"Em memória" de Ivanaldo
Santos**
“Recomendo o Chesterton como se
recomenda o quinino, principalmente para aqueles que por dever de ofício
freqüentam os mangues da inteligência, as paragens encharcadas de lugares
comuns, as baixadas do pensamento: para aqueles que possam confundir
catolicismo com sisudez e cultura com academias” (Gustavo Corção).
O presente estudo tem
por objetivo apresentar, de forma introdutória, a influência de Tomás de Aqunio
na obra de G. K. Chesterton. Apesar de não ser um estudo exaustivo sobre essa
influência é possível perceber que o Aquinate exerceu grande papel na
construção da bela e elogiável obra literária de Chesterton. Para tanto, o estudo foi dividido em duas
partes:
1ª)-G. K. Chesterton
2ª)- A influência de
Tomás de Aquino na obra de Chesterton.
I - G. K. Chesterton
Gilbert Keith
Chesterton (1874-1936) foi um dos grandes escritores do século XX. Ele
produziu uma obra literária de rara beleza que, simultaneamente, refletiu, criticou e ironizou com as crenças e valores do homem
moderno. Entre essas crenças estão às doutrinas filosóficas desenvolvidas no
século XIX e XX, tais como: o positivismo, o niilismo e o materialismo. Por
meio da literatura, ele denunciou o caráter neo pagão, anticristão, alienante e
autoritário da sociedade contemporânea, a qual fala constantemente em
liberdade, mas nega, conscientemente, o direito que o cidadão possui de viver
sua fé e de experimentar as respectivas práticas socioculturais decorrentes
dessa vivência. De acordo com James Patrick[1], Chesterton demonstrou
que o Ocidente contemporâneo padece de uma doença que pode ser classificada
como a universalização da alienação, ou seja, um processo onde,
sistematicamente, o homem contemporâneo pensa ter poderes ilimitados, prolongar
a vida indefinidamente e controlar o cosmos e a realidade. Em outras palavras:
o homem contemporâneo pensa ser o próprio Deus. É por causa disso que Ricardo
Quadros Gouvêa afirma que, no século XX, “Chesterton profetizou sobre as
práticas religiosas neopagãs e anticristãs da sociedade contemporânea”[2].Todo esse talento pode
ser encontrado em obras primas da literatura ocidental contemporânea, como, por
exemplo, O homem que foi quinta-feira[3] e Ortodoxia[4]. É por causa disso que
a Chesterton Society (Sociedade Chesterton), fundada na Inglaterra em 1974, por
ocasião do centenário do nascimento do grande escritor, se dedica a difundir a
obra e o pensamento de Chesterton. Dentro do trabalho de difusão existe o
Chesterton Day (Dia de Chesterton), encontro de aficionados pelo grande
escritor britânico, o qual é comemorado no dia 02 de julho de cada ano em
vários países do mundo, como, por exemplo, Inglaterra, Itália e EUA.Além disso, Chesterton
foi um dos grandes intelectuais que se converteram ao catolicismo no século
XX[5] e, com isso, contribuiu, com seu testemunho e com sua obra literária,
para que uma geração de intelectuais se convertessem, durante o século XX e
início do XXI, em várias partes do mundo, a fé da Igreja[6]. Nas palavras de
James Patrick, Chesterton “foi o primeiro dos grandes convertidos, o mais
improvável e o mais influente”[7].No
Brasil, de forma específica, entre os ilustres intelectuais da chamada geração
dos convertidos, influenciados por Chesterton, encontram-se, por exemplo, Alceu Amoroso Lima, Jackson de Figueiredo e Gustavo
Corção[8]. Especificamente no tocante a Gustavo Corção[9], esse
brilhante escritor brasileiro, se converteu ao cristianismo e só conseguiu
produzir sua obra literária graças à influência recebida do convertido
Chesterton. Sobre a fé católica de
Chesterton o próprio Gustavo Corção[10] afirma que ele é um verdadeiro
católico, o qual professa uma fé ortodoxa que influenciou positivamente a
constituição de sua obra. Já Rosa Clara Elena Nougué ressalta que Chsterton “foi
o mais completo e brilhante apologista do catolicismo num século [o século XX]
que elaborou sistematicamente um discurso demolidor contra a Igreja e a fé
católica”[11].Por causa do grande
zelo que tinha pela doutrina da Igreja e pela fé cristã, Chesterton desenvolveu profundamente, em seu espírito e em sua obra
literária, as três virtudes essenciais ao cristão, ou seja, a fé, a caridade e
a esperança. No século XX, ele
foi o grande modelo de intelectual que renegou as ilusões das ideologias e das
filosofias idealistas e abraçou, de forma alegre, a fé cristã. Por causa disso
ele conseguiu criar uma obra de raro equilíbrio entre fé, razão e sensibilidade
literária. Obra que, em grande medida, é sintetizada em Ortodoxia.
Foi por causa desse
raro equilíbrio, entre outros méritos, que a Santa Sé abriu o
processo de beatificação de Chesterton. Não é intensão desse
pequeno estudo discutir ou emitir qualquer juízo sobre o processo de
beatificação de Chesterton, o qual atualmente está sob análise da
Congregação para as Causas dos Santos. Essa congregação é uma
prefeitura da Cúria Romana responsável, entre outras coisas, em processar o
complexo trâmite que leva à canonização dos santos católicos, passando pela
declaração das virtudes heroicas (reconhecimento do estatuto de venerável) e
pela beatificação.No entanto, apesar do processo de beatificação de Chesterton
ser um assunto que, até o presente momento, deve ser discutido pela Congregação
para as Causas dos Santos e outros órgãos da Cúria Romana é preciso ter em
mente o que Paolo Gulisano, um
especialista na obra chestiana e no citado processo de beatificação, afirma. Em
suas palavras:“[…] a leitura de Chesterton, seja
das novelas ou dos ensaios, deixa sempre no leitor uma grande serenidade e um
sentimento de esperança que deriva não certamente de uma visão da vida imatura
e mundanamente otimista – que é na realidade o mais distante do pensamento de
Chesterton, que denuncia detalhadamente todas as aberrações da modernidade –,
mas da concepção cristã, viril fortaleza da experiência religiosa. A proposta de Chesterton é a de levar a
sério a realidade em sua integridade, começando pela realidade interior do
homem e de dispor confiadamente o intelecto, ou seja, o sentido comum, em sua
original sanidade, purificado de toda incrustação ideológica”[12].É por causa de tudo que
foi exposto que Rosa Clara Elena Nougué[13] afirma que Chesterton, no século
XX, foi um ponto de contradição dentro do campo das ideias, da arte e da
fé. Justamente o século XX que foi
marcado pela ilusão do homem-deus e, por conseguinte, pelo delírio, pela
loucura e pelo abandono da razão. Para Gustavo Corção[14]
a obra de Chesterton é extensa e intensa. De um lado, ela é extensa porque
abrange uma grande área de assuntos e, do outro lado, é intensa porque aderiu,
com força e infatigável confiança, aos princípios básicos sobre os quais
repousam os destinos do gênero humano.Ainda de acordo com
Gustavo Corção[15] a obra de Chesterton não é destinada a críticos literários.
Pelo contrário, trata-se de uma obra destinada ao público comum. Chesterton,
ao longo de sua vida, teve um inquebrantável entendimento que o homem comum é
capaz de compreender e refletir sobre as grandes questões que preocupam o
Ocidente. Para ele, é um erro menospreza o homem comum utilizando-se, para
tanto, de expressões, como, por exemplo, ignorante e outros adjetivos
semelhantes. Em sua visão, o homem comum é capaz de ter um raciocínio
tão brilhante como o que é produzido pela crítica especializada. Sem contar que
esse tipo de homem não está preso e até mesmo alienado pelas ideologias que
dominam o cenário intelectual ocidental. Ideologias que asfixiam o pensamento e
contribuem para criar o mito do homem-deus[16].
Ao longo de sua obra literária Chesterton evitou três
posições radicais que nortearam a literatura do século XX:
1)-A primeira posição é
a negação da fé.
Negação que é sintetizada pela proposição: a fé é um campo da vida humana
destinado apenas aos(as) religiosos(as). Essa proposição é profundamente
preconceituosa. E o motivo disso é que ela tenta expulsar e negar o direito que
o cidadão possui de ter uma fé religiosa.
2)-A segunda é o uso da
razão.
Chesterton sempre fez “uso incansável da razão”[17], mas esse uso não foi
absoluto, como se a razão fosse a única dimensão a ter condições de orientar o
ser humano. Para ele, além da razão existe a fé!
3)-A terceira é a
negação da razão.
É sempre bom recordar que o século XX – e início do XXI – foi marcado pelo
abandono da razão. No lugar da razão o homem ocidental colocou as teorias da
desconstrução, as quais afirmam que a razão é um simples produto da cultura
judaico-cristã e que o homem, para ser feliz, deve, de um lado, renegar todos
os valores tradicionais do Ocidente (razão, fé cristã, família, etc) e, de
outro lado, construir uma cultura pós-ocidental. Cultura que deverá ser
marcada, em sua essência, pela negação de todos os valores ocidentais,
inclusive do abandono radical da razão. Chesterton nunca aceitou o abandono da
razão. Para ele essa postura conduz fatalmente o homem para a loucura e o
delírio. E vale lembrar que Chesterton presenciou o horror e a loucura
que foi a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Uma guerra que ocorreu, em
grande medida, pelo abandono da razão e provocou catástrofes e morticínios em
quase toda a Europa.
Ao longo de sua obra,
Chesterton fez o uso harmonioso da tríplice relação: fé, razão e criatividade
literária.
Essa tríplice relação teve como consequência a produção de uma excepcional obra
literária que provocou grandes conversões ao cristianismo e uma sólida reflexão
sobre os problemas enfrentados pelo homem ocidental. Para compor sua obra
Chesterton teve várias influências de cunho filosófico, literário, cultural e
de outras naturezas. Não é intensão apresentar, neste pequeno estudo, todas as
influências recebidas por Chesterton, mas apenas discutir, de forma
introdutória, uma única e brilhante influência, ou seja, Tomás de Aquino.
II - A influência de Tomás de Aquino na obra de
Chesterton
Tomás de Aquino é um
filósofo que nasceu e produziu sua obra no século XIII. Ele conseguiu uma grande façanha,
ou seja, produzir uma obra filosófica perene. Isso se deve aos diversos
e sempre atuais temas que foram abordados pelo Aquinate. É por causa disso que
Paul Strathern afirma que “Tomás foi o único a
romper com a grande tradição filosófica do fracasso”[18], ou seja, ao contrário da grande maioria dos filósofos
que estão presos a uma momento histórico e a uma cultura, Tomás de Aquino
conseguiu, por meio da profundida dos temas abordados (metafísica, ética,
política, etc), romper com essa limitação e, com isso, produzir
uma obra verdadeiramente universal.De acordo com Rosa
Clara Elena Nougué[19], Chesterton não nasceu católico e muito menos
tomista. Assim como muitos jovens europeus, no século XIX Chesterton
teve uma formação marcada pelo secularismo, pelo indiferentismo religioso e
pela adesão, mesma que de forma indireta e sem consciência, aos modismos
filosóficos, como, por exemplo, o positivismo, o niilismo e o materialismo. Oficialmente
Chesterton se converte ao catolicismo em 1922, quando ele já tinha 48 anos e,
portanto, 14 anos antes de sua morte. No entanto, desde, mais ou menos, o ano
de 1905, ano da publicação de Hereges[20], ele já tinha consciência e
maturidade dentro da fé católica. No livro Por que sou
católico[21], Chesterton afirma que a fé da Igreja ajudou-o a refletir e, por
conseguinte, romper com a cultura secular e de indiferença diante dos grandes
problemas humanos. A consequência do processo de rompimento foi à
criação de uma obra literária solta, leve e carregada de uma mordaz crítica as
ilusões da modernidade.
Do ponto de vista estritamente didático será apresentada a
influência de Tomás de Aquino na obra de Chesterton em cinco questões:
1)-A primeira
questão é o uso da razão. De acordo com Rosa Clara Elena Nougué[22],
Chesterton evita dois extremos. De um lado, ele não utiliza a razão como se
fosse o único instrumento capaz de auxiliar o homem a compreender a si mesmo e
a realidade. A razão tem uma irmã, ou seja, a fé. E ambas juntas exercem a
nobre tarefa de auxilio ao ser humano. Nas palavras de Chesterton: “A fé é
superior à razão, mas a razão é superior a tudo o mais, e possui direitos
supremos”[23]. Do outro lado, ele não cai no delírio da negação e abandono da
razão. Ele não constrói uma literatura surrealista carregada de seres
mitológicos e de super-homens. Pelo contrário, a literatura chestiana é acima
de tudo uma literatura do bom senso e da análise da civilização. No entanto, a
construção dessa literatura só foi possível porque Chesterton descobriu um
princípio existente em Tomás de Aquino, ou seja, o uso equilibrado – e nunca o
desprezo – da razão.É o uso equilibrado da razão que fez Chesterton compreender
que é preciso defender a supremacia da civilização e do Ser contra a barbárie e
o Não-Ser. Enquanto muitos escritores e filósofos defendem a barbárie, o
niilismo e o Não-Ser, Chesterton, fundamentado pelo pensamento do Aquinate,
demonstrou que defender a barbárie e o Não-Ser é um absurdo. Para ele, defender
essas questões é negar o princípio básico da realidade, ou seja, que existem
objetos no mundo. Somente um homem – como é o caso do homem contemporâneo –
perdido dentro da desrazão e de doutrinas niilistas é que pode defender tal
absurdo. É por causa disso, que Gustavo Corção[24] afirma que, fundamentado
pelo Aquinate, Chesterton conseguiu perceber que a vida simples está repleta de
uma racionalidade que só pode ser compreendida por meio da fé. Uma
racionalidade que apresenta as contradições e as consequências do orgulho
humano.
2)-A segunda
questão é a influência do padre dominicano irlandês Vincent Joseph McNabb, mais
conhecido como Pe. McNabb. De acordo com Paolo Gulisano[25], o Pe. McNabb
foi professor e amigo pessoal de Chesterton, e um dos principais responsáveis
por sua conversão ao catolicismo. Juntamente com Belloc fundou o
Distributismo, que buscou realizar na Grã Bretanha os princípios da Doutrina Social
da Igreja Católica. Pe. McNabb dedicou sua vida a defender o
cristianismo contra todo tipo de ataque ideológico. Foi um grande pensador,
dotado de vastíssima cultura teológica, professor, estudioso e escritor, ainda
que boa parte dos textos que deixou sejam coletâneas de seus discursos e
homilias. Ele debatia e dialogava com todo: protestantes de qualquer denominação,
ateus e livres pensadores. Sua fama cresceu a tal ponto que, todos os
domingos, centenas de pessoas compareciam ao parque para ouvi-lo. Foi convidado
também a participar de debates em teatros, desafiado por personalidades do
calibre de G. B. Shaw. Era dono de inteligência e erudição extraordinárias: lia
o Antigo Testamento em hebraico, o Novo Testamento em grego e Tomás de Aquino
em latim.Sobre a intensa amizade entre Chesterton e o Pe. McNabb é
preciso realizar duas observações:
a)-Primeira, durante o
século XIX, com o triunfo do positivismo, do cientificismo, e com a nova
política imperial britânica, as leis que haviam mantido na clandestinidade
a Igreja Católica em toda a Grã-Bretanha por 300 anos são abolidas. Inicia-se
assim um novo período para a Igreja, uma segunda primavera; a Igreja Católica,
saída das catacumbas, revela toda sua vitalidade e força de verdade, forjadas
pelas longas e cruéis perseguições. Foi assim que, no período entre o final do
século XIX e as primeiras décadas do século XX, não apenas a Inglaterra como
todo o mundo puderam ser iluminados por figuras como o Cardeal Newman, Pe.
Robert Hugh Benson, Dom Ronald Knox, apologistas e profetas, e por escritores
geniais, que mergulhavam suas penas na tinta de uma fé intensa e apaixonada,
entre os quais Chesterton. Neste contexto é que deve ser pensado a amizade
entre Chesterton e o Pe. McNabb.
b)-Segunda, o Pe.
McNabb, assim como grande parte da intelectualidade católica daquele momento
histórico, foi formado em um ambiente profundamente neotomista. No final do século XIX
vivia-se a atmosfera de renovação e renascimento do tomismo. Finalmente os
preconceitos que afirmavam que Tomás de Aquino é um pensador preso a Idade
Média estavam caindo e, com isso, gradativamente estava sendo aberto o caminho
para o estudo e o ensino acurados da vasta obra do Aquinate. Na
segunda metade do século XIX o Pe. McNabb era um sacerdote dedicado ao processo
de restauração da fé católica na Inglaterra, mas também um zeloso neotomista, o
qual transmitiu seus conhecimentos sobre a obra do Aquinate a seus alunos e
amigos. É possível afirmar que de todos os alunos do Pe. McNabb,
Chesterton foi o mais brilhante. Por meio da literatura, ele conseguiu dá uma
visibilidade a Tomás de Aquino que não havia sido pensada pelo movimento
neotomista. Na década de 1930, em plena maturidade artística e intelectual,
Chesterton afirmava que Tomás de Aquino é uma “mente multifacetada”[26], um
“titã de vigor intelectual”[27] e “um herói”[28] para todos que lutam em prol
da verdade e da fé. Por causa disso o Aquinate tornou-se “um dos dois ou três
maiores homens que já viveram”[29]. A consequência de todo esse movimento é que
para uma época, ou seja, o século XX, que se tornou demasiadamente arrogante,
só um santo-filósofo poderá devolver a essa época o sentido da humildade, da
harmonia e do pensamento lógico. Esse santo-filósofo é Santo Tomás de
Aquino[30].
3)-A terceira
questão é o distributivismo. Como bem esclareceu Gustavo Corção[31], o
distributivismo é a proposta da Doutrina Social da Igreja Católica. Ela
consiste na defesa da pequena propriedade rural e da pequena empresa privada.
No distributivismo, cada cidadão deve ter unicamente o necessário para manter,
com plena dignidade, sua vida, sua família e as demais pessoas que estão sob
sua responsabilidade.
O distributivismo é uma doutrina política profundamente
alicerçada no Evangelho e, por isso, nega três tendências autoritárias da
sociedade moderna:
a)-Primeira, nega o excesso
de Estado dentro da vida pessoal e social. No distributivismo o
Estado é reduzido ao mínimo necessário à vida e a organização social.
b)-Segunda, nega o
capitalismo selvagem e antiético, o qual só pensa em lucros e, por conseguinte,
termina conduzindo milhões de pessoas a morte e a pobreza.
c)-Terceira, nega o
socialismo, o qual, em grande medida, é muito pior que o capitalismo, pois
transforma todas as pessoas em escravas do Estado e, no entanto, não
lhes dá condições de viver dignamente. Chesterton foi um dos grandes
entusiastas e difusores do distributivismo.
Conforme demonstra Ian
Boyd[32], a perspectiva distributivista de Chesterton é profundamente
influenciada por Tomás de Aquino. Seguindo a cultura neotomista reinante no
início do século XX, Chesterton estudou a obra do Aquinate. Esse estudo vez que
o escritor inglês percebesse, de um lado, que tanto a teoria política liberal
como a socialista-marxista são profundamente anticristã e, por conseguinte,
conduzem o ser humano a servidão, ao sofrimento e a morte. Do outro lado, Tomás
fornece subsídios teóricos para desenvolver um processo de distribuição da
riqueza que nem cai na usura, como o capitalismo, e nem cai no autoritarismo,
como é o caso do socialismo.
4)-A quarta
questão é o famoso personagem Padre Brown criado por Chesterton. O Pe. Brown é um
detetive amador, não profissional, que desvenda vários crimes e mistérios
policiais usando a lógica aristotélica-tomista. É bom salientar que no final do
século XIX, Edgar Allan Poe criou o gênero narrativa policial ao inserir a
figura do detetive Auguste Dupin nos contos de mistério: Os crimes da rua
Morgue, O mistério de Marie Roget e A carta roubada. O personagem Augusto Dupin
era um detetive metódico, que trabalhava sozinho e que era escolhido por ser o
único do enredo capaz de encontrar a identidade do criminoso. A partir desse
modelo de romance policial, autores como Agatha Christie e Arthur Conan Doyle –
criador do famoso personagem Sherlocks Homes – criaram romances policiais que
seguiam a mesma linha por quase dois séculos[33].O Pe. Brown é um dos mais famosos
personagens criados por Chesterton. Ele entrou para o rol da galeria dos
grandes personagens literários. Trata-se de um padre católico de origem
inglesa, o qual, dentro do ideal do sacerdócio católico, é um “celibatário
profissional”[34] que conduz suas atividades pessoais e religiosas “com muito
divertimento, mas contido”[35] e que deseja, em “nome da verdade”[36], ser a
“voz daqueles que não podem falar”[37] e contribuir para libertar o ser humano
das “trevas mais profundas”[38]. Nos
contos do Pe. Brown, Chesterton faz uso da lógica aristotélica-tomista, a qual
o próprio Chesterton alega ser a lógica por excelência. Além disso, nesses contos há uma grande abertura para a dúvida e a
objeção. Seguindo o método desenvolvido por Tomás de Aquino[39], Chesterton
apresenta, ao longo dos contos, uma série de objeções à fé cristã, a lógica, a
prudência e ao bom senso. Lentamente Chesterton, por meio do personagem Pe.
Brown, vai respondendo todas as objeções e demonstrando a superioridade
da fé cristã e da lógica aristotélica-tomista.
5)-A quinta e
última questão é a biografia que Chesterton escreveu sobre Tomás de Aquino, cujo título é Santo
Tomás de Aquino: biografia. Trata-se de uma das “melhores biografias”[40] e “um
dos livros mais animados e populares sobre São Tomás”[41]. No entanto, não se
trata de uma biografia tradicional, formada, em sua essência, por vida e obra
do pensador biografado. É claro que na biografia de Tomás de Aquino escrita por
Chesterton existe uma profunda descrição da vida e da obra do Aquinate.Acima
de tudo é uma biografia no estilo de Chesterton, ou seja, carregada com uma
profunda linguagem literária, cheia de ironias e de um profundo senso crítico.
É uma biografia destinada aos “católicos fracos e mundanos”[42], os quais tem a
tentação de aceitar as ideias e o espírito anticristão da modernidade. São
pessoas batizadas e que até mesmo frequentam os sacramentos, mas que pensam que
viver a experiência radical da fé – como fez Chesterton – é algo ultrapassado,
coisa da Idade Média. Para essas pessoas a melhor atitude que um cristão deve
ter é aceitar o secularismo e o paganismo reinante na modernidade. São pessoas que, de forma direta ou indireta,
se recusam a pregar o Evangelho e a dar testemunho público da sua fé cristã. É por causa disso que nessa
biografia Chesterton denuncia os “erros modernos”[43] e, acima de tudo, o
“retorno ao paganismo”[44] promovido pela modernidade. Segundo ele[45], é por causa desse retorno que a maioria das escolas
filosóficas modernas duvidam da possibilidade de pensar. E, com isso, o
pensamento é reduzido ao niilismo, à negação de tudo e de toda esperança.
Chesterton dá como exemplo dessa postura negativa e pessimista a obra do
filósofo alemão Nietzsche. Um filósofo muito conhecido
e citado nos círculos de intelectuais no Ocidente. Para Chesterton, Nietzsche é
o “grande filósofo pagão”[46] da era moderna, o qual ensinou ao homem moderno a
não crer em Deus e a importância do pessimismo e do fracasso. Por
causa desse tipo de educação o homem moderno é um ser descrente, pessimista que
vive uma vida alienada e, muitas vezes, sem sentido.Para Chesterton, Nietzsche não é a exceção, mas a grande
regra do mundo moderno. Um mundo marcado pela negação da fé, da esperança, da
razão e da lucidez. Para ele[47], só é possível corrigir esse erro por meio
de uma conversão profunda, ou seja, o retorno à lucidez da razão. E essa
lucidez é expressa de forma magistral por Tomás de Aquino. Em um mundo marcado pela falta de fé e de
razão, Tomás de Aquino é um remédio. Simultaneamente,
Tomás de Aquino é o santo e o filósofo que a era moderna precisa para sair do
obscurantismo, do secularismo, do abandono da razão e do neopaganismo.
CONCLUSÃO
É por causa disso que
Chesterton recomenda o estudo da obra do Aquinate e afirma que o
tomismo é a “única filosofia construtiva”[48]. Isso acontece porque o tomismo é
uma “filosofia da esperança”[49] e uma “filosofia do bom senso”[50].
Esperança e bom senso são as duas coisas que o homem moderno tanto necessita
para sair da era do pessimismo e do niilismo. Essas duas coisas são encontradas
em Tomás de Aquino.Por fim, afirma-se que as poucas linhas desse estudo não
esgotaram a questão da influência de Tomás de Aquino na obra de G. K.
Chesterton. No entanto, por meio delas é possível perceber que o Aquinate
exerceu grande papel na construção da bela e elogiável obra literária de
Chesterton.
REFERÊNCIAS:
[1] PATRICK, J. A. A
razão em G. K. Chesterton e C. S. Lewis. In:
Communio, Vol. XXVI, N. 2, mai/ago 2007, p. 364-365.
[2] GOUVÊA, R. Q. Novos
tempos, velhas crenças: crítica do neopaganismo sob uma ótica cristã. In: Fides
Reformata, 3/1, 1998, p. 45.
[3] CHESTERTON, G. K. O
homem que foi quinta-feira. Rio de Janeiro: Agir, 1957.
[4] CHESTERTON, G. K.
Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008
[5] Sobre a conversão
de Chesterton ao catolicismo recomenda-se consultar: LA GORCE, A. de. Do
pessimismo ao otimismo: G. K. Ghesterton. In. LELLOTTE, F. Convertidos do
Século XX. Rio de Janeiro: Agir, 1960, p. 139-152. O artigo de Agnes de La
Gorce apresenta, de forma detalhada, o processo de conversão de Chesterton a fé
católica.
[6] ROSA, L. R.
Doutrina social da Igreja Católica e a pequena propriedade. In: Revista
Brasileira de História das Religiões,Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009, p. 2.
[7] PATRICK, J A. A
razão em G. K. Chesterton e C. S. Lewis, op. cit, p. 363.
[8] VILLAÇA, A. C. O
pensamento católico no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1975, p. 144.
[9] SANTOS, I. O
tomismo de Gustavo Corção. In: Aquinate, n. 11, 2010, p. 98
[10] CORÇÃO, G. Três
alqueires e uma vaca. 6 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1961, p. 17.
[11] NOUGUÉ, R. C. E.
Chesterton: uma missão única. In: Tradição Católica, abril 2002, n. 175, p. 13.
[12] GULISANO, P.G. K. Chesterton, beato? Entrevista concedida à Antonio Gaspari.
In: Zenit. Disponível em http://www.zenit.org/article-22163?l=portuguese.
Acessado em 01/12/2009.
[13] NOUGUÉ, R. C. E.
Chesterton: um apóstolo do século XX. In: Boletim da Santa Cruz, Suplemento, n.
38, abril de 2008, p. 1.
[14] CORÇÃO, G. Três
alqueires e uma vaca, op. cit., p. 12-13.
[15] CORÇÃO, G. Três
alqueires e uma vaca, op. cit., p. 25.
[16] CORÇÃO, G. Três
alqueires e uma vaca, op. cit., p. 32.
[17] PATRICK, J. A. A
razão em G. K. Chesterton e C. S. Lewis, op. cit., p. 366
[18] STRATHERN, P. São
Tomás de Aquino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 7.
[19] NOUGUÉ, R. C. E.
Chesterton: um apóstolo do século XX. In: Boletim da Santa Cruz, Suplemento, n.
38, abril de 2008, p. 3-4.
[20] CHESTERTON, G. K.
Hereges. Lisboa: Cidade de Deus, 1964
[21] CHESTERTON, G. K.
Por que sou católico. Madri: El Buey Mudo, 2009, p. 32.
[22] NOUGUÉ, R. C. E.
Chesterton: uma missão única. In: Tradição Católica, abril 2002, n. 175, p. 19.
[23] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino. In: Filosófica, Edição Especial Tomás de Aquino, Lisboa,
n. 24, 2003, p. 328. Essa é a versão em
português de Portugal do artigo Santo Tomás de Artigo que Chesterton publicou,
em 27/02/1932, na revista The Spectator.
[24] CORÇÃO, G. Três
alqueires e uma vaca, op. cit., p. 12.
[25] GULISANO, P.
Babylondon. Pe. McNabb, professor de Chesterton, no caos da Babylon-London.
Roma: Edizioni Studio Domenicano, 2010
[26] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino, op. cit., p. 327.
[27] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino, op. cit., p. 329.
[28] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino: biografia. Rio de Janeiro: Co-Redentora, 2002, p. 25.
[29] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino, op. cit., p. 330.
[30] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino: biografia, op. cit., p. 31-32.
[31] CORÇÃO, G. Três
alqueires e uma vaca, op. cit., p. 249-251.
[32] BOYD, I. Santo
Tomás de Aquino, G. K. Chesterton e o pensamento social distributista.
Conferência proferida no Instituto Filosófico e Teológico do Seminário São José
de Niterói em 05/11/2010. Niterói: Instituto Filosófico e Teológico do
Seminário São José, 2010.
[33] MASSI, F. O
detetive do romance policial contemporâneo. In: R e v i s t a P r o l í n g u a, Vol. 2, n. 1, Jan./Jun
de 2009, p. 81.
[34] CHESTERTON, G. K.
A sabedoria do Padre Brown. Contos reunidos do Padre Brown. Rio de Janeiro:
Record, 1989, p. 64.
[35] CHESTERTON, G. K.
A sabedoria do Padre Brown. Contos reunidos do Padre Brown, op. cit., p. 65.
[36] CHESTERTON, G. K.
A sabedoria do Padre Brown. Contos reunidos do Padre Brown, op. cit., p. 75.
[37] CHESTERTON, G. K.
A sabedoria do Padre Brown. Contos reunidos do Padre Brown, op. cit., p. 47.
[38] CHESTERTON, G. K.
A sabedoria do Padre Brown. Contos reunidos do Padre Brown, op. cit., p. 38.
[39] SANTOS, I. O
método de pesquisa em Tomás de Aquino. In: Aquiante, Niterói, n. 7, 2008, p.
145-152.
[40] NOUGUÉ, R. C. E.
Chesterton: um apóstolo do século XX, op. cit., p. 2.
[41] KENNY, A. Tomás de
Aquino. Lisboa: Dom Quixote, 1981, p. 143
[42] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino: biografia, op. cit., p. 17.
[43] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino: biografia, op. cit., p. 73.
[44] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino: biografia, op. cit., p. 74.
[45] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino: biografia, op. cit., p. 156.
[46] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino: biografia, op. cit., p. 102.
[47] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino: biografia, op. cit., p. 31-32.
[48] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino: biografia, op. cit., p. 155.
[49] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino: biografia, op. cit., p. 158.
[50] CHESTERTON, G. K.
Santo Tomás de Aquino: biografia, op. cit., p. 123.
**SANTOS, Ivanaldo. A influência de Tomás de Aquino na obra
de G. K. Chesterton.
In: The Chesterton Review, v. 2, n. 1, 2010, p. 65-76.
ISSN
On-line: 2162-8556 - Ivanaldo Santos era doutor em estudos da linguagem pela
UFRN, professor do departamento de filosofia e do Programa de Pós-Graduação em
Letras da UERN.
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