Deus, podem em virtude disto ser testemunhas do amor fiel de
Deus, nutrindo constantemente o seu amor através de uma vida de fé e de caridade.
Certamente, há situações – cada
pastor o sabe – nas quais a convivência matrimonial se torna praticamente
impossível por causa de graves motivos, como por exemplo em caso de violência
física ou psíquica. Nestas dolorosas situações a Igreja sempre permitiu que os
cônjuges se pudessem separar e não vivessem mais juntos,porque fere um dos objetivos do matrimônio: "o bem dos cênjuges". Nesses casos extremos, a igreja não como regra, mas exceção, permite a "separação de corpos".
Contudo, deve ser
esclarecido que o vínculo conjugal de um matrimónio validamente celebrado
permanece estável diante de Deus e ambas as partes não são livres de contrair
um novo matrimónio enquanto o outro cônjuge for vivo. Os pastores e as
comunidades cristãs devem portanto comprometer-se em promover de todas as
formas a reconciliação, também, nestes casos ou, quando isto não for possível, em
ajudar as pessoas concernidas a enfrentar na fé a própria difícil situação.
V - Anotações teológico-morais:
Com sempre maior frequência é
sugerido que a decisão de receber ou não a Comunhão eucarística deveria ser
deixada à consciência pessoal dos divorciados recasados. Este assunto, que se
baseia num conceito problemático de «consciência», já foi rejeitado na carta da
Congregação de 1994.
Certamente, em cada celebração da
Missa os fiéis são obrigados a respeitar na sua consciência se é possível
receber a Comunhão, possibilidade à qual a existência de um pecado grave não
confessado se opõe sempre.
Por conseguinte, eles têm a obrigação
de formar a própria consciência e de tender para a verdade; para esta
finalidade podem ouvir na obediência o magistério da Igreja, que os ajuda «a não se desviarem da verdade acerca do bem do homem,
mas, sobretudo nas questões mais difíceis, a alcançar com segurança a verdade e
a permanecer nela» (João Paulo II, Carta encíclica Veritatis splendor, 64).
Se os divorciados recasados estão
subjectivamente na convicção de consciência que o precedente matrimónio não era
válido, isto deve ser objectivamente demonstrado pela competente autoridade
judiciária em matéria matrimonial.
O matrimónio não diz respeito só à
relação entre duas pessoas e Deus, mas é também uma realidade da Igreja, um
sacramento, sobre cuja validade não só o indivíduo para si mesmo, mas a Igreja,
na qual ele mediante a fé e o Baptismo está incorporado, deve decidir. «Se o
matrimónio precedente de fiéis divorciados recasados era válido, a sua nova
união não pode ser considerada de modo algum lícita, pelo facto de que a
recepção dos Sacramentos não pode estar baseada em razões interiores.
A consciência do
indivíduo está vinculada sem excepções a esta norma» (Card. Joseph Ratzinger, A
pastoral do matrimónio deve fundar-se na verdade, L'Osservatore Romano, edição
italiana de 30 de Novembro de 2011, pp. 4-5).
Também a doutrina da «epiqueia», segundo a qual uma lei é
válida em termos gerais, mas nem sempre a ação humana lhe pode corresponder
totalmente, não pode ser aplicada neste caso, porque a indissolubilidade do
matrimónio sacramental é uma norma de direito divino, que por conseguinte não
está na disponibilidade da autoridade da Igreja.
Contudo, ela tem o pleno poder – na
linha do privilégio paulino – de esclarecer quais condições devem ser
satisfeitas antes de poder definir um matrimónio indissolúvel segundo o sentido
que Jesus lhe atribuiu.
Sobre esta base, a Igreja estabeleceu
os impedimentos para o matrimónio que são motivo de nulidade matrimonial e
preparou um pormenorizado procedimento processual.
Uma ulterior tendência a favor da admissão dos divorciados
recasados aos sacramentos é a que invoca o argumento da misericórdia!
Dado que o próprio Jesus solidarizou
com os sofredores doando-lhes o seu amor misericordioso, a misericórdia seria
por conseguinte um sinal especial da autêntica sequela. Isto é verdade, mas é
um argumento débil em matéria teológico-sacramentária, também porque toda a
ordem sacramental é precisamente obra da misericórdia divina e não pode ser revogada
invocando o mesmo princípio que a sustém.
Através daquela que
objetivamente ressoa como uma falsa invocação da misericórdia incorre-se no
risco da banalização da própria imagem de Deus, segundo a qual Deus mais não
poderia fazer do que perdoar.Pertencem ao mistério de Deus, além
da misericórdia, também a santidade e a justiça; se se escondem estes atributos
de Deus e não se leva seriamente a realidade do pecado, não se pode nem sequer
mediar às pessoas a sua misericórdia.
Jesus encontrou a
mulher adúltera com grande compaixão, mas também lhe disse: «Vai, e doravante
não voltes a pecar» (Jo 8, 11)
A misericórdia de Deus não é uma dispensa dos
mandamentos de Deus e das instruções da Igreja; aliás, ela concede a força da
graça para a sua plena realização, para se levantar depois de uma queda e para
uma vida de perfeição à imagem do Pai celeste.
VI - A cura pastoral
Mesmo se, por natureza íntima dos
sacramentos, a admissão a eles por parte dos divorciados recasados não for
possível, os esforços pastorais devem dirigir-se ainda mais a favor destes
fiéis, mesmo se eles devem permanecer na dependência das normas derivantes da
Revelação e da doutrina da Igreja. O percurso indicado pela Igreja para
as pessoas directamente concernidas não é simples, mas elas devem saber e
sentir que a Igreja acompanha o seu caminho como uma comunidade de cura e de
salvação. Com o seu compromisso a compreender a prática eclesial e a não
receber a Comunhão, os cônjuges apresentam-se à sua maneira como testemunhas da
indissolubilidade do matrimónio.
A cura para os divorciados recasados certamente não
deveria limitar-se à questão da recepção da Eucaristia. Trata-se de uma
pastoral global que procura satisfazer o mais possível as exigências das
diversas situações.
É importante recordar, a este
propósito, que além da Comunhão sacramental há outros modos para entrar em
comunhão com Deus. A união com Deus alcança-se quando nos dirigimos a ele na
fé, na esperança e na caridade, no arrependimento e na oração. Deus pode
conceder a sua proximidade e a sua salvação às pessoas por diversos caminhos,
mesmo se elas vivem em situações contraditórias. Como frisam constantemente os
recentes documentos do Magistério, os pastores e as comunidades cristãs estão
chamados a acolher com abertura e cordialidade as pessoas que vivem em
situações irregulares, para estar ao seu lado com empatia, com a ajuda concreta
e para lhes fazer sentir o amor do Bom Pastor.Uma cura pastoral fundada na verdade
e no amor encontrará sempre e novamente neste campo os caminhos a percorrer e
as formas mais justas.
Fonte: Rádio Vaticano
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