“Esses homens estão longe de si mesmos, como ébrios de bebida, ébrios em espírito de mistério e de Deus."(Pseudo-Macário, Homilias espirituais)
Foram talvez os últimos cristãos que viveram autenticamente
a Kênosis, e que fizeram a livre opção de seguir os ensinamentos ascéticos da pessoa de Jesus, em detrimento da
ordenança da Igreja nascente e instituída, porém, sem fazer nenhuma crítica a
ela.
O termo, Padres do Deserto inclui um grupo influente de
eremitas e cenobitas do século IV que se estabeleceram mais precisamente no
deserto egípcio. As origens do monaquismo oriental
se encontram nessas ermidas primitivas e comunidades religiosas. Paulo de Tebas
é o primeiro eremita do qual se tem notícia, a estabelecer a tradição do
ascetismo e contemplação monástica e Pacômio de Tebaida é considerado o
fundador do cenobitismo, do monasticismo primitivo. Ao final do terceiro
século, contudo, o venerado Antão do Egito orienta colônias de eremitas na
região central. Logo, ele se torna o protótipo do recluso e do herói religioso
para a Igreja oriental, uma fama devida em grande parte à vasta louvação na
biografia de Atanásio sobre ele. Esses primitivos monásticos atraíram um grande
número de seguidores aos seus retiros severamente austeros, através da
influência de suas simples vidas abandonadas em Deus, e concentrada na busca
pela salvação de suas almas do mundo, na união com o Altíssimo. Os Padres do
Deserto eram frequentemente solicitados para direção espiritual e conselho aos
seus discípulos. Suas respostas foram escritas pelos seus discípulos, e
colecionadas num trabalho chamado "Paraíso" ou "Apotégmas dos
Padres". (Por Emily K. C. Strand, tradução Jandira)
Quando o Cristianismo se tornou a religião oficial do
Império Romano, encerrando trezentos anos de perseguição e martírio, algumas
pessoas consideraram que sua prática religiosa cristã era
incompatível com essa nova religião de Estado que surgia, institucionalizada e
poderosa, e decidiram simplesmente ir peregrinar nos desertos do Egito,
sozinhas, ou em pequenas comunidades. Essas pessoas, apesar de hoje lembradas
como Padres e Madres do deserto, e de serem respeitosamente referidas como
“monge” ou “abade”, em sua enorme maioria não eram religiosas ordenadas; não possuíam
nenhum treinamento ou formação sacerdotal, teológica, litúrgica; não
tinham nenhum apoio ou chancela das instituições cristãs oficiais da época. Eram
só pessoas, imbuídas de uma fé profunda e quiçá radical, que se
isolaram do mundo para poder viver mais livremente o tipo de vida que consideravam
mais adequado à aqueles tempos da PAX ROMANA. Não eram muito sociáveis, não
estimulavam visitas. Não tentavam convencer ninguém. Acreditavam simplesmente com
máxima intensidade na força do evangelho ascético de Cristo, e nos
frutos de suas revelações contemplativas experimentadas na realidade prática.Na Idade
Média, foram celebradas; na Renascença, esquecidas; no século XX, recuperadas.
Um dos responsáveis por sua renovada
popularidade é o monge trapista Thomas Merton, que escreveu:
“Os Padres do Deserto insistiam em permanecer humanos e ‘comuns’. Fugir
ao deserto para ser extraordinário é somente carregar o mundo como um padrão
implícito de comparação. Os homens
simples que viveram suas vidas até uma idade avançada entre pedras e areia só o
fizeram porque haviam ido ao deserto para serem eles mesmos, para viverem seu
eu ordinário, e para esquecerem um mundo que os mantinha afastados de si mesmos.
O que ganhamos ao viajar à lua se não formos capazes de cruzar o abismo que nos
separa de nós mesmos? Deixar o mundo é ajudar a salvá-lo, salvando-se a si
mesmo.Os eremitas cópticos que deixaram o mundo, embora estivessem escapando de
um naufrágio, não pretendiam apenas salvar suas vidas. Eles sabiam que eram incapazes de fazer algum bem aos outros enquanto
se debatessem no naufrágio. Porém, uma vez que conseguissem colocar os pés
em terra firme, as coisas seriam diferentes. Nesse momento eles não apenas
teriam o poder, mas a obrigação de trazer todo mundo a salvo atrás deles.”
Precisamos porém, separar aqui também, o joio do trigo em
seus os atos, falas, e as histórias dos Padres e Madres do Deserto, que de
certa forma pelo seu estilo de vida estranho ao homem moderno, pode causar-nos
um impacto profundo.
Segue apenas uma “palhinha” da sabedoria dos Padres do Deserto:
“Um irmão perguntou a Pai Sisoes: ‘Padre, o que devo fazer, pois caí em
tentação?’ Pai Sisoes disse: ‘Levanta-te novamente!’ O irmão retrucou: ‘Eu me
levantei, mas voltei a cair!’ E o Padre aconselhou: ‘Então te levanta de novo e
toda vez!’ O irmão perguntou: ‘Até quando?’ E o ancião respondeu: ‘Até seres
aceito ou no bem ou na queda.’” (Grun, 53)
“Ao ser requerido a proferir um discurso diante do Arcebispo Teófilo,
Padre Pambo teria dito: ‘Se ele não tirar nenhum benefício do meu silêncio,
tampouco poderá tirá-lo do meu discurso’.” (Grun, 64)
“Um irmão foi até Cétia pedir boas palavras ao abade Moisés. O ancião
respondeu-lhe: ‘Volte para sua cela, sente-se e ela lhe ensinará tudo o que
precisa.” (Merton, 33)
“O abade Hiperéquio disse: ‘É melhor comer carne e beber vinho do que
devorar a carne do seu irmão, desprezando-o.” (Merton, 35)
“Certa ocasião, no vale das celas, os irmãos estavam reunidos, comendo
no local de assembléia. Um dos irmãos presentes disse ao que servia à mesa: “Eu
não como nenhum alimento cozido, apenas um pouco de sal.’ O irmão que servia à
mesa chamou outro irmão e, à frente de todos na assembleia, disse em voz alta:
‘Aquele irmão não come alimentos cozidos, traga um pouco de sal para ele.’ Um
dos anciãos levantou-se e disse ao irmão que só queria sal: ‘Seria melhor você
ter comido carne sozinho na sua cela hoje do que ter deixado que isso fosse
dito na presença de tantos irmãos.’” (Merton, 44)
“Um irmão perguntou ao abade Pastor: ‘Eu perco a calma quando estou
sentado sozinho, em minha cela, orando. O que devo fazer?’ O ancião
respondeu-lhe: ‘Não despreze ninguém, não condene ninguém, não censure ninguém.
Deus lhe dará a paz e sua meditação não será perturbada.’” (Merton, 45)
“O abade Pastor disse: ‘ A
malevolência nunca acabará com a malevolência. Se alguém lhe fizer mal, faça o
bem a essa pessoa, assim, a sua boa ação pode destruir a malevolência.’”
(Merton, 47)
“O abade Pastor recebeu a seguinte dúvida de um irmão: ‘Como devo me
comportar no local onde vivo?’ O ancião respondeu: ‘Seja cauteloso como um
forasteiro. Onde quer que esteja, não deseje que suas palavras tenha força
diante de si, e terá paz.’” (Merton, 59)
“O diabo apareceu a um dos irmãos transformado em anjo da luz, e lhe
disse: ‘Eu sou o anjo Gabriel e fui enviado a você.’ Porém, o irmão respondeu:
‘Pense bem, você deve ter sido enviado a
outra pessoa. Não fiz nada para merecer um anjo.’ Imediatamente, o diabo
desapareceu.” (Merton, 60)
“O abade Pastor disse: ‘Qualquer
prova colocada a você pode ser vencida pelo silêncio.’” (Merton, 61)
“O abade Pastor contou que o abade João, o anão, orara ao Senhor e que o
Senhor o livrara de todas as paixões, tornando-se assim impassível. Nessa
condição, foi até um dos anciãos e disse: ‘Você tem diante de si um homem que
está em pleno descanso e livre de todas as tentações.’ O ancião disse-lhe: ‘Vá
e reze ao Senhor para que lhe envie alguma luta a ser travada dentro de si,
porque a alma é amadurecida por meio de batalhas.’ Então, quando as lutas
começaram a aparecer novamente, ele não pediu para que fossem afastadas, apenas
disse: ‘Senhor, dê-me forças para resistir à luta.’” (Merton, 64)
“Certa vez, alguns ladrões invadiram o mosteiro e disseram a um dos
anciãos: ‘Viemos para levar tudo que há em sua cela.’ Ele respondeu: ‘Meus
filhos, peguem tudo o que desejarem.’ Então, eles pegaram tudo o que acharam na
cela e foram embora. Porém, deixaram uma pequena bolsa que estava escondida na
cela. O ancião pegou-a e foi atrás deles, gritando: ‘Meus filhos, vocês
esqueceram isso na cela!’ Surpresos com a resignação do ancião, trouxeram tudo
de volta para a cela e se arrependeram, dizendo: ‘Esse é realmente um homem de
Deus.’” (Merton, 66)
“O abade Agatão admoestava frequentemente seu discípulo, dizendo: ‘Nunca
adquira para si nada que hesitasse dar a seu irmão se ele lhe pedisse.Se alguém
lhe pedir algo, dê; se alguém quiser algo emprestado, não recuse.’” (Merton,
67)
“O abade José perguntou ao abade Pastor: ‘Diga-me como posso me tornar
um monge.’O ancião respondeu: ‘Se você quiser descanso nessa vida e também na
próxima, em todo conflito com outro, diga: ‘Quem sou eu?’ e não julgue ninguém,
se tiver disposto a isto, poderá ser monge.” (Merton, 70)
“O abade João costumava dizer: ‘Nós nos desincumbimos de uma carga leve,
que é a repreensão a nós mesmos, e no lugar dela optamos por carregar uma carga
pesada de nos justificar e recriminar os outros.’” (Merton, 79)
“Um grande nobre desconhecido de todos veio até a Cétia, trazendo
consigo ouro, e perguntou ao padre do local onde poderia deixar aquele ouro
para os irmãos. O padre disse a ele: ‘Os irmãos não precisam disso.’ O nobre
insistiu e não aceitaria ‘não’ como resposta; então, colocou a cesta com o ouro
na porta de entrada da igreja e disse ao padre: ‘Aqueles que desejarem um
pouco, podem pegar à vontade.’ Porém, ninguém tocou no ouro, alguns nem mesmo
olharam para a cesta. O ancião disse ao nobre: ‘O Senhor aceitou sua oferta. Vá
agora e doe aos pobres.’” (Merton, 80-81)
“Certa vez, o abade Macário, depois de ter dado a benção aos irmãos na
igreja de Scete, lhes disse: ‘Irmãos, retirai-vos.’ Um dos anciãos replicou:
‘Como podemos nos retirar mais do que isso, visto que já estamos no deserto?’
Então, Macário colocou o dedo em seus lábios, dizendo: “Retirai-vos a partir
daí.” Dito isso, entrou em sua cela e fechou a porta.” (Nouwen, 41)
CONCLUSÃO:
O Vaticano II nos convida a
renovar a Teologia à luz de suas fontes no Evangelho e nos Padres da Igreja, do
Oriente e Ocidente e dos Padres do Deserto; (ver "Unitatis
Redintegratio" 15ss). Este blog com esta postagem, quer prestar um serviço
à Igreja peregrina e propiciar aos que ainda não tiveram um contato com os Santos
Padres do Deserto,ter este primeiro contato. Que eles mesmos nos inspirem um
retorno salutar às fontes do Pão da Palavra e do Pão Eucarístico e assim sermos
capazes de também matar a fome do homem de hoje. Fome do Pão e da Palavra. E
que assim tenhamos Vida em abundância.
"No Oriente se encontram também as riquezas daquelas tradições
espirituais, expressas sobretudo pelo monaquismo. Pois desde os gloriosos
tempos dos santos Padres floresceu no Oriente aquele elevada espiritualidade
monástica, que de lá se difundiu para o Ocidente e da qual a vida religiosa dos
latinos se originou como de sua fonte e em seguida, sem cessar, recebeu novo
vigor. Recomenda-se, por isso, vivamente que os católicos se abeirem com mais
frequência destas riquezas espirituais dos Padres do Oriente que elevam o homem
todo à contemplação das coisas divinas." (UR 15)
Capítulo LXXIII - Regra de S. Bento:
"Aquele que aspira à vida perfeita, esse
tem os ensinamentos dos santos Padres, cuja observância conduz o homem aos
cumes da perfeição. Com efeito, que página ou palavra da autoridade divina,
tanto do Antigo como do Novo Testamento, que não seja retíssima norma de vida
humana? Ou que livro dos santos Padres católicos, que não nos pregue bem alto o
reto caminho para chegarmos ao nosso Criador? E as "Colações" dos Padres,
as suas "Instituições" e "Vidas" , bem como a Regra do
nosso Pai S. Basílio, que outra coisa são senão documentos autênticos das
virtudes de monges de vida santa e obedientes? Para nós, remissos e de mau
viver e negligentes, são de nos fazer corar de confusão. Quem quer que sejas,
portanto, que te dás pressa por chegar à pátria celeste, põe em prática, com a
ajuda de Cristo, este esboçozinho de Regra que escrevemos para principiantes. E
então chegarás finalmente, com a proteção de Deus, a essas sublimes alturas de
doutrina e de virtudes, a que acima nos referimos. Amém" (Fim da Regra
- Colações" e "Instituições", de João Cassiano - Vidas dos Santos Padres)
BIBLIOGRAFIA
RECOMENDADA:
-Para quem lê inglês, recomenda-se a edição da Penguin,
traduzida e editada por Benedicta Ward. Para quem só lê português, o livro do
Merton é uma excelente seleção:A sabedoria do deserto: ditos dos Padres do Deserto do
século IV, de Thomas Merton, 1960, inglês.
[Trad: Helio de Mello Filho, 2004.]
-A
orientação espiritual dos Padres do Deserto,
de Anselm Grün, 2002, alemão. [Trad: Enio Paulo Giachini, 2013.]
-O caminho do coração: a espiritualidade dos Padres e Madres
do Deserto, de Henri Nouwen, 1981, inglês. [Trad: Denise Jardim Duarte, 2012.]
-The desert fathers, c.III-IV, copta. [Trad, org:
Hellen Waddell, 1936.]
-The desert fathers, sayings of the
early Christian monks, c.III-IV, copta. [Trad: Benedicta Ward, 2003.]
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