Em 20 de janeiro de 1971, seis homens invadiram a casa dos Paiva e
levaram o ex-parlamentar para prestar depoimentos no quartel da 3ª Zona Aérea,
próximo ao aeroporto Santos Dumont, na capital carioca. A ação se deu após agentes do regime militar terem encontrado uma
carta de Helena Bocayuva, militante do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de
Outubro), endereçada a Rubens Paiva. O grupo de luta armada ficou conhecido
pelo sequestro do embaixador Charles Elbrick, em 1969, com Bocayuva como
fiadora da casa em que o americano foi mantido. De acordo com a versão oficial do governo à época, um grupo
terrorista teria levado o ex-parlamentar enquanto agentes militares
transportavam-no para o Alto da Boa Vista, bairro na zona norte do Rio. Ele
teria fugido do carro em que estava em meio a uma troca de tiros. (via:
nexojornal.com.br)
Rubens Paiva, um "esquerdista radical" nos
documentos da STB
Nos arquivos da StB em Praga, encontramos a pasta de objeto nº 11.778, intitulada "Pessoas da vida política e econômica no Brasil". Nela, há duas cartas com relatórios oficiais sobre o político brasileiro e ex-deputado federal do PTB, eleito em 1962, Rubens Paiva.
Ambos os relatórios foram escritos em 27 de março de 1964 por um "oficial do serviço secreto comunista tchecoslovaco", que operava no Brasil, de
codinome MOLDÁN.
O conteúdo do relatório mostra que MOLDÁN
[ou melhor, Josef Mejstřík], se interessou por esse notório membro do
parlamento. Tendo o auxílio da jornalista comunista Maria da Graça Dutra, e dos
agentes LOSADA e LENCO, fora feito um mapeamento do espectro ideológico de
muitos deputados brasileiros, a fim de se saber a respectiva orientação
política de cada parlamentar. O motivação que levara Moldán a conduzir esse
trabalho não se tratava de nenhuma tarefa de inteligência em específico, mas de
um pedido oficial feito pelo embaixador tchecoslovaco no curso de suas
atividades diplomáticas legais. No entanto, todas as informação colhidas sobre
Paiva foram envidas à sede da inteligência de StB, pois, por óbvio, aquele
conteúdo adquirido, mais cedo ou mais tarde, poderia ser útil.
Vamos ver o que o espião tchecoslovaco escreveu sobre este deputado:
Rubens Paiva, membro do PTB, um dos vice-presidente em uma das comissões parlamentares na Câmara. Pertence a uma ala mais esquerdista do partido, integra o denominado “Grupo compacto”, que reúne os deputados mais radicais dos partidos do PTB, PSD e UDN, que estão sob a influência da PCB, juntamente com a esquerda mais radical.
Rubens Paiva é conhecido como deputado radical esquerdista, mas não se diz comunista...Eu o conheci no ano passado, em algum momento no final de maio durante minha visita à Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, ele me foi apresentado junto com outros membros dessa comissão. Então eu passei a encontra-lo por minha própria iniciativa enquanto estava no parlamento (…) com o passar do tempo, nos tornamos amigos e o contato estava em tal estado que poderia ser desenvolvido. Eu verifiquei isso mais cedo com a ajuda de Maria da Graça Dutra, LOSADA e LENCO, juntamente com muitos outros nomes … Todos os três responderam em uma avaliação consistente sobre R.P. como sendo um nacionalista radical, combativo político. Aparentemente ele não é membro da PCB.
Na segunda nota de MOLDÁN, datada do mesmo dia, a informação acima
fora completada!
Ele escreveu que "estava convencido de que poderia usá-lo
para realizar operações ativas envolvendo sua atuação no parlamento". Até
então, ele não foi usado porque, durante os dias em que executada AO
TORO, não estava presente no parlamento (Para saber mais sobre LOSADA,
LENCO e a AO TORO, veja o capítulo XV do nosso livro, 1964 O Elo Perdido. O
Brasil nos arquivos do serviço secreto comunista, sobre a AO LUTA).
O agente tcheco avisa que o contato com o deputado se
intensificará e, de acordo com os resultados, ele verá se poderá desenvolvê-lo.
Como é fato, a pretensão de recrutamento acabou não se realizando.
E sabemos o porquê, pois os documentos são datados de 27 de março de 1964…
Vladimír Petrilák
Fonte - https://stbnobrasil.com/pt/rubens-paiva-um-esquerdista-radical-nos-documentos-da-stb
Bolsonaro: a infância do presidente entre quilombolas,
guerrilheiros, e a rica família de Rubens Paiva
Author,Ingrid Fagundez - Role,Enviada da BBC News Brasil a Eldorado (SP)
Em Eldorado Paulista, há uma pequena praça onde os sinos da igreja tocam de meia em meia hora. Ali, debaixo de árvores de copas largas, moradores conversam preguiçosamente, protegendo-se do sol. As lojas e restaurantes dos arredores ficam vazios nas tardes quentes, quando a cidade parece inabitada. Só meninos arriscam-se na rua, rumo ao rio Ribeira. Para encontrar vestígios do presidente em Eldorado, no interior de São Paulo, onde ele morou dos 11 aos 18 anos, é necessário olhar para além do espaço. É preciso recorrer à história.
Naquela praça, em 1970, o guerrilheiro Carlos Lamarca baleou três
pessoas em um tiroteio com a polícia militar enquanto Jair, então com 15 anos,
corria para casa. O adolescente, que havia saído da escola, testemunhou de
perto a operação de caça a Lamarca, que o levou a alistar-se no Exército.
Uma das torres do santuário foi doada por Jaime Almeida Paiva, homem mais rico e "coronel" da pobre Eldorado por vinte anos. Dono de uma das maiores fazendas do Vale do Ribeira, "Dr. Jaime" era pai do deputado opositor à ditadura e desaparecido político Rubens Paiva, alvo de acusações de Bolsonaro durante toda a vida pública do hoje presidente. Apesar de Bolsonaro ter nascido em Glicério e vivido em várias partes do Estado de São Paulo, é em Eldorado que alguns de seus temas favoritos têm origem.
A BBC
News Brasil foi à cidade de 15 mil habitantes para narrar os fatos que ajudaram
a formar as ideias da mais destacada liderança de direita no Brasil
O domínio dos Paiva
Bolsonaro é um grande crítico de Rubens Paiva, ex-deputado federal que fez oposição ao regime militar e desapareceu em 1971. Paiva aparece com frequência nas falas do presidente sobre a ditadura, um dos temas recorrentes em seus discursos. No plenário da Câmara, Bolsonaro chegou a negar que o deputado tenha morrido durante uma sessão de tortura, como foi atestado pela Comissão Nacional da Verdade, e, ao longo dos anos, fez várias acusações contra ele. Uma delas é a de que Rubens Paiva ajudou o ex-capitão do Exército Carlos Lamarca a montar uma guerrilha no Vale do Ribeira, onde fica Eldorado..."Por coincidência, a família de Rubens Paiva tinha uma fazenda na cidade de Eldorado Paulista, no Vale do Ribeira, São Paulo, chamada Fazenda Caraitá. O sr. Rubens Paiva fez com que o guerrilheiro, traidor e desertor Lamarca ocupasse a sua fazenda e lá fizesse uma base de guerrilha", disse Bolsonaro em sessão de 2013.
A fazenda Caraitá sustentou a economia de Eldorado por mais de vinte anos. O "doutor" Jaime Paiva, como moradores ainda chamam o empresário de Santos que se tornou um grande fazendeiro do Vale do Ribeira, começou a comprar terras ali em 1941. Sua propriedade só foi vendida em 1975, depois de Bolsonaro mudar-se para Resende (RJ), onde começou sua carreira militar. Enquanto o presidente morava na cidade – e por muitos anos antes disso –, Jaime Paiva era o chefe de boa parte da população. Ele tinha plantações de banana e laranja, criações de gado e uma serraria de móveis, além de ser responsável pela vida social do lugar: a festa da Rainha da Laranja, a mais importante do ano, era organizada pela família. Mais do que uma liderança informal, Paiva foi prefeito duas vezes. Na primeira, de 1956 a 1959, fez a ponte sobre o rio Ribeira e uma das escolas locais. Na segunda, em 1968, eleito pela Arena, partido da ditadura, ficou pouco menos de um ano...Rubens Paiva tinha 12 anos quando o pai comprou as primeiras terras por ali – ele e os irmãos estudaram em colégios de elite em São Paulo.
"Não se tinha acesso ao Paiva, só aos empregados",
Nizilene retoma o assunto. "Eram muito ricos... mas ele fazia a festa da
Rainha da Laranja e todos iam."
Um
professor de História aposentado falava dos "dois lados" de Paiva:
"Foi um marco histórico – para o bem e para o mal. Como todo mundo trabalhava lá, quando a fazenda fechou, a cidade entrou em decadência. Mas ele era amado e odiado, sabe?", disse José Milton Galindo.O tom é frequente nas declarações sobre o empresário que fez fortuna em Santos, como despachante. De um lado, ele era o homem visionário que alargou as ruas da antiga área de garimpo – Eldorado foi batizada assim em razão do primeiro ciclo do ouro no Brasil –, desenvolvendo o urbanismo local. De outro, era o coronel autoritário que não conversava com o povo, trazia empregados do Nordeste no pau de arara e pagava os funcionários com "boró", moeda própria que só valia nos comércios da região. "Quando tinha a festa da Laranja, se ele cismava com a pessoa, quebrava o copo na mão dela com a bengala. Andava cheio de capangas em volta", diz Antônio Carlos de Melo Cunha, de 64 anos, engenheiro agrônomo aposentado e amigo de Jair Bolsonaro dos tempos de colégio. Foi de seu avô que Paiva comprou as terras da fazenda.
Em livro sobre o caso de Rubens Paiva, Segredo de Estado, o jornalista Jason Tércio narra que até o deputado chamava o pai de "coronel" e discutia com ele sobre política. Em diálogo reconstruído por Tércio durante a Ceia de Natal de 1970, na fazenda Caraitá, Jaime teria dito a Rubens:
"a única política que tu deve fazer com os militares é a política da boa vizinhança"
Filho do deputado, o escritor Marcelo
Rubens Paiva conta que o pai era brigado com o avô e por isso ia pouco à
fazenda. Ele diz que não sabe responder aos comentários sobre Jaime, porque
morava no Rio com os pais e a irmã.
Nessa época, Rubens havia voltado do exílio há anos, depois de ter
seu mandato pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) cassado após o golpe de
1964, e trabalhava como engenheiro civil. No entanto, ele ainda ajudava
perseguidos políticos a sair do país e mantinha contato com exilados.
"Ato Contínuo, 1970. Aí, eu entro na história", disse Bolsonaro durante uma sessão da Câmara em setembro de 2014
"Eu tinha 15 anos de idade e morava na cidade de Eldorado
paulista. Ali – já mudou de nome – existia a Fazenda Caraitá. Proprietário:
família Rubens Paiva. Rubens Paiva tinha uma chácara ali. Do cocoruto, do topo
da cidade de Eldorado Paulista, cidade bastante pequena, via-se a chácara de
Rubens Paiva, a montante do Ribeira de Iguape..."
A dois quilômetros do centro de Eldorado, a fazenda, que não se chama mais Caraitá, já não pertence aos Paiva, mas ainda está de pé. Hoje ela é de um produtor de bananas, que usa a terra para plantação, mas não mora ali. Apesar de descuidado, o casarão de teto europeu mantém os ares de "mansão", como era chamado pelo povo da cidade.As paredes azuis, brancas na época de Rubens Paiva e Bolsonaro, ainda exibem as sacadas estreitas que permitiam aos hóspedes uma vista privilegiada do grande jardim e, à esquerda, dos hectares de mexericas e bananas. Os quartos são oito ou nove, pequenos, segundo os filhos do atual proprietário, que oferecem apenas um tour pelo terreno porque a casa está fechada. Nele, há, como havia nos anos 1960, duas piscinas – adulta e infantil –, uma casa de hóspedes e outra de bonecas, uma casinha de cachorro em forma de castelo, e um mirante para dois lagos artificiais. Na casa de bonecas, de dois andares, com sala, cozinha e quarto com varanda, mesas e cadeiras em miniatura ocupam o espaço perto da porta, como se alguém ainda brincasse por lá.Antes de entrar pelo alto portão de ferro que demarca o espaço do casarão, percorre-se uma estrada de terra. Paralelas a ela, à direita e à esquerda, pequenas casas de arquitetura semelhante estão enfileiradas.
"Tinha
dezenas de casas aqui", diz um dos filhos do proprietário, ao parar sua
caminhonete em frente ao portão. "Eram dos funcionários do Paiva. Isso
aqui era uma cidade, tinha até escola." A maior parte das construções está
abandonada – poucas estão ocupadas por empregados do dono atual.
A relação de Eldorado com os Paiva era, de alguma forma, dividida
pelo portão da fazenda. Do lado de fora, para além do bairro privado dos
funcionários, a vida do povo seguia alheia aos luxos do casarão. O Vale do
Ribeira era e ainda é uma das regiões mais pobres do Estado de São Paulo, com
uma renda média de dois salários mínimos, segundo o IBGE.
Nos anos 1970, a situação era mais dramática. O emprego fora de Caraitá era escasso e o dinheiro, difícil. As famílias pobres se viravam como podiam: pescavam, vendiam produtos de porta em porta, cuidavam de fazendas.No caso dos Bolsonaro, o patriarca Percy Geraldo Bolsonaro trabalhava como dentista prático: fazia extrações, obturações, próteses, mesmo sem ter instrução universitária. Percy era a única opção numa comunidade sem dentistas e chegou a ser indiciado em inquérito policial por "exercício ilegal de medicina, odontologia ou farmácia", mas foi absolvido em 1973.
Boa parte das pessoas entrevistadas em Eldorado teve dentes
extraídos por Percy, de quem lembram com carinho. "A gente era muito
humilde na época, então os dentes iam estragando e o pai mandava tirar",
conta a vice-diretora Nilzilene. "Geraldo era uma pessoa maravilhosa.
Quando eu tinha uns 8, 9 anos, fui tirar um dente com ele. Depois que acabou,
ele disse para minha mãe: 'Agora leva a menina pra tomar um sorvete'."
Apesar
de trabalhar muito, os ganhos de Percy Bolsonaro nem sempre eram suficientes
para sustentar a mulher e os seis filhos.
Fumando um cigarro atrás do outro no pequeno consultório, às vezes
ficava até tarde da noite com o 'buticão' – um grande alicate de ferro – em
mãos, arrancando molares. Ao final do serviço, era compreensivo com os clientes
que não podiam pagar: quem não tivesse dinheiro, que desse galinhas ou porcos.
"Eles
eram muito pobrezinhos, milha filha", diz Lúcia Lima Melo, de 72 anos, do
portão da casa onde mora há 47 anos, ao fim da entrevista com ela e seu marido,
Reinaldo. Durante anos, eles foram vizinhos dos Bolsonaro, e Reinaldo tornou-se
amigo de Percy.
Na
conversa com a BBC News Brasil, ele contou que o dentista prático era conhecido
por seu senso de humor e educação!
Era atencioso, mas também não perdia a piada. Chamava os conhecidos de
"morfiosos", outro jeito de dizer "leprosos", explicou o
vizinho. Reinaldo riu ao lembrar as tiradas do amigo, como quando ele repetia
que "preferia ter as filhas todas prostitutas do que filhos viados".
"Quantos quartos têm ali?", a reportagem pergunta a Lúcia, ainda no portão. A antiga casa dos Bolsonaro, hoje pintada de azul claro, é a próxima, à direita. "Acho que só dois", ela responde, olhando para o lado. "Então era pequeno para a família", a reportagem diz. "Eles não tinham dinheiro, não", ela abaixa a voz. "Não faltava comida, mas bens eles não tinham: carro, casa. Eram pobres mesmo. Mas que bom que graças a Deus chegaram onde chegaram, né", ela sorri por entre as barras de ferro.
Para ajudar em casa, Jair pescava e buscava maracujá no mato para vender, além de descarregar caminhões de adubo e, numa brincadeira cheia de desejo, procurava ouro nos ribeirões pela madrugada. Vivendo no aperto, a maioria da população precisava coexistir com a riqueza dos Paiva, numa convivência descrita como amigável por alguns e distante por outros. Os últimos argumentam que a relação era boa só para os "puxa-sacos" da família, muitos deles membros da Igreja. Como Aracy, mulher de Jaime, era católica fervorosa, padres e coroinhas que iam rezar missa na fazenda acabavam se aproximando do casal.
"Fui amigo dos netos de Paiva. Conheci Rubens Paiva, convivi
com Marcelo e os irmãos", diz Antônio Avelino de Melo Cunha, policial
aposentado e dono de uma pousada em Eldorado que hoje mora no litoral paulista.
Assim como Antônio, o agricultor Celso Luiz Leite, de 63 anos, cuja irmã casou com um dos irmãos de Bolsonaro, era coroinha. Ele se lembra de Aracy abraçando-o depois das missas. Se "doutor" Jaime tinha fama de durão, sua mulher era vista com benevolência. "Quando o resto da família vinha para cá, nos finais de semana e férias, eu ia lá ajudar nas missas, já que o padre era puxa-saco. Mas ela era muito simpática", diz Celso, sentado em seu sítio, às margens do Ribeira.
Celso dá de ombros ao falar que o fazendeiro: "não dava muita bola para gente. Só para a turma com mais grana"...
Apesar de não ser um cara "ruim", como Celso repete, Jaime e sua família não eram sempre bem vistos pelos moradores. Entrevistados descreveram que nos meses de verão, quando filhos e netos visitavam a fazenda, era comum ver os Paiva cavalgando seus cavalos de raça pelas ruas. Recostado em seu sofá, Antônio Carlos, um dos amigos de infância de Bolsonaro, tenta encontrar uma palavra para definir a família. "Eles eram... como eu posso dizer?", ele coça a cabeça enquanto sua mulher o observa da porta da cozinha. "Eles eram... vistos com outros olhos! O pessoal via como gente rica, né." Antônio fala de uma vez em que visitou a fazenda para fazer companhia a uma das netas de Jaime Paiva, que estava se tratando de uma leucemia. Adolescentes, ele e a mulher foram até lá com alguns amigos para conversar com ela e tocar violão.
"Nessa época, íamos por causa da doença dela, mas não
tínhamos amizade com eles, não", diz sua mulher, Mara Cristina, apoiada no
batente da porta. "Os jovens de lá não davam muita bola para os
daqui."
Por "lá" também passava Rubens Paiva que, segundo relatos dos moradores entrevistados, tinha uma chácara anexa à do pai com uma pista de pouso para chegar à cidade de avião. Após a publicação desta reportagem, o filho de Rubens Paiva, Marcelo Rubens Paiva, disse que a chácara não pertencia a seu pai, mas a seu tio Carlos e que a pista de pouso ficava na cidade vizinha de Registro e não em Eldorado. A BBC News Brasil foi ao cartório registro de móveis, onde não teve acesso aos documentos sobre as terras, mas apenas foi informada que a família começou a comprar terrenos na região em 1941 e vendeu a propriedade em 1975. Um dos moradores de Eldorado mais próximos do presidente, o funcionário público aposentado João Evangelista Correa, conta do dia em que entregou um bolo a Rubens a pedido da confeiteira local. Ele e um colega caminharam os dois quilômetros até a fazenda na esperança de ganhar um trocado pelo serviço. Chegando lá, João diz que Rubens olhou irritado para os meninos: "o que vocês querem aqui? Falei que ia buscar na cidade". Ao responderem que a confeiteira havia prometido uma gorjeta, teriam ouvido um "não" resoluto.
"Não tinha amizade com pobres", diz João Evangelista...
Ele é um dos poucos que narra interações de Bolsonaro com os Paiva, já que quando adolescente Jair não era um grande frequentador das festas da Rainha da Laranja ou do clube Caraitá, fundado pela família. Seus conhecidos dizem que ele preferia pescar a ir a bailes. João conta que, apesar da eventual irritação, Rubens convidava os meninos para jogar futebol nas terras da família. Bolsonaro teria participado de algumas partidas.
Quando parlamentar, ao citar mais uma vez as supostas relações entre os Paiva e o guerrilheiro Carlos Lamarca, Bolsonaro disse que conheceu o ex-deputado!
"Eu
sou paulista do Vale do Ribeira, de Eldorado. Ali conheci Rubens Paiva, com 10
anos de idade", disse em sessão da Câmara de março de 2016.
Além de jogar bola na fazenda de Rubens,
Bolsonaro teria sido, nas palavras do agricultor Celso Leite, "um dos
maiores ladrões de mexerica da família Paiva". Ele conta isso aos risos,
explicando que os furtos, comuns entre os meninos locais, eram "só farra
mesmo". Para proteger sua plantação, Jaime Paiva teria colocado um vigia
de plantão e um cão de guarda, que teria corrido atrás de Celso e de Bolsonaro
enquanto os meninos fugiam em direção ao rio.
Bolsonaro e os Paiva
Bolsonaro não parece ter memórias felizes dos Paiva. A biografia
Mito ou Verdade: Jair Messias Bolsonaro, escrita por seu filho Flávio
Bolsonaro, indica que as diferenças de classe incomodavam o presidente.
No livro, Flávio escreve que "parte considerável do território da cidade de Eldorado Paulista era de domínio particular, uma fazenda enorme chamada Caraitá – que hoje seria um latifúndio".Na mesma página, é mencionada a chácara de Rubens Paiva, que aparece como irmão e não como filho de Jaime Paiva – Rubens tinha um irmão chamado Jaime, mas este não era dono da fazenda, como dito na biografia.
Nessa chácara, escreve Flávio, "tinha piscina, algo raro à
época, mas que não era socializada com a criançada da vizinhança – que ficava
apenas admirando, de longe, onde os filhos da família Paiva se
refrescavam".
Mito ou Verdade ainda narra que os filhos de Rubens Paiva eram da mesma faixa etária de Bolsonaro e, "não raras vezes", eram vistos comprando picolés Kibon em Eldorado, "inacessíveis à garotada local, que ao ver um deles jogar o palito fora, corria na expectativa de estar premiado com 'vale um picolé' marcado na madeira". Sobre esse episódio, um dos filhos de Rubens Paiva, Marcelo Rubens Paiva, diz que "não tomava sorvete" e "não tinha irmãos", mas apenas irmãs. "Talvez ele me confunda com meus primos", ele diz. "Quando ele tinha 16 anos, eu tinha 11 e foi a última vez que fui a Eldorado."
No parágrafo seguinte do livro é citada, de novo, a suposta ligação entre os Paiva e Lamarca que, por sua afinidade com a família, teria escolhido uma área próxima à fazenda para montar a guerrilha. A afirmação foi feita em vários discursos de Bolsonaro na Câmara. "A verdade está lá em Eldorado Paulista!", Bolsonaro disse no plenário da Casa em fevereiro de 2013. "Está todo mundo vivo lá. A Fazenda Caraitá está em cartório. A base de renda do Lamarca está lá na fazenda da família Paiva. É muito fácil verificar isso."
Em visita
ao registro de imóveis da cidade, a BBC News Brasil confirmou que a compra e
venda da fazenda estão, sim, documentadas!
Mas nada indica que os Paiva tenham fornecido recursos a Lamarca. Nem os antigos amigos do presidente, João Evangelista e Antônio Carlos, dizem conhecer essa versão da história. Apesar de não haver indícios de ajuda financeira, o guerrilheiro chegou a cruzar as terras da família durante sua fuga, em 1970, como escreveu Marcelo Rubens Paiva em texto publicado no jornal Folha de S.Paulo em 1994.
"Meu tio Jaime acenou para ele, pouco antes do tiroteio com a Força Pública de Eldorado (...) O tiroteio foi a metros da fazenda, ao lado da Escola Jaime Paiva. Lamarca atravessou também o sítio 0K, do meu tio Carlos, e seguiu para Sete Barras." Depois do tiroteio, conta o escritor, a fazenda foi invadida por soldados que procuravam armas e tentavam estabelecer conexões entre os Paiva e Lamarca. Segundo ele, empregados e amigos da família chegaram a ser presos e torturados, e Carlos levou um tiro no pé acidental em uma das barreiras para cercar Lamarca. À BBC News Brasil, Marcelo Rubens Paiva disse que a família não tinha nenhuma relação com Lamarca e que seu pai era contra a luta armada. "Ele não era comunista, mas do PSB (Partido Socialista Brasileiro) e se elegeu deputado pelo PTB."
As teorias de Bolsonaro sobre esses dois personagens se estendem
até ao desaparecimento de Rubens Paiva. Ele argumenta que o ex-deputado não foi
morto por agentes da repressão, mas por membros da esquerda comandada por
Carlos Lamarca. Segundo Bolsonaro, o grupo de Lamarca teria chegado à conclusão
de que ele foi denunciado por Rubens Paiva depois que este foi preso.
"Ninguém resiste à tortura (…). Então, o grupo do Lamarca suspeitou que Rubens Paiva o havia denunciado", disse Bolsonaro na Câmara em março de 2012. "E esperaram o momento certo. Quando o Rubens Paiva foi detido pelo Exército, posto em liberdade, com toda a certeza, foi capturado e justiçado pelo bando do Lamarca e pelo bando da Esquerda, da VPR. E aí a culpa recai sobre as Forças Armadas." Em 2013, a Comissão Nacional da Verdade divulgou um documento inédito do Arquivo Nacional sobre as circunstâncias da morte do ex-deputado. O coordenador da Comissão, Claudio Fonteles, afirmou "não haver dúvidas" de que Paiva fora torturado e morto nas dependências do DOI-Codi do Rio. Às palavras de Bolsonaro somam-se ações que marcaram sua animosidade contra os Paivas. "Era Jair Bolsonaro, junto com alguns amigos (talvez fossem os filhos, na época eu não sabia quem eram), que se deu ao trabalho do sair de seu gabinete e vir em nossa direção, gritando que 'Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!' A BBC News Brasil procurou o Palácio do Planalto para falar sobre o episódio, mas não teve resposta.
O gesto de Bolsonaro não foi noticiado na época, mas jornais
reportaram como ele vaiou o discurso do então líder do PSOL na Câmara, deputado
Ivan Valente (SP), durante a inauguração do busto.
O tiroteio do terrorista Lamarca
Não muito acontece em Eldorado. É até
difícil distinguir dias úteis de feriados, já que o movimento nas ruas é
parecido, as lojas abertas e vazias, a mesma dupla tocando violão no Centro, os
conhecidos se cumprimentando de novo e de novo pelas calçadas.
Não é de se estranhar que um tiroteio na praça da cidade tenha gerado tanto rebuliço em 1970 – agitação que se mantém até hoje, quando os moradores recontam o enfrentamento entre Carlos Lamarca e a polícia. Falar de 8 de maio de 1970 na cidade é como perguntar onde alguém estava no dia da queda das Torres Gêmeas de Nova York: todo mundo tem uma história. "Quando Lamarca passou eu tinha dez anos. Foi muito tiro! A gente era pequena, mas era atenta. Meu pai disse 'abaixa, abaixa' e foi todo mundo para debaixo da mesa", diz Nilzilene de Oliveira, a vice-diretora da escola Dr. Jayme Almeida Paiva. "O pai da minha amiga foi baleado e ficou com chumbo no corpo até morrer!"
Os relatos ouvidos divergem em alguns
pontos, mas combinados com registros históricos sobre a passagem de Lamarca
pelo Vale do Ribeira constroem uma narrativa sobre o que aconteceu naquela
noite – e onde Bolsonaro estava ao longo da ação.
Carlos Lamarca foi um dos principais nomes da oposição armada à
ditadura brasileira como um dos líderes da VPR (Vanguarda Popular
Revolucionária). Ele chegou a ser capitão do Exército, mas desertou e foi
expulso da corporação em 1969, quando já estava engajado na luta contra o
regime. Participou de assaltos a bancos para financiar as atividades de seu
grupo e comandou o sequestro do embaixador suíço no Brasil, Giovanni Enrico
Bucher, em 1970, que foi trocado por 70 presos políticos. Nesse mesmo ano,
considerado inimigo número um dos militares, Lamarca foi duramente perseguido.
A
perseguição ao terrorista Lamarca pelo Vale do Ribeira
Em abril de 1970, um militante da VPR capturado no Rio de Janeiro revelou que Lamarca estava no Vale do Ribeira, próximo a Registro, formando um grupo de guerrilha. Lá, contou o militante preso, o ex-capitão ensinava tática, tiro, desenhava uniformes e construía armadilhas. O que os livros não detalham foi que, antes de se juntar a seus companheiros, Lamarca teria circulado sozinho pela região. Antônio Avelino de Melo Cunha, policial aposentado e dono de uma pousada em Eldorado, diz que chegou a conhecer o ex-capitão, que se apresentava como estudante universitário, assim como ele. O guerrilheiro teria se hospedado no hotel Eldorado, que ainda fica na praça central da cidade, e dito que gostaria de conhecer as cavernas da região – hoje uma das principais atrações locais. "Ele estava procurando meu avô Guilherme, que tinha sido pesquisador do Exército e descobriu algumas cavernas. Lamarca se aproximou de mim perguntando se eu conhecia alguém da família e eu respondi que era neto. Mas não sabia com quem estava falando", diz Cunha. O ex-capitão teria pedido ao estudante que o levasse até as cavernas e, mesmo avisado que enfrentaria um dia de caminhada, não hesitou.Cunha convidou dois amigos para se juntarem a eles, além de um mateiro que sempre andava com seu avô. Enquanto caminhavam na mata fechada, surpreendeu-se com a agilidade do novo amigo. "Ele dizia que era universitário, mas caminhava na frente da gente e do mateiro também, cortando galho com facão", diz. Lamarca teria ficado alguns dias na cidade, conta o policial aposentado, participando dos bailes e pedindo música para a bandinha local, da qual ele fazia parte.
Aquele tempo serviria para que conhecesse a região a fundo antes
de organizar sua guerrilha.
Mas recebida a informação sobre o paradeiro de Lamarca, em abril de 1970, o Exército foi rápido em enviar 1,5 mil homens ao Vale do Ribeira. À procura de seu inimigo número 1, as tropas fecharam estradas, prenderam dezenas de pessoas e varreram a serra com helicópteros, bombardeando a floresta. "O Exército pousou no meio do campo de futebol, quando o pessoal estava jogando. Os policiais queriam saber se meu tio tinha ajudado Lamarca a fugir, porque ele roubou a canoa do meu tio e desceu o rio. 'Foi roubo mesmo? Foi roubo?' eles ficavam gritando." Informado do perigo, Lamarca desativou suas bases de guerrilha próximas a cidade de Jacupiranga. Oito membros foram embora em ônibus, misturados à população. Outros dois foram capturados na estrada. Sobraram sete. Esses caminharam na floresta por três semanas, até que no dia 8 de maio entraram num vilarejo e alugaram o caminhão de um comerciante. O homem fechou negócio, mas enviou um cavaleiro para avisar a polícia, que montou uma pequena barreira de policiais na praça central de Eldorado. Por volta das sete da noite, quando o caminhão de Lamarca parou na cidade, um policial pediu que os sete passageiros descessem com documentos em mãos. Foi aí que os tiros começaram. Tal versão não bate com a contada por moradores. Eles dizem que o grupo de guerrilheiros roubou o caminhão, obrigando seus donos a dirigirem até Eldorado enquanto ficavam escondidos na traseira, debaixo de uma lona. Quando o veículo parou no posto de gasolina, os policiais teriam desconfiado da movimentação, puxado a lona e passado a atirar. Nessa hora, Bolsonaro estaria em aula na escola Dr. Jayme Almeida Paiva, que fica a 100 metros da praça. Antônio Carlos de Melo Cunha, amigo do presidente eleito, conta que estava na mesma sala quando alguém apareceu na porta para avisar que Lamarca tinha passado por Barra do Braço, a 30 km de Eldorado, e se aproximava.
"Pediram
para o diretor liberar os alunos, mas não deu tempo porque pouco depois veio o
tiroteio. Tivemos que ir rastejando. A polícia não tinha arma e o pessoal do
Lamarca tinha armamento pesado", diz.
Como ele, Bolsonaro e outros alunos moravam
próximo ao rio Ribeira, do outro lado da cidade, e precisaram atravessar a
praça. Antônio diz que o grupo de adolescentes viu um dos policiais feridos ser
carregado, coberto em sangue, até sua casa. O homem foi atingido na perna e
depois precisou amputá-la.
"Os soldados estavam sendo massacrados!", ele arregala
os olhos. "Um grupo de homens invadiu a delegacia para pegar armamento. A
gente gostava do Exército. Os outros, para nós, eram terroristas."
Moradores relatam que Lamarca gritava "não queremos nada com vocês, nosso negócio é com o Exército", tentando evitar mais tiros. Mesmo assim, dois PMs e uma mulher foram baleados.
O ainda
'moleque' Bolsonaro, na caça à Lamarca
Lamarca aparece em 33 discursos de Bolsonaro no plenário da Câmara desde 1995. Como deputado, ele repetiu que, quando adolescente, ajudou os militares a procurarem o guerrilheiro na mata. "Eu sou de Eldorado Paulista. Eu participei, de forma bastante discreta, porque tinha 15 anos de idade, da caça ao Lamarca, ao lado do Ribeira", disse Bolsonaro em sessão de março de 2012.
A mesma história foi citada em entrevista ao Programa Roda Viva, da TV Cultura, já como candidato a Presidência... No texto, o jornalista Plínio Fraga narra o causo do chamado "moleque sabido" de Itapecerica da Serra que, em 1969, ao anotar a placa de um Fusca, teria dado aos militares a primeira pista sobre Lamarca – "moleque" este que não seria o presidente, explica o jornalista. Fraga argumenta que na passagem do guerrilheiro pelo Vale do Ribeira, um ano depois, não haveria registro da ajuda de Bolsonaro.
Apesar de a BBC News Brasil não ter encontrado documentos sobre a
participação do presidente, moradores que testemunharam a operação de busca
dizem que era comum o Exército pedir e receber dicas de pessoas que conheciam
os arredores, inclusive adolescentes.
O
contato entre militares e população foi frequente, já que soldados rondaram a
região por semanas. Lamarca só conseguiu escapar do Vale do Ribeira três
semanas depois do tiroteio.
Filho do escrivão de polícia de Eldorado na época, Antônio Avelino conta que foi informante do Exército, narrando seus encontros com Lamarca. Segundo ele, Bolsonaro fez o mesmo. "Jair Bolsonaro também foi informante. Ele conhecia bem o mato. Indicava para onde eles podiam ter fugido."
Mesmo com todos esses esforços, Lamarca não foi capturado ali. Depois do enfrentamento em Eldorado, escapou em direção a Sete Barras. A pouco mais de um quilômetro da cidade, seu grupo foi interceptado por uma tropa da PM. Os guerrilheiros abriram fogo, ferindo catorze policiais e rendendo outros 18. O pelotão era comandado pelo tenente Alberto Mendes Júnior, de 23 anos, que se tornou refém do grupo. Depois que dois de seus companheiros foram capturados, Lamarca decidiu que o tenente deveria morrer. O assassinato de Mendes Júnior é usado por Bolsonaro como símbolo da violência que a esquerda teria praticado contra os militares durante a ditadura. Ele mencionou o militar ao rebater o pagamento de indenização aos familiares de Lamarca, ao criticar a criação da Comissão Nacional da Verdade e até ao defender a possibilidade de um regime de exceção no caso de vitória de Dilma Rousseff nas eleições de 2010.
"O Tenente Alberto, heroicamente, trocou-se por outros soldados subordinados seus para seguir mata a dentro como refém de Carlos Lamarca, o grande traidor", disse Bolsonaro no plenário da Câmara em 1996. "E depois, como Lamarca não precisava mais dele, porque estava livre, já longe das tropas das Forças Armadas, submeteu-o a bárbaras torturas, em que inclusive foi obrigado a engolir os seus órgãos genitais, assassinando-o a coronhas." A versão de que, antes de ser morto, Mendes teria sido obrigado a engolir seus órgãos genitais não consta nos documentos do Exército, disponíveis no Arquivo Nacional, nem nos escritos do general Carlos Alberto Brilhante Ustra em A Verdade Sufocada, livro de cabeceira do presidente. Em um capítulo destinado apenas a descrever o assassinato, Ustra relata apenas que Mendes foi morto com "violentos golpes na cabeça", deferidos por Yoshitame Fujimore, outro membro da VPR, com a coronha de seu fuzil.
Soldados e meninos
Depois da troca de tiros na praça, soldados continuaram em Eldorado para impedir que o ex-capitão reaparecesse por ali. Moradores contam que os militares acampavam na ponte que passa sobre o rio Ribeira e liga a cidade a Sete Barras, ao norte. A ponte fica no quarteirão onde os Bolsonaro moravam. Os vizinhos Reinaldo e Lúcia Melo lembram os dias em que recebiam os pracinhas da operação para o almoço ou um cafézinho. - "O sargento de Guaratinguetá vinha tomar café em casa. Eles lanchavam, eu fritava uns bolinhos de chuva. Ficaram mais de uma semana acampados aí. As meninas iam lá conversar com eles e muitas ficaram grávidas depois. Meninos iam conversar também, tinham fascínio por esse negócio de arma", diz Lúcia na pequena sala onde cabos e sargentos pediam licença para entrar.
Os amigos
de infância de Bolsonaro relatam como as crianças e adolescentes procuravam os
soldados para saber se o "terrorista" já tinha sido capturado.
"Depois do tiroteio, estávamos conversando com um pracinha quando ele enroscou a arma no cinto e ela disparou. Pegou só no sapato dele, que ficou cravado no chão", ri Antônio Carlos, o colega de turma. "A gente era a favor do militarismo, nunca tivemos problema." Em versão bem conhecida da história – e repetida pelo próprio presidente –, um desses soldados entregou um panfleto sobre o alistamento militar para o jovem Jair.
O sonho da Presidência
João Evangelista, colega de colégio e
parceiro de pescarias do presidente, diz que depois da fuga de Lamarca,
Bolsonaro passou a repetir seu novo sonho: ir para o Exército. Três anos mais
tarde, ele entraria na Academia Militar das Agulhas Negras.
"Depois disso daí, ele sempre falava que queria ir para o
Exército. Achou bonito o trabalho deles."
Em Mito ou Verdade, Flávio Bolsonaro escreve como seu pai
"conheceu e se encantou pelo Exército Brasileiro, quando sentiu tocar no
seu coração a vontade de servir ao seu país".
Para um ex-prefeito da cidade, a influência da passagem de Lamarca na escolha de Bolsonaro é reforçada pela postura de sua família, que não era uma grande apoiadora da ditadura. Fernando Cláudio de Freitas, que administrou a cidade entre 1982 e 1988, era vereador pelo MDB quando Percy Geraldo Bolsonaro, pai de Jair, se candidatou à prefeitura pelo mesmo partido, em 1976. A sigla abrigava os opositores da ditadura. Percy tentou o cargo mais duas vezes – em 1982 e 1988, dessa vez pelo PDS (Partido Democrático Social), sucessor da Arena e extinto em 1993 –, mas nunca foi eleito. O pai de Bolsonaro foi fichado e monitorado pela ditadura em razão de sua candidatura pelo MDB. Documentos oficiais mostram que o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), o Serviço Nacional de Informação (SNI) e o comando da Aeronáutica monitoraram suas atividades políticas e registraram o crime pelo qual ele tinha sido acusado, de exercício ilegal de profissão (medicina, odontologia ou farmácia). Sobre o ex-colega de partido, Freitas diz que era "um cara democrático, liberal e tranquilo".
Ele acredita que o caminho seguido por Bolsonaro foi ditado pelo
episódio de Lamarca e cita seus irmãos como prova: "tanto é que os outros
cinco seguiram caminhos diferentes".
Só o caçula, Renato, foi militar. Depois de candidatar-se à Prefeitura de Miracatu por duas vezes e não ser eleito, e de ser exonerado do cargo de assessor especial da Assembleia Legislativa de São Paulo sob o argumento de que seria funcionário-fantasma, hoje ele administra lojas de móveis no Vale do Ribeira. Os outros irmãos também estão no comércio. Cláudio lembra que a oposição ao governo era feita "dentro da legalidade e da normalidade". Não havia ali defensores do comunismo ou socialismo, mas pessoas contrárias a ações do regime, como o desaparecimento de inimigos políticos. A disputa entre Arena e MDB era mais parecida a uma partida de futebol do que a um campo de batalha, ele compara.
Quando
estava no Exército, Bolsonaro já dizia que queria ser presidente!
"Jair,
então logo logo você vai ser presidente", disse um colega.
"Mas
é o meu sonho", ele respondeu. "Um dia ser presidente!"
João explica o contexto da conversa. Segundo ele, o colega dizia que, subindo rápido assim, um dia Jair poderia tornar-se general e assumir a Presidência do Brasil como Castelo Branco, Costa e Silva e Médici haviam feito. Um dia, Bolsonaro poderia tornar-se o comandante máximo do regime. "Naquela época, era o militarismo que tomava conta do Brasil. 1970 era o Garrastazu, Garrastazu Médici", ele explica.
"Jair disse: 'meu sonho é um dia ser presidente' só que
naquela época era o militarismo. Porque era militar, né, general, coronel, que
ia para a Presidência."
Para a maioria dos moradores entrevistados,
a forte presença de quilombolas na região foi um dos motivos para que a votação
de Bolsonaro não fosse tão expressiva em Eldorado. O presidente teve 54% dos
votos contra 45% de Fernando Haddad (PT).
"O PT é
forte aqui com os quilombos, as ONGs e a igreja católica. Para mim o número foi
vergonhoso, tinha que ter sido muito mais", diz a professora aposentada
Mara Cristina de Freitas Cunha, mulher de Antônio Carlos, um dos velhos amigos
de Bolsonaro.
Ao perguntar a moradores por que escolheram seu conterrâneo para o cargo mais alto do país, o motivo que se destacava não era ideológico, mas econômico: "Esperamos que ele trabalhe para melhorar o Vale do Ribeira". Do outro lado, a preferência dos quilombolas por Haddad não vem apenas da proximidade do PT com movimentos sociais, mas da indignação que uma declaração de Bolsonaro causou. Em abril de 2017, já pré-candidato a Presidência da República, ele disse em uma palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, que havia visitado um quilombo em Eldorado Paulista e seus habitantes "não faziam nada". "O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles", discursou. O então deputado também afirmou que, se eleito, nenhum "centímetro" a mais seria destinado para reservas indígenas ou quilombolas. Leonila franze a testa quando a reportagem pergunta sobre as menções de Bolsonaro a seus amigos negros, citados para rebater acusações de racismo. Gotas de suor correm por debaixo de seus óculos enquanto ela aperta os olhos. "Isso pode ser lá onde ele nasceu, mas em Eldorado, não! Sempre foi separado. Hoje está menos, mas é porque está enrustido. Naquela época, se fosse do sítio e pobre era discriminado. Se fosse negro, pior ainda!" O pai de Leonila fazia parte da Congregação Mariana, uma associação pública de leigos católicos, e todo domingo caminhava por horas para ir a missa na cidade. Ele sempre levava os filhos, para quem recomendava: "não sentem na frente senão vão tirar vocês de lá". No carro, ao voltar do quilombo para Eldorado, onde hoje mora com uma prima, Leonila diz que ainda não se sente bem na cidade. Elas se mudaram há alguns anos, quando um tio adoeceu e precisou de tratamento no hospital local. Para explicar seu desconforto, lembra de uma procissão em que ela e outras duas mulheres negras foram escolhidas para carregar a imagem da santa. Ao deixarem a igreja, um grupo teria tirado a estátua de suas mãos. Leonila conhece os Bolsonaro. Quando Percy Geraldo chegou com a família a Eldorado, para administrar uma fazenda às margens do Ribeira, ela diz que o dentista pediu dinheiro emprestado a seu pai, então um inspetor de quarteirão. Sem conseguir pagar, Geraldo ofereceu seus serviços. Vários dentes de Leonila foram arrancados por ele:
"O pai era um homem muito humilde. Ele tinha um gabinete na
cidade, bem organizadinho e bem pobrezinho. Essa aqui também tirou dente",
ela diz, apontando para Virginia, sua prima, que senta a seu lado no pátio da
Igreja do Abobral.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46845753
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