“Assim
existem na Liturgia dois aspectos a serem observados. “A Liturgia, como ensina o
Concílio Vaticano II, consta de uma parte imutável, divinamente
instituída, e de partes suscetíveis de mudança. Estas, com o correr dos tempos,
podem ou mesmo devem variar, se nelas se introduzir algo que não corresponda
bem à natureza íntima da própria liturgia, ou se estas partes se tornarem menos
aptas. Com esta reforma, porém, o texto e os ritos devem ordenar-se de tal
modo, que de fato exprimam mais claramente as coisas santas que eles significam
e o povo cristão possa compreendê-las facilmente, na medida do possível, e também
participar plena e ativamente da celebração comunitária” (SC 21).
Por que a
liturgia? O que significa liturgia? (CIC 1066-1070)
A profissão de fé, abordada na primeira parte do Catecismo da
Igreja Católica, é seguida pela explicação da vida sacramental, por cujo meio
Cristo está presente e age, continuando a edificação da sua Igreja. Se na
liturgia, aliás, não se destacasse a figura de Cristo, que é o seu princípio e
está realmente presente para torná-la válida, nem sequer teríamos a liturgia
cristã, que depende do Senhor e é sustentada pela sua presença.Existe, então,
uma relação intrínseca entre fé e liturgia, ambas intimamente unidas. Sem a
liturgia e os sacramentos, a profissão de fé não teria eficácia, pois careceria
da graça que alicerça o testemunho dos cristãos.
“Por outro lado, a
ação litúrgica nunca pode ser considerada genericamente, prescindindo-se do
mistério da fé. A fonte da nossa fé e da liturgia eucarística, de fato, é o
mesmo acontecimento: o dom que Cristo fez de si mesmo no mistério pascal”
(Bento XVI, Sacramentum Caritatis, 34).
Se abrirmos o catecismo na sua segunda parte, leremos que a
palavra “liturgia” significa, originariamente, “serviço de e em favor do povo”.
Na tradição cristã, significa que o povo de Deus faz parte da “obra de Deus”
(CIC, 1069).Em que consiste essa obra de Deus da qual fazemos parte? A resposta
do catecismo é clara e nos permite descobrir a íntima conexão que existe entre
a fé e a liturgia:
“No símbolo da fé, a
Igreja confessa o mistério da Santíssima Trindade e o seu desígnio benevolente
(Ef 1,9) para toda a criação: o Pai realiza o "mistério da sua
vontade" dando o seu Filho Amado e o Espírito Santo para a salvação do
mundo e para a glória do seu nome” (CIC, 1066).
“Cristo, o Senhor,
realizou esta obra da redenção humana e da perfeita glorificação, preparada
pelas maravilhas que Deus fez no povo da antiga aliança, principalmente pelo
mistério pascal da sua bem-aventurada paixão, da ressurreição dentre os mortos
e da sua gloriosa ascensão” (CIC, 1067). É este o mistério de Cristo, que a
Igreja “anuncia e celebra na sua liturgia a fim de que os fiéis vivam dele e
dêem testemunho dele no mundo” (CIC, 1068).
Por meio da liturgia,
“exerce-se a obra da nossa redenção” (Concílio Vaticano II, Sacrosanctum
Concilium, 2). Assim como foi enviado pelo Pai, Cristo enviou os apóstolos para
anunciarem a redenção e “realizarem a obra de salvação que proclamavam,
mediante o sacrifício e os sacramentos, em torno dos quais toda a vida
litúrgica gira” (ibidem, 6).
Vemos assim que o catecismo sintetiza a obra de Cristo no mistério
pascal, que é o seu núcleo essencial. E o nexo com a liturgia se mostra óbvio,
pois “por meio da liturgia é que Cristo, nosso Redentor e Sumo Sacerdote,
continua na sua Igreja, com ela e por ela, a obra da nossa redenção” (CIC,
1069). Assim, esta “obra de Jesus Cristo”, perfeita glorificação de Deus e
santificação dos homens, é o verdadeiro conteúdo da liturgia.Este é um ponto
importante porque, embora a expressão e o conteúdo teológico-litúrgico do
mistério pascal devam inspirar o estudo teológico e a celebração litúrgica,
isto nem sempre foi assim.
“A maior parte dos
problemas ligados às aplicações concretas da reforma litúrgica têm a ver com o
fato de que não foi suficientemente considerado que o ponto de partida do
concílio é a páscoa [...]. E páscoa significa inseparabilidade da cruz e da
ressurreição [...]. A cruz está no centro da liturgia cristã, com toda a sua
seriedade: um otimismo banal, que nega o sofrimento e a injustiça do mundo e
reduz o ser cristãos a ser educados, não tem nada a ver com a liturgia da cruz.
A redenção custou a Deus o sofrimento do seu Filho e a sua morte. Daí que o seu
exercitium, que, segundo o texto conciliar, é a liturgia, não pode acontecer
sem a purificação e sem o amadurecimento que provêm do seguimento da cruz”
(Bento XVI, Teologia della Liturgia, LEV, Vaticano, 2010, págs. 775-776).
Esta linguagem conflita com aquela mentalidade incapaz de aceitar
a possibilidade de uma intervenção divina real neste mundo em socorro do homem.
Por isso, “quem compartilha uma visão deísta considera como integrista a
confissão de uma intervenção redentora de Deus para mudar a situação de
alienação e de pecado, e este mesmo juízo é emitido a propósito de um sinal
sacramental que torne presente o sacrifício redentor. Mais aceitável, aos seus
olhos, seria a celebração de um sinal que correspondesse a um vago sentimento de
comunidade. Mas o culto não pode nascer da nossa fantasia; seria um grito na
escuridão ou uma simples auto-afirmação. A verdadeira liturgia pressupõe que
Deus responde e nos mostra como podemos adorá-lo.
“A Igreja pode
celebrar e adorar o mistério de Cristo presente na eucaristia precisamente
porque o próprio Cristo se entregou antes a ela no sacrifício da cruz”
(Sacramentum Caritatis, 14). A Igreja vive desta presença e tem a difusão desta
presença no mundo inteiro como a sua razão de ser e de existir” (Bento
XVI,Discurso de 15 de abril de 2010).
Esta é a maravilha da liturgia, que, como o catecismo recorda, é
culto divino, anúncio do evangelho e caridade em ato (cf. CIC, 1070). É Deus mesmo quem age, e nós nos sentimos
atraídos por esta sua ação, a fim de sermos, deste modo, transformados nele.
Quando
qualquer grupo realiza uma ação comunitária, como uma festa ou um jogo, ele
segue um roteiro para se compreender em sua comunicação. Assim, não há jogo sem as
regras do jogo. Estas normas ou regras devem ser conhecidas e seguidas
por todos os participantes. Caso contrário, em vez de comunhão só sairá
confusão. As regras do jogo sustentam o jogo, são a comunicação do jogo. Mas o
que importa mesmo é o jogo, é a festa.Assim também na Sagrada Liturgia. Ela é
sempre uma ação comunitária da Igreja, comemorando o mistério pascal ou os
diversos mistérios de Cristo. As normas ou os ritos constituem como que as
regras do jogo, para que aconteça o jogo.
A Liturgia se expressa através de
sinais sensíveis e significativos da obra da salvação e de glorificação de Deus
de Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. Estes sinais que chamamos também de
símbolos são os diversos ritos, constituídos não só de palavras, mas de ações
que comemoram e tornam presentes a Páscoa de Cristo e dos cristãos, ou celebram
as páscoas dos cristãos na Páscoa de Cristo.Os ritos, as normas constituem a
linguagem dos mistérios celebrados, levam os fiéis entrarem em comunhão com o
mistério, a se tornarem um com Deus, por Cristo, na força do Espírito Santo.
Assim existem na Liturgia dois aspectos a serem
observados. “A Liturgia, como ensina o Concílio Vaticano
II, consta de uma parte imutável, divinamente instituída, e de partes
suscetíveis de mudança. Estas, com o correr dos tempos, podem ou mesmo devem
variar, se nelas se introduzir algo que não corresponda bem à natureza íntima
da própria liturgia, ou se estas partes se tornarem menos aptas. Com esta
reforma, porém, o texto e os ritos devem ordenar-se de tal modo, que de fato
exprimam mais claramente as coisas santas que eles significam e o povo cristão
possa compreendê-las facilmente, na medida do possível, e também participar
plena e ativamente da celebração comunitária” (SC 21).
Acontece freqüentemente em aulas,
cursos ou encontros de formação litúrgica que os participantes comecem a
perguntar: “Pode isso, pode aquilo? e muitas vezes recebem como respostas um
simples: Não sei porque, mas sei que não pode, e sempre foi assim...” O
correto seria responder:
“Não
pergunte se pode ou não pode, mas que sentido tem tal norma ou tal rito, ou por
que tal norma, tal rito? Por que é assim ?”
O correto sobre as questões de
Liturgia é explicar o sentido das diversas expressões litúrgicas, procurando
sempre seu sentido religioso, sua origem, seu sentido de linguagem, de
comunicação do mistério celebrado e captar e aprofundar o mistério revelado e
comunicado por eles. Assim os fieis são levados a compreender melhor o que seja a Sagrada
Liturgia, a entender o sentido teológico e espiritual das “sagradas cerimônias”
da Igreja. A Liturgia será acolhida e vivida como cume e fonte de toda a vida
cristã, como a primeira e necessária fonte, da qual os fiéis haurem o espírito
verdadeiramente cristão (cf. SC 14).Claro que a Liturgia precisa também
de normas, de leis, que orientam e sustentam a ação comunitária, mas
elas não são o elemento principal. Desta forma evitaremos uma
compreensão por demais jurídica ou legalista da Liturgia da Igreja, para não se
cair num ritualismo estéril.
(Frei Alberto Beckhäuser, OFM)
Fonte: franciscanos.org.br