“A
noite escura da alma” é um poema do frade carmelita João da Cruz, um dos
maiores poetas quinhentistas espanhois. Para explicar o
poema (coisa rara na poesia),um poema de apenas oito estrofes, o autor escreveu
todo um livro, que na verdade, só vai até a segunda estrofe e foi deixado
inconcluso. De acordo com o autor, o poema é narrado pela alma, que, em
plena noite escura, sai de casa (desapega de seus valores mundanos) e vai ao
encontro de seu amado (Deus).Apesar de ostensivamente tratar sobre uma jornada
cristã, o poema pode se aplicar a todo e qualquer caminho espiritual.
Nem sempre a espiritualidade, a contemplação, a
meditação trazem a paz: essa não-paz é o que
João da Cruz chama de “noite escura da alma”!
Meditamos
não para fugir da realidade ou para nos isolar dos problemas do mundo, mas por perceber que a vida não-contemplativa, a vida do ego,
a vida do consumo, a vida do apego, é fundamentalmente alienante, tanto quanto algumas
“falsas meditações transcendentais”. Meditar é a nossa maneira de
mergulharmos plenamente na realidade ilimitada. Mas nem sempre a
espiritualidade, a contemplação, a meditação trazem a paz: essa não-paz é o que
João da Cruz chama de “noite escura”.
Abaixo, o poema completo, traduzido fielmente para
o português:
Em
uma noite escura,
De
amor em vivas ânsias inflamada
Oh!
ditosa ventura!
Saí
sem ser notada,
Já
minha casa estando sossegada.
Na
escuridão, segura,
Pela
secreta escada, disfarçada,
Oh!
ditosa ventura!
Na
escuridão, velada,
Já
minha casa estando sossegada.
Em
noite tão ditosa,
E
num segredo em que ninguém me via,
Nem
eu olhava coisa, Sem outra luz nem guia
Além
da que no coração me ardia.
Essa
luz me guiava,
Com
mais clareza que a do meio-dia
Aonde
me esperava
Quem
eu bem conhecia,
Em
sítio onde ninguém aparecia.
Oh!
noite que me guiaste,
Oh!
noite mais amável que a alvorada
Oh!
noite que juntaste
Amado
com amada,
Amada
já no Amado transformada!
Em
meu peito florido
Que,
inteiro, para Ele só guardava
Quedou-se
adormecido,
E
eu, terna, O regalava,
E
dos cedros o leque O refrescava.
Da
ameia a brisa amena,
Quando
eu os seus cabelos afagava
Com
sua mão serena
Em
meu colo soprava,
E
meus sentidos todos transportava.
Esquecida,
quedei-me,
O
rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo
cessou.
Deixei-me,
Largando
meu cuidado
Por
entre as açucenas olvidado.
O
poema, lindamente musicado pela cantora Loreena McKennitt (https://www.youtube.com/watch?v=MclLF473XtA), reminiscente do Cântico dos Cânticos, não é tão simples
quanto parece, se o fosse, todos hão de concordar, que não precisaria de um
livro para explicar somente as duas primeiras estrofes. De acordo com o autor, que
é Doutor da Igreja (que ensina doutrina segura), o poema é narrado pela
alma, que, em plena noite escura, sai de casa (desapega de seus valores
mundanos?) e vai ao encontro de seu amado (Deus).
Apesar de tratar ostensivamente sobre uma jornada
cristã, o poema pode se aplicar a todo e qualquer caminho espiritual!
O título “A noite escura da alma” simboliza, entre muitas
outras coisas, as primeiras dificuldades que são experimentadas por todas as
pessoas que começam a se dedicam com afinco e seriedade à práticas religiosas e
contemplativas, místicas e espirituais – sejam elas cristãs ou não. A
noite escura da alma é um daqueles raros livros em que lemos e relemos, nos apaixonamos e queremos sempre reler porque sempre
descobrimos novas perspectivas de entendimento e alargamento espiritual. E
depois que somos alargados, não tem como sermos mais os mesmos(as), algo de
novo, revelador e maravilhoso acontece dentro de nós. A Noite Escura de João
da Cruz nesses nossos dias escuros e sombrios, torna-se um guia seguro em nossa
jornada, ele não é o caminho, mas um seta segura e
luminosa ao longo do caminho, nos apontando a eternidade para a qual
caminhamos.
O que é a “noite escura”?
A
beleza da metáfora da “noite escura” é justamente a impossibilidade de uma
tradução simplista: ela é, ao mesmo tempo, o deserto
árido que atormenta as pessoas que trilham caminhos espirituais, mas, também, a
atmosfera generosa e frutífera que possibilita todo e qualquer crescimento
espiritual.Ou, como disse Ben Sirach, autor do Eclesiástico, repetidas
vezes citado por João da Cruz: “Quem não é tentado, o que sabe? Quem não é
provado, que coisas conhece?” (Ecl 34, 9-10) - Citando Faustino Teixeira (Vozes, 2016):
“A
simbologia da noite … trata-se de uma das criações mais originais e rigorosas
de seu pensamento místico, de uma complexidade singular. O que caracteriza o símbolo é a impossibilidade de sua tradução.
O símbolo quase nunca se realiza em sua essência. Ele guarda uma relação
intransponível com uma experiência e vem acompanhado de um complexo de
sentimentos que suscitam imagens sempre novas e constrastantes. Não há como
capturar radicalmente seu significado, ele sempre escapa. A essência
metafísica do autêntico simbolismo místico envolve a quebra ou expulsão de
imagens e explicações meramente racionais. O símbolo nunca figura tão somente uma
experiência, como ocorre com um signo ordinário, embora sempre esteja vinculado
a ela, suscitando sentimentos que busquem expressá-la. O símbolo da noite
traduz uma ‘profundidade estelar’, e expressa um ‘estado de ânimo’ muito
particular, que indica as ‘obscuras’ e misteriosas vias que encaminham a amada
(alma) para a doce e serena união divina (o seu amado). A noite torna-se um
símbolo intraduzível, capaz de gerar novas situações e emoções que se captam
paulatinamente: de início, apenas o ambiente em que a alma solitária começa sua
jornada arriscada; agora, o guia e (além de toda tradução) a mediadora entre
amante e amado. Uma certa desnaturalização da linguagem: deixa de reproduzir ou
imitar coisas e passa a ser modelada pela paixão de quem vive uma experiência
inefável (portanto inexplicável racionalmente). É uma linguagem que se insinua,
que busca mostrar algo que deve permanecer escondido e resguardado; que sugere
um mistério, que aponta para um ‘no sé qué’, que transmite ilimitadamente as
alegorias ordinárias da experiência. Daí a dialética da noite escura que é
também ditosa, dos vivos contrastes entre a obscuridade da noite com a luz das
chamas que ardem no coração.”
As dificuldades ao longo do caminho da Noite
Escura:
Os
primeiros capítulos de Noite Escura apresentam os principais problemas
enfrentados pelas pessoas no começo de suas trajetórias religiosas e
espirituais. Abaixo, alguns trechos de Noite Escura, de João da Cruz:
A soberba:
“Uma
certa vontade algo vã, e às vezes muito vã, de falar sobre assuntos espirituais
diante das outras pessoas, e ainda, às vezes, de ensiná-los mais do que
aprendê-los. [Os principiantes soberbos] desejosos de ver suas coisas estimadas
e louvadas, julgam não ser compreendidos, ou que os mestres não são
espirituais, porque não aprovam ou condescendem com o que eles querem.Desejam
tratar de seu espírito com quem imaginam há de louvá-los e estimá-los. Fogem
como da morte àqueles que os desfazem a fim de os pôr em caminho seguro...Com grande
presunção, costumam propor muito, e fazer pouco. Têm, por vezes, muita vontade
de serem notados pelos outros.Se entristecem em demasia quando veem suas
quedas, pensando que já haviam de ser santos; e, assim, aborrecem-se contra si
mesmos, com impaciência, o que é outra imperfeição...São inimigos de louvar os
outros, e muito amigos de que os outros os louvem.” (parte I, capítulo 2).
A avareza:
“Querem
ter sempre grande cópia de livros sobre esse assunto. Vai-se-lhes todo o tempo
na leitura, mais que em se exercitarem.” (I, 3)
A ira:
“Vendo-se
imperfeitos, zangam-se consigo mesmos, com impaciência pouco humilde; e chega a
ser tão grande essa impaciência contra suas imperfeições que quereriam ser
santos num só dia...Não têm paciência para esperar.” (I, 5)
A preguiça:
“Como
estão presos ao gosto sensível no exercícios espirituais, em lhes faltando esse gosto, tudo lhes causa fastio. Quando alguma vez
não encontram no caminho espiritual aquele sabor que o seu apetite desejava –
porque, enfim, convém que sejam privados de tais consolações – não querem mais
voltar a ele; chegam mesmo a abandonar o caminho, ou a trilhá-lo de má vontade.
Essa preguiça leva os principiantes a deixarem atrás o caminho para
buscarem o gosto e o sabor do que lhes agrada...Como andam sempre guiadas pelo sabor
e regalo nas coisas espirituais, são muito remissos para a fortaleza e o
trabalho da perfeição. Semelhantes aos que são criados
no meio dos prazeres, fogem com desgosto de tudo quanto é áspero, e se ofendem
com o caminho no qual se acham os deleites do espírito. Nas coisas espirituais
sentem maior fastio; como procuram nelas suas liberdades e a satisfação de suas
vontades, causa-lhes grande desgosto e repugnância entrar no caminho estreito
que conduz à vida...Na noite escura, serão
desmamados de todos os sabores e gostos, por meio de fortes securas e trevas
interiores, perdendo todas essas impertinências e ninharias, ao mesmo
tempo, ganhando virtudes por meios muito diferentes.” (I, 7)
Um conhecimento indizível, além do sentido, além
das palavras!
Um
dos sinais de que a pessoa se encontra na noite escura
é que já não consegue mais discorrer sobre assuntos espirituais com o mesmo
vocabulário, com a mesma racionalidade de antes. A comunicação se
quebra, cai-se no indizível: ela não consegue mais comunicar-se por meio do
sentido, pelo trabalho do raciocínio, como o fazia até então, ligando ou
dividindo os conhecimentos, mas agora o faz puramente na consciência, onde não
é mais possível haver discursos sucessivos: “A
comunicação é feita com um ato de simples contemplação, a que não chegam o
sentidos interiores e exteriores da parte inferior.” (I, 9.A pessoa
percebe “como são baixos, limitados e, de certo modo, impróprios, todos os
termos e vocábulos usados nessa vida para exprimir as coisas espirituais e
contemplativas.” (II, 17)
Abrir mão de nossa racionalidade pode finalmente
nos fazer prestar mais atenção às pessoas à nossa volta, ver mais, ouvir mais:
“Pode-se
ouvir o outro, escutando sua própria voz, para satisfazer sua própria
curiosidade, ou escutá-lo com respeito, numa escuta que
sabe aceitar tanto o silêncio como a fala do outro. Tal escuta não é
para aprender, e sim para doar-se.”
Conhecer o Eu, abandonar o Eu
Entre
os benefícios trazidos pela noite escura da alma para a pessoa praticante, está
o “conhecimento de si mesma e de sua miséria, sua própria baixeza que, no tempo
da prosperidade, não chegava a ver”: “Vendo-se agora
tão árida, nem mesmo por primeiro movimento lhe ocorre a ideia … de estar mais
adiantada do que os outros. … Daqui nasce o amor ao próximo, pois a todos
estima, e não os julga como antes, quando se achava com muito fervor e não via
os outros assim.” (I, 12). A consciência da pessoa praticante,
purificada e aniquilada pela noite escura de todas suas afeições e
inteligências, “não gozando nem entendendo coisa alguma”, “permanecendo em seu
vazio, em obscuridade e trevas”, torna-se enfim muito disposta a “abraçar
tudo”. (II, 8) Ou, nas palavras de Stinissen, “heroísmo é aceitar a própria
pequenez”.
Mas, para abraçar o todo, é preciso abandonar o Eu!
“...Basta
um só apego ou particularidade a que a consciência esteja presa, seja por
hábito ou por ato, para não sentir nem gozar dessa delicadeza e íntimo sabor do
Espírito do amor, que contém em si eminentemente todos os sabores.” (II, 9)
Tudo o que nos faz sofrer vem de nós mesmas, de
nosso Eu, de nossos apegos – A única segurança está em um desapego radical!
“A
consciência nunca erra senão por seus apetites, ou seus gostos, seus
raciocínios, seus conhecimentos, ou suas afeições; é
nisso que ela costuma faltar, ou exceder-se, por buscar variações, ou cair em
desatinos, inclinando-se, consequentemente, ao que não convém. Uma vez
impedidas todas essas operações e movimentos, claro está que a consciência se
encontra segura, para neles não errar. E não somente se livra de si mesma, mas
também dos outros inimigos, como o apego e a compulsão, os quais, encontrando
adormecidas as afeições e atividades do Eu, não lhe podem fazer guerra por outro
meio nem por outra parte...Quanto mais a consciência vai às escuras e
privada de suas operações naturais, tanto mais segura vai.” (II, 16)
Você não perde nada ao perder uma ilusão! Contra
quem, ou o que, você está se defendendo?
Por
que é tão difícil desistir da nossa autodefesa? Quanto
mais estamos presos a ilusão, tanto mais difícil é desistir dela. O processo de
libertação, a passagem da ilusão para a realidade, é a noite escura.
Experimentar essa noite é como uma luta mortal: o que sempre considerei como o
meu Eu agora como diz São Paulo é esterco (Filip 3,8). Mas o que morre aqui é uma “projeção
fantasmagórica” nossa, que não pode passar por uma morte real, visto que nunca
teve verdadeira vida!
Será que que você está defendendo não é um reflexo
de espelho do que as outras pessoas vivem e defendem?
O
objetivo de qualquer caminho espiritual é nos “desenssimesmar” de nós mesmos e
nos abrir para as outras pessoas. Como diz João da
Cruz: Ponha amor onde não há amor e colherá amor! A noite escura da alma, que
não ver com nitidez, faz tudo o que é possível para que você renuncie à sua
real imagem, que não é aquilo que nem você e os outros pensam de você, mas o
que Deus pensa de nós! A noite escura está convencida de que você não é
capaz de fazer outra coisa senão afogar-se em si mesmo. De certa forma está tão acostumado a essa vida que é incapaz de imaginar
outra. O homem trancado dentro de si mesmo não quer morrer pelo outro, nem por
si mesmo, é um covarde que sobrevive. O seu ego construiu a própria
existência sobre a ilusão. Então, aqui vem a pergunta libertadora e salvadora: Que
restaria de nós se nosso egocentrismo de repente desaparecesse? A noite escura visa
justamente libertar você dos seus limites egocêntricos e abri-lo para o “Outro”
por excelência, o único capaz de verdadeiramente nos libertar!
Aquilo que mais nos atormenta, damos um poder que
ele não tem, o qual demonstra nossos
apegos que precisamos exorcizar!
Abandonar
esses apegos não é fugir da realidade, e sim verdadeiramente enxergá-la, às
vezes até, pela primeira vez de forma realista! Nosso
desejo egocêntrico é uma fuga da realidade. Pensamos que, o que procuramos
esteja sempre em outro lugar. E, na realidade, está dentro de nós! A vida de
união é extraordinariamente simples, Poderia ser diferente? Nessa vida nova,
você finalmente é aquilo que Deus determinou para cada um de nós! aprende a
escutar a realidade, em vez de forçá-la a ser diferente, aprendemos a estar no
mundo sem sermos do mundo, experimentando a verdadeira liberdade dos filhos de
Deus (Rom 8,21-22). Contemplamos misticamente as realidades não para
fugir dela, ou para nos isolar do mundo, mas por
perceber que a vida não-contemplativa, a vida hedonista, egocêntrica e
consumista, também é ilusão! A
noite escura diagnostica este nosso estado de espírito. A nossa alma ou psique
humana, tende ao gozo em valores falsos, muito aquém da possibilidade de
alcançar algo superior além da Terra. Buscando e praticando uma mística segura
e divina que agrada o verdadeiro Deus, sem ser enganado por valores vulgares
que destroem as almas e nos afastam da salvação, pois se nossa esperança é só
para este mundo e para esta vida, já nos alerta São Paulo em 1 Coríntios 15,32:
“Se,
como homem, combati em Éfeso contra as bestas, que me aproveita isso...Comamos
e bebamos, que amanhã morreremos”
Adaptado de Alex Castro
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