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sexta-feira, 6 de abril de 2018

Com a “PSICOLOGIA DA RELIGIÃO”, Erich Fromm, Freud e Jung, nos ajudam a responder a pergunta: Por que se crêr em Deus (deuses) ?







O texto a seguir é fundamental para compreender a relação entre a psicologia oriental e a psicologia atual do Ocidente com relação ao fenômeno religioso.   “Freud, Jung e a Religião” é uma transcrição do capítulo dois da obra “Psicanálise e Religião”, de Erich Fromm. 



Freud discutiu o problema das relações entre a religião e a psicanálise em um dos seus livros mais brilhantes e profundos: “O Futuro de Uma Ilusão”.  Carl Jung, o primeiro psicanalista a compreender que tanto os mitos como as ideias religiosas exprimem verdades profundas, abordou o assunto em uma série de conferências, publicadas sob o título “Psicologia e Religião”. [1]Procurarei apresentar, de modo sumário, a posição dos referidos autores, com uma tríplice finalidade:




1) Indicar a situação atual do problema, e definir assim o meu próprio ponto de partida.

2) Lançar os alicerces para os próximos capítulos, esclarecendo alguns conceitos fundamentais usados por Freud e Jung.

3) Corrigir a opinião, bastante generalizada, de que Freud é “contra” e Jung “favorável” à religião, o que significa uma excessiva simplificação de um problema tão complexo.



Qual é a posição de Freud em relação ao assunto?


Para ele, a religião tem a sua origem no sentimento de incapacidade do homem, quando se vê confrontado com as potências exteriores, provindas da natureza, e com o seu próprio dinamismo instintivo. A religião aparece numa fase precoce do desenvolvimento filogenético, quando o homem ainda não pode usar a sua razão para dominar as primeiras forças, e reprimir ou controlar as segundas.Assim, incapaz de opor-se a tais energias por um movimento racional, ele recorre a afetos opostos, a outras forças emocionais, cuja função é dominar o mais perfeitamente possível o que escapa ao controle da sua razão.Nesse processo, o ser humano desenvolve o que Freud chama uma “ilusão”, moldando-a de acordo com a sua própria experiência individual nos primórdios da vida. Confrontado com forças perigosas, primitivas e incompreensíveis, intrínsecas e extrínsecas, ele volta a etapas infantis, e recorda o tempo em que se sentia seguro com a presença de um pai de sabedoria e poder superiores ao seu, cujo amor e proteção podia conquistar pela obediência e respeito.



Assim, a religião, para Freud, nada mais é que a repetição de uma experiência infantil. O ser humano lida com os elementos ameaçadores do mesmo modo que, quando criança, aprendeu a reduzir a sua própria insegurança pela confiança, admiração e respeito medroso por seu próprio pai. Dentro desse raciocínio, Freud compara a religião com as neuroses obsessivas do período infantil, afirmando que as mesmas condições que desencadeiam a obsessão presidem à estrutura religiosa. A análise freudiana das raízes psicológicas do fenômeno religioso procura esclarecer por que o ser humano chegou a formular a ideia de Deus. Conclui esse autor que a irrealidade do conceito teísta transparece quando se compreende que ele nada mais representa do que a objetivação ilusória de um desejo humano. [2]




Freud não se limita a provar que a religião é uma ilusão. Diz que toda religião constitui um perigo, porque tende a santificar instituições viciosas, com as quais se tem aliado através dos tempos. Além disso,porque ensina às pessoas a acreditarem em uma ilusão e condena o pensamento crítico, provoca certa estagnação intelectual. [3]





Estas acusações pré-Freudianas contra a igreja e a religião foram, aliás formuladas pelos pensadores da Renascença. Mas dentro da orientação freudiana, a limitação intelectual por influência religiosa aparece de modo muito mais enfático do que nas obras do século XVIII. Freud demonstrou que a inibição da crítica em relação a um determinado aspecto conduz a um enfraquecimento em outras esferas do pensamento, diminuindo desse modo a força da razão. A terceira objeção de Freud baseia-se no fato de que a religião coloca a moralidade humana sobre alicerces instáveis. Se a validade das regras éticas repousa na sua origem divina, a própria ética terá de sofrer as mesmas vicissitudes do sentimento religioso.



Desde que Freud acredita que a crença em Deus está progressivamente decaindo, ele chega à conclusão de que a conexão entre religião e moral terá como consequência inevitável a destruição dos valores éticos.Receia ele que a religião venha a comprometer valores que lhe são caros, isto é, a razão, a diminuição do sofrimento humano e a moralidade. Quanto aos ideais em que acredita, Freud definiu-os claramente: amor fraternal entre os homens (Menschenliebe), verdade e liberdade. Razão e liberdade são interdependentes, diz o autor em apreço. Se o homem prescinde da ilusão de um Deus paternal, se encara a sua própria solidão e insignificância no universo, ele se sentirá como a criança longe da casa paterna. Mas o verdadeiro sentido do desenvolvimento humano consiste em sobrepujar esta fixação infantil. A educação deve encorajar a aceitação da realidade. Quando sabe que deve se apoiar apenas nas suas próprias forças, o homem aprende a usá-las eficientemente.



Somente o homem livre, que conseguiu emancipar-se de autoridades que ameaçam e protegem, pode fazer uso do seu poder racional e compreender o mundo e a sua própria função no universo, objetivamente, sem ilusões, mas também com a habilidade de desenvolver ao máximo as potencialidades que lhe são inatas. Somente quando conseguimos abrir mão da nossa dependência infantil, e deixamos de temer autoridades impostas, teremos coragem para pensar independentemente. E a recíproca também é verdadeira: somente se tivermos coragem para pensar, somos capazes de nos emancipar do domínio e da prepotência. É curioso verificar que Freud afirma ser o sentimento de incapacidade oposto ao sentimento religioso. Uma vez que muitos teólogos, e, como veremos mais adiante, Jung, até certo ponto, consideram o sentimento de dependência e de incapacidade como o núcleo da experiência religiosa, a asserção freudiana torna-se muito importante. Exprime, ainda que apenas implicitamente, o seu próprio conceito de experiência religiosa, a saber, de independência e de conhecimento das próprias forças. Procurarei mostrar mais adiante que tal diferença de pontos de vista constitui um dos problemas críticos da psicologia da religião.



Passando agora a Jung, verificaremos que discorda das idéias de Freud a cada passo:



Jung inicia o seu estudo por uma discussão dos princípios gerais que o orientam. Enquanto que Freud, embora não fosse filósofo profissional, encara o problema pelo ângulo psicológico e também filosófico, a exemplo de William James, Dewey e MacMurray, Jung declara no princípio do seu livro: “Restrinjo-me à observação de fenômenos e abstenho-me de qualquer aplicação de considerações metafísicas ou filosóficas.” [4]



A seguir, explica como pode o psicólogo analisar a religião, sem apelar para considerações filosóficas. Qualifica a sua posição de “fenomenológica”, quer dizer, preocupada com ocorrências, acontecimentos, experiências, em suma com fatos. A verdade é um fato e não um julgamento. Por exemplo, em relação à concepção da Virgem, a psicologia preocupa-se apenas com o fato de que existe tal ideia, mas não se interessa em saber se o conteúdo ideológico é verdadeiro ou falso em qualquer outro sentido. Desde que existe, a ideia deve ser considerada como verdade psicológica. A existência psicológica é subjetiva, enquanto a ideia ocorre apenas a um indivíduo; mas torna-se objetiva quando estabelecida por uma sociedade - consensus gentium. [5]




Antes de apresentar a posição de Jung em face do fenômeno religioso, convém examinar criticamente essas premissas metodológicas. O conceito de verdade, proposto por Jung, é insustentável. Declara ele que “a verdade é um fato e não um julgamento”, que “um elefante é verdadeiro porque existe” [6], mas se esquece de que a verdade sempre, e necessariamente, se refere a um julgamento e não à simples descrição de um fenômeno que percebemos sensorialmente e designamos com um símbolo verbal.  Jung declara que uma ideia  é “psicologicamente verdadeira desde que existe”, mas a verdade  é que a ideia “existe”, independentemente da sua natureza delirante ou factual.



A existência de uma ideia não a torna “verdadeira” de modo algum. Nem o psiquiatra poderia trabalhar se desprezasse o conceito de verdade, quer dizer, a relação da idéia com os fenômenos que procura elucidar. De outro modo, como poderia ele identificar um delírio ou um sistema paranóide? Mas o ponto de vista junguiano não é indefensável apenas pelo critério psiquiátrico; Jung defende um ponto de vista relativista que, embora aparentemente mais favorável à religião do que o de Freud, se opõe fundamentalmente a religiões como o judaísmo, cristianismo e budismo, que consideram a busca da verdade como uma das virtudes essenciais do homem, e insistem em que o seu corpo de doutrina, obtido por uma revelação ou pelo poder da razão, não transgride o critério da verdade.



Jung critica as fraquezas da sua própria posição, mas o modo pelo qual procura resolver essas dificuldades iniciais é insatisfatório. Procura distinguir entre “subjetivo” e “objetivo”, apesar da qualidade indiscutivelmente fluída desses termos. Parece querer dizer que o objetivo é mais válido e verdadeiro do que o simplesmente subjetivo. O seu critério para distinguir o subjetivo do objetivo, na base da aprovação por um único indivíduo ou por uma sociedade, não resiste à crítica. Por acaso não temos nós assistido a loucuras coletivas, à loucura de grupos inteiros, no nosso próprio século? Não temos acaso visto milhões de pessoas, falsamente guiadas por suas paixões irracionais acreditarem em ideias tão delirantes e irracionais como as produções de um único indivíduo? O que significa qualificar tais ideias de objetivas? O espírito deste critério de subjetividade e objetividade é análogo ao do igualmente discutível relativismo. Mais especificamente, trata-se de um relativismo sociológico, que faz da aceitação social de uma ideia o critério de sua validade, verdade, ou “objetividade”. [7]




Após discutir as suas premissas metodológicas, Jung define a sua orientação em relação ao magno problema: o que é religião? Qual a natureza da experiência religiosa?



A sua definição de religião não difere essencialmente da adotada por muitos teólogos. Pode ser sumarizada dizendo que a essência da experiência religiosa é a submissão a poderes superiores. Mas será melhor citar Jung diretamente. Afirma ele que religião “é uma observação cuidadosa e escrupulosa do que Rudolph Otto adequadamente chamou “luminosum”, quer dizer, uma existência dinâmica que não seja causada por ato arbitrário da vontade; ao contrário, constitui uma experiência que domina e controla o indivíduo humano, que a vive passivamente. [8]




Havendo definido a experiência religiosa como a dominação por uma força exterior a nós mesmos, Jung passa a interpretar o conceito de inconsciente como um fenômeno religioso. Declara que o inconsciente não pode ser apenas uma simples parte da mente individual; constitui um poder que escapa ao nosso controle, invadindo a nossa própria mente. “O fato de que você percebe a voz do inconsciente nos seus sonhos não prova coisa alguma, porque você pode igualmente ouvir as vozes da rua, sem, entretanto, afirmar que esses últimos fonemas sejam fenômenos interiores. Só é possível considerar a voz do inconsciente como realmente sua, se você admitir a sua personalidade consciente como parte de um todo, ou como um círculo menor contido em um círculo maior. Um simples bancário, que mostra a cidade a um amigo e aponta o edifício do banco, dizendo, “veja lá o meu Banco”, está recorrendo ao mesmo privilégio.” [9]Como conseqüência necessária da referida definição de religião e de inconsciente, Carl Jung chega à conclusão de que, dada a sua natureza, a influência do inconsciente sobre nós “é um fenômeno religioso básico”. [10]  Segue-se que tanto os dogmas religiosos como os sonhos são fenômenos religiosos, porque ambos traduzem a nossa dominação por um poder exterior.



Por acaso, o nosso exame das atitudes de Freud e Jung em relação ao fenômeno religioso confirma a opinião popularmente aceita, de que Freud é inimigo e Jung amigo da religião?



Uma comparação sumária do ponto de vista desses autores mostra que a concepção popularmente generalizada constitui exagerada e perigosa na simplificação.Freud sustenta que o objetivo do desenvolvimento humano é a realização dos seguintes ideais:


1)-Conhecimento (razão, verdade, logos).

2)-Amor fraternal.

3)-Redução do sofrimento (dando-lhes sentido?).

4)-Independência com responsabilidade.


Esses elementos constituem precisamente o núcleo ético de todas as grandes religiões em que se baseiam as culturas orientais e ocidentais, tanto dos ensinamentos de Confúcio e Lao-Tse, como de Buda, dos Profetas e de Jesus. Enquanto que existem algumas diferenças tônicas no conteúdo desses ensinamentos, por exemplo:



“Buda acentuando a redução do sofrimento, os Profetas insistindo na importância do conhecimento e da justiça e Jesus pregando o amor fraternal, nota-se uma concordância fundamental no ponto de vista desses pensadores religiosos, no que diz respeito ao objetivo do desenvolvimento humano e às normas comuns que devem guiar a humanidade.”



CONCLUSÃO



Freud defende o aspecto ético da religião, mas critica a crença teística sobrenatural, que se opõe à completa realização dos mesmos objetivos éticos. Explica os conceitos teístas sobrenaturais como estágios na evolução humana, que foram necessários, e mesmo úteis, mas que perderam a sua razão de ser, e se transformaram em um empecilho para o desenvolvimento mais amplo do homem.


Portanto, A declaração de que Freud é “contra” a religião parece-nos portanto falsa, a não ser que definamos exatamente que tipo de religião, ou qual o aspecto da religião que ele critica, e quais os ângulos da experiência religiosa que defende.



Para Jung, a experiência religiosa constitui fenômeno emocional bastante específico, caracterizado pela submissão a um poder superior, cujo nome tanto pode ser Deus como o inconsciente.





Indiscutivelmente, esta formulação define um certo tipo de experiência religiosa, no cristianismo, por exemplo, representa o acorde fundamental dos ensinamentos de Lutero e de Calvino, enquanto que não condiz absolutamente com um outro tipo de orientação religiosa, como seja a representada pelo budismo.



O conceito de Jung no que concerne à verdade está em oposição aos preceitos do budismo, judaísmo e cristianismo. Neste, a obrigação de procurar a verdade é postulado fundamental. A pergunta irônica de Pilatos, “O que é a verdade?”, simboliza uma atitude anti-religiosa, não apenas do ponto de vista do cristianismo, como de todas as outras grandes religiões.




Sumarizando as posições respectivas de Freud e Jung, podemos dizer que Freud se opõe à religião em nome de uma ética mais universalista e não daquela supostamente oriunda e sustentada pelas religiões, porque para ele o homem realmente esclarecido é espontaneamente moral, sem precisar temer o castigo divino, o que já de si pode ser considerada uma atitude “religiosa”, no sentido amplo e não-dogmático. De outro lado, Jung reduz a religião a um fenômeno psicológico, e ao mesmo tempo eleva o inconsciente à categoria de fenômeno religioso. [11]


Os atuais estudos sociológicos apontam que a fé não é puro sentimento ou apenas a invenção de um grupo de homens mal intencionados e manipuladores. Existe a racionalidade da fé. E no Catolicismo esta inteligência da fé possui uma densidade tal, que seria um pecado de omissão não conhecer e estudar.A Fé é um ato da inteligência; portanto não é um sentimento vago, mas é expressão da mais nobre faculdade que o homem tem: o intelecto,que tenta aplicar-se ao objeto mais nobre que possa ser concebido, ou seja, a Deus.Esse ato do intelecto é movido pela vontade, pois o objeto da fé transcende os limites do intelecto humano (a verdade é mais ampla do que o alcance do nosso intelecto). Sendo assim, o objeto da fé não obriga a um assentimento, não é tão evidente que force a adesão de quem o contempla. A vontade, portanto, deve mover o intelecto para que diga Sim ou Não.


A vontade, porém, só move o intelecto depois do exame das credenciais sobre as quais se apoia cada proposição de fé. Cabe então ao intelecto humano averiguar as razões em virtude das quais o indivíduo pode e deve crer (): estude o Evangelho, a história, a paleografia… e chegue eventualmente à conclusão: “Não é absurdo crer; não é infantilismo ter fé”. Há razões suficientemente fortes para que o homem diga Sim ao objeto de fé, sem trair sua dignidade de homem adulto.Portanto o homem crê inteligentemente. E a própria razão sadiamente crítica que aponta o caminho da fé. Assim evitam-se as superstições e crendices que não resistem ao crivo da razão.


AS FALSAS EXPRESSÕES DA FÉ AUTÊNTICA:


Se a fé tem por objeto algo não evidente por si mesmo, ela é um ato livre. Pode ser traída e rejeitada, como acontece nos casos em que as paixões predominam sobre o intelecto e a vontade. Daí haver falsas expressões da fé, que causam escândalo aos não crentes, mas que não são autênticos gestos de fé.Aliás o senso de justiça obriga a lembrar os grandes benefícios que a Religião proporcionou à humanidade: Sem a verdadeira religião, o homem e a humanidade estaria entregue as supertições e carnificinas materialistas que a história infelizmente já experimentou nos regimes totalitaristas ateus.A religiosidade é um elemento integrante da pessoa humana. O homem bem pode ser considerado um peregrino do Absoluto, um viandante rumo ao Eterno e Infinito. Até os materialistas marxistas procuram um novo estado de coisas e a plena satisfação de seus anseios através da mística do martelo e da foice. Os atritos que a religião causou entre os homens se devem, em grande parte, à valorização dos bens espirituais, que os antigos e medievais julgavam ser superiores aos bens materiais. A religião inspirou a entrega de tudo, até da própria vida, para não renegar o Valor Supremo que é Deus. Quando se avalia o passado, não se pode deixar de levar em conta esse traço próprio da mentalidade de nossos ancestrais.Acontece, porém, que esse elemento integrante da pessoa humana “o senso religioso” não pode ser cego ou desligado da razão. É esta que distingue entre si fé e crendice. É com a inteligência que o homem crê, e não com os olhos da mente fechados pela cegueira do sentimentalismo ou das emoções.



Há dois tipos de ateus: Os que duvidam que Deus existe, e os que se auto-convenceram que Deus não existe .Os primeiros relutam em crer naquilo de que não têm experiência. Os segundos não admitem que possa existir algo acima da sua experiência e opinião pessoal.A diferença é a mesma que há entre o ceticismo e a presunção de onissapiência.Acima da distinção de ateus e crentes existe a diferença, assinalada por Henri Bergson, entre as almas abertas e as almas fechadas.




VOU TENTAR EXPLICAR:



Como tudo o que sabemos é circunscrito e limitado, vivemos dentro de uma redoma de conhecimento incerto cercada de mistério por todos os lados. Isso não é uma situação provisória. É a própria estrutura da realidade, a lei básica da nossa existência. Mas o mistério não é uma pasta homogênea. Sem poder decifrá-lo, sabemos antecipadamente que ele se estende em duas direções opostas: de um lado, a suprema explicação, a origem primeira e razão última de todas as coisas; de outro, a escuridão abissal do sem-sentido, do não-ser, do absurdo.



Há o mistério da luz e o mistério das trevas. Ambos nos são inacessíveis: a esfera de meia-luz em que vivemos bóia entre os dois oceanos da claridade absoluta e da absoluta escuridão.A primeira dá origem às experiências espirituais das quais nasceram os mitos, a religião e a filosofia. A segunda leva à "proibição de perguntar", como a chamava Eric Voegelin: a repulsa à transcendência, a proclamação da onipotência dos métodos socialmente padronizados de conhecer e explicar.



A religião é uma expressão da abertura, mas não é a única. É possível ser ateu e estar aberto ao espírito. Mas o ateu militante, doutrinário, intransigente, opta pela recusa peremptória do mistério, deleitando-se no ódio ao espírito, na ânsia de fechar a porta do desconhecido para melhor mandar no mundo conhecido.Dostoiévsky e Nietzsche bem viram que, abolida a transcendência, só o que restava era a vontade de poder. Aquele que proíbe olhar para cima faz de si próprio o topo intransponível do universo. É uma ironia trágica que tantos adeptos nominais da liberdade busquem realizá-la através da militância anti-religiosa.



Concordo que as religiões podem ter-se tornado violentas e opressivas ocasionalmente, mas a anti-religião é totalitária, excludente e muito mais intolerante.Não é uma coincidência que a Revolução Francesa tenha matado dez vezes mais gente em um ano do que a Inquisição Espanhola em quatro séculos, evidente que não quero com isto justificar os abusos da última.




“Como surgiu o mundo? Como apareceu a vida? Como se processaram as coisas para que se desse algo de tão extraordinariamente complexo, preciso, ordenado e fantástico como é o organismo de um besouro ou de uma gazela? Como se produziu a maravilha extasiante de um olho: o cristalino, a córnea, a retina, a íris, o seu funcionamento harmônico em precisa conexão com o sistema nervoso, com o cérebro, com o sistema circulatório…?” invariavelmente o ateu responderá: “Foi puro Acaso”. Quando um ateu pergunta, a pergunta dele já se trata de uma resposta, ele não quer opiniões, quer  que TODOS concordem com ele e com suas frustrações pessoais.Você pode perguntar: “Um acaso só?” Ele sorrirá com ar de suficiência e esclarecerá, como se segredasse a sabedoria aos ignorantes: “Milhões, milhões de Acasos, meu amigo, ao longo de milhões de anos”. E a palavra milhões, que não explica, sozinha, absolutamente nada, o deixará perfeitamente satisfeito, como se fosse a explicação mais genial, “racional”, e cientificamente comprovada, que completa de toda a questão. No entanto, os que se têm dado ao trabalho de analisar cientificamente as possibilidades de que apenas duas dúzias desses milhões de acasos se produzissem, chegam à conclusão de que, pelo cálculo de probabilidades, essa conjunção de eventos fortuitos, perfeitamente concatenados, é tão improvável que, na prática, fica sendo impossível.Só pelo raciocínio, sem necessidade de fé, grandes filósofos pagãos como Platão e Aristóteles, insuperados ainda hoje em muitas das suas idéias, chegaram à conclusão de que o mundo postula, racionalmente, a existência de uma INTELIGÊNCIA SUPREMA, ou de um GRANDE ARQUITETO, uma causa não causada, que é a causa de todas as causas.



Há algo que nos permita afirmar se o dia é claro ou escuro, se perto de nós há gente ou não, se pela rua vem vindo carros, se alguém nos aponta uma arma?”, a resposta deverá ser sempre: “Sim, a nossa vista”.Só que essa resposta, enunciada de maneira tão simplista, é uma estupidez. Todos sabemos que a vista pode ser boa ou má, sadia ou doente, nítida ou confusa, ou até cega e nula.Exatamente a mesma coisa acontece com a consciência. Em princípio, poderia e deveria enxergar o bem, o justo, o certo, mas para isso precisaria estar sadia, e não moralmente doente. Não nos esqueçamos de que, afinal, a consciência é um juiz, que avalia uma decisão a tomar, uma conduta, uma omissão, e diz: “Isto está certo”, “Isto não tem nada demais”, “Isto está errado”. Mas, nesta avaliação, o que é absolutamente decisivo é saber qual é o referencial, a “norma de valor” que permite julgar o certo e o errado ?.



Tudo é permitido?Justamente pela relação que tem com este assunto, vem a propósito lembrar um bem conhecido episódio do romance de Dostoievski, Os Irmãos Karamázovi. Os três irmãos estão no centro do enredo, juntamente com um criado do pai, filho bastardo deste e, portanto, meio-irmão dos três. O intelectual da família, Ivã Karamazov, repete filosoficamente a famosa frase: “Se Deus não existe, tudo é permitido”.Sem lei nem rei : É impossível falar em bem e mal, em verdades morais que sejam normativas, em valores válidos e estáveis num mundo assim; isso seria tão absurdo como falar da rota certa de um barco que não tem rumo predeterminado, nem bússola, nem carta de navegação, e se limita a rodopiar loucamente no centro de um redemoinho.Se não se admite a existência de UMA INTELIGÊNCIA CRIADORA E ORDENADORA, não há modo de encontrar uma base sólida, um fundamento firme para uma lei moral digna de ser tomada em consideração pela nossa consciência. E, realmente, até agora, todas as tentativas de elaborar uma ética sem Deus têm sido falhas.



Deste modo, sendo tudo relativo, chega-se a aberrações como as que o nosso século vem contemplando: hoje o racismo é um mal abominável, e é mesmo, aos olhos de Deus, mas já foi julgado como um bem gloriosíssimo em vários países, em pleno século XX (veja-se o Terceiro Reich, a África do Sul e parte sensível da população da América do Norte).Matar crianças não-nascidas, pedofilia, Zoofilia, acabar com velhos, pessoas deficientes, e doentes incômodos (via eutanásia), tráfico de mulheres para países com deficiência populacional, retirada de órgãos de pessoas pobres e improdutivas para atender demandas deste mercado, criação de clones e seres humanos unicamente para retirada de órgãos, será algum dia considerado como um bem?Se a vida não tem sentido, e nem existe uma inteligência superior, criadora, ordenadora e sustentadora, então tudo fica no ar, tudo é relativo: vale qualquer coisa, ou seja, impera o caos. No epicentro do caos, que espécie de consciência terá a possibilidade de julgar?



O mundo moderno infelizmente tornou-se absolutista. As monarquias absolutistas européias tiveram o apoio teórico de pensadores como Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes. Como bem concluiu Ernst Cassirer ao estudar Maquiavel e, como é evidente para quem conhece a teoria política de Hobbes, o Estado tornou-se autônomo, isto é, ele cria suas leis e não há nenhuma barreira religiosa, moral ou intelectual que se possa opor à sua vontade soberana.Hobbes chegou ao cúmulo de enunciar a seguinte proposição:“O justo e o injusto não existem antes que a soberania fosse instituída; sua natureza depende do que é ordenado, e por si mesma cada ação é indiferente: justa ou injusta, depende do direito do soberano. Por isso, os reis legítimos, quando ordenam uma coisa, a tornam justa pelo simples fato de que a ordenam; proibindo-a, a tornam injusta, simplesmente porque a proibiram.”Realmente, tanto o absolutismo quanto o liberalismo iluminista concedem teórica e praticamente um poder absoluto ao Estado, o qual está acima da moral, da religião e mesmo da razão, visto que, em ambos os casos, o que impera é a Vontade. Para o iluminismo, é a vontade geral que transforma uma coisa em certa ou errada, em criminosa ou legal. Ela não é limitada pela razão, pois é absoluta. Foi esse poder absurdo sem restrição nenhuma que deu aos nazistas, posteriormente, o direito de fazer as suas criminosas leis racistas e determinar o extermínio dos judeus e dos doentes mentais.



Exatamente por isso o Estado Moderno tem que ser já não mais laico, mas ateu, pois quer ser absoluto, e não poderia ser impedido em suas decisões por nada, nem mesmo por Deus. Esse Estado, porém, não tem apenas essa pretensão, como notou Paul Hazard, os iluministas desejavam e acreditavam que “instituiriam um novo direito, sem qualquer relação com o direito divino; uma nova moral, independente de qualquer teologia; uma nova política que transformaria os súditos em cidadãos. Essa é a mentalidade que construiu o Estado Moderno. Como podemos notar, esse Estado possui as seguintes características:


1. É absoluto.
2. É laico.
3. Reduz a religião ao foro íntimo, como uma questão subjetiva e particular.
4. Propõe-se, por meio do progresso e pela construção de uma ordem civil sem Deus, dar a paz e a felicidade ao homem.
5. É antropocêntrico, pois julga que o homem deve buscar em si a própria razão de ser e a felicidade.


Neste  estado já não mais laico, mas ateu e absoluto, há uma religião, a do Modernismo, para a qual fé e razão são coisas separadas e mesmo opostas. Para essa religião, a fé seria fruto de uma experiência interior, espiritual, subjetiva e inefável do crente com a divindade. A razão, pelo contrário, seria uma potência comum a todos os homens, e sua função seria tentar conhecer e controlar o mundo material. O mundo da razão teria leis gerais, isto é, leis que seriam fruto de generalizações feitas pela razão humana. O mundo da fé, pelo contrário, seria totalmente individual, subjetivo e único para cada homem. O mundo da fé seria irracional e o mundo da razão, claro, seria racional. Assim, tanto o mundo quanto a razão seriam contrários a fé. O mundo da razão e o mundo da fé estariam absolutamente separados. Este Estado Moderno e ATEU portanto, é péssimo e muito adequado aos planos do triunfo do absolutismo relativista, que primando pela racionalidade da deusa razão, poderá como no passado cometer as piores irracionalidades em nome desta mesma razão. Compete aos cristãos dar testemunho da autêntica religião, para que, mediante este testemunho claro e firme, aqueles que buscam o verdadeiro Absoluto, embora não tenham fé, se entusiasmem pela beleza de uma vida reta, feliz e plena, submissa a ordem absoluta de Deus.


“Caminheiro, caminhemos, pois é caminhando que se faz caminhada...”




NOTAS DE REFERÊNCIAS:



[1] Terry Lectures, 1937. ( Nota de Erich Fromm)

[2] O próprio Freud, entretanto, esclarece que uma ideia não é obrigatoriamente falsa pelo simples fato de corresponder a um anseio humano. Já que muitos psicanalistas têm, uma vez por outra, condenado ideias que traduzem emoções, desejo solicitar atenção para a declaração de Freud. Na verdade,  existem muitas idéias verdadeiras, do mesmo modo que concepções falsas, a que o homem chega porque prefere acreditar na realidade das mesmas, sejam elas de caráter religioso, filosófico, sociológico, psicológico, e ou ideológico. A maioria das descobertas repousa no interesse de provar uma verdade (ponto de vista) desejada. A presença de semelhante anseio autoriza uma certa suspeita, mas, por si só, não invalida o conceito ou conclusão. O critério de validade não decorre da existência de uma motivação psicológica, mas das evidências lógicas positivas ou negativas inerentes ao conceito ou conclusão.  (Nota de Erich Fromm)


[3] Ele acentua o contraste entre a brilhante inteligência das crianças e o empobrecimento da razão adulta (Denkschwaeche). Sugere que a natureza íntima do homem talvez não seja tão irracional quanto o indivíduo se torna sob a influência de ensinamentos irracionais. (Nota de Erich Fromm)


[4] “Psychology of Religion”, p.2.  (Nota de Erich Fromm)


[5] Ibidem, p.3. Os itálicos são meus. (Nota de Erich Fromm)


[6] Ibidem, p. 3.  (Nota de Erich Fromm)


[7] Conforme a discussão de ética universal e ética socialmente imanente, no livro “Man for Himself”, Erich Fromm, Rineart & Co., 1947, pp.237-244. (Nota de Erich Fromm)


[8] Jung, “Psychology of Religion”, p.4, itálico do autor. (Nota de Erich Fromm)

[9] Ibidem p. 47. Jung está se referindo ao inconsciente individual como parte do grande inconsciente coletivo. (Nota da edição em língua portuguesa)


[10] Ibidem, p.46. (Nota de Erich Fromm)



[11]  É interessante notar que a posição de Jung no seu livro “Psicologia e Religião” havia sido adotada pelo seu antecessor William James, ao mesmo tempo que as ideias gerais de Freud foram defendidas, nos seus pontos essenciais, por John Dewey. William James refere-se à atitude religiosa como “uma atitude de sacrifício e impotência (.....) que o indivíduo é impelido a adotar em relação ao seu modo de conceber o divino”. (“The Varieties of Religious Experience”, Modern Library, p. 51). Como Jung, James compara o inconsciente com o conceito teológico de Deus quando diz: “A tese dos teólogos, de que o homem religioso é impelido por um poder exterior, encontra justificativa no fato de que as irrupções de elementos subconscientes assumem ante o indivíduo aparência de realidade objetiva, sugerindo-lhe a existência de um controle externo.” (Ibidem p. 503). Na base desta conexão entre o inconsciente (ou subconsciente) e Deus, William James aproxima a psicologia da religião. John Dewey distingue religião e experiência religiosa. Para ele, os dogmas religiosos sobrenaturais enfraqueceram a atitude religiosa do homem. “A oposição entre valores religiosos, como eu os concebo”, diz ele, “e as religiões não pode ser harmonizada. Justamente porque a libertação desses valores é tão importante, a identificação dos mesmos com os credos e cultos religiosos deve ser desfeita”. (“A Common Faith”, Yale University Press, p. 28). Como Freud, Dewey declara: “O homem não tem usado de modo amplo os poderes que lhe são inerentes para melhorar as próprias condições de vida, porque tem esperado muito do auxílio divino e da natureza.” (ibidem, p. 46). Consulte-se também a posição de John MacMurray na obra “The Structure of Religious Experience” (Yale University Press, 1936). Este autor acentua a diferença entre emoções religiosas racionais e irracionais, sentimentais e viciosas. Em contraste com a orientação de Jung, MacMurray declara: “nenhuma atividade reflexiva pode estar justificada, a não ser que seja verdadeira e válida” (ibidem, p. 54).    (Nota de Erich Fromm)


Adaptado de: Filosofiaesoterica.com