No breve livro
Somente o Amor é Digno de Crédito (1963), o teólogo suíço Hans Urs Von
Balthasar explica a sua posição teológica no contexto da história da teologia
cristã.
A teologia da
idade patrística, medieval e renascentista superou o caminho cosmológico,
apresentando o cristianismo como o cumprimento da interpretação do mundo a
partir da antiguidade.
A teologia da época moderna operou uma mudança e a
prática da via antropológica:
“O cristianismo
apresenta-se como a mais profunda interpretação do homem”
Mas, para Von
Balthasar, tanto a via cosmológica, quanto a via antropológica são
interpretações redutivas, uma vez que usam o cosmos e a existência humana como
critérios para justificativa do cristianismo, que , ao contrário, tem em si
mesmo e exibe por si só a sua justificativa.
A terceira via, a via
balthasariana, é a via do amor: “Somente o amor é digno de crédito”.
Na revelação
cristã é o amor absoluto de Deus, que, em Cristo por si só, vem ao encontro do
homem, Deus se auto apresenta em Cristo na glória de seu amor absoluto. Essa
via recebe o nome de Estética Teológica, não no sentido de uma teologia
estética, que mostra como o cristianismo promove seu senso estético e as artes,
mas em um sentido mais forte seja subjetivo, seja objetivo. A fé cristã, no seu
polo subjetivo, é a percepção e visão da Forma (Gestalt), como polo objetivo,
que aparece na figura histórica do Cristo, como Verbo de Deus feito homem,
revelação da glória de Deus e da sua vontade universal de salvar.
(O trecho é de Hans Urs
Von Balthasar, publicado no livro Glaubhaft ist nur Liebe (1963) e reproduzido
pelo sítio Teologi@Internet, 01-10-2013. A é de Anete Amorim Pezzini.)
Qual a essência do cristianismo?
Jamais, na
história da igreja, a referência a uma pluralidade de mistérios para acreditar
satisfez como resposta última: sempre se tem como alvo um ponto unitário em que
se encontre sua justificativa para o pedido de acreditar que é feito para o
homem: um logos também de caráter e natureza particulares, mas, no entanto, tão
persuasivo, de fato tão esmagador e irresistível que, fugindo das “verdades
históricas contingentes”, confere-lhes caráter de necessidade.
Sim, os
milagres e as profecias que se realizaram têm a sua parte (se bem que seu valor
e seu poder interpretativo parecem consideravelmente reduzidos a partir dos
tempos da crítica bíblica do iluminismo), mas o ponto de referência a que se
referem acha-se colocado além dele.
A Patrística,
a Idade Média, o Renascimento, cujos epígonos chegaram até os dias de hoje,
colocaram esse ponto sobre o plano cósmico, enquadrando-o na história do
universo; a era moderna, a partir do Iluminismo, ao contrário, transferiu-o
para um plano antropológico.
Se a primeira
tentativa resulta limitada e confinada dentro dos limites do tempo e da
história, a segunda faliu como sistema: aquilo que Deus pretende dizer ao homem
por intermédio de Cristo não pode receber sistematização nem no mundo como um
todo, nem nos seres humanos, em particular; isso é absolutamente teológico, de
fato, melhor ainda, teopragmático: é ato de Deus nas comparações com o homem,
ato que se explica antes do homem e para ele (e, portanto, assim pode encontrar
nele e com ele a sua explicação).
Desse ato deve
ser dito que ele só é digno de crédito apenas como amor: queremos dizer o amor
próprio de Deus, cuja manifestação é a da glória de Deus.
“A autoconsciência
cristã (e, portanto, a teologia) não pode ser explicada, colocando em
fundamento e justificativa uma sabedoria adquirida mais por meio de revelação
divina que sublime e transcenda a cognição religiosa humana (ad maiorem gnosim
rerum divinarum), ou o homem tomado individualmente e como entidade social, que
recebe apenas por intermédio da Revelação e da Redenção uma consciência
definitiva de si mesmo (ad maiorem hominis perfectionem et progressum generis
humani), mas que só pode ser explicada, justificando-a como a autoglorificação
do amor divino: ad maiorem divini amoris gloriam.”
No Antigo
Testamento, essa glória (kābhôdh) consiste na presença da augusta majestade de
Javé na sua aliança (e – transmitida pelo trâmite desta – em todo o mundo), no
Novo Testamento, essa sublime glória explica-se como o amor de Deus em Cristo
que desce para o abismo extremo de trevas e de morte. Esse quid extremum (a
verdadeira escatologia), que, se tudo é concebido em termos de cosmos e de
homem, é absolutamente inimaginável, pode ser percebido na sua realidade
somente acolhendo-o como a “alteridade absoluta”.
Esse esboço servirá, portanto, também para
esclarecer a linha diretiva e os escopos do meu mais laborioso trabalho
intitulado:
Gloria, uma
“estética teológica” no duplo sentido de uma doutrina subjetiva da percepção e
de uma doutrina da autointerpretação objetiva da glória divina. Esse esboço
servirá para mostrar que esse método teológico, bem longe de representar um
subproduto irrelevante e supérfluo do pensamento teológico, ao contrário, tem o
direito e o dever de promover a pretensão de ser colocado como único método
definitivo no centro da teologia, lá onde a verificação cosmológica e
antropomorfa podem, no máximo, serem admitidas como ponto de vista de natureza
complementar.
E, com isso,
resta especificado que o que vem aqui chamado com o nome de “estética” é
entendido como algo puramente teológico, isto é, como a intuição, possível
somente na fé, da gloriosa manifestação do amor absolutamente livre de Deus.
A Trilogia: Teo-Fania, Teo-Dramática, Teo-Lógica
Esta obra¹
constitui a tentativa de desenvolver a teologia cristã à luz do terço
transcendental, de completar, isto é, a consideração do verum e do bonum mediante
aquela do pulchrum.
A introdução
mostrará em que medida o pensamento cristão foi empobrecido pela perda dessa
perspectiva que uma vez permeava tão fortemente a teologia. Não se trata,
portanto, devido a uma vaga e nostálgica melancolia, de fazê-la deslizar sobre
uma estrada lateral, tranquila e pouco frequentada.
Trata-se antes de
trazê-la novamente para a estrada principal, abandonada, sem por isso desejar
afirmar que a perspectiva estética deva substituir, para o futuro, na condução
da teologia, aquela lógica e ética.
Os
transcendentais, na verdade, não são absolutamente separáveis e o esquecimento
de um deles não pode deixar de ter um efeito destrutivo sobre os outros. É
melhor, portanto, justamente para o interesse comum, não estigmatizar a priori essa
tentativa – a maior parte dela não pode e não deseja ser – como “estética”,
para livrarem-se dela imediatamente, mas procurar, em primeiro lugar, prestar
atenção ao que isso quer dizer.
O trecho é de Hans Urs Von Balthasar,
publicado no livro Schau der Gestalt (1961). Tradução do italiano de Giuseppe
Ruggieri, com tradução para o português de Anete Amorim Pezzini.
Uma “estética
teológica”, para manter um equilíbrio adequado, deveria prolongar-se em uma
“dramática teológica”² e em uma “lógica teológica”³. Se a primeira tem como
objeto principalmente a percepção da verdade (Wahrnehmung) da manifestação
divina, a dramática teológica deveria tratar especialmente do conteúdo dessa
percepção, do agir de Deus para com o homem, enquanto a lógica deveria ter como
objeto a modalidade de expressão divina (mais exatamente: divino-humana e,
portanto, sempre já teológica) desse agir. Somente agora o pulchrum apareceria
no lugar do todo estruturado: como a maneira pela qual o bonum de Deus se dá, e
pode ser afirmado por ele e compreendido pelo homem como verum. Deus não deu a
Abraão, nas palavras proferidas, o primeiro comando para acreditar: isso que
perceberam como verdadeiro era a verdade de uma ação de Deus nas suas
comparações; somente séculos mais tarde, talvez essa ação expressou-se como
palavra humana. E isso já não no sentido de “no início era a ação”, de Faust e
Fichte, já que o drama entre Deus e o homem é sempre já
palavra-significado-lógos. Trata-se todavia de uma palavra que vem e que não
pode ser reduzida às simples dimensões de uma palavra de testemunho.
NOTAS DE REFERÊNCIAS:
1 [Cf. Gloria.
Una estetica teologica, 7 v., 1961-1969].
2 [Cf.
TeoDrammatica, 5 v., 1973-1983].
3 [Cf.
TeoLogica, 3 v., 1985-1987].
FONTE: Rosino
Gibellini (ed.).
A TEOLOGIA DA HISTÓRIA:
*Pedro Miguel
Sousa Santos
Mt 5,17-18: Não pensem
que eu vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim abolir, mas dar-lhes pleno
cumprimento. Eu garanto a vocês: antes que o céu e a terra deixem de existir, nem
sequer uma letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo aconteça.
Cristo dará
pleno cumprimento à promessa do Antigo Testamento. Lei e profecia encontram na
pessoa do Cristo a sua plena concretização. A encarnação do Verbo é uma atitude
de recepção à vontade do Pai, pois Cristo deixará às claras que sua missão é
fazer “a vontade daquele que o enviou”, por isso, entender a vinda kenótica do
Messias é, antes de tudo,compreender “a receptibilidade para tudo o que vem do
Pai, o que para o Filho se chama tempo em sua forma de existir como criatura, e
estabelece a temporalidade”.
Diante de um plano
salvífico, percebem-se os elementos revelados da forte relação no Cristo entre
palavras e obras, uma verdadeira “economia” que se destina a promover a
salvação.
Esta economia
da salvação, na acepção da palavra, é vinculada fortemente ao aspecto
comercial, como também à consequência desta economia, o ato de redimir, porque
Deus mesmo faz um comércio entre os homens oferecendo o seu Filho para
“comprar” através de sua cruz todo “débito atrasado”: pecados, falhas,
infidelidade.
Ora,[a] morte
de Jesus é compreendida como Redenção e aqui importa perceber a profundidade
semântica de que o termo se reveste. O verbo latino emere significa comprar,
tomar de volta. A raiz deste verbo pela forma do infinitivo (em) e pela forma
do seu supino (emptum) encontra-se na origem de todos os termos que se referem
à ação de resgate de uma dívida: redenção, redentor,redimir, remir.
Se Jesus é nosso
redentor, isso quer dizer que ele é o nosso comprador, aquele que negociou e
pagou a nossa dívida, a qual não tínhamos qualquer condição de dissolver, de
quitar. A raiz latina aqui em relevo, associada a outra raiz (red, retro =
direção para trás) imprime forte carga semântica ao termo: sendo nosso red
em(p)tor, Jesus negociou com sua própria vida todos os nossos débitos
atrasados, numa verdadeira relação de comércio.
Portanto, o
Messias suprime todo o sacrifício do Antigo Testamento e, por consequência, se
dá como único sacrifício para colocar de novo os homens no caminho da História,
como sinalização do destino espiritual da humanidade.
O tempo será entendido
como forma escolhida para Deus realizar o seu desígnio eterno.
A vinda do Filho de Deus faz levantar uma questão:
“Como se pode universalizar a existência histórica
individual de Cristo como norma da existência histórica?”
Uma diferenciação já poderá ser demonstrada a
partir de uma visão da parte do Cristo e outra da humanidade. O enviado o é da
parte de Deus:
Imagem,
palavra e resposta; e a humanidade, por conseguinte, está em comunhão na
perspectiva de criatura e criador, ou seja, ela é criada, enquanto a Cristo
cabe uma vida como vontade, como aceitação da vontade do Pai.
Jesus se torna
para a humanidade “um supremo protótipo do homem em geral, o qual se faz
arquétipo precisamente para todos os demais”22.
Esse acolhimento à vontade do Pai em Cristo será a noção
primaz de uma teologia da história, que é na ação messiânica a temporalidade,
pois há uma compatibilidade entre a forma da existência no tempo e a existência
eterna.Quando em Adão a humanidade pecou, através de um exemplar da raça, nada
mais foi do que uma antecipação autopremiativa, pois não tinha“chegado a hora”
na qual o homem pudesse obter a posse do “conhecimento”.
Em Jesus, o
“novo Adão”, porém, ao fim da revelação, concederá ao vencedor o prêmio do
fruto do paraíso23, que o pecador teria roubado ainda imaturo.Há uma forte
relação do Messias com um aspecto temporal: as diversas “horas” de sua própria
vida, em todo o contexto do evangelho de João,podem ser muito bem observadas.
O Cristo Joânico está
imbuído de um forte relacionamento com o momento certo de realizar milagres,
voltar para o Pai, admoestar os seus seguidores em anúncio escatológico etc.
Diante de um
casamento em Caná, Ele diz à sua mãe aflita pela falta do vinho:
“Minha hora
ainda não chegou”24; no episódio do diálogo com a Samaritana, desfazendo
prescrições religiosas em que se determinava o local para a adoração a Deus:
“mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o
Pai em espírito e verdade, e são esses adoradores que o Pai deseja”25; em suas
catequeses escatológicas: “em verdade, em verdade vos digo: vem a hora, e já
está aí, em que os mortos ouvirão a voz do filho de Deus; e os que a ouvirem
viverão”26.
A
Formgeschichte 27 adotada pelos exegetas pretende analisar as mais diversas formas
que os evangelistas têm de elucidar a pessoa do Cristo.
“Bem se pode observar
nos quatro evangelhos canônicos que, para além de buscar a credibilidade do
testemunho que eles poderiam prestar sobre os acontecimentos da vida de Jesus,
eles ratificam o aspecto histórico do Filho de Deus, considerando que a sua
vinda tem propósitos da parte de Deus, e o seu tempo é a mais plena correlação
entre o cronos e o kairós, um mensurável, vida da realidade; outro,
in-comensurável, tempo de Deus.”
Portanto, as etapas da vida do Cristo estão em
plena correlação. Diz Balthasar:
A encarnação
não é a enésima representação de uma tragédia que já estava há muito tempo
preparada no arquivo da eternidade. É processo originalíssimo, tão irrepetível
e tão sem manuseio como o nascimento do Filho desde o Pai, cumprindo-se
eternamente agora28.
O tempo na
relação do Filho com o Pai é um tempo de cumprir a sua vontade, um receber
tempo que se reproduz na humanidade como o tempo que Deus lhe dispensa através
de Jesus.
O processo da
Encarnação do Verbo é a pura aceitação do projeto de Deus encarnado em Cristo
e, por isso, não dissociado de sua vontade que deve ser posta em prática.
O Verbo se encarna para
cumprir uma missão – “eu vim para que todos tenham vida, e vida em
abundância”29 –; portanto, o restituir a vida à humanidade só se dá a partir de
um processo de redenção,que só é entendido caminhando pari passu com a
realização de uma vontade, mas também de uma promessa, a profetização paterna.
O agir do Pai
na lei e na profecia será para Jesus como itinerário contínuo por onde Ele
pautará a sua vida e sua atividade messiânica, pois “o Filho, ainda quando se
adapta à forma histórica da vontade do Pai, não obedece aos homens, senão a
Deus; mas a um Deus que se envolveu tanto com a sua criação que deve obedecer à
consequência da Paixão de sua própria livre decisão”30.
A morte na
cruz do Cristo é, de uma vez por todas, o último e único sacrifício, que leva a
termo todas as prescrições do Antigo Testamento.Cristo é o “cordeiro sem
manchas” que vai para o sacrifício para salvar da morte, agora não só a
primogenia judaica, mas, diversamente, a humanidade inteira. E promete que a
morte abrirá caminhos para outro plano,o da eternidade.
Portanto, a
história cristã apresenta a perspectiva no Cristo da Ressurreição: “Deus,
porém, o ressuscitou no terceiro dia”31.
Como ator que cumpre seu papel, o Messias realiza
o projeto salvífico:
Morte,
ressurreição e, por fim, ascende ao Pai, volta ao convívio de Deus e põe o ser humano sob os cuidados da
Graça, do Espírito Santo. Ciente de que a condição
humana é descensus de Deus, Ele envia o Paráclito que advogará a favor de todos, dando-lhes
até a linguagem própria para o ascensus com o
divino: “porque somos filhos, enviou Deus a nossos corações o Espírito de seu Filho que clama:
Abbá, Pai!”32.
O Espírito Santo,
segundo Balthasar, servirá para universalizar a existência histórica individual
de Cristo. É ele que cunha a história e a fisionomia tanto da Igreja quanto do
crente individual, aplicando-lhes a vida de Jesus.
Destarte, o
spiritus paraclitus será, por assim dizer, a condução da Igreja de Cristo, a
qual, segundo a metáfora paulina é o corpus mysticum, onde cada membro do corpo
tem sua função e sua complementaridade para a harmonia do todo, onde Cristo é a
cabeça.
Essa divisa paulina de
estreitar a comparação entre o Cristo e a humanidade como membros de um corpo é
usada como correlação da unidade que acontece dentro da diversidade: muitos são
os membros, no entanto,um apenas é a cabeça, o guia.
Há uma
igualdade entre os membros, porque,necessitados da unidade do corpo que é
Cristo, portanto, como na fisiologia humana a cabeça é o centro da
racionalidade, que dá o comando para a atuação dos outros membros, cotejada ao
Cristo, Ele é quem submete a humanidade aos seus desígnios e não raras vezes
determina:
“Se a tua mão é ocasião
de escândalo para ti, corta-a. É melhor entrares para a vida sem uma das mãos,
do que, tendo as duas mãos, ires para o inferno,onde o fogo nunca se apaga. Se
o teu pé é ocasião de escândalo para ti, cortao. É melhor entrares para a vida
sem um dos pés, do que, tendo os dois pés,seres jogado no inferno. Se o teu
olho é ocasião de escândalo para ti, arranca-o. É melhor entrares no Reino de
Deus com um olho só, do que, tendo os dois olhos, seres jogado no inferno33.”
A graça, que é
o Espírito Santo, é posta pela Teologia na conexão com a História, qual seja
uma História providencial, na qual Deus não é atingido pelo mundo ou pela
história, dita empírica; mas, mesmo essa tem como marco divisório a pessoa do
Cristo, como é posto antes e depois Dele.
O tempo assumido pelo Cristianismo
é um tempo linear, no qual toda a história da raça humana se encerra em seu
Criador, tendo como marco divisório o pecado e, por consequência, a culpa de
Adão como um passado;a vinda do Messias para salvar o gênero humano, como um
presente que põe a humanidade de novo em marcha “expectante” em relação ao seu Criador.
Um futuro de juízo final, no qual o “eterno Ceifador” na visão das Escrituras34
montará o seu tribunal e a alguns dará o prêmio da eternidade.
Sendo o
primeiro inquiridor sobre o sentido da história, a Santo Agostinho se liga
normalmente a origem da teologia cristã da história, em bases fi-losóficas.
O mote desta inquietação é a pergunta: “o que é o
tempo?” Ao que ele responde:
“se ninguém me pergunta,
eu sei; porém, se quero explicá-lo a quem me pergunta, então não sei”35.
Para o
prelado, como para tantos outros na esteira das ideias medievais, o tempo de
Deus é insondável e a sua medida só se pode dar através da distentio animae, a
mensura só existe na alma humana e não na realidade objetiva, pois este tempo
divino está em constante devir e, segundo Agostinho, só se pode mensurá-lo
enquanto este passa, mas,se este está passando, não se pode mais medir, porque
já não existe.
O bispo de
Hipona, portanto, afasta todo conceito do tempo divino relacionado com ideias
objetivas, mas, pelo contrário, o considera totalmente díspar em relação à
eternidade divina. A metáfora agostiniana da arquitetura da “Cidade de Deus” e
da “Cidade dos Homens” demonstra que, em relação à primeira, é o lugar da
eternidade “aquela de que dá testemunho a Escritura”,da eterna felicidade, onde
se caminha para a descoberta da verdade; a civitas hominis está em constante
queda e nela se proliferam as desgraças.
Uma possível
aproximação desta cidade terrestre com aquela de Deus só se dá, segundo o
prelado, com o auxílio incessante da Graça que, pelo eterno querer de Deus, a
uns foi dado conhecer este auxílio, a outros não.
O conhecimento
pleno de Deus em Agostinho, portanto, está numa predestinação36.O próprio
apóstolo dos gentios, Paulo de Tarso, é o fundador da doutrina da
predestinação, pois segundo ele:
“Os que ele distinguiu
de antemão, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a
fim de que este seja o primogênito entre uma multidão de irmãos. E aos que
predestinou, também os chamou; e aos que chamou, também os justificou; e aos
que justificou, também os glorificou37.”
Isso
significa, de antemão, que a humanidade ou a cidade dos homens está marcada
desde toda a eternidade por aqueles que terão plena cidadania na“Jerusalém
Celeste” e aqueles que já estão condenados à danação.
Qual é o papel que cabe ao homem diante desta
falta de certeza?
O peregrinar esperançoso,
expectante, pondo sua confiança no auxílio da graça. Segundo um aspecto da
interpretação teológica, foi minado pelo cristianismo todo otimismo da
história, e esta peregrinação se dará em trevas, sem ter a precisa noção em que
resultará a ação humana, tudo por consequência do pecado, “não um pecado que,
deliberadamente, decidimos praticar, mas um pecado inerente e original, próprio
da nossa natureza”38.
Para muitos críticos
do cristianismo, momento propício em que o homem arquitetou seu próprio destino
e rumou na construção de sua própria história, ao que a teologia rebaterá: a sabedoria utilizada
nas ações humanas não é própria do homem, é a sabedoria de Deus, por cuja graça
os desejos do homem são dirigidos para fins dignos39.
Assim, na
teologia da história, os planos que são concretizados pela ação humana no seu
transcurso histórico não surgem porque os homens os tenham decidido dentro de
sua capacidade, mas sim porque os homens nos seus engenhos executaram os
desejos de Deus.
A dimensão
eclesial auxilia nesta peregrinação da humanidade, de modo que o depositum
fidei também é mantenedor da história da salvação na forma de sua
sacramentalidade dispensada pelo Espírito Santo, no tempo da Igreja.
Isso significa que o
passo a ser dado pelo homem é a fé, em sua conceituação mais primaz: a crença
naquilo que não se vê. Segundo Tomás de Aquino, em seu Adoro te devote 40,
“visus, tactus, gustus in te fallitur”,ou seja, os sentidos falham, esta
percepção não comportará provas empíricas,mas o silêncio de uma fé resignada.
Imprime-se uma dimensão na qual o divino se revelará à humanidade através de
uma crença individual.
Ou,como expressa Balthasar:
“Numa teologia dos mistérios, em que a presença de Cristo e
sua aplicação graciosa ao ato sacramental estejam determinadas pessoalmente em
suas qualidades por Ele mesmo e, certamente, por parte de sua existência
terrena”41.
A Teologia não se resume
a um único fato que explica e dá conta de uma vez por todas de sua abrangência.
Mas, ao contrário, está marcada por um processo de encadeamentos: criação,
juízo final, Deus trinitário, história providencial, etc. Quando se trata de
uma Teologia da história, de um fato se parte como questão fundamental: “uma
dependência a qual a teologia tem um objeto para informar: Jesus [...], sua
palavra, à qual várias tradições do cristianismo primitivo recorrem como
completa demonstração de sua existência”42.
A recepção das ideias cristãs afetou efetivamente
o modo como a história era concebida:
Relativiza-se
todo e qualquer otimismo em relação à história, porque o processo histórico aqui
não é execução das intenções humanas, mas dos desígnios divinos; e Deus assume
o papel de predeterminar o fim e o que deve ser o desejo dos homens, pois “todo agente humano sabe
o que quer e procura atingir o seu objetivo, mas não sabe por que razão o quer:
a razão por que o quer está no fato de Deus o ter levado a querê-lo, a fim de
fazer avançar o processo de concretização dos Seus desígnios”43.
Em certo
sentido, o homem é o único agente histórico com atuação imediata na História,
porque tudo o que acontece depende de sua vontade; no entanto, noutro sentido,Deus
é o único agente, pois é apenas através da providência que o homemagente pode
chegar à consecução de seus planos.
A Teologia estabelece a divisão da história em
profana e sagrada:
1)- A primeira
representa apenas os acidentes de um processo de transformação histórica, no
qual, por exemplo, uma grande potência pode viver por alguns anos de seu
poderio bélico e econômico, mas não é uma entidade eterna, senão uma coisa que
nasceu num determinado tempo, na história,para executar funções e desaparecer.
2)- A
concepção sacra da história traz como mote de sua interpretação um Deus que, em
primeiro lugar, faz nascer o mundo a partir do nada e, daí em diante, tem sob
sua custódia cada passo deste contínuo em sua eterna vontade.A fé será o
alicerce da humanidade diante da caducidade da história profana,uma vocação
sobrenatural que será o método para o trato com uma teologia cristã da
história.
Henri Marrou
irá acentuar essa necessidade diante do que ele chama de la foi philosophique
44, ou seja, o papel legítimo que deve desempenhar a fé na sua relação com a
história; assim ele explica:
“Não temos aí um tipo de
conhecimento excepcional, que estaria adstrito acaso particular da fé
teológica. Os cristãos serão, por sua própria natureza, particularmente
sensíveis a esse caso supremo, para eles especialmente importante:ao contrário
de outras religiões que só invocam verdades eternas ou símbolos místicos, o
cristianismo está assentado em verdades de caráter histórico: a Encarnação, a
Paixão, a Ressurreição45.”
A fé é utilizada para propósitos da história e o
cristianismo, religião histórica,foi levado a refletir sobre a noção de fé:
Em primeiro
lugar, não é um ato irracional ter conhecimento pela fé, mas, antes de tudo,
procede de um método racional que passa por hesitações na hora de maior
certeza, em outros momentos, de incerteza, contudo, não deixa de ser um ato de
fé na medida em que o historiador consegue fundá-lo racionalmente.
Portanto, este foi o caminho que uma teologia da
história fundou:
Escrita sob o
signo de um Messias torna-se universal à medida que não mais tem por
perspectiva uma raça eleita, mas a humanidade inteira; providencial por ser
totalmente dependente de um Deus que rege a sua criação no tempo e fora dele;
escatológica porque aponta em duas direções: a primeira,em caráter prospectivo,
preparação para um acontecimento ainda não revelado; a segunda, de caráter
retrospectivo, dependente da revelação se realizar agora e, ambas, balizadas
pelo nascimento de Cristo.
BIBLIOGRAFIA:
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cidade de Deus, Trad. João Dias Pereira, vol. II, Lisboa: Calouste
Gulbenkian,
2000.
_______,
Confissões, Trad. Maria Luiza Jardim Amarante, São Paulo: Paulus, 1984.
_______, A
graça (I), Trad. Agustinho Belmonte, São Paulo: Paulus, 1998.
BALTHASAR,
Hans Urs von, Teologia da História, Trad. Claudio J. A. Rodrigues,São Paulo:
Fonte Editorial, 2005.
BARBAGLIO,
Giuseppe / DIANICH, Severino, Nuovo Dizionario di Teologia, Roma: Edizione
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COLLINGWOOD,
R.G., A ideia de história, Trad. Alberto Freire, Lisboa: Presença,1972.
ESTRADA, Juan
Antonio Diaz, Deus nas tradições filosóficas, vol. I: Aporias e problemas da
teologia natural, São Paulo: Paulus, 2003.
GALVÃO, José
Raimundo, “Resgatando o sentido das mercês”, Boletim Informativo Mensagem 39
(2008/nn.202-203) 6-9.
MARLÉ, René,
Bultmann et la foi chrétienne, Paris: Montaigne, 1967.
MARROU, Henri-Irénée,
Sobre o conhecimento histórico, Trad. Roberto Cortes de Lacerda, Rio de
Janeiro: Zahar, 1978.
OTTO, Rudolf,
O Sagrado: Um estudo do elemento não-racional na ideia do divino
e a sua
relação com o racional, São Bernardo do Campo.
PADOVESE,
Luigi, Introdução à Teologia Patrística, São Paulo: Loyola, 1999.
TOMÁS DE
AQUINO, Cantus selecti, Org. Abbaye
Saint-Pierre, Solesme, Tournai:Desclée & Co., 1949.
NOTAS DE REFERÊNCIAS:
20 BALTHASAR,
Teologia da História, p. 29.
21 J.R.
GALVÃO, “Resgatando o sentido das mercês”, Boletim Informativo Mensagem 39(2008/nn.202-203)
6-9.
22 BALTHASAR,
Teologia da História, p. 28.
23 Ap 2,7: Ao
vencedor darei comer da árvore da vida que está no Paraíso de meu Deus.
24 Jo 2,4.
25 Jo 4,23.
26 Jo 5,25.
27 Chamada na
acepção da palavra “História das formas”, é uma disciplina da exegese e da
hermenêutica teológica que estuda os mais diversos gêneros literários da
Bíblia, e aqui utilizado, especificamente, no tocante aos quatros evangelhos
canônicos: Mateus, Marcos,Lucas e João.Sem título-1 417 25/11/2011, 07:50 - 418
Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, Ano 43, Número 121, p. 411-423, Set/Dez
2011
28 BALTHASAR,
Teologia da História, p. 33.
29 Jo 10,10.
30 BALTHASAR,
Teologia da História, p. 45.
31 At 10,40.Sem
título-1 418 25/11/2011, 07:50-Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, Ano 43,
Número 121, p. 411-423, Set Dez 2011 419
32 Gl 4,6.
33 Mc 9,42-47.
34 O
evangelista Mateus (Mt 25,32) já deixa antever que o símbolo do juízo final,
num futuro de Deus, será a “reunião de todos os povos diante Dele, e ele
separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos”.Sem
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43, Número 121, p. 411-423, Set/Dez 2011
35 AGOSTINHO,
Confissões, p. 338.
36 AGOSTINHO,
A Cidade de Deus, Livro XI.
37 Rm 8,28-30.
38 R.G.
COLLINGWOOD, A ideia de história, Trad. Alberto Freire, Lisboa: Presença,1972,
p. 65.Sem título-1 420 25/11/2011, 07:50-Perspectiva Teológica, Belo Horizonte,
Ano 43, Número 121, p. 411-423, Set Dez 2011 421
39 Ibid., p.
66.
40 TOMÁS DE
AQUINO, Cantus selecti, Org. Abbaye
Saint-Pierre, Solesme, Tournai:Desclée & Co., 1949, pp. 11-12.
41 BALTHASAR,
Teologia da História, pp. 70ss.
42 R. MARLÉ, Bultmann et la foi chrétienne, Paris: Montaigne, 1967, p.
90.
43 COLLINGWOOD,
A ideia de história, p. 67.Sem título-1 421 25/11/2011, 07:50-422 Perspectiva
Teológica, Belo Horizonte, Ano 43, Número 121, p. 411-423, Set/Dez 2011
44
Terminologia emprestada de uma conferência de Karl Jaspers, na qual este
explicava o papel que a fé exerce na História.45 H.-I. MARROU, Sobre o
conhecimento histórico, Trad. Roberto Cortes de Lacerda, Rio de Janeiro: Zahar,
1978, pp. 108-109.Sem título-1 422 25/11/2011, 07:50-Perspectiva Teológica,
Belo Horizonte, Ano 43, Número 121, p. 411-423, Set Dez 2011 423
*Pedro Miguel Sousa
Santos: é mestrando em
Filosofia pela Universidade Federal da Bahia. Graduou-se em Filosofia em 2010
pela Universidade Federal de Sergipe. Foi professor de Filosofia do Colégio
Arquidiocesano de Aracaju, onde lecionou as disciplinas de Filosofia e Ensino
Religioso. Trabalhou também no Instituto Dom Luciano Duarte selecionando e
analisando as obras do arcebispo emérito de Aracaju na área de Filosofia. É membro
do NEPHEM/UFS Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Filosofia da História e Modernidade.
FONTE:
Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, Ano 43, Número 121, p. 411-423, Set Dez
2011
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