Nessa reflexão teológica, despretenciosa, mostramos uma imensa lista (incompleta) de leigos, clérigos, e religiosos que demonstram como o Vaticano II foi confirmado com o sangue de uma nuvem de testemunhas!
O Concílio Vaticano II revelou os rostos de novos profetas, teólogos, doutores, santos e santas para esse tempo da Igreja!
O evento conciliar assumiu uma nova perspectiva da santidade plasmada na ação histórica concreta da Igreja Povo de Deus, ministerial e profética. Essa é mais uma confirmação da excepcionalidade que o Vaticano II constitui na história da Igreja. Nenhum dos 20 concílios anteriores havia sido realizado pelas razões que levaram João XXIII a convocá-lo.
"O Vaticano II, de fato, não foi convocado para condenar alguma heresia, nem para definir novas verdades de fé, mas, com o propósito de dizer novamente e de quase redefinir a identidade cristã no contexto histórico e cultural da humanidade em mudança. Como anunciar o Evangelho em uma sociedade multiétnica, multicultural e multirreligiosa? Como dialogar com a humanidade globalizada, compartilhando o seu destino, as suas esperanças e os seus problemas? Como apresentar a um mundo secularizado a natureza e a missão da Igreja?" (cf. João XXIII, discurso de abertura do Concílio Gaudet Mater Ecclesia, 11 de outubro de 1962).
Portanto, a recepção do Vaticano II não pode
ser reduzida a uma mera interpretação “jurídica” dos documentos conciliares,
mas deve se colocar na linha de uma “hermenêutica sapiencial ou profética”,
preferida pelos dois papas do Concílio e à qual o Papa Francisco também se
refere. De fato, o que importa é entender como assimilar e expressar hoje a
identidade cristã através de uma compreensão renovada e de um testemunho mais
fiel dela.
No dia 21 de novembro de 2004 foi celebrado oficialmente pela igreja, 40 anos da promulgação da Constituição dogmática Lumen Gentium (LG), sobre a Igreja, do Concílio Ecumênico Vaticano II.
Por Pe. José Lisboa Moreira de Oliveira, sdv
Não podemos deixar passar despercebida essa data tão
significativa. De fato, a LG é, sem dúvida alguma, o marco referencial para
toda a “revolução” provocada pelo último Concílio.
Voltando
à noção bíblica de povo de Deus[1], a LG propôs verdadeira redefinição do
conceito e da experiência de Igreja. Até então a eclesiologia era profundamente
dominada pelo aspecto jurisdicionista. Essa visão burocrática de Igreja
forma-se no âmbito da cultura do século XVIII, torna-se oficial no Concílio
Vaticano I. Nessa eclesiologia (anterior ao Vaticano II), a dimensão do mistério desaparece, a conexão da
Igreja com o Espírito do Ressuscitado não é colocada em evidência. A Igreja não é a “ekklesia”,
isto é, a assembleia daqueles e daquelas que foram convocados pela Trindade;
não é mais a “communio sanctorum”, ou seja, a comunhão dos santos e santas, mas
passa a ser identificada exclusivamente com o clero[2].
Retomando
a ideia patrística de Igreja, “povo congregado na unidade do Pai e do Filho e
do Espírito Santo” (LG 4), o Vaticano II lembra que todos os batizados e
batizadas têm dignidade, liberdade, formam a comunidade dos filhos e filhas de
Deus e são templos do Espírito Santo (cf. LG 9). Todo o povo de Deus, por causa
do sacerdócio comum dos fiéis, é chamado à plena participação e a uma vida
santa (cf. LG 10). Aliás, não só os católicos, mas também os demais cristãos e
toda a humanidade são destinados a ser povo de Deus (cf. LG 13).
Nessa perspectiva, a LG fala de vocação universal à santidade!
Todo o capítulo 5 dessa constituição conciliar é dedicado a essa temática. Trata-se de verdadeira reviravolta (coperniana), uma vez que, em uma eclesiologia que identificava a Igreja com o clero, a santidade tinha sido reduzida a uma “propriedade privada” de bispos e padres e, em alguns casos, de algumas freiras. Ser santo não era coisa muito acessível para o povo (os leigos).
Neste artigo, considerando o significativo acontecimento dos 40 anos da LG, queremos refletir sobre essa "redescoberta do Vaticano II"
Vamos, em primeiro lugar,
tentar entender o que é a santidade? Em seguida falaremos da sua
universalidade, conforme a proposta lançada pelo Concílio. Num terceiro momento
abordaremos o tema da diversidade da santidade e, ligado a essa questão, o da
legitimidade dos diversos caminhos que levam à santificação. Por fim, vamos
deixar algumas “provocações” para o momento eclesial que estamos vivendo.
1.
O que é a santidade?
Convém
começar esta reflexão esclarecendo o que é a santidade, uma vez que ainda hoje
isso não é tão claro. Na maioria das vezes, a santidade é confundida com
atitudes de beatice ou carolice. No linguajar comum, especialmente dos grupos
fundamentalistas atuais, das comunidades neoconservadoras que estão surgindo
ultimamente no interior da nossa Igreja, a santidade é relacionada com atitudes
alienadas e com comportamentos desequilibrados e totalmente distantes do mundo
real.
A
vocação ou chamado à santidade de que fala a LG tem um fundamento bíblico e,
como tal, está profundamente relacionada com o cotidiano e com a prática
concreta da vida de cada dia. Para ser santa, a pessoa não precisa fugir do seu
estado de vida. Ela se santifica exatamente e somente pelo compromisso com a
sua condição humana e cristã. A vocação à santidade consiste na capacidade de
responder ao apelo divino por meio da vivência evangélica do próprio estilo de
vida (cf. LG 39).
A LG define a santidade com base na Bíblia[3]. Na Sagrada Escritura a santidade tem duas grandes características:
-Antes de tudo, ela é uma prerrogativa exclusiva de Deus. Só Deus é Santo! Por isso mesmo, ela não é algo adquirido pelos esforços e méritos das pessoas, mas uma dádiva, um dom divino. Deus nos comunica a sua santidade, fazendo-nos participantes da sua vida divina.
-A
segunda característica está relacionada com isso. A comunicação da santidade
por parte de Deus não se dá diretamente e particularmente a cada pessoa, mas à
comunidade convocada e reunida por ele. Na concepção do Concílio — que é também
a visão bíblica — não existe o santo isolado. A pessoa se santifica enquanto é
pertencente a uma comunidade.
A
partir do que foi dito, podemos afirmar que a santidade é um chamado que o Pai,
pelo Filho, na ação do Espírito, dirige a toda a humanidade e, de modo
particular, a todas as pessoas batizadas. Tal chamado tem três elementos
básicos: a pertença, a missão e o testemunho.
O
chamado à santidade é, antes de tudo, um convite a pertencer à família divina.
Nós somos o povo que pertence a Deus, sua “particular propriedade” (1Pd 2,9).
Isso significa que somos aqueles e aquelas que são escolhidos e amados pelo
Criador. Não somos o resultado do acaso, do destino, do pecado, mas o fruto do
amor ilimitado da Trindade. Nascemos do amor de Deus e somos predestinados ao
Amor. Nossa característica principal é amar e gozar a experiência fascinante de
ser filho ou filha de Deus (cf. Ef 1,4-5).
Porque
amados e amadas por Deus, recebemos a missão de comunicar o seu amor aos demais
homens e mulheres. Nesse sentido, a santidade é participação na missão do Filho
e do Espírito. A Igreja é “indefectivelmente santa” (LG 39) porque é enviada
para ser “sacramento universal de salvação” (AG 1). Deus nos escolhe e nos
envia para proclamar as suas “excelências”, as suas maravilhas (cf. 1Pd 2,9).
Portanto, ser santo ou santa é acolher com alegria e disposição o chamado para
tomar parte ativa na missão evangelizadora da Igreja, para anunciar a todas as
pessoas o projeto de vida que a Trindade Santa tem para toda a humanidade.
Enquanto anúncio, convite para proclamar a boa notícia, a santidade é também uma convocação ao testemunho. Aqueles e aquelas que experimentaram a ternura e a misericórdia do Pai são convidados a comunicar essa experiência mediante o próprio modo de viver.
Um estilo de vida no qual a experiência do amor seja bem visível e consiga envolver outras pessoas. A santidade seria, então, uma vida vivida como expressão do Mistério, como fascinação e como encanto pela Trindade e pela vida que ela espalha pelo universo!
Precisamos,
pois, afirmar com muita clareza que a vocação à santidade, perspectiva bíblica
assumida pelo Vaticano II, não tem aquelas conotações moralistas de uma ascese
que nasceu de certo espiritualismo de fuga e das colorações maniqueístas que
empestaram a Igreja por muito tempo. O abandono da mediocridade, com a
superficialidade, e a busca da transparência e da perfeição evangélica são
apenas o resultado do processo.
Nesse dinamismo que acabamos de apresentar, não se nega a importância do esforço (cf. Mt 7,13-14) e da luta (cf. 1Cor 9,24-27), mas esses são apenas elementos derivantes.
O mais importante na santidade é o dom, é a graça. A Igreja, e nela cada pessoa, participa apenas respondendo ao dom recebido de forma totalmente gratuita!
A santidade é um presente de Deus! A Igreja é santa porque a Trindade é santa; porque a sua origem e a sua fonte são santas (cf. LG 39).
O santo, ou
a santa, portanto, é aquela pessoa que fez a experiência de ter sido amada
primeiro (cf. 1Jo 4,10) e responde à iniciativa divina amando os demais irmãos
e irmãs, tornando-se assim anunciadora dessa maravilhosa dádiva e desse carisma
que ultrapassa os demais (cf. 1Cor 12,31).
2.
A universalidade da santidade
A
santidade, descrita nos termos que acabamos de apresentar, não é “uma vocação
reservada a alguns, monopólio de certos estados ou privilégio de uma casta”[4].
O Concílio Vaticano II foi bem explícito: todos na Igreja são chamados à
santidade (cf. LG 39). Todas as pessoas, de qualquer condição, de qualquer
estado de vida, são vocacionadas à santidade de vida (cf. LG 40).
Hoje,
depois de 40 anos, tal afirmação pode parecer tranquila. Mas nem sempre foi
assim. Já tivemos ocasião de acenar para um tipo de mentalidade que vigorava
até a época do Vaticano II. Tal mentalidade levava a comunidade cristã a
delegar a santidade a umas poucas pessoas, como bispos, padres e
particularmente monges. O simples cristão deveria se contentar em recolher as
migalhas que, a conta-gotas, eram difundidas pelos mosteiros. Os leigos e as
leigas podiam aspirar apenas à salvação concedida pela prática sacramental e
pela benevolência da hierarquia. Por estarem no mundo, ficavam impedidos de ser
santos e santas[5].
Em
nossos dias isso ainda não é considerado uma coisa normal. Para constatar isso,
basta seguir todo o processo burocrático mediante o qual a hierarquia da Igreja
costuma canonizar os seus santos e santas. Acompanhando a referida prática,
fica a impressão de que a santidade ainda é monopólio de algumas castas.
Normalmente são canonizadas pessoas que pertenceram ao clero ou à vida
religiosa. Para fazer alguém chegar à “honra dos altares” é necessário muito
dinheiro (nem toda familia de leigos consegue arcar), e pelo menos dois milagres! A canonização de um cristão leigo ou
cristã leiga é raridade! Se for uma pessoa casada, ainda mais raro — mesmo que
os leigos e leigas sejam a quase totalidade da Igreja!
Essas
constatações nos mostram como é urgente tomarmos consciência “da importância da
consagração batismal e da exigência de santidade do povo de Deus”[6]. De fato,
o que ainda causa problema é a dificuldade que temos em aceitar o valor e a
beleza da vocação batismal. Para muitas pessoas, o batismo não passa de um puro
ritual revestido de muita mágica e sem nenhum significado para a vida concreta
dos cristãos e cristãs[7].
A superação dessa mentalidade redutiva da vocação à santidade comporta a tomada de consciência de alguns elementos fundamentais. Antes de tudo, a certeza de que o Espírito do Senhor foi enviado a todos os batizados e batizadas.
“A vida espiritual de todo o Povo de Deus pode beber do mesmo espírito que não discrimina suas maravilhas segundo as categorias jurídicas, derramando-as com total prodigalidade e generosidade sobre todos aqueles e aquelas que, pelo batismo, foram enxertados no mistério de Cristo e passaram a encontrar nele o mais profundo e verdadeiro de sua identidade”[8].
Consequentemente, a santidade não é propriedade privada de nenhuma pessoa e de nenhum grupo.O segundo elemento refere-se à convicção de que a justificação realizada por Cristo não exclui ninguém, uma vez que todos pecaram e todos são justificados gratuitamente (cf. Rm 3,21-26). Além disso, todos os cristãos e cristãs, pelo batismo, “foram feitos verdadeiros filhos de Deus e participantes da natureza divina, e por isso mesmo verdadeiramente santos” (LG 40).
A
ideia de que a santidade é uma exclusividade de determinadas pessoas ou de
certos grupos não tem fundamento. Do mesmo modo, não podemos pensar a santidade
como uma categoria do futuro. Embora tenha existido sempre na comunidade cristã
a concepção de que “todos pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm
3,23), o Concílio Vaticano II “atribui o predicado da santidade não apenas à
Igreja escatológica, mas também à Igreja terrena”[9].
3.
Diversas formas de santidade
Reconhecendo
que a santidade é dom da Trindade para todas as pessoas, a LG põe em evidência
outro aspecto muito significativo. O Concílio afirma que cada pessoa cultiva de
forma diferente a mesma e única santidade, de acordo com os carismas recebidos
do Espírito (cf. LG 41). Isso é bastante significativo. Não só se afirma a
universalidade da santidade, mas também a legitimidade da diversidade dessa
mesma santidade[10]. De fato, “a santidade é, em cada um, uma vocação que não
pode ser senão pessoal, e cuja resposta é também pessoal. Deus não fabrica
santos em série”[11].
Tendo
presente esse dinamismo, a LG insiste em dizer que existe não só uma
diversidade da santidade relacionada com os três grandes grupos de vocação
específica (cristãos leigos e leigas, vida consagrada, ministério ordenado),
mas também de pessoa para pessoa. Dessa maneira, é totalmente legítimo que
alguém viva o chamado à santidade de forma única, sem precisar copiar nada de
outra, sem ser a fotocópia de outro santo ou santa.
A
afirmação da legítima diversificação do jeito de ser santo supõe outro aspecto
muito importante. A santidade não se dá “nas nuvens”, em “outro planeta”, fora
da realidade, mas no cotidiano da vida. Todas as pessoas, sem distinção alguma,
são chamadas a ser santas nas condições normais de sua vida, com base naquilo
que são e naquilo que fazem. A santidade é um dom que deve ser acolhido e
cultivado no tempo, no espaço, nas ocupações e nas circunstâncias em que nos
situamos (cf. LG 41). O cristão, a cristã, “não se santifica apesar dos deveres
de sua posição”, mas, “antes e principalmente, em e por estes deveres”[12].
Uma
vez salvaguardada a possibilidade e a legitimidade da diversidade da santidade,
a LG indica algumas características típicas da santidade de cada uma das
vocações específicas. Trata-se, é claro, de indicações genéricas e bem abertas,
uma vez que, como dissemos, cada pessoa viverá esse chamado de forma única,
segundo os dons recebidos do Espírito de Deus.
No tocante à santidade dos cristãos leigos e leigas, o Vaticano II destaca o significado do trabalho, da participação na construção do bem comum e da cidadania, do labor cotidiano, com suas alegrias e também com suas cruzes.
A
vida matrimonial ganha especial destaque, uma vez que é considerada um exemplo
para a construção da fraternidade. Já a vida consagrada é chamada a
santificar-se no seu carisma de ser paradigma do seguimento de Cristo casto,
pobre e obediente. Os ministros ordenados vivem a vocação universal à santidade
por meio do desempenho do seu ministério, o qual deve ter como característica
principal a caridade pastoral, ou seja, o serviço aos demais membros do povo de
Deus. Desta forma a LG, embora afirmando os pontos comuns da santidade, válidos
para todos os cristãos e cristãs, quis destacar também o específico, aquilo que
brota da diversidade, da diferença gerada pelo próprio Espírito de Deus (cf.
lCor 12,7).
Não podemos, porém, deixar de salientar um dado particular. Referindo-se ao multiforme exercício da única santidade, a LG quis dar um lugar privilegiado aos pobres, ou seja, àqueles “que vivem oprimidos na pobreza, na fraqueza, na doença e noutras tribulações, ou os que sofrem perseguições por amor da justiça” (LG 41f). Embora deixasse claro que a santidade não é exclusividade de nenhuma casta, o Concílio, seguindo a tradição bíblica[13], não hesita em afirmar que há uma santidade especial que pertence aos excluídos e excluídas.A LG deixou bem clara a convicção de que a Igreja deve seguir o exemplo de Cristo, o qual, além de se fazer pobre, quis ser o evangelizador dos pobres. Assim sendo, a santidade, dom de Deus para toda a humanidade, tem o seu referencial no mundo dos pobres. Sem opção verdadeira e preferencial pelos excluídos e excluídas (NÃO EXCLUSIVA), não existe caminho para a santidade. Todo aquele e aquela que realmente deseja viver a experiência da santidade terá necessariamente de ser sensível aos gritos dos deserdados deste mundo[14]. A santidade cristã só pode ser vivida na prática concreta da “religião da estrada”, daquela experiência de Deus que passa pela atenção aos que estão jogados e caídos à margem da nossa sociedade[15].
4.
Caminhos de santidade
Além
de apontar as diversas formas de santidade, a LG indica os caminhos, isto é, os
meios pelos quais a comunidade dos batizados e batizadas pode viver esse
chamado universal. O caminho principal é, sem dúvida alguma, aquele da prática
do amor, da caridade. O Vaticano II é muito enfático quando se refere a esse
fato: “O dom principal e mais necessário é a caridade, pela qual amamos a Deus
sobre todas as coisas e ao próximo por causa dele” (LG 42).
É bastante significativo que o Concílio fale de dom do amor, deixando entender que não se trata apenas de um esforço para praticar a caridade. O amor é uma dádiva divina, uma iniciativa do Pai, que a pessoa humana é chamada a acolher. A Trindade gratuitamente nos oferece o seu amor e propõe que gratuitamente o aceitemos. Não se trata de uma troca, como, aliás, dão a entender certas devoções espalhadas por aí e baseadas na questão do mérito. A visão conciliar, fundamentada biblicamente, elimina aquela “concepção bancária” de santidade, segundo a qual a pessoa vai acumulando “créditos” para a sua salvação, sempre a partir daquilo que faz.A vocação de toda pessoa humana é um convite a amar. Nós somos criados “no amor e para o amor”[16]. Esse chamamento tem o seu fundamento na iniciativa da Trindade, que nos amou primeiro (cf. 1Jo 4,10). Desse gesto estupendo de Deus brota a proposta para todo aquele e toda aquela que querem seguir Jesus: “Se Deus nos amou a tal ponto, também nós devemos amar-nos uns aos outros” (1Jo 4,11). Dessa forma o amor passa a ser o distintivo da vida cristã (cf. Jo 13,35) e a santidade, um apelo para sermos “sem defeito no amor” (Ef 1,4). “Não será por demais sublinhar a importância desta valorização da caridade.” Em relação a ela tudo é meio, tudo se mede por ela”[17].A LG afirma ainda que a prática do amor leva necessariamente a outras atitudes que podem ser sintetizadas, como o cultivo dos “mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus” (LG 42), em clara alusão à Carta aos Filipenses. Isso significa que a santidade, enquanto prática do amor e de um estilo de vida semelhante ao de Jesus, tem a sua dimensão ética. O dom recebido no batismo torna-se resposta humana, um modo concreto de viver a graça recebida ao longo da vida, da existência[18]. Responder ao chamado à santidade é assumir um “solene compromisso”[19] de ser presença que ajuda na transformação do mundo. A santidade é um convite a “fazer a diferença” num mundo onde existe a tendência a fazer tudo como propõe o mercado neoliberal. Falando simbolicamente, a santidade é o apelo a sermos sal, luz e fermento (cf. Mt 5,13-16; 13,33).
Todavia, lembra ainda a LG, a santidade não cresce e não frutifica se não for alimentada!
Por isso os cristãos e cristãs são convidados a ouvir a Palavra,
participar dos sacramentos, cultivar a vida de oração, viver de modo abnegado e
pôr-se a serviço dos irmãos e das irmãs. Talvez a novidade mais significativa
seja a referência à escuta da Palavra de Deus, uma vez que até então se
propunha um estilo de vida cristã sem praticamente nenhuma relação com a
Bíblia[20]. Muitos eram os atos de piedade, as devoções, as penitências,
enquanto a meditação da Sagrada Escritu¬ra era pouco cultivada. Palavra e
sacramentos estavam dissociados. Os textos sagrados tinham sido tirados das
mãos do povo. A própria hierarquia da Igreja, numa interpretação exagerada dos
decretos do Concílio de Trento, condenou como herética a afirmação de que o
estudo e o conhecimento da Escritura eram úteis e necessários para a vida
cristã. Chegou-se ao cúmulo de afirmar que a leitura da Bíblia não era para
todas as pessoas[21].
Além
desses caminhos já mencionados, a LG lembra ainda o significado do martírio,
dos “muitos conselhos evangélicos” e da pobreza evangélica. A referência aos
conselhos evangélicos, destacando-se a virgindade ou celibato, parece não ter
escapado do ranço pré-conciliar que atribuía a perfeição à vida monacal. Hoje
soa como muito estranha a afirmação da “singular estima” da Igreja pela
“continência perfeita”, considerada “sinal da caridade” e “fonte peculiar de
fecundidade espiritual” (LG 42c).
A pergunta legítima a ser feita é a seguinte: o matrimônio não deve ser também estimado? Também ele não é sinal de caridade e de fecundidade espiritual (cf. Gn 1,26-27)?
Por isso esse parágrafo, para ser completo e entendido
corretamente, precisa ser lido à luz de outros textos conciliares em que se
afirma a positividade e a beleza do casamento (cf. GS 47-52). Sem essa leitura
o texto em análise pode perder a sua força renovadora. A espiritualidade dos
cristãos leigos e leigas teria um caráter monástico e ficaria desprovida de
seus elementos específicos, o que certamente não estaria na mente da maioria
dos padres conciliares.
Por fim a LG recorda que o caminho da santidade passa pela renúncia à riqueza e pela acolhida do espírito de pobreza evangélica (LG 42e).
No seu retorno às
fontes bíblicas, o Vaticano II quis lembrar a todos os cristãos e cristãs que é
impossível conciliar riqueza e seguimento de Cristo (cf. Mt 19,23-26). Não se
podem abraçar as duas coisas ao mesmo tempo. Quem quiser amar uma coisa terá de
abandonar a outra (cf. Mt 6,24)! O Concílio não propõe uma santidade que se
afaste do mundo e da humanidade. Sugere apenas que ela seja cultivada a partir
da consciência da relatividade de determinadas coisas, de tal forma que isso
possibilite a comunhão, a fraternidade e a partilha.
5.
Algumas “provocações” para a Igreja do nosso tempo
A
leitura e o estudo do capítulo 5 da LG certamente trazem alguns questionamentos
para a Igreja dos nossos dias. A distância que nos separa do Vaticano II já
permitiu a criação de muitos vazios e lacunas. Para muita gente, o último
Concílio não diz mais nada. Em muitos lugares estamos assistindo a fenômenos
que parecem ignorar completamente esse evento eclesial. Nem parece que ele,
como afirmou João Paulo II, foi “a grande graça de que se beneficiou a Igreja
no século XX” ou constitui a “bússola segura” que vai orientar o nosso caminhar
neste novo século (cf. NMI 57). Por essa e outras razões convém agora
apresentar algumas “provocações” que o texto sobre a vocação universal à
santidade faz ao nosso atual jeito de ser Igreja.
Um primeiro questionamento diz respeito ao conceito de santidade. Não seria ele ainda muito arcaico e ultrapassado? Parece-nos que, na mentalidade da maioria das pessoas, a santidade ainda tem um sabor “angelical”. Ela é considerada como algo pouco humano.
A visão que se tem de santidade é bastante igrejeira e sem muita relação com a vida concreta, especialmente com a luta pela sobrevivência. Tem-se a impressão de que a santidade pregada nos púlpitos eletrônicos modernos tem cheiro de mofo e de muita alienação. Não é fascinação pela vida, não é resgate da beleza da criação e de tudo aquilo que Deus, ao criar, viu que era “muito bom” (Gn 1,31). Sente-se no ar um odor muito forte de maniqueísmo e de dualismo — especialmente proveniente de grupos fundamentalistas e neoconservadores. Está na hora de não mais confundir o santo, a santa, com o beato, o carola e o sujeito “barata-de-igreja”.
A santidade dos cristãos e
cristãs deve produzir um “mundo esplêndido”, bonito, sadio. Onde está escrito
que o santo e a santa devem ser confundidos com neuróticos e alienados?
Essa inquietação suscita outra. Por que ainda continuamos a privilegiar algumas castas, como se a santidade não fosse universal?
Não estaria na hora de revolucionar a prática da canonização de santos? Por que os cristãos leigos e leigas — que são maioria absoluta na Igreja — não são canonizados em igual número? Por que continuam sendo exceção? Por que não canonizar mais casais? Por que continuar privilegiando padres, frades e freiras?Além disso, parece estar na hora de mexer na “máquina burocrática” de “fazer santos”. Não é possível afirmar a universalidade da santidade quando ainda se exige muito dinheiro para “fazer” um santo! Desse jeito os pobres, especialmente os leigos e leigas, nunca vão ter oportunidade. Do mesmo modo, não é possível afirmar a normalidade da santidade quando ainda se exigem dois milagres extraordinários para se chegar a uma canonização. Não é suficiente o testemunho de vida? Por que pretender “milagres” quando o cotidiano da pessoa já foi um milagre? Disso se pode deduzir outro questionamento. Por que adiar a santidade para depois da morte? Não é possível reconhecer e apontar os santos e as santas que estão vivendo no meio de nós? Por que, como faziam as primeiras comunidades[22], não nos reconhecemos todos santos e santas, ou seja, gente que foi escolhida pelo Pai desde toda a eternidade (cf. Ef 1,4), pessoas chamadas à santidade (cf. Rm 1,7)? Não deveríamos propagar mais claramente a certeza de que já fomos santificados em Cristo Jesus e, portanto, já podemos ser considerados santos e santas (cf. 1Cor 1,2)? A solenidade de todos os santos e santas, celebrada pela Igreja no dia 1º de novembro, não deveria ser a festa de todos nós, discípulos e discípulas de Jesus? Somos ou não somos “um sacerdócio real, uma nação santa”, o povo que é “propriedade” do Senhor? (cf. 1Pd 2,9). Por que, então, ficar com medo de ser reconhecido como santo ou santa? E se isso tudo é verdadeiro, por que ainda temos medo de canonizar os santos e as santas que viveram no nosso tempo? Por que a escolha das pessoas a ser canonizadas ainda é marcada por certa ideologia de direita? Por que, com frequência, canonizam-se pessoas martirizadas pelas ditaduras de esquerda e não se faz o mesmo com os heróis brutalmente assassinados pelos regimes de direita? Por que, por exemplo, negar a nós, latino-americanos e caribenhos, o direito de termos reconhecidos oficialmente estes nossos mártires: São Romero, São Josimo, Santo Eugênio Lyra, Santo Dias da Silva e tantos outros? A lista desses mártires é bastante longa[23]. No entanto, reina o mais absoluto silêncio. Nenhum deles foi canonizado.
6.
Conclusão: “Sejam santos, porque eu sou santo” (Lv 19,2)
A vocação universal à santidade, tão bem resgatada pela LG, tem uma fundamentação bíblica. Pertence ao maravilhoso patrimônio que os cristãos e cristãs herdaram do judaísmo. A primeira carta de Pedro atesta isso com toda a clareza (cf. 1Pd 1,15-16).
Os escritos paulinos também são unânimes em afirmar que todos os
homens e todas as mulheres são chamados a ser santos e santas (cf. 1Cor 1,2).
Portanto, a ausência desse universalismo em nossa prática evangelizadora nega
profundamente a proposta do Livro Sagrado.
A celebração dos 40 anos da LG deveria nos ajudar a avaliar o caminho que temos feito até agora!
Seria muito bom que ela nos ajudasse a ousar e a acreditar
muito mais na possibilidade da santidade para todos os batizados e batizadas.
Aliás, quanto a isso, a LG foi muito mais corajosa. Ela estendeu a
universalidade da vocação à santidade a todos os homens e a todas as mulheres
da terra. De fato, como afirma o capítulo sobre o povo de Deus, a divina
providência não nega essa possibilidade a ninguém, nem mesmo àqueles e àquelas
que, sem culpa, ainda não chegaram ao conhecimento explícito da mensagem do
evangelho (cf. LG 13-16). A santidade é dom do Espírito Santo (cf. LG 39)
acolhido mediante a prática da caridade. Por isso mesmo, o risco de não chegar
à santidade só se verifica quando falta o amor (cf. LG 42). Nesse sentido, o
Vaticano II foi audacioso ao afirmar categoricamente que a pertença à Igreja
não é garantia de santidade. Alguém pode ser batizado, crismado, frequentador
habitual das igrejas, “católico de carteirinha”, mas, se “não persevera na
caridade”, corre o risco de não acolher e de não cultivar a santidade (cf. LG
14).
Temos, pois, grande tarefa pela frente: resgatar o verdadeiro significado e a verdadeira vivência da vocação universal à santidade. Infelizmente os nossos horizontes são ainda muito estreitos. Mas podemos aprender essa tarefa com aqueles e aquelas que prepararam, fizeram e viveram o Concílio Vaticano II. Essas pessoas acreditaram na possibilidade da universalidade da santidade.
Uma
dessas pessoas foi o Pe. Justino Russolillo, fundador da Sociedade das Divinas
Vocações (vocacionistas), que, ao lado de tantos outros, pode ser considerado
um precursor do Vaticano II. Já no início do século passado ele afirmava: “De
um modo geral tudo é divina vocação no mundo. Vocação à vida, vocação à fé,
vocação à santidade. Cada ser e cada estado digno do ser corresponde a uma
divina vocação”[24].
Somos chamados e chamadas a ir além, a perceber a santidade como “utopia da vocação cristã”[25]. Precisamos vê-la de forma ampla, irrestrita, ecumênica, num dinamismo que englobe toda a humanidade, todas as religiões, todos os homens e todas as mulheres de boa vontade. Somos convidados e convidadas a retomar o verdadeiro espírito da LG, deixando de lado a pretensão de querer pôr limites na ação e na bondade de Deus.
Se realmente queremos viver num cristianismo mais fiel à Palavra, temos de romper os confins de nossa família, de nossa Igreja, abrindo-nos para todos os lados, para todos os povos, para a universalidade da santidade. Toda atitude que procura restringir o conceito, a ideia, a experiência de santidade a um pequeno grupo, a uma parte da Igreja, não é certamente atitude divina[26]. Também aqui o Senhor nos diz:
“Avancem para
águas mais profundas” (Lc 5,4).
[1]
Cf. COMBLIN, J., O povo de Deus, Paulus, São Paulo, 2002; LIBÂNIO, J. B.,
“Concílio Vaticano II: eixos eclesiológicos numa abordagem pastoral”, em
Reflexões II/2 (2003), pp. 7-23; B. FORTE, La Chiesa icona delia Trinità. Breve
ecclesiologia, Queriniana, Bréscia, 1985, pp. 27-43; BUCKER, B. P., O feminino
da Igreja e o conflito, Vozes, Petrópolis, 1995, pp. 96-111.
[2]
Cf. ACERBI, A., Due ecclesiologie. Ecclesiologia giuridica ed ecclesiologia di
comunione nella “Lumen Gentium”, Dehoniane, Bolonha, 1975, pp. 13-105.
[3]
Cf. OLIVEIRA, J. L. M. de, Nossa resposta ao Amor. Teologia das vocações
específicas, IPV/Loyola, São Paulo, 2001, pp. 19-43.
[4]
Cf. LABOURDETTE, M., “A santidade, vocação de todos os membros da Igreja”, em
BARAÚNA, G. (org.), A Igreja do Vaticano II, Vozes, Petrópolis, 1965, p. 1.057.
[5]
Cf. BINGEMER, M. C. L., “As águas batismais e a vocação do cristão leigo”,
Convergência 366 (outubro 2003), pp. 459-476.
[6]
LABOURDETTE, M., “A santidade, vocação de todos os membros da Igreja”, op.
cit., p. 1.057.
[7]
Cf. OLIVEIRA, J. L. M. de, “A vocação batismal: fonte da comum dignidade e da
legítima diversidade”, em Vida Pastoral 228 (janeiro/fevereiro 2003), pp. 3-8.
[8]
BINGEMER, M. C. L., “As águas batismais e a vocação do cristão leigo”, op.
cit., p. 470.
[9]
BARREIRO, A., “Povo santo e pecador”. Ensaio sobre a dimensão eclesial da fé
cristã, a crítica e a fidelidade à Igreja, Loyola, São Paulo, 1994, p. 97.
[10]
OLIVEIRA, J. L. M. de, “Nossa resposta ao Amor”, op. cit., pp. 45-51.
[11]
LABOURDETTE, M., “A santidade, vocação de todos os membros da Igreja”, op.
cit., p. 1.064.
[12]
Ibidem.
[13]
Cf. 1Cor 1,27-28; 12,22-26; Gl 2,10.
[14]
Cf. DUPONT, J., “A Igreja e a pobreza”, em BARAÚNA, G. (org.), A Igreja do
Vaticano II, pp. 420-452.
[15]
Cf. BORTOLINI, J., Meditando com os pecadores e pecadoras do Evangelho, Paulus,
São Paulo, 2001, pp. 59-71.
[16]
CNBB, Batismo, fonte de todas as vocações. Texto-Base do Ano Vocacional 2003,
Brasília, 2002, nº 117.
[17]
LABOURDETTE, M., “A santidade, vocação de todos os membros da Igreja”, op.
cit., p. 1.067.
[18]
Cf. IPARRAGUIRE, I., “Natureza da santidade cristã e meios para consegui-la”,
em BARAÚNA, G. (org.), A Igreja do Vaticano II, pp. 1.074-1.077.
[19]
Ibidem, p. 1.075.
[20]
Cf. Ibidem, pp. 1.078-1.079.
[21]
Cf. DS 2479-2480.2710-2711; CASTILLO, J. M., Simboli di libertà. Analisi
teologica dei sacramenti, Cittadella, Assis, 1981, pp. 146-147.
[22]
2Cor 1,1; Ef 1,1; Fl 1,1; Cl 1,2.
[23]
Cf. INSTITUTO CENTRO-AMERICANO DE MANÁGUA, Sangue pelo povo. Martirológio
latino-americano, Vozes, Petrópolis, 1984.
[24]
RUSSOLILLO, G., “Sulla divina vocazione”, em Spiritus Domina 2/2 (1928), p. 1.
[25]
BINGEMER, M. C. L., “As águas batismais e a vocação do cristão leigo”, op.
cit., pp. 472-475.
[26]
RUSSOLILLO, G., Voi dunque pregate cosi: “Padre nostro… Edizioni Vocazioniste,
Roma, 1987, pp. 117-123.
Fonte:
vidapastoral.com.br
Dicastério para a Causa dos Santos - Constituição Apostólica 'Praedicate Evangelium'
Com
a promulgação da Constituição Apostólica 'Praedicate Evangelium', muda a
organização de algumas estruturas vaticanas: o novo Dicastério modifica a
precedente denominação de Congregação, cuja história, objetivos e 'balanço de
missão' apresentamos nos últimos meses.
Por Giancarlo
La Vella – Vatican News
Há
infinitas maneiras de definir a santidade. Uma delas é considerá-la um modelo,
de fato "o" modelo, da beleza de uma criatura humana. É isso que o
dicastério do Vaticano responsável pelo exame minucioso da vida dos candidatos
aos altares vem fazendo desde 1969, ano de seu nascimento: procurar as
características do Evangelho em suas características, para que todo cristão
possa vê-los como testemunhas credíveis e, sobretudo, imitáveis. Por trás da
proclamação de um santo há um esforço coletivo escrupuloso, que dura anos, às
vezes décadas, e requer a intervenção de várias habilidades e muitos custos (o
orçamento de 2021 do dicastério é de cerca de 2 milhões de euros). A
"fábrica dos santos" é uma expressão que "também pode ser
simpática, se entendida no sentido positivo, isto é, como um lugar onde se
trabalha muito para chegar à apresentação séria e honesta de pessoas
dignas" do título, observa o Prefeito da Congregação, Cardeal Marcello
Semeraro, que explica como funciona a estrutura.
A santidade é um chamado que o Senhor dirige pessoalmente a "todos os fiéis seja qual for sua condição ou estado" (Lumen Gentium), mas desde o início a Igreja sente a necessidade de reconhecer testemunhas exemplares e de aceitar "oficialmente" sua fidelidade à mensagem evangélica.
-Que papel a
Congregação para as Causas dos Santos desempenha a este respeito?
Como
nos recordou o Concílio Vaticano II, a santidade é certamente uma vocação
universal, para cada um e para todos. Quanto ao reconhecimento oficial da
santidade de um cristão individual, pode-se dizer que se trata de uma tradição
antiga. Desde os primeiros tempos, de fato, quando se espalhava a notícia de
algum mártir, ou de alguém que tinha vivido o Evangelho de forma exemplar, eles
eram propostos como modelos de vida para todo o povo e como intercessores junto
a Deus nas necessidades dos crentes. Para declarar a santidade de uma pessoa,
os procedimentos e normas canônicas variam, mas o núcleo fundamental é este: a
Igreja sempre acreditou na possibilidade de santidade de seus membros e que
eles deveriam ser conhecidos e propostos para veneração pública.
Quanto
à Congregação para as Causas dos Santos, ela segue o processo de beatificação e
canonização dos Servos de Deus, auxiliando os bispos na investigação sobre o
martírio ou virtudes heroicas ou senão a oferta da vida e milagres de um fiel
católico que em vida, na morte e após a morte gozou da reputação de santidade,
ou de martírio, ou de oferta de sua vida. É chamado Servo de Deus o fiel
católico cuja causa de beatificação e canonização foi iniciada e para o qual,
em qualquer caso, é sempre necessária uma autêntica, difusa e duradoura
"fama de santidade", ou seja, a opinião comum de que sua vida foi
íntegra, rica em virtudes cristãs e fecunda para a comunidade cristã.
-A
atividade do seu dicastério comporta um verdadeiro "trabalho de
equipe" no qual estão envolvidos postuladores, testemunhas, consultores,
teólogos, estudiosos, médicos, cardeais e bispos. Quantas pessoas são envolvidas
e como se articula o trabalho da Congregação em suas diversas fases?
As
novas normas para as Causas dos Santos, introduzidas em 1983, reduziram em
muito o tempo necessário para os processos de beatificação e canonização. Basta
pensar, por exemplo, que no passado, para iniciar o estudo da vida, virtudes ou
martírio de um Servo de Deus, era preciso esperar cinquenta anos após a sua
morte. Hoje, não é mais assim. A duração das Causas, entretanto, depende de
muitos fatores: alguns são intrínsecos às próprias Causas (complexidade da
figura dos candidatos, ou do período histórico em que viveram), outros externos
(como a disposição, preparação e a disponibilidade das pessoas que devem
trabalhar nelas: postuladores, colaboradores externos, testemunhas, etc.).
Cada
causa tem seus próprios números: as testemunhas ouvidas na fase diocesana podem
ser muitas dezenas, assim como os outros que intervieram e especialistas. Cada
processo de beatificação e canonização também tem seu próprio cronograma: os
das investigações, da escuta das testemunhas, da redação dos Positiones, do
exame pelos consultores teológicos e, segundo a causa, pelos consultores
históricos. Também, devem ser considerados os tempos dos especialistas médicos
quando se trata de examinar um possível milagre de cura. Tudo isto, se estas
passagens forem positivas, passa para a sessão ordinária dos membros da
Congregação, ou seja, dos cardeais e bispos. Uma vez terminado todo este
processo, a palavra final vai para o Papa, a cuja aprovação o Prefeito da Congregação
submete as diversas causas. Elas são realmente muitas (no momento, as que temos
em curso, na fase romana são quase mil e quinhentas, enquanto que as causas na
fase diocesana são mais de seiscentas) e o próprio fato de que nem todas
conseguem ir adiante no procedimento demonstra a seriedade dos procedimentos.
Porém isso não quer dizer que os que não são propostos para a veneração dos
fiéis não sejam figuras exemplares pelo seu testemunho de vida.
-O
grande número de canonizações e beatificações promovidas pela Congregação é um
indicador da vitalidade da Igreja, em cada época. Em média, em quantas causas
vocês trabalham e quantas são concluídas a cada ano?
O balanço destas últimas cinco décadas de atividade da Congregação não só é positivo, mas surpreendente. A racionalização dos procedimentos tornou possível aumentar o número de pessoas propostas para a veneração dos fiéis: elas são provenientes de todos os continentes e pertencem a todas as categorias do povo de Deus.O balanço espiritual e pastoral destes cinquenta anos desde a instituição da Congregação para as Causas dos Santos (1969) é singular: até 2020 o número total é de 3003 beatificações e 1479 canonizações. Anualmente, havendo normalmente duas sessões ordinárias por mês e em cada uma delas o exame de quatro causas, o número aproximado das que são concluídas em um ano é de 80-90. Para estes e outros dados, pode-se visitar o site da Congregação (www.causesanti.va), que oferece de forma ágil e completa todas as informações sobre a Congregação e sobre o caminho para a santidade. Atualmente, além dos principais documentos e publicações, o site contém mais de mil arquivos sobre os beatos e santos dos últimos sete pontificados, enriquecidos com fotos, citações, biografias, homilias, links externos e material multimídia.
-Muitas
vezes, vistos de fora, a mesma vitalidade que eleva aos altares modelos de vida
cristã é rotulada de "a fábrica de santos". Como se pode explicar
brevemente a linha de rigor seguida em relação a um candidato à beatificação e
canonização?
A expressão pode ser agradável, se entendida no sentido positivo, isto é, como um lugar onde muito trabalho é feito para chegar à apresentação séria e honesta de pessoas dignas de serem propostas como modelos de santidade. Embora o número de candidatos seja considerável, é importante acrescentar que o trabalho não se faz à custa da precisão, profundidade e autoridade.Partindo da "fama de santidade e de sinais" entre o povo de Deus, a investigação tem uma primeira fase na diocese (abertura do processo, coleta de testemunhos e de documentos, criação de um tribunal com especialistas em teologia e história). Uma vez trazido a Roma, a causa é designada a um relator que orientará o postulador na preparação do dossiê onde estão sintetizadas as provas reunidas na diocese a fim de reconstruir com segurança a vida, e de demonstrar as virtudes ou o martírio assim como a relativa fama de santidade e dos sinais dos quais goza o Servo de Deus. Esta é a Positio, que é então estudada por um grupo de Teólogos e, no caso de uma "Causa antiga" (ou seja, relativa a um candidato que viveu há muito tempo e para quem não há testemunhas oculares), também por uma comissão de Historiadores. Se estes votos forem favoráveis, o dossiê será submetido a um novo julgamento por parte dos Cardeais e Bispos da Congregação. Se, no final, isto também for favorável, o Santo Padre pode autorizar a promulgação do Decreto sobre a heroicidade das virtudes ou sobre o martírio ou senão sobre a oferta da vida do Servo de Deus, que assim se torna venerável: é-lhe reconhecido como tendo exercido em grau "heróico" as virtudes cristãs (teologais: fé, esperança e caridade; cardeais: prudência, justiça, fortaleza e temperança; outros: pobreza, castidade, obediência, humildade, etc.), ou de ter sofrido um autêntico martírio, ou tendo oferecido sua vida de acordo com as regras da Congregação), ou ter sofrido um autêntico martírio, ou ter oferecido a própria vida de acordo com os requisitos previstos pelos Dicastério.A beatificação é a etapa intermediária em vista da canonização. Se o candidato for declarado mártir, ele se torna imediatamente um Beato, caso contrário é necessário que seja reconhecido um milagre devido à sua intercessão. Geralmente, este evento milagroso é uma cura considerada cientificamente inexplicável, julgada como tal por uma Comissão médica composta por especialistas, tanto crentes como não crentes. Também se pronunciam sobre o milagre primeiro os consultores teólogos depois os Cardeais e Bispos da Congregação e o Santo Padre autoriza o relativo decreto. Para que a canonização ocorra, ou seja, para que ele seja declarado santo, deve ser atribuída ao Beato a intercessão eficaz de um segundo milagre, que ocorreu após a beatificação.Mais do que uma "fábrica" que produz santos em um fluxo contínuo, a Congregação é, então, o Dicastério da Cúria Romana que com séculos de experiência se especializou em reconhecê-los e que com grande diligência, habilidade e rigor científico realiza um processo que verifica se um fiel viveu uma vida de grande santidade, de modo a ser proposto como um modelo para a Igreja universal.
Na
exortação apostólica “Gaudete et exsultate”, o Papa fala da "classe média
da santidade". Como esses "santos da porta ao lado" podem ser
reconhecidos e oferecidos como exemplo para a comunidade dos crentes?
Gaudete et exsultate é um belo manifesto sobre o chamado à santidade no mundo de hoje, porque os santos são as testemunhas da possibilidade de viver o Evangelho; não somente os já beatificados ou canonizados, mas também os que o próprio Papa chama de "os santos da porta ao lado" que vivem perto de nós e "são um reflexo da presença de Deus": "pais que criam seus filhos com tanto amor, homens e mulheres que trabalham para levar pão para casa, religiosas idosas que continuam a sorrir" (n. 7) em um mundo que já não sabe mais esperar e é indiferente diante do sofrimento dos outros.O teste da santidade da Igreja é precisamente a vida cotidiana feita de pequenos gestos.
A santidade da "porta ao lado" é aquela que vivem todos os dias os cristãos que, em todas as partes do mundo, testemunham o amor de Jesus com o risco de suas próprias vidas e sem nunca levar em conta seus próprios interesses particulares.Nos santos, se realiza a mais bela e bem-sucedida forma de humanidade. Na Exortação Gaudete et Exsultate, o Papa escreveu que a santidade mostra a "face mais bela da Igreja" (n. 9). Podemos também dizer que, nas últimas décadas, a veneração dos santos voltou à vanguarda na vida da Igreja, que reconhece a necessidade de seu testemunho para a comunidade crente. A "contemporaneidade" de um santo, de fato, não é tanto dada pela proximidade cronológica - mesmo que as causas concluídas ou em andamento de nossos beatos e santos contemporâneos sejam muitas - mas por ser uma figura completa, rica de paixão humana e cristã, no desejo do sobrenatural, na fome de justiça, no amor a Deus e na solidariedade a cada irmão.
Com
as novas normas introduzidas em 2016, Francisco recomendou vigilância na
administração dos bens e na contenção das despesas das causas. Existe também um "fundo de
solidariedade" para os casos em que haja dificuldades em sustentar os
custos. Como as indicações do Pontífice foram recebidas e implementadas no seu
balanço de missão?
A
causa de beatificação é um trabalho complexo e articulado em vários aspectos.
Como tal, envolve um certo custo devido ao trabalho das comissões, a impressão
dos documentos, as reuniões dos especialistas (historiadores e teólogos
encarregados do estudo da documentação ou médicos com relação aos milagres). O Dicastério
está sempre atento à contenção de gastos, para que a questão econômica não seja
um obstáculo para a continuação das Causas. Portanto, as normas administrativas
aprovadas pelo Santo Padre em 2016 que garantem transparência e regularidade
administrativa caminham neste sentido. Também foi criado nosso "Fundo de
Solidariedade" na Congregação para as Causas destinado aos que têm menos
recursos. Atualmente estamos estudando outras formas de apoio para estes casos.
Na
sociedade "líquida" teorizada por Bauman, a santidade aparece cada
vez mais como uma escolha contracorrente. Quais são os novos desafios que a
Congregação é chamada a enfrentar a fim de repropor ao mundo o "fascínio da
radicalidade evangélica"?
Vivemos nesta "sociedade líquida", conscientes das oportunidades, mas também dos riscos. A Igreja não é nova nessas armadilhas para a fé e a credibilidade cristã. Já no século II, os cristãos se opunham à fé em Jesus, o Messias; a mesma objeção que, como relata São Justino em seu Diálogo com Trifão, já estava surgindo durante a sua vida pública.
"Mas como é possível que o Messias já tenha vindo se nada mudou, se a paz não veio, se Israel ainda é escravo dos romanos, se o mundo ainda é como era antes"? Os cristãos responderam: "É verdade, sim, muitas coisas são como antes, não mudaram, mas, se você quer realmente olhar bem a realidade, você também pode observar novidades maravilhosas e extraordinárias, como, por exemplo, a fraternidade entre os cristãos, a comunhão de bens, a fé, a coragem nas perseguições, a alegria nas tribulações. Pode-se ver coisas maravilhosas.
O Reino de Deus, é claro, ainda não chegou em sua plenitude definitiva, chegou como em um germe, em uma semente, mas chegou com seriedade e está crescendo, está se desenvolvendo no meio das comunidades cristãs". Os santos são precisamente as sementes amadurecidas que dão muitos frutos, de acordo com a parábola do Evangelho.A santidade é sempre a mesma, fundamentalmente, mas é sempre nova em suas figuras concretas, como recordou o Concílio Vaticano II (Lumen Gentium, 41); assume diferentes aspectos nos mártires, nas virgens consagradas, nos eremitas, nos monges, nos pastores da Igreja, nos príncipes das nações, nas ordens mendicantes, nos missionários, nos contemplativos, nos educadores, nos santos da caridade social. Basta olhar a lista e as figuras dos santos destes últimos cinquenta anos - desde que a Congregação para as Causas dos Santos foi criada - para ver o quanto as sementes do Concílio que apontavam para a santidade como vocação universal, e não o privilégio de uns poucos escolhidos, germinaram e amadureceram. A única santidade, que é reflexo da de Cristo, imprime em cada um uma marca irrepetível e pessoal; assim como é o amor: único e muito pessoal.
Quanto
aos desafios, os da Congregação são os mesmos que os da Igreja e sua presença
no mundo. A Igreja é uma fonte de credibilidade tanto para a santidade objetiva
da fé, dos sacramentos, dos carismas, quanto para a santidade subjetiva dos
cristãos. É o que professa o artigo do Símbolo Apostólico: "Creio ... na
comunhão dos santos", que significa a comunhão dos bens santos e dos
homens santos. Todo santo é pelo crescimento e unidade de todo o corpo da
Igreja; todo santo está consciente de que sua tarefa é uma missão da Igreja. Os
santos são figuras completas, vivem da paixão humana e cristã, do desejo pelo
sobrenatural, mas também da fome e da sede de justiça, do amor a Deus e da
solidariedade para com cada irmão. O povo cristão intuitivamente percebe a credibilidade
da fé em Jesus Cristo, referindo-se tanto à sua história biográfica como à sua
presença contínua na Igreja, especialmente nos santos.
Fonte:vaticannews.va
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https://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/es/apost_letters/1985/documents/hf_jp-ii_apl_31031985_dilecti-amici.html
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