A controvérsia
iconoclasta teve como uma de suas conseqüências um maior distanciamento da
Itália e do lmpério bizantino.Esse afrouxamento
religioso, administrativo e político foi um dos antecedentes do cisma de 1054
entre orientais e ocidentais. Estudemos agora o debate iconoclasta; este
ocorreu numa época em que os principais artigos da fé tinham acabado de ser
formulados (em 681 o monotelitismo, fora condenado; ver capítulo 10); versava
sobre uma prática tradicional dos cristãos.
Os inícios da
controvérsia
Já os primeiros
cristãos usavam imagens nos lugares de culto, nos cemitérios e nas catacumbas.
Sabiam que a proibição de fazer imagens em Ex 20,4 era contingente ou devida ao
perigo de idolatria que ameaçava o povo de Israel cercado de nações pagãs.
Ademais o fato de que Deus apareceu sob forma visível no mistério da Encarnação
parece um convite a reproduzir a face humana do Senhor e dos seus amigos.As primeiras imagens
eram inspiradas pelo texto bíblico (cordeiro, Bom Pastor, pomba, peixe, âncora,
Daniel, Moisés); mas podiam também representar o Senhor, a Virgem Maria, os
santos Apóstolos e mártires. Desde os inícios da arquitetura sacra, as igrejas
foram enriquecidas com imagens tanto a título de ornamentação quanto a título
de instrução dos iletrados. No século IV, ouve´se uma ou outra voz contrária às
imagens; assim a do concílio regional de Elvira (cerca de 306).O Papa S. Gregório
Magno († 604), porém, escrevia a Severo, bispo de Marselha, que mandara
destruir imagens por causa do perigo de falso culto: “Era preciso não as
quebrar, pois as imagens não foram colocadas na igreja para ser adoradas, mas
apenas para instruir as mentes dos ignorantes” (ep. 9,105). O culto das imagens
foi´se ampliando na Igreja, principalmente no Oriente; os monges e os simples
fiéis muito as estimavam. Todavia no início do século VIII acendeu´se uma
controvérsia sobre as mesmas, que durou mais de um século (com breve pausa) e
deu ocasião à violência de toda espécie.
A luta foi aberta pelo Imperador Leão
III o Isáurico (717´741). Vejamos em que circunstâncias:
Em 723 o califa Yezid
mandou destruir todas as imagens dos templos e casas de seus súditos, quer
muçulmanos, quer cristãos. Maomé mesmo não proibia as imagens, mas os seus
sucessores o fizeram. ´ A proibição do califa Yezid provocou entre os cristãos
um movimento iconoclasta, que se comunicou ao Imperador e a diversos bispos.As razões que devem ter
movido o monarca, foram, além da influência de judeus e muçulmanos, a própria
personalidade do Imperador. Este queria reorganizar o Império promovendo a
unidade religiosa ´ condição da unidade política ´ no reino; ora as imagens
eram um ponto de discórdia entre judeus e maometanos, de um lado, e cristãos,
do outro lado. Leão III tinha índole fortemente absolutista e cesaropapista;
dizia textualmente que era “Imperador e Sacerdote”; devia, portanto, subordinar
ao seu poder a Igreja e, em particular, os monges, sempre ciosos da liberdade.
Quem considera esta tendência do Imperador, há de reconhecer que a defesa das
imagens por parte dos católicos era não somente uma questão de ortodoxia, mas
também o desejo de afirmar a independência da Igreja frente ao despotismo
imperial. A luta ardente Por conseguinte, em 726 Leão III investiu contra as
imagens por palavras e gestos violentos. Procurou o apoio do Patriarca Germano
de Constantinopla, que lhe resistiu. Escreveu também ao Papa Gregório II, ameaçando
depô´lo, caso defendesse as imagens.Gregório em duas cartas
condenou a conduta do Imperador, dizendo´lhe que a questão era da competência
dos bispos. Ao saberem da imposição do Imperador, as populações do Norte da
Itália teriam eleito novo Imperador se o Papa não as tivesse dissuadido. Havia
na época motivos de animosidade entre bizantinos e ocidentais: o Império
acabrunhava de impostos a Itália; mais de uma vez, funcionários do Imperador
haviam atentado contra a vida do Papa; Gregório II, porém, manteve´se leal e
exortou os italianos à sujeição. Também os habitantes da Grécia se revoltaram,
proclamando um anti´Imperador, Cosmas; mandaram a Constantinopla uma frota
numerosa, que foi vencida com seus chefes. Isto tudo só contribuía para irritar
cada vez mais o Imperador. Em 730, Leão III depôs o Patriarca Germano e
conseguiu a eleição de Anastásio, iconoclasta. Este logo publicou um edito
contra as santas imagens; clérigos, monges e monjas foram decapitados e
mutilados.Em 731 o Papa Gregório
III convocou um Sínodo em Roma, que puniu com a excomunhão quem combatesse as
imagens. Leão III, exasperado, mandou uma frota à Itália, que foi destruída no
Mar Adriático por violenta tempestade (732); confiscou os bens da Igreja Romana
na Calábria e na Sicília e, a quanto parece, quis subtrair à jurisdição de Roma
territórios ocidentais, que ficariam sujeitos ao Patriarcado de Constantinopla.
O filho de Leão III, Constantino V Coprônimo, subiu ao trono em 741. Queria
convocar um Concílio para decidir a questão; antes, porém, escreveu um tratado
de (índole iconoclasta, que chegava a por em xeque definições dos Concílios de
Efeso e Calcedônia a respeito do mistério da Encarnação: por exemplo, Maria não
devia ser dita “Mãe de Deus”, mas apenas “Mãe de Cristo”. O Concílio convocado
pelo Imperador reuniu´se em 754 e em Constantinopla com a presença de 338
bispos, sem o Papa nem os Patriarcas orientais. Declarou o culto das imagens
obra de Satã, e nova idolatria. Tal Concíclio não era legítimo; por isto, foi excomungado
pelo Papa Estevão III em 769. Em conseqüência, a perseguição aos fiéis
ortodoxos se tornou bárbara: em todas as igrejas as imagens foram removidas ou
substituídas por motivos profanos (árvores, pássaros...).Os monges eram quase os
únicos a opor resistência: muitos mosteiros foram destruídos ou transformados
em quartéis, arsenais.... Fez´se tudo para tornar o monaquismo odioso aos
cristãos: foi proibido o hábito monásticos; os iconoclastas procuraram seduzir
os monges para prevaricação com mulheres; muitos tiveram os olhos crivados, a
barba queimada, os cabelos arrancados.... A situação era comparável à dos
piores dias do paganismo. Finalmente Constantino V morreu em 775,
recomendando´se à Mãe de Deus; da qual fora adversário. Seu filho Leão IV
mostrou´se mais tolerante que seu pai, mas não revogou os decretos anteriores.
Faleceu em 780, sucedendo´lhe a Imperatriz Irene como regente do filho
Constantino VI.Irene era piedosa,
amiga das imagens e dos monges, embora ambiciosa. Permitiu logo o culto das
imagens e, a conselho dos Patriarcas Paulo e Tarásio de Constantinopla, e de
acordo com o Papa Adriano, a regente convocou um Concílio ecumênico. Este, de
fato, se reuniu em 787, com a presença de dois legados papais, em Nicéia. Foi o
sétimo ecumênico e o segundo de Nicéia, freqüentado por 350 bispos. Notemos que
a primeira sessão desse Concílio se reuniu já em 786 em Constantinopla, mas
teve que se dissolver, porque Os militares, iconoclastas, apoiados por alguns
bispos, impediram os trabalhos, que teriam sido um triunfo da ortodoxia. Em
Nicéia, o falso Concílio de 754 foi rejeitado; a intercessão dos Santos e o
título “Mãe de Deus” foram reabilitados.Os conciliares
declararam, apoiados na tradição, que às imagens de Cristo, de Maria Virgem,
dos anjos e dos Santos convém uma veneração honorífica com lamparinas, incenso,
inclinações, pois essa veneração recai sobre o protótipo (ou a pessoa
representada); ao contrário, a verdadeira adoração compete a Deus só. A última
sessão desse Concílio realizou´se em Constantinopla, sob a presidência da
Imperatriz regente e de seu filho, que assinaram a definição conciliar; isto
lhes valeu as aclamações dos padres conciliares e dos fiéis, dirigidas ao novo
Constantino e à nova Helena.25 As decisões de Nicéia II ficaram em vigor no
Oriente durante quase trinta anos, ou seja, até 813. Ecos tardios e fim No
Ocidente reinava Carlos Magno.O Papa Adriano procurou
fazer que o monarca reconhecesse os decretos de Nicéia II; mas o soberano se
lhes opôs, porque ´ era ambígua ou errônea a tradução latina das atas de Nicéia
II; Os latinos conheciam cada vez menos o grego; por isto deram a entender que
o culto de adoração, devido exclusivamente à SS. Trindade, havia de ser
prestado às imagens; ´ reinava forte tensão política entre o Ocidente e
Bizâncio ´ a ufania de Carlos Magno não lhe permitia reconhecer um Concílio do
qual não tivessem participado bispos francos. O rei então convocou um Concílio
de 300 bispos francos para Francoforte em 794. Sob a presidência de Carlos, os
conciliares condenaram as decisões do Niceno II.O Papa Adriano I, que
defendia o Concílio de 787, tomou uma atitude de reserva e prudência para
evitar ulteriores amarguras ou mesmo represálias da parte do monarca. Em breve,
porém, também no Oriente foram atacadas as decisões do Niceno II. O Imperador
Leão V em 815 renovou o iconoclasmo, atribuindo ao culto das imagens as
desgraças do Império na guerra contra os sarracenos. Os decretos de 754 foram
postos de novo em vigor; Os monges, mais uma vez, foram especialmente
atingidos. Como na primeira fase da disputa se distinguira São João Damasceno
(†749)qual campeão da ortodoxia, nesta segunda etapa sobressaiu o monge Teodoro
de Studion, intrépido entre os maus tratos, a flagelação e o exílio.A perseguição durou
cerca de três decênios. Paralelamente à primeira fase do iconoclasmo, depois de
três imperadores heterodoxos, surgiu uma mulher, a Imperatriz viúva Teodora,
como regente de seu filho menor Miguel III; Teodora sempre fora amiga das
imagens; conseguiu que um sínodo em Constantinopla (843) reabilitasse o culto
das mesmas. Para a perpétua recordação deste feito, os gregos introduziram no
seu calendário a “grande festa da ortodoxia”, que todos os anos, no primeiro
domingo da Quaresma, comemorava esta vitória e todas as demais vitórias levadas
sobre as heresias na Igreja. Sabe´se que até hoje os orientais dedicam grande
veneração aos seus ícones, símbolos de valores transcendentais. O ardor da nova
discussão comunicou´se também ao Ocidente.Em 824 o Imperador
Miguel II mandou uma legação ao rei Luís o Piedoso dos francos convidando´o a
uma ação comum iconoclasta. Luís, com a licença do Papa Eugênio II, em 825
reuniu bispos e teólogos em Paris a fim de estudarem o assunto. Essa assembléia
manifestou´se no sentido do Concílio de Francoforte (794), que, aliás, tomou
posição contrária ao Niceno II, mas em termos assaz ambíguos, como se depreende
desta fórmula: as imagens não devem ser nem adoradas nem veneradas nem
destruídas, mas hão de ser conservadas em memória daqueles ou daquilo que
representam. ´ Não se sabe qual tenha sido a atitude do Papa diante deste
pronunciamento de Paris. Finalmente o bibliotecário Anastásio refez a tradução
das atas do Concílio de Nicéia II sob o Papa João VIII (872´882). Isto permitiu
que as determinações conciliares fossem finalmente aceitas no Ocidente; grande
parte da problemática se achava na deficiência de tradução. Como se percebe, a
veemência e a duração da controvérsia iconoclasta se devem ao cesaropapismo dos
Imperadores.Os Papas perceberam que
nada mais tinham a esperar dos Imperadores Bizantinos, pois, desde a época do
arianismo(século IV), haviam freqüentemente favorecido as heresias e
perseguidos os pastores e fiéis ortodoxos; as suas intervenções dogmatizantes
eram, muitas vezes, movidas por razões políticas. Pode´se, pois, dizer que o
iconoclasmo se ligam intimamente a origem do Estado Pontifício, a proclamação
do Império Romano no Ocidente e, de maneira mais remota, mas não menos real, o
cisma grego de 1054; por mais de um século Oriente e Ocidente tinham estado em
dissensão e, quando em 843 a luta iconoclasta terminava, já Fócio, o campeão do
cisma, aparecia na corte da Imperatriz Teodora, para em breve subir à cátedra
patriarcal de Constantinopla.Com toda a razão,
Teodoro de Studion, um dos últimos grandes católicos de Bizâncio, clamava o
Papa:
“Salva´nos, arquipastor da Igreja que está debaixo do céu; pereceremos!”
D. Estevão Bettencourt - OSB
As Heresias
Cristológicas
(D.ESTEVÃO BETTENCOURT,
OSB)
Após verificar que o
Filho de Deus é verdadeiro Deus com o Pai e o Espírito Santo, a atenção dos
teólogos devia voltar´se mais detidamente para a questão: como Jesus pode ser
autêntico Deus e autêntico homem? Como se relacionam entre si a Divindade e a humanidade
de Jesus? A resposta a estas perguntas exigiu grande esforço por parte dos
estudiosos, que a formularam em quatro etapas:
1) a fase apolinarista;
2) a fase nestoriana;
3) a fase monofisita;
4) a fase monotelita.
A seguir, estudaremos
as três primeiras destas etapas:
O Apolinarismo
Em plena controvérsia
ariana, o Bispo Apolinário de Laodicéia (Síria), 310´390, mostrava´se fervoroso
defensor do Credo niceno contra os arianos, mas afirmava que em Cristo a
natureza humana carecia de alma humana; tomava ao pé da letra as palavras de S.
João 1,14: “O Lógos se fez carne”, entendendo carne no sentido estrito, com
exclusão de alma. O Lógos de Deus faria as vezes de alma humana em Jesus, isto
é, seria responsável pelas funções vitais da natureza humana assumida pelo
Lógos. Os argumentos em favor desta tese eram os seguintes: duas naturezas
completas (Divindade e humanidade) não podem tornar´se um ser único; se Jesus
as tivesse, Ele teria duas pessoas ou dois eu ´ o que seria monstruoso. Além
disto, dizia, onde há um homem completo, há também o pecado; ora o pecado tem
origem na vontade; por conseguinte, Jesus não podia ter vontade humana nem a
alma espiritual, que é a sede da vontade. Apolinário expôs suas idéias no livro
“Encarnação do Verbo de Deus”, que ele apresentou ao Imperador Joviano e que os
seus discípulos difundiram. ´ Foram condenadas num sínodo de Alexandria em 362;
depois, pelo Papa S. Dâmaso em 377 e 382 e, especialmente, pelo Concílio de
Constantinopla I (381). Verificando a oposição que lhe faziam bons teólogos,
Apolinário limitou´se a negar a presença de mente (nous) humana em Jesus. S.
Gregório de Nissa († 394) e outros autores lhe responderam mediante belo
princípio: “O que não foi assumido pelo Verbo, não foi redimido” ´ o que quer
dizer: Deus quer santificar e salvar a natureza humana pelo próprio mistério da
Encarnação ou pela união da Divindade com a humanidade; se pois, a humanidade
estava mutilada em Jesus, ela não foi inteiramente salva. Em Antioquia,
fundou´se uma comunidade apolinarista, tendo à frente o Bispo Vital. Por volta
de 420 esta foi reabsorvida pela Igreja ortodoxa, mas nem todos os seus membros
abandonaram o erro, que reviveu, de certo modo, na heresia monofisita.
O Henotikón e o
Teopasquismo
Vinte a cinco anos após
o Concílio de Calcedônia, em 476, deu´se nova investida dos monofisitas contra
a ortodoxia. Com efeito; os Patriarcas Pedro Mongo, de Alexandria, e Acácio de
Constantinopla, adeptos do monofisismo, redigiram um Símbolo de fé que condenava
tanto Nestório quanto Eutiques; rejeitava o Concílio de Calcedônia e afirmava
que as normas de fé deveriam ser o símbolo niceno´constantinopolitano e as
definições do Concílio de Éfeso (431).Tal fórmula de 476
podia ser interpretada de diversas maneiras. O Imperador Zenão promulgou esse
símbolo de fé, dito Henotikón (Edito de União), com o vigor de lei do Estado.
Assim esperava atingir a unidade religiosa dentro do Império. Infelizmente,
porém, causou mais acesas divisões. Muitos católicos e os monofisitas mais
extremados recusaram obedecer ao Imperador por causa da ambigüidade do
Henotikón. Ao saber das manobras do Imperador, o Papa Félix III enviou legados
a Constantinopla para pedir a Zenão, e ao Patriarca Acácio fidelidade ao
Concílio de Calcedônia.Como fossem vãs essas
solicitações, o Papa resolveu depor Acácio, Patriarca de Constantinopla. Tal
medida era muito grave, pois significava ruptura com os cristãos orientais em
geral e com o Imperador, que os queria dirigir no sentido do monofisismo. O
Papa, porém, foi corajoso no cumprimento do dever de preservar a reta fé. A
ruptura durou 35 anos (484´519). Foi chamada “cisma acaciano”, durante o qual o
monofisismo se propagou amplamente entre os orientais. Zenão morreu em 491,
tendo por sucessor o Imperador Anastásio (491´518), também simpático aos
monofisitas. Por isto, as conversações que o Papa encaminhou com o monarca,
foram infrutíferas. A situação se tornou ainda mais sombria por causa da
questão teopasquita. Com efeito; a liturgia grega cantava a Triságion (três
vezes santo) nos seguintes termos: “Santo (hágios) Deus, Santo Forte, Santo
imortal, tem piedade de nós”. Ora o bispo monofisita Pedro Fulão de Antioquia
acrescentou´lhe as palavras “que foste pregado na cruz por cause de nós”. O
Imperador Anastásio mandou recitar a fórmula ampliada em Constantinopla; donde
resultou grande agitação. Diziam alguns monges e fiéis: “Um16 da Santíssima
Trindade padeceu na carne”; foram chamados teopasquitas17.A fórmula em foco podia
ser entendida segundo a ortodoxia: a segunda Pessoa da SS. Trindade, tendo´se
feito homem, padeceu na carne de Jesus. Mas, como a origem desses dizeres era
monofisita, os ortodoxos desconfiaram dos mesmos, de mais a mais que os
monofisitas lhes favoreciam calorosamente. Morto o Imperador Anastásio,
sucedeu´lhe Justino (518´527), que se empenhou por restabelecer a comunhão com
a Sé de Roma. O Papa Hormisdas
(514´523) acolheu o propósito de Bizâncio e mandou legados a esta cidade com
uma fórmula de união dita “Livro da Fé do Papa Hormisdas”: esta proclamava o
símbolo de fé calcedonense e as cartas dogmáticas de Leão Magno; renovava o
anátema sobre Nestório, Eutiques, Dióscoro e outros chefes monofisitas; além
disto, declarava que, conforme a promessa de Cristo a Pedro em Mt 16,16´19, a
fé católica se conservava intacta na Sé de Roma; por isto os fiéis deviam
obediência às decisões tomadas por esta. Era assim professado o primado do Papa
em 515. O Patriarca João II, de Constantinopla, os bispos e os monges presentes
nesta cidade assinaram tal fórmula. Estava terminado o cisma. O monofisismo
perdeu muito da sua voga, mas as controvérsias continuaram.
Os Três Capítulos
O Imperador Justiniano
(527´565) foi homem de grande ideal, que tencionou dar ao Império um período de
fausto como não o tivera até então. Era, ao mesmo tempo, prepotente, de modo
que exerceu forte cesaropapismo. Compreende´se então que as controvérsias teológicas
tenham merecido sua zelosa atenção. O Imperador, querendo conciliar os ânimos,
só fez provocar maiores tumultos. O bispo Teodoro Asquida de Cesaréia, muito
influente na corte, sugeriu ao Imperador que condenasse três nomes de autores
antioquenos tidos como inspiradores do nestorianismo; dizia que bastaria essa
medida para obter a volta dos monofisitas. A comunhão da Igreja
Universal. Esses três nomes constituíram Três Capítulos, a saber: 1) Teodoro de
Mopsuéstia († 428), sua pessoa e seus escritos; 2) os escritos de Teodoreto de
Ciro († 458) contra Cirilo e o Concílio de Éfeso; 3) a carta do bispo Ibas de
Edessa († 435) ao bispo Mário de Ardashir em defesa de Teodoro de Mopsuéstia e
contra os anatematismos de Cirilo. O Imperador acolheu a proposta e publicou um
edito que anatematizava os Três Capítulos em 543. Este decreto dividiu os
ânimos, pois não se viam claramente os erros pretensamente cometidos pelos três
autores. Justiniano, porém, obrigou o Patriarca Menas e os bispos orientais a
assinar o anátema. Os ocidentais deviam seguir´lhes o exemplo, tendo o Papa
Vigilio à frente. Este relutou; por isto o Imperador mandou buscá´lo de Roma
para Constantinopla. Um ano após sua chegada, Vigílio em 548 escreveu o
ludicatum, em que condenava os Três Capítulos, ressalvando, porém, a autoridade
do Concílio de Calcedônia. O gesto do Papa causou indignação entre os
ocidentais, principalmente no Norte da África, pois era uma estrondosa vitória
do cesaropapismo.Em conseqüência, o Papa
e o Imperador em 550 decidiram convocar um Concílio Ecumênico para resolver o
caso; entrementes nenhuma inovação seria praticada. Todavia em julho de 551
Justiniano repetiu o anátema sobre os Três Capítulos ´ o que provocou ruptura
com o Papa Vigílio, que teve de procurar asilo em igrejas de Constantinopla e
Calcedônia. A respeito do Concílio, o Papa e o Imperador já não concordavam
entre si.Por isto Justiniano
convocou o Concílio por sua exclusiva iniciativa. Reunido sob a presidência de
Eutíquio, novo Patriarca de Bizâncio, renovou a condenação dos Três Capítulos
(maio e junho de 553). Vigílio então em 13/05/553, no decurso do próprio
Concílio, publicou o Constitutum que se opunha à condenação dos Três Capítulos.
Justiniano não aceitou a nova posição do Papa e mandou cancelar o nome de
Vigílio nas orações da Liturgia. Finalmente, sob o peso das pressões e da
doença, o Papa em dezembro de 553 retirou o seu Constitutum e aderiu às
decisões do Concílio de Constantinopla de 553.Num segundo Constitutum
de 23/02/554, expôs as razões da sua atitude. Em conseqüência, o Imperador
permitiu´lhe voltar para Roma; todavia morreu em viagem (555). Era vítima da
sua inconstância de caráter.Os Papas que lhe
sucederam, a começar por Pelágio I (556´561), reconheceram o Concílio de 553
como ecumênico; é o de Constantinopla II. As dioceses do Ocidente aos poucos
também o foram reconhecendo, embora tivessem consciência de que significava uma
humilhação para o Papado. Notemos que as hesitações do Papa Vigílio não
versavam sobre assuntos de fé propriamente dita, mas sobre a oportunidade ou
não de se condenarem três nomes de escritores antigos. ´ O episódio também é
interessante por evidenciar quanto era prestigiada a Sé Romana; o Imperador
quis absolutamente ganhar o consenso do Papa Vigílio; por isto mandou buscá´lo
em Roma e pressionou´o repetidamente para que subscrevesse ao decreto imperial,
como se este precisasse da assinatura do Papa para ser válido.
Monergetismo e
monotelitismo
Os monofisitas
insistiam em se auto´afirmar. Por isto a heresia reapareceu no século VII sob
nova forma. O Patriarca Sérgio de Constantinopla desde 619 ensinava que em
Jesus havia uma só enérgeia ou uma só capacidade de agir (monergetismo); a
capacidade humana estaria absorvida na divina e não teria suas expressões
naturais. O Imperador Heráclio (610´641) aceitou a nova fórmula e conseguiu
assim reconciliar grupos monofisitas com o Império.Todavia o monge
palestinense Sofrônio resolveu resistir à nova doutrina, denunciando´a como
monofisismo velado. O Patriarca Sérgio de Constantinopla deixou então de falar
de uma só faculdade operativa, para afirmar uma só vontade (a Divina tendo
absorvido a humana) em Jesus (monotelitismo). Muito habilmente Sérgio tentou
ganhar os favores do Papa Honório I (625´638); este, tendo recebido informações
unilaterais, escreveu duas cartas ao Patriarca de Constantinopla, em que aderia
genericamente à sua posição, embora não compartilhasse propriamente nem o
monergismo nem o monofisismo; para evitar escândalos ordenava que não se
falasse de uma ou duas energias. Levando adiante a causa
de Sérgio, o Imperador Heráclio em 638 promulgou a profissão de fé dita
“Ectese”, redigida pelo Patriarca, que reafirmava o monotelitismo. Os bispos
orientais a aceitaram quase unanimemente, ao passo que os sucessores do Papa
Honório (morto em 638) a condenaram.O Imperador Constante
II (641´648), sobrinho de Heráclio, retirou a “Ectese”, mas, aconselhado pelo
Patriarca Paulo de Constantinopla, publicou novo edito dogmático, chamado
Typos, em 648, que proibia falar de uma ou duas vontades em Cristo. O monarca
tencionava assim pôr fim à contenda. Ora no Ocidente o Papa Martinho I
(649´653), percebendo a sutileza dos bizantinos, reuniu um Concílio no Latrão
(Roma) em 649, o qual declarou que em Cristo havia dois modos de operar e duas
vontades naturais, e puniu com a excomunhão os fautores das novas idéias. O
Imperador, indignado, mandou prender o Papa e leva´lo para Constantinopla
(653); aí foi humilhado como traidor e, por fim, exilado para a Criméia, onde
morreu de maus tratos. Vários cristãos orientais foram tratados de modo
semelhante por resistirem ao. Imperador, merecendo especial destaque o abade
São Máximo o Confessor, que foi cruelmente martirizado.Constantino IV Pogonato
(668´685), filho de Constante II, procurou a paz e, para tanto, decidiu
convocar um Concílio Ecumênico, idéia que o Papa Agatão (678´681) aprovou com
solicitude. Tal foi o sexto Concílio Ecumênico, o de Constantinopla III,
celebrado de novembro de 680 a setembro de 681, com a presença de 170
participantes. Os conciliares elaboraram uma profissão de fé, que completava a
de Calcedônia:“Nós professamos,
segundo a doutrina dos Santos Padres, duas vontades naturais e dois modos
naturais de operar, indivisos e inalterados, inseparados e não misturados, duas
vontades diversas, não, porém, no sentido de que uma esteja em oposição à
outra, mas no sentido de que a vontade humana seque e se subordina à divina" - Isto quer dizer que em
Jesus havia duas faculdades de querer ´ a divina e a humana ´ de tal modo,
porém, que a vontade humana se sujeitava à divina, como atesta a oração no
horto das Oliveiras, conforme Mc 14,36.O Concílio condenou os
defensores do monotelitismo e o próprio Papa Honório, tido como fautor de tal
doutrina. ´ A condenação de Honório suscitou longos debates entre historiadores
e teólogos modernos. Na verdade, pode´se tranqüilamente dizer o seguinte:O Papa Honório,
intervindo na controvérsia, não quis proferir definições ex cathedra, nem quis
discutir como teólogo. Unilateralmente informado por Sérgio, julgou que a
discussão a respeito de uma ou duas vontades em Cristo era mero litígio de
palavras, como estava nos hábitos dos bizantinos; por isto julgou que podia
aprovar a posição de Sérgio sem afetar a reta fé. A expressão “uma vontade”,
aliás, foi explicada pelo próprio Honório em sua carta a Sérgio, no sentido de
conformidade do querer humano com o divino. Quanto às faculdades de operar
(energeias), Honório esclareceu, seu ponto de vista referindo´se à epístola
dogmática de São Leão a Flaviano, que diz: ambas as naturezas operam na única
pessoa de Cristo, não misturadas, não separadas e não confusas, aquilo que é
próprio de cada uma delas. ´ Donde se vê que o juízo proferido sobre Honório
pelo Concílio de 681 foi severo demais; a Sé de Roma nunca o aprovou
integralmente.
As Heresias Trinitárias
D. ESTEVÃO BETTENCOURT,
OSB
Tendo estudado a
expansão do Cristianismo até o século VI, passamos a considerar a história das
doutrinas da fé na antigüidade: capítulos 8´13. Um dos mais sérios problemas
doutrinários que se puseram na Igreja antiga, foi o da conciliação da unidade
de Deus (firmemente professada pelo Antigo Testamento) com a Trindade de
Pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo, tais como nos foram revelados pelo Novo
Testamento). A inteligência dos cristãos se pôs à procura de uma fórmula
satisfatória, que, após duras controvérsias, foi definida pelos Concílios de
Nicéia I (325) e Constantinopla I (381). É a história dessa longa reflexão que
vamos estudar
O monarquianismo
Nos séculos II/III
alguns escritores cristãos julgavam que o Verbo (Lógos) ou o Filho de Deus só
se tornara pessoa no tempo; em vista da criação do mundo, o Pai teria gerado ou
emitido o Lógos, de modo a constituir a segunda Pessoa da SS. Trindade. ´ Esta
concepção negava a eternidade do Filho de Deus e o subordinava ao Pai. Todavia
os defensores dessa teoria afirmavam a Divindade do Filho, de modo que não
suscitavam grave polêmica na sua época.Podemos dizer que a
primeira tentativa sistemática de conciliar unidade e pluralidade em Deus
professava a unidade com detrimento da pluralidade. Chamou´se, por isto,
monarquianismo, expressão derivada da exclamação: “Monarchiam tenemus. ´
Conservamos a monarquia” ( Tertuliano, Adversus Praxeam 3). Apresentava duas
fórmulas:
a)-O monarquianismo
dinamista
O monarquianismo
dinamista professou que Jesus era mero homem, o qual no momento do Batismo terá
sido revestido de poder (dynamis) divino; foi, portanto, um homem adotado por
Deus como Filho, com intensidade especial. ´ O fundador desta corrente foi
Teódoto de Bizâncio, cristão de notável cultura grega, que o Papa São Vítor
excomungou (190). Os seus discípulos, Asclepiódoto e Teódoto o jovem, quiseram
organizar uma comunidade própria, para qual nomearam um Bispo chamado Natal;
este foi o primeiro antipapa, o qual, arrependido, tornou´se ao seio da Igreja.
Tal corrente teve novo representante na pessoa de Paulo de Samosata, homem
ambicioso. Este via em Jesus um mero homem no qual terá habitado “como num
templo” o Logos ou a Sabedoria de Deus, que em escala menor habitava em Moisés
e nos profetas. Um concílio regional reunido em Antioquia excomungou Paulo
(268); mas os numerosos adeptos deste continuaram a professar a sua doutrina,
de modo que o Concílio ecumênico de Nicéia teve que se ocupar com a escola dos
paulanos (325).É de notar que o
mencionado Concílio de Antioquia em 268 rejeitou a afirmação de que o Filho ou
Logos é da mesma substância ou natureza (homoousios) que o Pai. Ora
precisamente esta expressão foi consagrada pelo Concílio de Nicéia I (325) como
fórmula de fé. Para entender os fatos, devemos observar que Paulo de Samosata
usava a palavra homoousios para significar que o Logos ou o Filho era uma só
pessoa com o Pai.
b)- Monarquianismo
modalista
Esta corrente ensinava
que o Filho era o próprio Pai ou uma modalidade pela qual o Pai se manifestava;
por conseguinte, o Pai terá padecido na cruz (donde o nome patri, de pater,
pai; passianismo, de passus, padecido).Tal doutrina, devida a Noeto de Esmirna,
foi levada para Roma e Cartago (África), dando origem ao partido patripassiano,
que muito agitou a comunidade de Roma. O Papa Zeferino (198´217), numa
declaração oficial, afirmou a Divindade de Cristo e a unidade de essência em
Deus, sem, porém, negar, como faziam os patripassianos, a diversidade de
pessoas do Pai e do Filho. O modalismo foi estendido por Sabélio, em Roma, ao
Espírito Santo. Este pregador professava três revelações de Deus: uma, como
Pai, na criação e na legislação do Antigo Testamento; outra, como Filho, na
Redenção; e a terceira, como Espírito Santo, na obra de santificação dos
homens. Designava cada uma dessas manifestações como prósopon, palavra grega
que significava originariamente “máscara ou papel de ator de teatro14“, visto
que posteriormente prósopon significou também pessoa, a doutrina de Sabélio
tornou´se ambígua e conquistou muitos adeptos, que de boa fé lhe aderiram sem
querer negar a trindade de Pessoas em Deus. Como se vê, o grande problema
consistia em afirmar a Trindade de Pessoas em Deus sem cair no triteísmo ou sem
professar três deuses. A controvérsia havia de arder por todo o século IV,
envolvendo todas as camadas da população, desde o Imperador até os mais simples
fiéis; a ingerência do poder imperial, que desde 313 era simpático ao
Cristianismo, contribuiu para tornar difíceis e penosas essas discussões
teológicas; elas assumiam, não raro, um caráter direta ou indiretamente
político. A problemática suscitou na Igreja os esforços de numerosos santos e
doutores, que, com seus talentos intelectuais e sua vida, colaboraram
decisivamente para a reta formulação da fé cristã. O período áureo da
literatura cristã está precisamente ligado às disputas teológicas.
Estudemos
agora as controvérsias do século IV
Arianismo e semiarianismo Rejeitando o
monarquianismo dinamista e modalista, a lgreja afirmava sua fé em Cristo,
Pessoa Divina e distinta do Pai. Todavia não estava explicada a maneira como se
relacionam entre si o Filho e o Pai. No século IV muitos admitiram a Divindade
do Filho, subordinando´o, porém, ao Pai; donde resultou a tese do subordinacionismo,
que teve em Ário de Alexandria o seu principal arauto. Arianismo O presbítero
Ário de Alexandria foi mais longe do que os pensadores anteriores: afirmava que
o Filho é criatura do Pai, a primeira e a mais digna de todas, destinada a ser instrumentos
para a criação de outros seres. Em virtude da sua perfeição, o Filho ou Logos
poderia ser chamado “Filho de Deus”, como reza a tradição. O Bispo Alexandre de
Alexandria reuniu um Sínodo local, contando cerca de cem Bispos, que condenaram
a doutrina de Ário e dos seus seguidores em 318. A decisão foi comunicada a
outros Bispos, inclusive ao Papa S. Silvestre. Ário, porém, conseguiu novos
defensores para a sua causa ´ o que tornou mais árdua a controvérsia. Diante
dos fatos, o imperador Constantino, que em 324 vencera Licínio, tornando´se
Onico senhor do Império, resolveu intervir: tinha como assessor teológico o
santo Bispo Ósio de Córdoba (Espanha), que Constantino enviou a Alexandria para
aproximar Ário do Bispo Alexandre; a missão, porém, fracassou. Então
Constantino resolveu convocar um Concílio ecumênico15 para Nicéia na Ásia Menor
em 325, ao qual compareceram cerca de 300 Bispos, provenientes de todas as
partes do mundo cristão; o Papa Silvestre, de idade avançada, mandou dois
presbíteros seus representantes. As discussões foram longas e agitadas. Por
fim, os padres conciliares redigiram o Símbolo de Fé de Nicéia, que afirmava
ser o Filho “Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,
gerado não feito, consubstancial (homoousios) ao Pai; por Ele foram feitas
todas as coisas”. A palavra homoousios torna´se, de então por diante, a senha
da reta doutrina. Significava que o Filho é da mesma natureza (= Divindade) que
o Pai; não saiu do nada como as criaturas, mas desde toda a eternidade foi
gerado sem dividir a natureza divina. O Imperador Constantino tomou aos seus
cuidados a defesa do Concílio ecumênico de Nicéia. Exilou Ário e quatro Bispos
que não queriam aceitar, na íntegra, definição do Concílio. Condenou às chamas
os escritos de Ário; seria punido quem os guardasse às ocultas.
As divisões do
Arianismo
lnfelizmente, porém, as
controvérsias não terminaram. O termo homoousios parecia a alguns suspeito de
sabelianismo ou de modalismo. Por isto alguns Bispos e monges puseram´se a
combater o Concílio, apoiados pelos Imperadores Constâncio (337´) e Valente
(364´78), sucessores de Constantino. Do lado da ortodoxia, destacam´se: S.
Atanásio, Bispo de Alexandria desde 328, que sofreu vários exílios; e o Papa
Libério, que em 355 foi deportado pelo Imperador Constâncio; alguns
historiadores antigos dizem que Libério conseguiu voltar à sua sede de Roma,
subscrevendo uma fórmula de fé antinicena e deixando de apoiar S. Atanásio; se
isto é verdade, deve´se à fraqueza humana, mas não se tratava de definição
solene e sim de um pronunciamento pessoal que o Papa fazia. De resto, sabe´se
que Libério, uma vez retornado a Roma, combateu eficazmente o arianismo. Os
antinicenos, com o respaldo do Imperador, julgaram´se vencedores, depondo
Bispos e reunindo Concílios regionais. Acontece, porém, que se dividiram: tendo
negado a identidade de substância entre o Pai e o Filho ou afirmaram uns que o
Filho era semelhante (homoiousios) ao Pai, enquanto outros o tinham como
dissemelhante (anhomoios). A controvérsia era alimentada também pela sutileza
do linguajar; palavras próximas umas das outras tinham significados diferentes:
assim homoousios e homoiousios; genetós (feito) e gennetós (gerado), Nikainon
(de Nikaia, sede do Concílio ortodoxo de 325) e Nikenon (de Nike, sede de um
Concílio herético). Finalmente, após mais de cinqüenta anos de disputas
ardentes, a ortodoxia foi prevalecendo, especialmente por obra dos três
doutores da Capadócia (Ásia Menor): S. Basílio de Cesaréia († 379), S. Gregório
de Naziano(† 390) e S. Gregório de Nissa († 394). Estes elaboraram a fórmula
grega: mía ousía kaí treis hypostáseis, uma essência (ou substância) e três
pessoas, fórmula que exprimia fielmente o pensamento dos padres nicenos e o
conteúdo da reta fé: há uma só Divindade, que se afirma três vezes ou em três
Pessoas. O grande protetor da ortodoxia, no fim do século IV, foi o Imperador
Teodósio (379´395), que, pouco depois de subir ao trono, convidou todos os
habitantes do Império a aderir “aquela fé que professam Dâmaso em Roma e
Atanásio em Alexandria”; mandou também entregar as igrejas de Constantinopla
aos católicos. O Concílio Ecumênico de Constantinopla I (381) havia de
consolidar a proclamação da reta fé contra o arianismo. Isto, porém, não quer
dizer qual tal heresia se tenha extinto logo; várias tribos germânicas,
entrando dentro das fronteiras do Império, foram evangelizadas por arianos, de
modo que abraçaram o Cristianismo ariano sob forma de religião nacional. Resta
agora estudar a discussão relativa ao Espírito Santo.
O Macedonianismo
O Espírito Santo,
embora atestado por numerosos textos bíblicos (como Jo 14.16), foi menos
considerado no decorrer do século IV. É certo, porém, que quem julgava ser o
Filho criatura do Pai tinha o Espírito Santo na conta de criatura do Filho;
seria um dos espíritos servidores (cf. Hb 1,14), diferente dos anjos apenas por
gradação. S. Atanásio, ao combater o arianismo, defendia também a divindade e a
consubstancialidade do Espírito Santo. Por isto, um sínodo de Alexandria em 362
reconheceu a Divindade do Espírito Santo. Isto, porém, não bastou para dissipar
os erros: Macedôneo, Bispo ariano de Constantinopla deposto em 360, era
ferrenho adversário da Divindade do Espírito, reunindo, em torno de si bom
número de discípulos, que se chamavam macedonianos ou pneumatômacos (pneuma =
espírito; máchomai = combater). Vários Sínodos rejeitaram a doutrina de
Macedônio; o mesmo foi feito pelos padres capadócios. Mas o pronunciamento
definitivo se deve ao Concílio de Constantinopla I realizado em 381: 150 padres
ortodoxos, depois do afastamento de 36 macedonianos, condenaram o
macedonianismo e, para explicitar claramente a fé ortodoxa, retomaram o artigo
32 do Símbolo de fé niceno, que rezava apenas: “Cremos no Espírito Santo”;
foram´lhe acrescentadas as palavras: “Senhor e Fonte de Vida, que procede do
Pai (cf. Jo 15,26), adorado e glorificado juntamente com o Pai e o Filho, e
falou pelos Profetas”. Assim teve origem o Símbolo de fé
niceno´constantinopolitano, que refuta tanto a heresia ariana quanto a
macedônia. Restava, porém, dirimir ainda uma dúvida: se o Espírito procede do
Pai, como se relaciona com o Filho? A resposta foi diversa no Oriente e no
Ocidente; todavia a diversidade consiste mais na formulação do que na própria
doutrina. Os gregos, desde o século IV afirmam que o Espírito procede do Pai
através do Filho, ao passo que os latinos ensinam que procede do Pai e do Filho
(Filioque). Na Espanha o Filioque foi inserido no Credo
niceno´constantinopolitano em 589 e oficialmente recitado, passando depois para
outras regiões de língua latina. Os gregos se recusam a aceitar tal inserção,
que se tornou pomo de discórdias nos séculos IX´XI. Atualmente as dificuldades
vão sendo superadas, pois em última instância se trata mais de palavras do que
de conteúdo.
Galicanismo e
Febronianismo
A França tornou´se nos
séculos XVII/XVIII o principal ponto de referência dos acontecimentos da
história da lgreja. Além da questão jansenista, tomou grande vulto então a do
Galicanismo.
Galicanismo
O absolutismo dos reis
da França começou a se afirmar com Filipe IV o Belo (1285´1314); e
manifestou´se fortemente no Exílio de Avinhão e no Grande Cisma do ocidente
(séculos XIV/XV); cristalizou´se na Pragmática Sansão de Bourges sob Carlos VII
em 1438, tendendo sempre a subtrair ao Papado a lgreja na França e professando
implicitamente a teoria conciliarista. Tal estado de coisas chegou ao seu auge
no reinado de Luís XIV (1643´1715), o Rei´Sol, que dizia: “L’Etat c’est moi! ´
O Estado sou eu”. Luís XIV era católico, sob a condição de dominar tudo, mesmo
a Igreja e o Papado, ao qual ele não poupou humilhações. lnteressa´nos
considerar como o nacionalismo eclesiástico se desenvolveu sob esse rei. Em
1680 as Religiosas de S. Pedro Fourier (subúrbio de Paris) estavarn para eleger
legitimamente a sua Superiora. Luís XIV, porém, quis impor´lhes uma Superiora
de outra ordem. As Irmãs apelaram para Inocêncio XI, que mandou proceder à
eleição; todavia a Bula papal foi rejeitada pelo Parlamento francês. ´ O rei
resolveu então recorrer a uma assembléia geral do clero francês, que se reuniu
em Paris de 1681 a 1682. Alguns prelados e o rei mostraram´se irritados pela
“intromissão” do Papa na Igreja da França... intervenção que eles julgavam
contrária a uma concordata de 1516, firmada com o Papa Leão X. Por isto o bispo jacques
´ Bénigne Bossuet (1627´1704), encarregado pela assembléia, redigiu quatro
artigos que definiam os limites do poder papal na França.
Tais artigos,
aprovados pelos presentes, constituem a “Declaração do Clero Galicano”, que
tomou o vigor de lei:
1) O Papa recebeu de
Deus um poder meramente espiritual, os reis, em questões temporais, não estão
sujeitos, nem direta nem indiretamente, a alguma autoridade eclesiástica; por
isto não podem ser depostos em nome do poder das chaves, nem os seus súditos desligados
do juramento de fidelidade.
2) Os decretos do
Concílio de Constança que estabeleceram a supremacia do Concílio sobre o Papa,
tem vigor de lei perene.
3) O exercício da
autoridade papal e regrado pelos cânones da Igreja Universal, pelos princípios
e os usos que, desde época remota, se observam na Igreja Galicana.
4) Em decisões de fé o
Papa tem voz preponderante, mas só irreformável após obter o consentimento da
lgreja inteira. Bossuet, que redigiu estes artigos, era, de resto, um bispo zeloso,
promotor da união de católicos e protestantes e grande orador sacro. Todavia
nutria profunda admiração pelo poder absoluto de Luís XIV, que ele apresentava
nos seguintes termos: “Todo poder reside inteiramente na pessoa do rei, não
podendo existir outra autoridade além da sua. Poder tão grande não emana dos
homens, mas sim de Deus, que estabeleceu os reis para governar o mundo em seu
nome, os quais a mais ninguém senão a Ele devem prestar contas dos seus atos. Os súditos devem ao rei obediência e respeito, toda desobediência é grave falta
cometida contra ele. “ Ao tomar conhecimentos da promulgação dos artigos
galicanos, o Papa lnocêncio XI protestou, mas não impôs aos franceses alguma
censura eclesiástica para evitar a iminente ruptura de relações. Aliás, o
próprio Luís XIV não queria separar´se da Igreja Católica, pois sabia que isto
lhe tiraria muito do seu prestígio; também as suas convicções religiosas eram
assaz firmes para não Ihe permitir que fosse tão longe no seu absolutismo.
Diz´se mesmo que declarou a galicanos que impeliam a novas violências: “Se eu
quisesse seguir essas idéias, deveria pôr o turbante sobre a cabeça (isto é, eu
me faria turco muçulmano)”. Em resposta ao rei, o Papa Inocêncio XI recusou
confirmar dois candidatos a bispo que o rei Ihe apresentou e que haviam
participado da assembléia galicana. o rei declarou que isto era uma violação da
Concordata e proibiu aos bispos que ele nomeava, fossem buscar a sua Bula de
confirmação em Roma. A conseqüência deste litígio é que, durante seis anos, os
titulares de trinta e cinco dioceses francesas não possuiram a ordenação
episcopal (ou não eram bispos). Ainda que o rei nomeasse bispos, somente o Papa
podia autorizar a ordenação episcopal desses candidatos. O Jansenismo,
suscitando atitude de indiferença e frieza nos cristãos, criava clima próprio
ao Galicanismo, como também o Galicanismo favoreceu o Jansenismo. pois ambos
lutavam contra Roma.
Febronianismo
Da França o Galicanismo
passou para a Alemanha, onde Lutero tinha denunciado os vexames da nação alemã,
queixosa das intervenções de Roma na nomeação de prelados, no arrecadamento de
taxas, no cerceamento de liberdades, das quais gozavam a França e a Espanha. No
século XVIII o descontentamento se fez ouvir de novo modo. Um dos principais
transmissores dos erros franceses foi um professor de Direito Canônico em
Louvain, Bernardo van Espen († 1728), que por seus escritos e discípulos
exerceu grande influxo na Alemanha; as suas obras foram postas repetidas vezes
no Index a partir de 1704. Propagava entre os prelados alemães uma onda de
episcopalismo, tendência que queria restringir, em favor dos bispos, os
direitos do Papa e de seu representante, o Núncio. Essa onde era fomentada por
uma antipatia contra a Cúria Romana suscitada pela Concordata de Viena (1448);
ver capítulo 28. As idéias de van Espen foram desenvolvidas na Alemanha por um
discípulo deste mestre em Louvain, doutor em Direito Canônico e bispo auxiliar
de Tráviris: João Nicolau de Hontheim (1701´1790). Empreendeu estudar a situação
da lqreja na Alemanha do ponto de vista jurídico. Como fruto de suas reflexões,
publicou em 1763. “Justini Febronii de Statu Ecclesiae et Legitima Potestate
Romani Pontificis liber singularis ad reuniendos dissidentes in religione
Christiana compositus. ´ Livro singular de Justino Febrônio a respeito do
estado da Igreja e do legítimo poder do Pontífice Romano, redigido para reunir
os cristãos dissidentes na religião”. o autor usou de pseudônimo: Justina era o
nome de sua sobrinha, que no mosteiro era chamada Febrônia. Propunha os
princípios galicanos de 1682 reforçados por teses de canonistas de Louvain,
como se pode ver a seguir. Para restabelecer a unidade entre os cristãos, dizia
Febrônio, é preciso reproduzir a constituição da lgreja nascente. Isto implica
restituir aos bispos e aos Concílios os seus direitos e limitar os poderes do
Papa. Este não é monarca absoluto nem infalível. o poder na Igreja toca,
primeiramente, ao conjunto dos bispos ou ao Concílio Ecumênico. As decisões
papais só tem vigor quando aprovadas pela lgreja inteira e introduzidas em cada
uma das dioceses pelo respectivo bispo. Ao sucessor de Pedro, portanto, só
compete um primado de honra em relação aos outros bispos. os únicos direitos
que lhe assistem, são os direitos necessários ao exercício da sua tarefa, que
é: vigiar pela observância dos canônes, conservar a fé e a unidade da lgreja.
Confirmação e deposição de bispos, preenchimento de cargos.eclesiásticos,
concessão de dispensas, reservas são falsificações do Direito devidas a
evolução errônea. Por conseguinte, os bispos deveriam arrebatar para si essas
funções. Como meios aptos para obter a emancipação dos bispos, eram
recomendados: propaganda no grande público, convocação de Concílio Ecumênico
livre, Sínodos provinciais, união dos bispos com os príncipes seculares; a
estes tocaria o direito de sancionar ou não as leis do Papa e de receber as
apelações em Tribunal. A obra de Hontheim se difundiu rapidamente e em varias
traduções, provocando grave crise na Alemanha. obteve os aplausos dos príncipes
civis e dos inimigos da lgreja, principalmente na Austria, cujo lmperador José
II a aprovou três vezes, as normas de Febrônio foram introduzidas nos manuais
de Direito Eclesiástico. Clemente XIII pôs o livro no Index e exortou os bispos
alemães a combatê´lo ´ o que só encontrou execução parcial e hesitante. Em
dezembro de 1769 os arcebispos de Tréviris, Mogúncia e Colônia mandaram
elaborar um documento em 31 artigos (Avisamenta) sob a presidência de Hontheim,
que tinha sabor febroniano. Todavia em 1778, depois de haver triunfado,
Hontheim, instado pela Cúria Romana e pelo Arcebispo de Tréviris, declarou que
se retratava. Em 1781, porém, publicou o “Comentario à Retratação”, que
discretamente manifestava os mesmos principios de Febrônio: usando de estilo
atormentado e cheio de restrições, Hontheim não queria nem ofender a verdade
nem retratar abertamente uma obra que ele julgava ser a glória de sua carreira.
Poucos anos mais tarde, o febronianismo produziu seus efeitos mais nocivos. Em 1785,
Pio VI, a pedido do príncipe Carlos Teodoro da Baviera, erigiu uma Nunciatura64
em Munique. Isto muito inquietou os citados arcebispos de Tréviris, Mogúncia e
Colônia, assim como o príncipe´bispo de Salzburgo, que temiam uma restrição de
sua jurisdição. Mediante delegados seus, elaboraram a “Pontuação de Ems”
(1786), que eram 23 artigos de Febronianismo exaltado: exigiam a revogação da
jurisdição dos Núncios, o beneplácito dos bispos para as Bulas papais, além de
reformas na liturgia, na vida conventual e na pastoral em geral. o documento
terminava solicitando ao Imperador José II que dentro de dois anos reunisse um
Concílio nacional para abolir os “vexames” da nação alemã. Em breve
evidenciou´se a impossibilidade de executar tais postulados. Quando os arcebispos
citados quiseram autonomamente conceder certas dispensas, opos´se´lhes o Núncio
Pacca, de Colônia, hábil defensor das funções papais, que escreveu uma carta
aos párocos; os bispos sufragâneos65 se associaram ao Núncio, pois queriam
defender seus interesses ameaçados pela preponderancia dos arcebispos. Estes
então tiveram que retroceder; ainda pleitearam um acordo a respeito da
Nunciatura em Munique ´ o que o Papa rejeitou energicamente (1789). O
febronianismo teve sua aplicação concreta mais rigorosa na Austria sob Maria
Teresa a Católica (1740´1780) e principalmente sob D. José II (1780´90), que
Frederico II da Prússia chamava “Meu Irmão o Sacristão” ou “o Arqui´sacristão
do Império Romano”. Este monarca teria levado a Austria a um cisma, se não o
tivesse dissuadido o embaixador espanhol Azara. o Papa Pio VI foi a Viena para
entender´se com o monarca; foi muito aclamado pelas populações durante a
viagem; teve brilhante recepção na corte imperial, mas, após quatro semanas de
permanência, teve que regressar sem ter conseguido demover o monarca de seus
propósitos febronianos e de outras medidas drásticas (redução do número de
Seminários a cinco ou seis, nos quais só ensinariam professores da confiança do
Imperador; supressão das ordens contemplativas e de conventos de outras ordens;
proibição, aos bispos, de contato direto com Roma...)
O Re-batismo e o
Donatismo
Enquanto as disputas
teológicas no Oriente versavam principalmente sobre Deus e Jesus Cristo,
envolvendo problemas altamente especulativos, no Ocidente o debate teológico se
voltou mais para questões de ordem prática, abordando especialmente o binômio
“santidade e pecado” na Igreja. - Examinaremos, a seguir, três controvérsias
que, em última análise, desenvolveram essa temática.
O Re-batismo
À medida que se foram
registrando heresias e cismas entre os cristãos, foi-se colocando uma questão
nova: o Batismo ministrado por um herege é válido? Se o herege quer
converter-se à Igreja Católica, deve ser batizado de novo? Essas perguntas
suscitaram respostas contraditórias. A Igreja em Roma seguia a tradição antiga,
admitindo a validade do Batismo conferido pelos hereges, pois se dizia, com
razão, que é Cristo quem batiza, servindo-se do ministério dos homens. Na
África do Norte, porém, a tendência era contrária: em Cartago, o escritor
Tertuliano († após 220), homem de retórica e projeção, escreveu o opúsculo
“Sobre o Batismo” (em grego e em latim), que rejeitava a validade do Batismo
conferido pelos hereges. Três Sínodos, um em Cartago (220) e dois na Ásia Menor
(230), adotaram tal sentença, a qual passou a ser observada na prática de
muitas dioceses (era o re-batismo). A situação se tornou mais grave quando o
bispo S. Cipriano em 255-6 passou a apoiar a sentença e a praxe do re-batismo.
Tal posição era fortalecida pelo fato de que os hereges montanistas batizavam
“em nome do Pai, do Filho e de Montano ou de Priscila (fundadores da corrente
montanista)”. Tal Batismo era evidentemente inválido, pois não observava a
fórmula ensinada pelo Senhor Jesus (cf. Mt 28,18-20); se, porém, o batismo dos
montanistas era inválido, parecia a muitos cristãos que o batismo de qualquer
facção herética devia ser igualmente tido como inválido. Em Roma o Papa S.
Estevão opôs-se ao costume do re-batismo, ameaçando de excomunhão os cristãos
da África do Norte, caso insistissem em re-batizar os hereges batizados fora da
Igreja Católica; apenas se deveria exigir que tivessem penitência para entrarem
em comunhão com a Igreja Católica. Dizia textualmente o Papa uma frase que
ficou célebre: “Se os hereges vêm a nós, qualquer que seja a sua seita, nada se
inove, mas siga-se a Tradição, impondo-lhes as mãos para que façam penitência”
(o Papa supunha naturalmente o Batismo conferido segundo a fórmula do
Evangelho). O mesmo Pontífice enviou semelhantes determinações aos bispos da
Ásia Menor que re-batizavam; em 256, informado de que 87 bispos reunidos em
Sínodo haviam reafirmado a necessidade do re-batismo, o Papa os excomungou (não
se sabe, porém, se tais bispos tinham recebido previamente as instruções de
Estêvão I)-Em conseqüência, a
tensão foi assaz forte entre Roma e os bispos da parte oposta. Não tardou,
porém, a se amainar, pois morreram mártires Estêvão em 257 e Cipriano em 258. O
sucessor de Estêvão I, o Papa Sixto II, aparece em comunhão com os bispos do
Norte da África, o que significa que atenderam às disposições de Santa Sé.
Houve, porém, casos de re-batismo até o século IV, como atesta o Concílio de
Arles em 314. A questão tinha um fundo teológico e não meramente disciplinar.
Tertuliano e os cristãos da África tendiam a restringir a Igreja aos santos, de
modo que só seriam válidos os sacramentos ministrados por pessoas ortodoxas e
de reta conduta de vida; por conseguinte, quem estivesse fora de Igreja ou em
pecado mortal não poderia validamente batizar. A concepção eclesiológica de
Roma era outra: a Igreja consta de santos e pecadores, pois o Senhor mesmo
insinuou que nela o joio e o trigo devem permanecer até o fim dos tempos (cf.
Mt 13,24-30); na Igreja quem ministra os sacramentos é o próprio Cristo, que se
serve dos homens como instrumentos seus; por isto o batismo conferido por um
ministro validamente ordenado que tenha a intenção de fazer o que Cristo faz, é
sempre válido. Tal é a concepção até hoje vigente na Igreja Católica. Como se
vê os africanos insistiam mais no elemento pessoal, ético e subjetivo da
administração dos sacramentos, ao passo que Roma considerava mais o aspecto
objetivo da mesma. Este se tornaria mais claro ainda nos tempos de S.
Agostinho.
As controvérsias
penitenciais
A Igreja antiga tinha
viva consciência de que os cristãos deviam dar o testemunho de uma vida pura.
Esta consciência se manifestou de maneira extremamente rigorista em alguns
momentos da história:Até o século VI só era
concedido uma vez na vida o Sacramento da Reconciliação. Os bispos julgavam que
quem precisasse de mais de uma Penitência sacramental, não estava interiormente
disposto a recebê-la; tal pecador era confiado diretamente à misericórdia de
Deus. Tertuliano († após 220) parece ter sido o primeiro a falar de pecados
irremissíveis, que seriam a apostasia, o homicídio e o adultério. O Papa
Calixto I (217-220), porém, concedia reconciliação a todo pecador que fizesse a
devida penitência. Esta praxe foi confirmada pelos sínodos de Roma e de Cartago
sob o Papa Cornélio (251-253). Contra este levantou-se então o presbítero
Novaciano, que abriu um cisma, encabeçando uma facção de caráter rigorista:
Novaciano negava a reconciliação aos apóstatas mesmo em perigo de morte;
estendeu esta severidade aos dois outros pecados ditos capitais na época
(homicídio e adultério). Queria constituir uma Igreja de puros e santos; por
isto rebatizava os católicos que entrassem nas suas fileiras. Em 251 um Sínodo
de Roma, reunindo 60 bispos, excomungou Novaciano e seus seguidores. S.
Cipriano de Cartago e Dionísio de Alexandria se lhes opuseram. Apesar disto, a
facção novaciana se difundiu largamente, encontrando eco especial no Oriente.
Em Cartago deu-se o movimento laxista, chefiado pelo presbítero Novato e pelo
diácono Felicíssimo. Pleiteavam a reconciliação dos apóstatas sem a penitência
sacramental, desde que fossem recomendados por confessores da fé, isto é, por
cristãos que houvessem padecido por causa da fé sem chegar à morte do martírio.
S. Cipriano manteve-se firme à disciplina da Igreja, que readmitia, sim, os
apóstatas, mas após a prestação da devida penitência sacramental.
Heresias protestantes de Wiclef e Hus
A decadência da
disciplina eclesiástica, as desgraças do tempo do Grande Cisma (1378-1417) eram
circunstâncias propícias a que se originassem e programassem heresias populares
nos séculos XIV/XV. Os seus fundadores são ditos “Reformadores antes da Reforma”,
pois de certo modo antecipam os princípios básicos dos Reformadores do século
XVI: exaltação unilateral da S. Escritura como fonte de fé, rejeição da
tradição e da hierarquia, nacionalismo em oposição à Igreja Romana Universal.
Desses pré- reformadores, já vimos Guilherme Occam e Marsílio de Pádua (cf.
capítulo 26). Outros foram, além destes dois, a saber: o inglês John Wiclef
(1320-84) e o tcheco Jan Hus (1370-1416).
O Wiclefismo
John Wiclef (1320-84)
era um nobre inglês que se fez Sacerdote, professor de Filosofia e Teologia na
Universidade de Oxford. Como outros muitos reformadores, apregoava um
espiritualismo exagerado. Os cristãos na lnglaterra sempre tenderam a se isolar
do resto da Igreja (talvez por sua posição geográfica insular)55 ora o separatismo
dos ingleses fornecia clima propício às idéias de Wiclef. Em 1366 o Parlamento
inglês proibiu o pagamento dos impostos feudais prometidos por João sem Terra a
Inocêncio III em 1213, ...impostos que, havia 33 anos, já não eram pagos; ver
capítulo 23. Tomando posição em favor do Governo do rei contra o Papado, Wiclef
afirmava que os bens temporais são nocivos à lgreja’ e que os príncipes têm, o
direito de se apossar dos mesmos quando os clérigos não os utilizam
devidamente; o ideal seria que o Estado secularizasse todas as propriedades da
Igreja e se encarregasse diretamente do sustento do clero. Wicief tinha em mira
especialmente os mosteiros. Tais idéias encontravam eco na corte e entre os
nobres. A lnglaterra estava debilitada por causa de seus insucessos na guerra
dos Cem Anos contra a França; por isto era tentada a apoderar-se dos bens da
Igreja. Em 1373 o Papa Gregório XI condenou dezoito teses de Wiclef; todavia a
hierarquia inglesa receava proceder contra o herege por causa do seu prestígio
na Inglaterra. Depois da irrupção do Grande Cisma do Ocidente (setembro de
1378), Wiclef atacou o Papado, afirmando que a Igreja não subsiste com a
hierarquia, mas é uma comunidade invisível de predestinados: o verdadeiro Papa
é Cristo e cada crente é um verdadeiro presbítero diante de Deus; o Papado
seria mesmo uma instituição do Anticristo. A S.Escritura seria a única norma de
fé; Wiclef mandou traduzir o texto da Vulgata latina para o Inglês, merecendo
por isto ser chamado “o Doutor Evangélico”. Rejeitava a real presença de Cristo
na Eucaristia; o cristão só receberia espiritualmente o corpo e o sangue de
Cristo; a confissão auricular seria uma instituição tardia. Mandava sacerdotes
pobres e leigos dois a dois a pregar a “Lei de Deus”; os fiéis católicos chamavam
esses pregadores lolardos (de lollium, joio), denominar,ão esta que provinha
dos Países-Baixos, onde designava sectários e hereges inflamados. As idéias de
Wiclef encontraram grande ressonância também entre os camponeses; estes em 1381
moveram violento ataque contra os nobres em Londres. Wiclef foi
responsabilizado por essa revolta e, por isto, perdeu o favor da corte; um
Sínodo de Londres em 1382 condenou sua doutrina. Wiclef retirou-se então para a
sua paróquia de Lutterworth e lá permaneceu até a morte, divulgando escritos
polêmicos em latim e em inglês. O Wiclefismo continuou a se propagar, mesmo
perseguido, criando o ambiente receptivo às idéias do século XVI.
João Hus
A messe do wiclefismo,
que não pôde amadurecer na lnglaterra, amadureceu meIhor no continente. Ana,
irmã do rei Venceslau da Boêmia, estava casada com o rei Ricardo II da
Inglaterra. Isto permitia que no século XIV muitos boêmios fossem estudar em
Oxford, e muitos ingleses em Praga. Assim vários wiclefistas perseguidos na
Inglaterra encontravam refúgio em Praga. O cidadão Jerônimo, da Boêmia, que
estudava em Paris e Oxford, levou para Praga as principais obras de Wiclef; ele
e seu amigo João Hus tomaram a peito propagar o wiclefismo. Também o solo da
Boêmia estava preparado para a fermentação de tais idéias, pois, além de
vestígios de antigas seitas (cátaros, valdenses), a decadência moral e a
ignorância do povo eram notáveis. João Hus era Sacerdote, professor de
Filosofia na Universidade de Praga, e exercia as funções de diretor espiritual
na corte. Era homem de costumes irrepreensíveis, bom orador e fanático tanto
por motivos religiosos como por razões nacionalistas (os boêmios começavam a se
erguer contra o domínio político e cultural dos alemães); certamente as
tendências nacionalistas da populacão muito favoreceram as idéias de Hus. O
wiclefismo encontrou, a princípio, resistência.O arcebispo Sbinko de Praga
mandou queimar escritos de Wiclef, excomungou Hus e seus partidários em 1410 e
lançou o interdito sobre Praga em 1411. Tais medidas, porém, tiveram pouco
êxito.O pregador retirou-se então para o castelo de um nobre seu amigo, para
onde o povo se pôs a peregrinar em massa. O hussismo em breve alcançou influxo
predominante na Boêmia. A apostasia de quase um povo inteiro abalou o
sentimento cristão ocidental. O Imperador Sigismundo da Alemanha, irmão do rei
Venceslau da Boêmia, convidou Hus a comparecer no Concílio de Constança; o
herege, de fato, lá apareceu em novembro de 1414, esperando ganhar os
conciliares para a sua doutrina; ver capítulo 28. Hus, porém, só encontrou
adversidade e rejeição; foi encarcerado e, como não quisesse renunciar às suas
teses, foi condenado como herege em 1415. A mesma sorte sofreu o seu
companheiro Jerônimo de Praga onze meses mais tarde.
A história do hussismo
É história assaz
complicada.A execução de Hus foi
recebida na Boêmia como uma ofensa à nação. A reação hussista-nacionalista foi
violenta os sacerdotes não hussistas foram, em grande número,expulsos. A rainha
Sofia e damas nobres tomaram aberto partido por Hus como herói e mártir
nacional. Quase toda a nobreza da Boêmia e da Morávia mandou um protesto para
Constança afirmando que Hus fora virtuoso e ortodoxo e que os boatos de uma
“heresia boêmia” eram invenção do inferno. Ao mesmo tempo formou-se uma Liga
para a defesa da liberdade de pregação, para a proteção contra a autoridade
episcopal e a excomunhão injusta. Introduziu-se a praxe do “cálice dos leigos”
(comunhão sob as duas espécies)56 como símbolo da facção hussista. Esta dominou
a Boêmia quase totalmente durante vários anos. Em 1419, o rei Venceslau
restabeleceu os sacerdotes expulsos - o que deu lugar a revolução violenta;
foram assassinados sete conselheiros reais, vindo o rei Venceslau a morrer do
coração em conseqüência deste golpe. Ao seu irmão e sucessor Sigismundo os
hussistas negaram obediência, como perjuro e assassino de Hus. Assim começaram
as guerras hussistas (1420-31). O Papa Martinho V convocou uma cruzada contra
tais hereges em 1420; os cruzados, porém, e as tropas de Sigismundo foram
derrotados por Zizka, chefe dos taboristas (assim se chamavam os hussitas
extremados, por causa da cidade Tabor que haviam fundado). Os hussistas
mitigados foram chamados utraquistas (de sub utraque specie, sob ambas as
espécies); não rejeitavam um acordo com a Igreja e Sigismundo. Os Taboristas,
ao contrário, iam mais longe do que Wiclef e Hus: além de rejeitar os
sacramentos e festas tradicionais que julgassem não fundamentadas na Bíblia,
abraçaram idéias apocalíptico-milenaristas57; proclamavam a abolição de todas
as diferenças de classes; na região que eles dominavam, dava-se total
transformação da ordem eclesiástica e social, mediante pilhagem de igrejas e de
mosteiros, execução de sacerdotes e monges. A partir de 1427, os Taboristas
devastaram a Hungria, a Silésia, a Baviera, a Saxônia até o mar do Norte, sob a
direção de André Procópio o Velho, sacerdote católico apóstata. Já que não era
possível vencer os hussistas pelas armas, as autoridades civis e eclesiásticas
procuraram a via das conversações. O Concílio de Basiléia convidou os hussistas
a comparecer - o que de fato ocorreu em 1433. Os hereges, representados por
quinze delegados de ambos os partidos (taboristas e utraquistas), formularam
suas reivindicações em quatro artigos: pregação livre, cálice dos leigos,
proibição de posses temporais do clero, punição dos pecados mortais e dos
abusos contra a “lei de Deus”. As conversações no Concílio foram úteis, mas
terminaram em Praga com um acordo dito Compactata Pragensia (30/11/1433): os
quatro postulados hussistas foram aceitos com certas restrições:
1) o cálice dos leigos,
desde que os sacerdotes ensinassem aos fiéis que Cristo está todo presente sob
ambas as espécies;
2) a pregação livre
desde que realizada por sacerdotes aprovados;
3) a punição dos
pecados mortais, desde que públicos, por iniciativa das autoridades
competentes, e não de pessoas particulares;
4) a administração
idônea, e não a supressão dos bens eclesiásticos.
Os taboristas
recusavam-se a aceitar o acordo; foram derrotados pelos utraquistas e os
católicos em 1434. O Parlamento da Boêmia em 1436 confirmou o acordo acima e
reconheceu Sigismundo como rei. O nome “hussista” foi desaparecendo aos poucos.
Aqueles que faziam uso do cálice dos leigos, foram chamados simplesmente
“utraquistas” ou “calixtinos”, enquanto os outros católicos da Boêmia eram
ditos “subunistas” ou “unistas”. A situação da igreja ainda ficou agitada por
muito tempo na Boêmia , até os nossos dias há vestígios de hussismo ou no
nacionalismo tcheco. Alguns utraquistas não se deram por satisfeitos com o
acordo oficial e procuraram novas formas de religião; eram camponeses que apregoavam
uma vida de trabalho manual agrícola, retirada do convívio social e político e
uma Igreja despojada e despretensiosa neste mundo. Formaram o Partido da
“Unidade dos lrmãos” (Unitas Fratrum) ou dos Irmãos Boêmios; muitos deles
incorporaram-se finalmente aos luteranos no século XVI. Somente em 1629 o edito
de “Restituição” do Imperador Fernando II aboliu a comunhão sob as duas
espécies entre os católicos da Boêmia. Reflexão final: como se vê da exposição
feita, o wiclefismo e o hussismo são heresias relacionadas não só com a
teologia, mas também com os problemas sociais dos Séculos XIV/XV. - As guerras
devastaram a Europa nestes dois séculos: a de Cem Anos (1337-1453), entre a
França e a Inglaterra; a das Duas Rosas, entre os nobres ingleses; a guerra entre
as Casas da Borgonha e de Orleães, na França; os Países Baixos eram sacudidos
por guerras civis entre nobres e democratas; na Alemanha, havia guerras entre
príncipes, cavaleiros e cidades. A medida que os príncipes iam centralizando o
seu poder, a nobreza perdia prestígio e riqueza, sufocando os camponeses; estes
eram os que mais sofriam na sociedade, porque os nobres deprimidos e
angustiados ainda queriam viver à custa destes. Assim os tempos se tornaram
cada vez mais sombrios. A crueldade das autoridades e dos fortes que obtinham
vitórias, tomava proporções extraordinárias; em conseqüência, as insurreições
dos camponeses eram freqüentes, visando a todos os poderosos da sociedade; quem
obtivesse vitória, crivava os olhos e incendiava as casas dos adversários
vencidos. O correr dos acontecimentos havia de levar a revolução religiosa e
social do século XVI, associada principalmente ao nome de Martinho Lutero,
revolução à qual se oporia a obra de renovação católica associada ao Concílio
de Trento e a floração de Santos que encheram o mesmo século XVI.
Orígenes e a heresia da "Reencarnação"
Orígenes e origenismo
1. Orígenes (185-254)
foi mestre de famosa Escola de Teologia em Alexandria (Egito) no séc. III.
Nessa época, os pensadores cristãos tentavam penetrar nos dados do Evangelho
mediante o instrumentos da filosofia ou da sabedoria humana (grega) anterior a
Cristo. A teologia ainda estava em seus primórdios; as fórmulas oficiais da fé
da Igreja eram então muito concisas; em conseqüência, ficava margem assaz ampla
para que o estudioso propusesse sentenças destinadas a elucidar, na medida do
possível, os artigos da fé. Orígenes entregou-se a essa tarefa, servindo-se da
filosofia do seu tempo e, em particular, da filosofia platônica. Ao realizar
isso, Orígenes fazia questão de distinguir explicitamente entre proposições de
fé, pertencentes ao patrimônio da Revelação cristã, e proposições hipotéticas,
que ele formulava em seu nome pessoal, à guisa de sugestões; além disto,
professava submissão ao magistério da Igreja caso esta rejeitasse alguma das
teses de Orígenes. Ora, entre as suas
proposições pessoais, Orígenes formulou algumas que de fato vieram a ser
recusadas pelo magistério da Igreja.
2. Assim, inspirando-se
no platonismo, derivava a palavra grega psyché (alma) de psychos (frio), e
admitia que as almas humanas unidas à matéria, tais como elas atualmente se
acham, são o produto de um resfriamento do fervor de espíritos que Deus criou todos
iguais e destinados a viver fora do corpo; a encarnação das almas, portanto, e
a criação do mundo material dever-se-iam a um abuso da liberdade ou um pecado
dos espíritos primordiais, que Deus terá punido, ligando tais espíritos à
matéria. Banidos do céu e encarcerados no corpo, estes sofrem aqui a justa
sanção e se vão purificando a fim de voltar a Deus; após a vida presente,
alguns ainda precisarão de ser purificados pelo fogo em sua existência póstuma,
mas na etapa final da história todos serão salvos e recuperarão o seu lugar
junto de Deus; o mundo visível terá então preenchido o seu papel e será
aniquilado.Note-se bem: Orígenes
propunha essas idéias como hipóteses, e hipóteses sobre as quais a Igreja não
se tinha pronunciado (justamente porque pronunciamentos sobre tais assuntos
ainda não haviam sido necessários). Não havia, pois, da parte de Orígenes a
intenção de se afastar do ensinamento comum da Igreja a fim de constituir uma
escola teológica própria ou uma heresia (“heresia” implica obstinação
consciente contra o magistério da Igreja).
3. A desgraça de
Orígenes, porém, foi ter tido muitos discípulos e admiradores... Estes
atribuíram valor dogmático às proposições do mestre, mesmo depois que o
magistério da Igreja as declarou contrarias aos ensinamentos da fé. É preciso observar
ainda o seguinte: Orígenes admitiu também como possível a preexistência das
almas humanas. Ora esta doutrina não significa necessariamente reencarnação;
apenas quer dizer que, antes de se unir ao corpo, a alma humana viveu algum
tempo fora da matéria; encarnou-se depois...; daí não se segue que se deva
encarnar mais de uma vez (o que seria a reencarnação propriamente dita).Aliás, Orígenes se
pronunciou diretamente contrário à doutrina da reencarnação... Com efeito, em
certa passagem de suas obras considera a teoria do filósofo Basílides, o qual
queria basear a reencarnação nas palavras de São Paulo: “Vivi outrora sem
lei...” (Rm 7,9). Observa então Orígenes: Basílides não percebeu que a palavra
“outrora” não se refere a uma vida anterior de S. Paulo, mas apenas a um
período anterior da existência terrestre que o Apóstolo estava vivendo; assim,
concluía Origenes, “Basílides rebaixou a doutrina do Apóstolo ao plano das
fábulas ineptas e ímpias” (cf. In Rom VIII).Contudo os discípulos
de Orígenes professaram como verdade de fé não somente a preexistência das
almas (delicadamente insinuada por Orígenes), mas também a reencarnação (que o
mestre não chegou de modo algum a propor, nem como hipótese).Os principais defensores
destas idéias, os chamados “origenistas”, foram monges que viveram no Egito, na
Palestina e na Síria nos séc. IV/VI. Esses monges, como se compreende, levando
vida muito retirada, entregue ao trabalho manual e à oração, eram pouco
versados no estudo e na teologia; admiravam Orígenes principalmente por causa
dos seus escritos de ascética e mística, disciplinas em que o mestre mostrou
realmente ter autoridade. Não tendo, porém, cabedal para distinguir entre
proposições categóricas e meras hipóteses do mestre, os origenistas professavam
cegamente como dogma tudo que liam nos escrito de Orígenes; pode-se mesmo dizer
que eram tanto mais fanáticos e buliçosos quanto mais simples e ignorantes.
4. A tese da
reencarnação, desde que começou a ser sustentada pelos origenistas, encontrou
decididos oponentes entre os escritores cristãos mesmos, que a tinham como
contrária à fé. Um dos testemunhos mais claros é o de Enéias de Gaza († 5l8),
autor do “Diálogo sobre a imortalidade da alma e a ressurreição”, em que se lê
o seguinte raciocínio:“Quando castigo o meu
filho ou o meu servo, antes de lhe infligir a punição, repito-lhe várias vezes
o motivo pelo qual o castigo, e recomendo-lhe que não o esqueça para que não
recaia na mesma falta. Sendo assim, Deus, que estipula... os supremos castigos,
não haveria de esclarecer os culpados a respeito do motivo pelo qual Ele os
castiga? Haveria de lhes subtrair a recordação de suas faltas, dando-lhes ao
mesmo tempo a experimentar muito vivamente as suas penas? Para que serviria o
castigo se não fosse acompanhado da recordação da culpa? Só contribuiria para
irritar o réu e levá-lo à demência. Uma tal vítima não teria o direito de
acusar o seu juiz por ser punida sem ter consciência de haver cometido alguma
falta?” (ed. Migne gr., t. LXXXV, 871).Sem nos demorar sobre
este e outros testemunhos contrários à reencarnação no séc. VI, passamos
imediatamente à fase culminante da controvérsia origenista.
“Não” à reencarnação!
No início do séc. VI
estava o origenismo muito em voga nos mosteiros da Palestina, tendo como
principal centro de propagação o mosteiro da “Nova Laura” ao sul de Belém: aí
se falava, com estima, de preexistência das almas, reencarnação, restauração de
todas as criaturas na ordem inicial ou na bem-aventurança celeste... Em 531, o
abade São Sabas, que, com seus 92 anos de idade, se opunha energicamente ao
origenismo, foi a Constantinopla pedir a proteção do Imperador para a Palestina
devastada pelos samaritanos, assim como a expulsão dos monges origenistas.
Contudo alguns dos monges que o acompanhavam, sustentaram em Constantinopla
opiniões origenistas; regressou à Palestina, para aí morrer aos 5 de dezembro
de 532. Após a morte de S. Sabas, a propaganda origenista recrudesceu,
invadindo até mesmo o mosteiro do falecido abade (a “Grande Laura”); em
conseqüência, o novo abade, Gelásio, expulsou do mosteiro quarenta monges.
Estes, unidos aos da “Nova Laura”, não hesitaram em tentar tomar de assalto a
“Grande Laura”. Por essa época, os origenistas (pelo fato de combater uma
famosa heresia cristológica, dita “monofisitismo”) gozavam de grande prestígio,
mesmo em Constantinopla. Com o passar do tempo, a controvérsia entre os monges
da Palestina foi-se tornando cada vez mais acesa, exigindo em breve a
intervenção das autoridades. Foi o que se deu em 539: o Patriarca de Jerusalém
mandou pedir ao Imperador Justiniano de Constantinopla o seu pronunciamento
contra o origenismo (naquela época os temas teológicos interessavam ao
Imperador tanto quanto as questões de administração pública).
Justiniano,
em resposta, escreveu um trato contra
Orígenes, de tom extremamente violento,
que se encerrava com uma série de dez anátemas contra Orígenes, dos quais
merecem atenção os seguintes:
Se alguém disser ou
julgar que as almas humanas existiam anteriormente, como espíritos ou poderes
sagrados, os quais, desviando-se de visão de Deus, se deixaram arrastar ao mal,
e, por este motivo, perderam o amor de Deus, foram chamados almas e relegados
para dentro de um corpo à guisa de punição, seja anátema.
Se algum disser ou
julgar que, por ocasião da ressurreição, os corpos humanos ressuscitarão em
forma de esfera, sem semelhança com o corpo que atualmente temos, seja anátema.
Se alguém disser ou
julgar que a pena dos demônios ou dos ímpios não será eterna, mas terá fim, e
que se dará uma restauração apokatástasis, reabilitação) dos demônios, seja
anátema”. Justiniano em 543 enviou o seu tratado com os anátemas ao Patriarca Menas
de Constantinopla, a fim de que este também condenasse Orígenes e obtivesse dos
bispos vizinhos e dos abades de mosteiros próximos igual pronunciamento. Assim
intimado, Menas reuniu logo o chamado “sínodo permanente” (conselho episcopal)
de Constantinopla, o qual, por sua vez, redigiu e promulgou quinze anátemas
contra Orígenes, dos quais os quatro primeiros nos interessam de perto:
“1. Se algum crer na
fabulosa preexistência das almas e na repudiável reabilitação das mesmas (que é
geralmente associada àquela), seja anátema.
2. Se algum disser que
os espíritos racionais foram todos criados independentemente de matéria e
alheios ao corpo, e que vários deles rejeitaram a visão de Deus, entregando-se
a atos ilícitos, cada qual seguindo suas más inclinações, de modo que foram
unidos a corpos, uns mais, outros menos perfeitos, seja anátema.
3. Se alguém disser que
o sol, a lua e as estrelas pertencem ao conjunto dos seres racionais a que se
tornaram o que eles hoje são por se voltarem para o mal, seja anátema.
4. Se alguém disser que
os seres racionais nos quais o amor a Deus se arrefeceu, se ocultaram dentro de
corpos grosseiros como são os nossos, e foram em conseqüência chamados homens,
ao passo que aqueles que atingiram o último grau do mal tiveram como partilha
corpos frios e tenebrosos, tornando-se o que chamamos demônios e espíritos
maus, seja anátema”.
O Papa Vigílio e os
demais Patriarcas deram a sua aprovação formal a esses artigos!
Como se vê, tal
condenação foi promulgada por um sínodo local de Constantinopla reunido em 543,
e não pelo Concílio ecumênico de Constantinopla II, o qual só se realizou em
553. Neste Concílio ecumênico, a questão da pré-existência e da sorte póstuma
das almas humanas não voltou à baila; verdade é que Orígenes aí foi condenado
juntamente com outros escritores cristãos por causa de erros concernentes a
Cristo.
Em conclusão,
observamos o seguinte:
a) A doutrina da
reencarnação nunca foi comum, nem é primitiva na Igreja Católica (atestam-no os
depoimentos dos antigos escritores cristãos atrás mencionados);
b) Após Orígenes (séc.
III), ela foi professada por grupos particulares de monges orientais, pouco
versados em teologia, os quais se prevaleciam de afirmações daquele mestre,
exagerando-as (daí a designação de “origenistas”, que lhes coube);
c) Mesmo dentro da
corrente origenista, a teoria da reencarnação não teve a voga que tiveram, por
exemplo, as teses da preexistência das almas e da restauração de todas as
criaturas na suposta bem-aventurança inicial;
d) Por isto as
condenações proferidas por bispos e sínodos no séc. VI sobre o origenismo
versam explicitamente sobre as doutrinas da preexistência e da restauração das
almas (o que naturalmente implica a condenação da própria tese da reencarnação,
na medida em que esta tese depende daquelas doutrinas e era professada pelos
origenistas);
e) A doutrina da
reencarnação foi rejeitada não somente pelo magistério ordinário da Igreja
(baseado na palavra da S. Escritura) desde os tempos mais remotos, mas também
pelo magistério extraordinário nos concílios ecumênicos de Lião em 1274 (“As
almas... são imediatamente recebidas no céu”) e de Florença em 1439 (“As
almas... passam imediatamente para o inferno a fim de aí receber a punição”)
Cf. Denzinger-Schönmetzer, Enquirídio nº 857 (464) e 1306 (693). Ver também
Concílio do Vaticano II, Const. Lumen Gentium nº 48: “Terminado o único curso
de nossa vida terrestre, possamos entrar nas bodas”.
Fonte: Prof. Felipe
Aquino - Editora Cléofas
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